Monte Alverne - Sermão do Mandato e Sermão do Menino Deos

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(continuao do discurso preliminar) Depois da mais laboriosa apllicao, depois dos mais serios embaraos, e estorvos quasi insuperaveis, est realisada a escolha dos meus discursos. Empreguei toda a severidade possivel, excluindo um grande numero de sermes. Entretanto minha colleo poderia ser mais rica, se a perfidia, e o mais revoltante abuso de confiana no me tivesse privado de quatro dos meus mais bellos sermes. Um delles, uma orao de Aco de graas por a restaurao da Bahia na guerra da independencia; e que me fra encarregada por o Senhor D. Pedro I. Esta orao no tinha sido recitada por circumstancias extraordinarias, que impediro a solemnidade religiosa. O segundo um panegyrico de S. Miguel, no qual afastando-me das idas geralmente adoptadas, colloco o Archanjo testa dos grandes acontecimentos da Religio, e da humanidade: o protector da antiga Synagoga contina no Christinismo sua misso augusta, e celeste. Este panegyrico notavel em erudio; a nobreza da linguagem parece-me corresponder ao merito de sua composio. O terceiro dos sermes, que analyso, um discurso sobre a morte de Santo Antonio: uma magnfica orao funebre. O quarto um brilhante panegyrico da Santa Virgem, ao qual estava reunido um fragmento historico para a festa de N. Senhora da Lapa. Todos esses discursos pertencem hoje ao dominio da estupidez, e da ignorancia. Meus louros orno a estatua da impostura; mas a sua recitao produzir no auditorio, que os ouvir, a sensao dolorosa, que desperto em minha alma, os numerosos sermes do eloquente Padre Mestre S. Paio,

cuja beleza horrivelmente desfigurada por aquelles, que o repetem. O Poeta de Mantua no pode ver com indifferena passar a outrem a cora de gloria, que lhe merecia a publicao dum dystico em honra de Augusto. Elle se lastimava contemplando a mediocridade, e a impudencia, enfeitadas com a aureola, que lhe pertencia: Hos ego versculos feci, tulit alter honores. O despeito inspirou-lhe os quatro bem conhecidos versos: Sic vos non vobis nidificatis aves: Sic vos non vobis vellera fertis ovis: Sic vos non vobis mellificatis apes: Sic vos non vobis fertis aratra boves. Os sermes, que me foro subtrahidos, tem certamente mais valor, do que estes dous to pranteados hexametros: Nocte pluit tota; redeunt spectacula mane. Divisum imperium cum Jove Cesar habet. Foi na occasio de corrigir os meus sermes, que eu reconheci toda a importancia dos conselhos de Horacio, que manda interpr um longo intersticio entre a composio, e a publicao1. O momento do enthusiasmo no certamente o mais apropriado para conhecer os defeitos, que nascem duma inspirao, muitas vezes fallaz, e arrancada por a necessidade, e estreiteza do tempo. mister aguardar a occsio, em que esfria o amor, que consagramos s nossas composies, para proscrever pensamentos, que o1

Epist. Ad Pisones. V. 386-388.

genio havia dictado, mas que uma razo illustrada condemna severamente2. Apezar do cuidado, que empreguei na correco dos meus discursos, devem ter escapado graves defeitos, erros mesmo. Serei bem feliz, se por ventura, os que lerem as minhas obras oratorias, so tiverem de perdoar-me algumas imperfeies. Non ego paucis offendar maculis3. Se eu s houvesse consultado a minha consciencia, teria entregado s chammas todos os meus discursos; foi mister porm ceder menos minha vangloria do que a uma necessidade de ferro, que arrojou-me nos perigos duma publicao. Os que conhecem as criticas acerbas de Aristarco, e Zoilo contra Homero; os que tem lido as censuras feitas s oraes funebres de Bossuet, e as imputaes de plagiato contra Flechier4; devio perder o desejo de publicar discursos mediocres, e to defeituosos, quaes os que determinei imprimir. Ha porm uma circumstancia, que no deve passar ser observao. Eu no quero deixar a outros uma censura, que forcejo por attenuar. Ha em quasi todos os meus discursos um ida, que parece dominante: ha como um pensamento unico, de que dimano todos os outros pensamentos: esta ida geral, este pensamento commum a Religio. Entretanto, apezar de sua riqueza, e sublimidade, esta nobre concepo, muitas vezes reproduzida, como que imprime nos meus discursos uma certa uniformidade de pensamentos; e talvez os prive desta variedade, que revela ao mesmo tempo o talento da inveno, e a fecundidade intellectual do autor. Seja porm qual fr o reparo, que me caiba, qualquer que seja a inflexibilidade, com que deva ser julgado; incontestavel que todos esses feitos gloriosos, que illustrro os homens da nova civilisao; todos estes milagres de heroismo, que honrro a especie humana, e lanro narena dos combates todos os sexos, todas as idades, e todas as condies da vida; recebro da2 3

Idem. V. 19-23. Idem. V. 350, 351. 4 Maury eloq. Dela Chaire.

Religio sua existencia, seu lustre, seu apreo, e sua mais alta considerao. Todos os grandes problemas sociaes encontro na sua influencia a mais facil soluo; e todos esses cantores da gloria que .........agitados do impeto divino, accesos turbilhes na voz desato5, Recebro em seu archote magestoso o fogo do enthusiasmo, de que foro abrasados; e bebero nesta fonte sagrada, e inextinguivel inspiraes, idas, emoes, e sentimentos. Ahi esto Pope, e Milton; klopstoc, e Schiller; Tasso, e o Dante; Chateaubriand, e Bossuet. O christianismo proclama triunphante, que s J. Christo o caminho, a verdade, e a vida6; que sem Elle impossivel emprehender alguma cousa nobre, grande, heroica7. Louvando pois os grandes homens da Religio, celebrando as virtudes dos seus heroes, era s na Religio, que eu podia procurar, e que devia mesmo encontrar a verdadeira origem de sua gloria, e os titulos, que lhes devio assegurar nossos cultos, e nossas homenagens: a Religio no devia pois ser esquecida. Ou fosse uma homenagem dada verdade, ou um effeito das minhas leituras, e o resultado das minhas convices; ou fosse o predomnio do meu profundo respeito, e da mais alta admirao para o augusto Fundador do Christianismo; era impossivel no ter constantemente em vista a magnificencia da esposa eterna, de quem eu recebia todas as minhas inspiraes. Assim podia eu dizer com o Propheta Rei: - Todas as minhas produes literrarias sejo abafadas no esquecimento, se eu no me recordar de ti, Religio, quando me propozer alguma composio oratoria. O brilho, que me seja eclipsado; os louros, que cingem minha testa, cio murchos, e desfolhados; se por ventura eu procurar fra de ti a reputao, que me tocar em partilha. Si oblitus fuero tui, Jerusalem,

5 6

M.M. Du Bocage. Joan. C. 11. v. 6. 7 Idem c. 15. v. 5.

oblivione detur dexteramea. Adhareat lingua me faucibus meis, si non meminero tui, si no proposuero Jerusalem in principio laetitiae mea8. Rio de Janeiro, 23 de abril de 1852. FR. FRANCISCO DO MONTE ALVERNE (fim do discurso preliminar)

A obra sermonria est disposta em quatro volumes. Encontram-se os seguintes sermes no primeiro volume: TOMO PRIMEIRO Sermes Quaresmaes e de MysterioI.

Sermo de cinza: Sobre a Necessidade da Lembrana da Morte em ordem salvao(Pregado na Capella Real do Rio de Janeiro, em 1819)

II. III. IV. V.VI.

Sermo sobre a Penitencia Sermo sobre a Palavra de Deos Sermo Sobre a Incredulidade Sermo sobre a Maledicencia Sermo Sobre o Perigo da converso na Hora da Morte Sermo Sobre a Profanao dos Templos Sermo Sobre o Pequeno numero de Escolhidos Sermo do Mandato (10) (Prgado na Igreja da Misericordia desta corte)

VII. Sermo Sobre a Demora da ConversoVIII. IX. X.

8

Os. 136. v. 5, 6.

XI. XII.

I Sermo da Paixo de N.S.J.CDE JANEIRO)

(PRGADO NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO

II Sermo Paixo de N.S.J.C (PRGADO NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO DEJANEIRO)

XIII. Sermo do Enterro de N.S.J.CXIV. Sermo da Solenidade da Santa Virgem

XV. Sermo da Ressureio XVI. I Sermo do Espirito Santo XVII. II Sermo do Espirito santo XVIII.XX.

I Sermo do Santissimo Sacramento

XIX. II Sermo do Santissimo Sacramento III Sermo do Santissimo Sacramento(PRGADO NA IGREJA MATRIZ DO MESMO TITULO, NO RIO DE JANEIRO, EM 1834)

SERMO DO MANDATO(Prgado na Igreja da Misericoridia desta crte)

Surgit caena, et ponit vestimenta sua, et cum accepisset liteum praecinxit se. Deinde mittit aquam in pelvim, et caepit lavare pedes discipulorum, et extergere linteo, quero erat praecinctus. Jesu-Christo levanta-se da mesa, depe seus vestidos externos, e cinge-se com uma toalha. Depois toma uma bacia com agoa, lava os ps dos discipulos, e os enxuga com a toalha, que o cingia. S. Joo, c. 13, v. 4 e 5.

Tal foi a pompa triumphal, com que o Legislador dos Crhistos arrastou aps si os gigantes, que opprimio a terra. Eis a scena magestosa, em que o Filho do Eterno apresentou com todo o seu fulgor esta virtude, que tendo sua origem no Co, devia ser consagrada sobre a terra com o exemplo de um Deos. Os Prophetas tinho celebrado com todo o enthusiasmo, e todo o fogo de uma eloquencia Divina as victorias, que a humildade ganhava todos os dias contra o orgulho. A queda espantosa dos Imperios

elevados por a as mos do homem, o estampido horrendo dos simulacros da fortuna, que se precipitavo, que desapparecio diante da espada do Senhor, no podio despertar o homem do lethargo, em que jazia. O homem talvez julgava indigna de si esta virtude, que contrariava seus projectos no meio das honras, que o seduzio, e no seio das paixes, que o degradavo. Estava reservado a um Deos abater este idolo to caro, to seductor, e to lisongeado. Era preciso, que Elle justificasse da maneira mais admiravel, que s a humildade pde assegurar ao homem sua verdadeira exaltao. Se a aco de um Deos abatido aos ps dos homens no foi capaz de aviltar sua magestade, sua gloria, e sua mesma Divindade; se uma aco to humilhante aos olhos da razo jmais pde offuscar o brilho de seus prodigios, a importancia de sua misso, e a santidade de sua doutrina, confessemos sem temor de sermos desmentidos, que a soberba nunca soffreu uma queda to completa. Assim, meu discurso tem por unico fim apresentar-vos o simples espetaculo deste feito memoravel que aluio os alicerces do imperio da vaidade. O Deos, Deos forte, e cheio de magnificencia, e graa, Vs, diante de quem as naes entro no p; que humilhaes os reis, e os cubris de confuso9; Vs s podieis revelar este segredo da grandeza, e da elevao, dissipando as idas absurdas do homem. O mundo inteiro curvado na vossa presena d homenagem sabedoria, com que o salvastes, rectificando as noes sublimes da justia. Depois de tantos, e to grandes oradores, eu venho repetir o cantico, de que sois crdor aos seculos, que j passro, e quelles, que os vo seguir. Certo, de que s vs podeis derramar a unco, e o interesse sobre nossas phrases, e nossas expresses incorrectas, eu imploro vossa assistencia, afim de que as maravilhas do vosso amor, e da vossa omnipotencia no soffro alguma quebra passando por um corao sem calor, e sem energia. A historia moral da humanidade no offerece um quadro mais luctuoso do que o homem, arrastado por sua ambio, e lutando brao a brao com a sua mesma fraqueza. Victima de seu devaneio, abrindo diante de seus passos vacillantes uma estrada coberta de espinhos, e abrolhos, pareceu disputar algumas vezes o Throno do Altissimo, e pr em contribuio a natureza inteira. Lies terriveis o tinho feito retrogradar na sua marcha impetuosa; e um s dia arrancava de suas mos seus mais opimos despojos. Todos os seculos ero testemunhas destes revezes imprevistos, que fazio envergonhar a altivez dos filhos dos homens; e toda a terra escutava tremendo o baque horrivel dos monumentos destinados a perpetuar os seus delirios. A colera do Senhor, diz o9

Job. C. 12. v. 18.

Psalmista, era semelhante a um fogo devorador, que sahia de sua face, e espalhava por toda a parte o terror, e a morte10. Elle afiava as settas dos fracos para traspassar com ellas o corao do altivo11. Em vo o genio do homem accendeu o archote da philosophia, para iluminar sua carreira; seus esforos s serviro para manifestar sua fraqueza sem procurar algum remedio a seus males. Deos s podia libertar o homem, e arranca-lo de sua degradao. Deos s podia traar um codigo, cujas maximas imprimindo em seu corao um novo cunho de nobreza, o fizesse remontar altura de suas esperanas. Tal era o plano importantissimo, que o Messias se propuzera realisar sobre a terra. Elle j tinha humilhado seus inimigos, e desmascarado toda a sua hypocrisia. Nada foi esquecido para assegurar sua victoria. Imagens as mais brilhantes, quadros os mais interessantes, foro prodigalisados para representar essa virtude que nutre em seu seio, como diz S. Bernardo, todas as outras virtudes. Aqui era um menino, cuja simplicidade era opposta fatuidade do Doutor da Lei12. Ali era um humilde publicano, que da porta do Templo, donde no ousava erguer os olhos para o Tabernaculo do Senhor, voltava cheio das benos, que o Eterno Retirra do soberbo Phariseo13. Acol era um convidado, que dos ultimos lugares, em que fra collocar-se, era honrosamente forado a subir aos primeiros assentos14. S faltava ao triumpho da humildade a sanco do Legislador. Convinha que elle mesmo praticasse uma virtude, que formava a grande base do edificio maravilhoso, que viera construir. Era necessario, diz S. Joo Chrysostomo, que J.C. verificasse em sua pessoa esta abnegao espantosa, que se propuzera ensinar. Era mister, que elle comprovasse com o seu procedimento a possibilidade da doutrina, que acabava de fundar. O Cenaculo, no occultes as maravilhas, que se realiso em teu seio, no escondas os mysterios, de que tu s testemunha! Descobre aos olhos do Universo o grande Reparador, prostrado diante de seus discipulos; e as naes conhecer o preo, por que foi comprada sua regenerao. Offerece razo espantada o filho do Eterno lavando os ps de doze pobres pescadores; e o homem saber o meio, por que foi obtida sua rehabilitao moral!

10 11

Ps. 17.v.9. Ps. 63. v. 8. 12 Malth.c.18.v.3,4. 13 Luc. C. 18, v. 13,14. 14 Idem. C. 14.v. 10.

J.C. tinha j celebrado a ultima de todas as Pascoas. As solemnidades judaicas tinho expirado entre as mos do novo legislador. O novo Moyss tinha j cantado o cantico da nova liberdade15, J. C. levanta-se da mesa, em que acabava de prescrever os Sacrificios legaes, e cinge-se com uma toalha... No, no vos indigneis, exclama S. Agostinho neste lugar: encarregado de reparar os crimes do homem, cinge-se com uma toalha para desempenhar o ministerio mais humilde, aquelle, que se tinha revestido da frma de pecador. Talvez, diz Origenes, talvez J.C. queria recolher as fragilidades, as faltas, e as imperfeies do homem, afim de as apagar todas com seu proprio sangue... O Roma, ousars ainda ensoberbecer-te dos teus Fabio, dos teus Camillo, e teus Cesar No era com a ponta das espadas quentes do sangue dos vencidos, que se devia assignalar a fonte deste heroismo, que levanta o homem cima de si mesmo! Est quebrada esta cada de ferro, que do alto do Capitolio maniatava os povos, que bebio as agoas do Tibre, e do Danubio, e se banhavo no Volga, e no Euphrates. Eis aqui, este acontecimento famoso, que a posteridade recusar acreditar, quando fr contado ao derradeiro dos nossos netos16! Tudo j estava preparado para o grande Sacrificio. J.C. est lanado por terra abraado com os ps de seus discipulos, que elle mesmo lava com suas mos sagradas... Razo humana, dize: Ser este o Deus, que o Propheta de Patmos admirou no meio de sete candieiros douro, e cujo throno era cercado dum arco celeste semelhante a uma esmeralda17} Este homem, que vs de rasto, ser o mesmo, que fra visto rodeado de vinte, e quatro soberanos, que lhe consagravo suas coras; cujo solio fulgurava no meio dos relampagos, e dos troves, e ante o qual ardio sete alampadas, que so os sete espiritos de Deos18} Sua bocca, donde sahia uma espada de dous gumes para atravessar o corao dos impios19; como est grudada com os ps dos pecadores!... Que! exclama S. Joo Chrysostomo; suas mos ornadas de sete estrellas, estas mos, que despedaro trophos da morte, afugentro as enfermidades, e dissiparo todos os males; estas mos se abatem a tanto aviltamento} Onde est escondido tanto poder} Onde est o Deos} Onde o Propheta} Onde o Legislador} como suas humiliaes parecem offuscar sua gloria antiga, e toda a sua magestade!... Os ceos tinho conspirado para solemnisar seu nascimento, e um humilde presepio recebeu as homenagens, e os15 16

Malth. C. 26.v.30. Isai. C. 53k.v.1. 17 Apoc. C.1.v13. c.4. v.3. 18 Idem c.4.v.4,10,5. 19 Idem c.1.v.16.

tributos do Oriente20. Elle obteve na sua passagem as adoraes do Nilo; seu triumpho fez saltar de prazer os ossos de seus antepassados engulidos por aquelle fero paiz, quando nos dias de sua infancia elle fugia diante dos punhaes ensanguentados de um despota, que ameaava seus dias21. A morte carpindo seus triumphos eclipsados, a natureza tremendo sua voz, as enfermidades fugindo sua vista, seus invejosos reduzidos ao silencio22, no ero monumentos bem dignos de attestar a excellencia de sua origem} Mas quem poder admirar em J.C. o Filho do Eterno; reconhecer nelle o Messias annunciado com tanto estrondo; quando ns o vemos lanado por terra, lavando os ps de seus discipulos}No, no se refira em Ascalon este escandalo; no saibo os habitantes de Geth, que o grande Propheta dIsrael cahio e tanto vilipendio 23. Seus inimigos vendo-o to humilhado ousario considerar em J.C. o Anjo do Novo Testamento predito por Malaquias24; o Restaurador do novo Templo preconisado por Aggo25; e o Salvador da especie humana cantado por Isaias26} Sim; exclama S. Bernardo; reconhecei em seu abatimento a intensidade de seu amor para o homem, a quem viera instruir, e salvar. Era foroso, que J.C. se abatesse at ns, afim de restaurar com suas humiliaes o brilho, e a magnificiencia, de que framos despojados; mysterio profundo, que s podia ser penetrado depois de sua carreira, quando prendendo a morte, e o peccado ao carro de suas victorias, arrancasse de suas mos a chave do abysmo; abrisse as portas immortaes; e quebrasse os sellos do Livro terrivel, em que estavo escriptos os destinos da especie humana27. Ultimou-se a conquista das naes, exclama Santo Ambrosio; este vazio immenso, que o homem deixra por sua desobediencia, e seu orgulho, acaba de ser pejado para sempre. Nosso cruel inimigo no se gloriar mais da nossa desgraa: J.C. acaba desgotar o veneno contagioso entornado sobre a raiz do nosso primeiro tronco. Lavando os ps de todos os homens na pessoa de seus discipulos, elle curou a chaga envenenada aberta por a serpente antiga. Com que transporte v a Religio fructificar-se esta semente prodigiosa lanada entre as naes28! Com que plenitude de jubilo v prosperar essa arvore frondosa destinada a20 21

Luc. C.2k.v.7, 43kk, 14. Malthk. C.2.v.10,11. Isai. C.19.v.1,20,21. Malth. C.2.v.14. 22 Joan. C.11.v.43,44. Malth. C.8.v.26.Joan.c.r.v.8. Malth.c.22.v.46. 23 2 Reg. c.1..v.20. 24 Mal.c.v.1. 25 Agg.c.2.v.7, s. 26 Isai. c.19.v.20.c.35.v.4 27 Col. c.2.v.15. 1ra Cor.c.15.v.54,55,57.Apoc.c.5.v.7,8.c.20.v.1,2,3. 28 Malth.c.13.v.8.

abrigar debaixo de sua sombra os reis, os philophosos, os pobres, e os ignorantes 29! Estava reservado sabedoria do Legislador Divino resolver os mais insoluveis problemas da natureza humana. Estava reservado ao Fundador do Christianismo romper todas as barreiras, que retardavo a perfeio moral do homem, e aquecer em seu seio este germen de magnannimidade, que os discipulos de sua Escola. Mas onde se ostento com mais profuso idas to fecundas, e to luminosas do que nesta Casa por tantos titulos santa, e misericordiosa, onde a Religio dilata seu seio humanidade soffredora, e onde a Caridade, virtude desconhecida dos mais bellos genios do Paganismo, entorna as riquezas desta beneficencia, que a philantropia nunca poder rivalisar} Homens que se prostro diante destes mesmos pobres, que elles, tem subtrahido morte, e miseria; homens que, seguidos da F, no recuso lavar os ps destes Seres desgraados, que a sociedade parece repellir como uma produo bastarda; homens que, marchando intrepidos aps seu Chefe Divino, encontro como ele sublimidade, e nobreza numa aco to desprezivel aos olhos do mundo; no tenhamos receio de affirmar, estes homens offerecem a mais bella apologia do caracter eminente deste Augusto Legislador, que passando a esphera das concepes mais transcendentes collocou seus seguidores ao lado da Divindade. Perguntei agora aos philosophos, se por ventura seus systemas podem assegurar to estupendas maravilhas; e se a prudencia do seculo tem direito de escarnecer as theorias da Cruz. O Deos, conservai intacto o elemento precioso da regenerao lanado no corao destes homens, que justifico face da Igreja a eminencia de sua F, e a pureza dos seus sentimentos. No apagueis em suas mos este facho mysterioso, que mostrou s geraes, e indicou ao genero humano o caminho da immortalidade; e a ceremonia edificante, que acabamos de presenciar, seja ainda um motivo para entornardes sobre aquelles, que a promovro com tanta sumptuosidade, a torrente dos vossos dons, e a enchente de vossas graas. FIM

TOMO SEGUNDO29

Ibidem. v.31,32.

SERMOES DE MYSTERIO XXI. SERMO DA CIRCUMCISO DE NOSSO SENHOR JESUS CHRISTO(PRGADO NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO)

XXII. SERMO DO MENINO DEOS XXIII. PANEGYRICO DO SAGRADO CORAO DE JESUS (PRGADOCAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO EM 1825) NA

XXIV. SERMO DO SENHOR BOM JESUS ATADO COLUMNANO CONVENTO DAJUDA DESTA CIDADE)

(PRGADO

XXV. SERMO DO ENCONTRO XXVI. PANEGYRICO DOS PASSOS DE NOSSO SENHOR JESUS CHRISTO XXVII. I PANEGYRICO DO SENHOR BOM JESUS DO CALVARIO XXVIII. II PANEGYRICO DO SENHOR BOM JESUS DO CALVARIO XXIX. PANEGYRICO DE NOSSA SENHORA DA CANDELARIA XXX. PANEGYRICO DOS PRAZERES DA SANTA VIRGEM XXXI. PANEGYRICO DE NOSSA SENHORA DA PENHA XXXII. FRAGMENTO PARA UM SERMO DE NOSSA SENHORA DA LAMPADOSA XXXIII. PANEGYRICO DA SENHORA MI DOS HOMENS XXXIV. SERMO DASSUMPO DA SANTA VIRGEM XXXV. PANEGYRICO DA SENHORA DA GLORIA (PRGADONA CAPELLA DESSE MESMO TITULO EM 1832)

XXXVI. PANEGYRICO DO SANTISSIMO CORAO DE MARIA XXXVII. PANEGYRICO DO ROSARIO D NOSSA SENHORA XXXVIII. DISCURSO SAGRADO SOBRE AS ESCOLAS-PIAS DE NOSSA SENHORA DO SOCORRO (RECITADO NA CAPELLA DO SENHOR DOS PASSOS EM25 DE JANEIRO DE 1826)

XXXIX. PANEGYRICO DA SANTA VIRGEM XL. XLI.

(PRGADO EM UMA PROFISSKO

RELIGIOSA NO CONVENTO DE NOSSA SENHORA DAJUDA NO RIO DE JANEIRO)

I SERMO DA CONCEIO DA SANTA VIRGEM II SERMO DA CONCEIO DA SANTA VIRGEM

XLII. III SERMO DA CONCEIO DA SANTA VIRGEM

TOMO TERCEIRO

SERMES DE MYSTERIO

XLIII. PANEGYRICO DE SO SEBASTIO XLIV. PANEGYRICO DE SO JOS MESMO SERMO XLV. PANEGYRICO DE SO FRANCISCO DE PAULA XLVI. PANEGYRICO DE SANTO ANTONIO(PRGADO NA IGREJA DO SEU CONVENTO DO RIO DE JANEIRO EM O DIA 13 DE JUNHO DE 1835) (PRGADO NA CAPELLA DA REAL QUINTA DA

BOA VISTA NO DIA 19 DE MARO DE 1819).

In conjunto: FRAGMENTO PARA O

XLVII.PANEGYRICO DE SO GONALVO GARCIA XLVIII. L. LI. LII. LIII. LIV. LV. LVI. PANEGYRICO DE SO DOMINGOS XLIX. PANEGYRICO DE SO LOURENO PANEGYRICO DE SO JOAQUIM PANEGYRICO DE SO BENEDICTO PANEGYRICO DE SANTO ELESBO E SANTA IPHIGENIA PANEGYRICO DE SO VICENTE FERRER PANEGYRICO DE SO MANOEL PANEGYRICO DE S. BOM-HOMEM I PANEGYRICO DAS CHAGAS (DO SERAPHICO PATRIARCA S. FRANCISCO) LVII. II PANEGYRICO DAS CHAGAS (DO SERAPHICO PATRIARCA S. FRANCISCO) LVIII. PANEGYRICO DO SERAPHICO PATRIARCA S. FRANCISCO (PRGADONA FESTA CELEBRADA POR EL-SENHOR D. JOO VI, NO CONVENTO DO SENHOR BOM JESUS DA ILHA, NO DIA 4 DE OUTUBRO DE 1818)

LIX. LX. LXI.

PANEGYRICO DE S. PEDRO DALCANTARAIMPERIAL EM O DIA 19 DE OUTUBRO DE 1829)

(PRGADO NA CAPELLA

PANEGYRICO DE S. CRISPIM E S. CRISPINIANO PANEGYRICO DE SANTA RITA DE CASSIA

LXII. PANEGYRICO DE SANTA ISABEL (RAINHA DE PORTUGAL)

TOMO TERCEIRO PANEGYRICO DOS SANTOS, DISCURSOS, E ORAOS FUNEBRESLXIII. I PANEGYRICO DE SANTA ROSA DE VITERBO LXIV. II PANEGYRICO DE SANTA ROSA DE VITERBO LXV. PANEGYRICO DE SANTA URSULA E SUAS COMPANHEIRAS LXVI. PANEGYRICO DE SANTA CECILIA LXVII.I PANEGYRICO DE SANTA LUZIA LXVIII. II PANEGYRICO DE SANTA LUZIANO DIA 12 DE SETEMBRO DE 1813)

LXIX. SERMO (PRGADO

ANIVERSARIO DE

SAGRAO DO EX.mo E VER.mo SR. D. MATTHEOS DABREU PEREIRA-BISPO DE S. PAULO. LXX. DISCURSO NA RECEPO DAS BANDEIRAS (RECITADO NA CIDADE DE S.PAULO NO DIA 19 DE JUNHO DE 1811, EM FRENTE DO REGIMENTO AUXILIAR DA 2A LINHA DE UTEIS REAES, NA OCCASIO DE RECEBER SUAS PRIMEIRAS BANDEIRAS)

LXXI. ORAO EM ACO DE GRAAS POR A ELEVAO DO BRASIL A REINO(PRGADA NA VILLA DE IT, PROVINCIA DE S. PAULO, NO DIA 4 DE FEVEREIRO DE 1816)

LXXII. SERMO DA FUNDAO DA ORDEM DO CRUZEIRO

(PRGADO NA

CAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO EM O DIA 1RO DE DE DEZEMBRO DE 1827, ANNIVERSARIO DA SAGRAO DE S.M.I O SENHOR D. PEDRO I E FUNDAO DA ORDEM DO CRUZEIRO)

LXXIII.

Ira ORAO PELO RESTABEL DO SR. D. PEDRO I

(RECITADA NA

SOLMNE ACO DE GRAAS POR O FELIZ RESTABELECIMENTO DA SAUDE DE SUA MAGESTADE IMPERIAL CELEBRADA NA IGREJA DE S. FRANCISCO DE PAULA NO DIA 24 DE AGOSTO DE 1823, POR A GUARDA DHONRA DE S.M. O IMPERADOR)

LXXIV.

IIa ORAO PELO RESTABELECIMENTO DO SR. D. PEDRO I

(RECITADA NA SOLEMNE ACO DE GRAAS POR O FELIZ RESTABELECIMENTO DASAUDE DE SUA MAGESTADE O IMPERADOR O SENHOR D. PEDRO I CELEBRADA NA CAPELLA DOS TERCEIROS DE N. SENHORA DO MONTES DO CARMO EM O DIA 18 DE JANEIRO DE 1830 POR OS CRIADOS DE SUA CASA)

LXXV.

ORAO PELO RESTABEL. DO SR. D. PEDRO II. (RECITADA

NA

SOLEMNE ACO DE GRAAS POR O FELIZ RESTABELECIMENTO DA SAUDE DE S.M.I. O SENHOR D. PEDRO II, CELEBRADA POR O 1ro BATALHO DA GUARDA NACIONAL NA IGREJA DO SANTISSIMO SACRAMENTO EM O DIA 3 DE NOVEMBRO DE 1833)

LXXVI.

ORAO NO ANNIVERSARIO DA CONSTITUIO

(EM ACO DE

GRAAS RECITADA NO DIA 25 DE MARO DE 1831, ANNIVERSARIO DO SOLEMNE

JURAMENTO DA CONSTITUIO, CELEBRADO NA IGREJA DE S. FRANCISCO DE PAULA, POR O POVO FLUMINENSE)

LXXVII. DISCURSO SOBRE A ELEIO DUM SENADOR (RECITADO NO DIA28 DE MAIO DE 1833, NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO, PERANTE O COLLEGIO ELEITORAL REUNIDO PARA PROCEDER A ELEIO DUM SENADOR POR ESTA PROVINCIA)

LXXVIII. ORAO POR O NASCIMENTO DA SRA. MARIA DA GLORIA(RECITADA NO DIA 5 DE OUTUBRO DE 1819 NA SOLEMNE ACO DE GRAAS QUE ELREI O SENHOR D. JOO VI FEZ CELEBRAR NO CONVENTO DO SENHOR BOM JESUS DA ILHA, POR O FELIZ NASCIMENTO DA SERENISSIMA PRINCESA DA BEIRA D. MARIA DA GLORIA, HOJE D. MARIA II, RAINHA DE PORTUGAL E DOS ALGARVES)

LXXIX.

ORAO FUNEBRE DE S.M.F. A SENHORA D. MARIA I, RAINHA

DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES, - RECITADA NA CATEDRAL DE S. PAULO NO DIA 26 DE JUNHO DE 1816) LXXX. ORAO FUNEBRE DE S. M. A IMPERATRIZ DO BRASIL (ORAOFUNEBRE DE SUA MAGESTADE IMPERIAL A SENHORA D. MARIA LEOPOLDINA JOSEPHA CAROLINA, ARCHIDUQUEZA DAUSTRIA, E PRIMEIRA IMPERATRIZ DO BRASIL, RECITADA NA SOLEMNES EXEQUIAS CELEBRADAS NO DIA 15 DE FEVEREIRO DE 1827 POR O ILLUSTRISSIMO SENADO DA CAMARA DESTA CIDADE NA IGREJA DAS RELIGIOSAS DAJUDA, ONDE ESTA DEPOSITADO O CORPO DE SUA MAGESTADE IMPERIAL)

LXXXI.

ORAO FUNEBRE DA SRA. D. CARLOTA JOAQUINA (ORAO

FUNEBRE DE SUA MAGESTADE FIDELISSIMA A SENHORA D. CARLOTA JOAQUINA DE BOURBON, RAINHA DE PORTUGAL E DOS ALGARVES, RECITADAS NAS SOLEMNES EXEQUIAS CELEBRADA POR S.M. O IMPERADOR, EM O DIA 20 DE MARO DE 1830, NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO)

LXXXII. ORAO FUNEBRE DO SS. PADRE PIO

VII (ORAO FUNEBRE

RECITADA NO DIA 16 DE FEVEREIRO DE 1824, NAS SOLEMNES EXEQUIAS DO SANTISSIMO PADRE PIO VII, CELEBRADAS NA CAPELLA IMPERIAL DO RIO DE JANEIRO, S.M.I. O SR. D. PEDRO I)

LXXXIII.

XXII. SERMO DO MENINO DEOS Respicite volatilia caeli, quoniam non serunt, neque metunt, neque congregant in horrea, et Pater vester celestis pacit illa. Nonnevos magis pluris estis illis} Olhai as aves do co: no vedes que elas no semeo, no colhem, e nem guardo} No meu Pai celeste, quem as alimenta} Como pois receaes de sua providencia vs que valeis mais que as aves do co} s. matth. c.6.v.26. Seria uma blasphemia negar os empenhos, os cuidados, e a solicitude da providencia em promover a ventura, e a prosperidade do homem. Uma effuso de amor, e de misericordia se derramou do seio do Todo-Poderoso, para glorificar a obra mais primorosa das suas mos. Um succo que o peccado ousra contaminar; e a despeito de todos os crimes do homem, Deos se compraz em zelar seus interesses, marchar diante delle, enriqueclo de seus dons, e revesti-lo de seu poder. Respicite volatilia caeli, &c. Ninguem certamente podia com mais justia, e mais dignidade fazer a apologia da nobre extraco da raa humana, do que o Filho do Eterno, que inclinando os cos30, tinha descido terra para dissipar a nodoa de sua maldio, levantar o homem cathegoria de filho de Deos, e dar-lhe uma nova classificao na ordem maravilhosa da graa. Victima da colera divina, desapossado dos direitos adquiridos por sua innocencia, o homem era condemnado a gemer eternamente sobre as ruinas de sua gloria antiga, cuja lembrana envenenava todos os seus dias; mas, o que os anjos rebeldes no podro obter, foi dado aos filhos do prevaricador, afim de que nelles30

Ps. 17.v.10.

se relisassem os mysterios do amor mais extraordinario, e no fosse offuscada a imagem da divindade impressa sobre seu rosto. Um prodigio no ouvido rompeu os obstaculos, que se tinho levantado entre o homem, e seu Creador; derramou sobre elle um novo espirito de vida; e o restabeleceu na amizade de seu Senhor. No bastava ao Salvador assegurar ao homem reconciliao, e paz; era ainda preciso que elle justificasse o excesso de sua ternura, vestindo-se de nossa mesma carne, e offerecendonos o penhor de sua beneficencia em um estado, que podia smente inspirar interesse, e confiana. Era um Menino Deos, quem devia realisar as esperanas dos Patriarchas, encher a letra dos Prophetas, e arrancar o genero humano de sua degradao, e seu opprobrio. Respicite volatilia caeli, &c. Tal o mysterio de amor, o prodigio de caridade, que a vossa devoo me convida hoje a desenvolver. Nada sem duvida mais digno do homem do que a lembrana dos sacrificios, que custro ao Salvador sua regeneraok, e sua liberdade. A religio no pde offerecer um espetaculo mais admiravel, nem a piedade recordar um objecto mais digno de sua gratido, e seu reconhecimento. A eloquencia do homem no pde inculcar as maravilhas da bondade de um Deos; mas os canticos dos anjos, os hymnos, com que a Religio tem celebrado to espantoso acontecimento, os votos ardentes da humanidade lanada aos ps do Reparador, que pde quebrar seus grilhes, que pde exalta-la, e engrandec-la com a unio de sua divindade, asseguro o respeito, as ovaes, e as homenagens, que so devidas ao Filho do Eterno. Quando tentarmos penetrar o segredo da economia da redempo; quando luz do archote da F contemplamos a marcha mysteriosa da Religio, no podemos deixar de reconhecer a profuso da sabedoria, e da omnipotencia divina. Despojado de sua nobreza por este excesso de orgulho, com que pretendra igualar-se ao Todo poderoso, o homem devia encontrar no

Salvador, que lhe fra promettido, bastante merecimento, para desarmar com a importancia de seu sacrificio o brao de um Deos, que sem cessar o repellia. No sendo possivel ao homem unir-se a seu Creador, de quem seus delirios o tinho apartado; convinha que um Deos assumisse nossa carne mortal afim de levantar por sua ineffavel unio com a divindade o homem, que s podia ser glorificado por sua communicao com o Ser supremo. No chores mais, illustre Propheta, que no meio das cadas, e dos gemidos da escravido traaste o quadro horrivel das calamidades, com que o Eterno devia punir os crimes, que deshonravo a casa de Israel, e de Jud; appareceu o homem capaz de construir o muro destinado a proteger o Universo; e afianar especie humana a graa, e o perdo31. Eis ali o signal, que nos foi dado: um Menino apenas nascido: Invenietis Infantem32. Deos no est mais separado de ns, porque se fez homem, diz o illustre Bispo de Meaux: os raios de sua colera esto apagados, porque elle unio-se nossa natureza com uma estreita alliana. Seu esplendor se modifica, sua magestade occulta-se, sua grandeza abate-se, a justia inflexivel, que humilhava o homem deixou de manifestar-se, para que a compaixo podesse realisar seus prodigios, e suas maravilhas. Deos nivelou-se com o homem, diz Tertulliano, afim de no encontramos no Salvador algum obstaculo, que alterasse a identidade de suas relaes. Deos trata de igual comnosco, afim de que possamos tratar de igual com elle: ex aequo agebat Deus cum homine, ut homo vel ex aequo agere cum Deo Passet. Se o Filho do Eterno, deixando o seio de seu Pais celeste, se tivesse regulado por a prudencia do mundo, o homem teria sem duvida ganhado muito pouco. Se a pompa, se a magnificencia precedesse o Homem-Deos,31 32

Ezech. 22.v.30. Luc. c.2.v.12.

qual os troves, e os relampagos o annunciro no Sinai33, elle veria milhes de escravos beijando seus vestigios; mas o homem no econtraria em J.C. o Reparador que devia arrancar o cancro da morte, que o privra da immortalidade: Deos seria temido, e adorado; mas nunca seria amado. Poderia J.C. apparecendo em uma idade perfeita, homem duma nova raa, escapado aos encommodos, e aos trabalhos da infancia, e da marcha ordinaria da natureza, achar em seu corao esta sensibilidade to viva para os desgraados} Sem correr os mesmos perigos, sem soffrer iguaes desares, poderia tomar parte em os nossos gemidos, e nossas lagrimas} Ainda mais: entrando a incarnao do Verbo nos designios de sua sabedoria; no era justo, como reflecte S. Agostinho, que J.C. nada esquecesse para verificar sua humanidade; que elle nos fosse dado na frma dum menino, passando por todas as estaes da vida, e sugeito a todas as imperfeies da natureza humana, excepto o peccado, como diz o Apostolo34, afim de que a realidade de seu corpo ficasse a abrigo de todas as duvidas, e todas as suspeitas} Se ainda mesmo, quando o grito de todas as Escripturas proclama o nascimento dum Deos; quando a salvao nos comprovada em um Deos menino; quando o Filho do Eterno apparece sujeito fome, sede, e a toda sorte de privaesk; a razo tem ousado constestar a possibilidade do mysterio dum Deos feito homemk; o que deveria acontecer, pergunta Santo Agostinho, se J.C. tivesse repentinamente descido dos cos, recusasse acompanhar os progressos da natureza, e afugentasse o somno, o sustento, e todas as phases dolorosas da humanidade} No teria elle mesmo confirmado um erro to fatal} No daria occasio a desconfiar-se, que elle se envergonhava de ser homem} No destruiria desta sorte a crena sobre a qual fundada toda a nossa esperana} Pois que J.C. era Deos, convinha que fizesse milagresk; mas porque era homem, devia carregar as nossas enfermidades; e a obra da Omnipotencia no devia destruir o testemunho33 34

Exod. c.19.v.16. Hebrae c.4.v.15.

da misericordia: et dum omnia mirabiliter facit, auferret quod misericorditer fecit. Sim, contina Santo Agostinho, se J.C. realisa factos grandes, e maravilhosos, elle pratica tambem aces pouco importantes, e pequenask; mas de tal sorte se regula, que reala as cousas pequenas com aces extraordinarias, e modifica as extraordinarias com um genero de vida commum. Elle come, porm quando lhe apraz; e dispensando comidas terrestres sabe nutrir-se da vontade de seu Pai: os anjos servem a sua mesa. Elle dormekk; porm as tempestades respeito a barca de Pedro no tempo de seu somno. Elle caminha sobre o mar; mas ao imperio de sua voz as aguas consolido-se debaixo de seus ps. Elle morre; mas as convulses da natureza attesto a morte de seu Creador. Nok, j no licito desconhecer o Salvador, exclama S. Bernardo. Seu poder j se tinha ostentado na creao do Universo; sua sabedoria patenteou-se nos conselhos de sua providencia; mas sua misericordia se deixou ver principalmente na sua humanidade. O Eterno se tinha manifestado aos filhos de Israel no meio de prodigios, e portentos; seu nome era o Senhor35. Sua grandeza foi evidente aos philosophos, a quem elle se descubrio, como assegura S. Paulo; Quod notum est Dei, manifestum est in illis36: mas a Synagoga foi esmagada com o peso de sua autoridade; e a philosophia foi deslumbrada com o brilho de sua gloria. O poder constrange obediencia; a magestade tem direito admirao; mas o homem s podia encontrar na bondade o apoio de sua confiana. Eis-nos de posse desta bondade promettida aos homens depois de tantos seculos. A misericordia no ser dora em diante circumscripta no co, e entre os anjos; o Senhor dilatou seu seio, e derramou sobre ns a enchente de suas graas. Porque tremes pois, homem, diante de teu Senhor, que se manifestou a teus olhos} contina o piedoso Abbade de Claraval. Elle no veio julgar-te;35 36

Ps. 67.v.5. Rom. c.1.v.19.

mas resgatar-te. Um escravo rebelde associou-te sua revolta; ousaste roubar o diadema, e enfeitar tua cabea com a insignia da realeza; tu foste, verdade, surpreendido no crime; mas para que foges da face de teu Senhor} Parece-te ainda ver brilhar sobre tua cabea a espada terrivel da vingana} Parece-te ouvir as imprecaes da terra, que resiste aos teus esforos, e ao suor do teu rostok} No fujas, homem; no temas, desgraado!!! O Senhor no apparece armado do flagello para castigar-te; elle se deixa ver com todos os signaes do amor, e da bondade, trazendo comsigo a mais perfeita reconciliao. No, tu no ters motivo para dizer, com teu pai, depois de sua fatal quda: Senhor, eu ouvi a tua voz; mas tive medo, e escondi-me37. Teu Senhor um menino, e um menino, que no sabe ainda fallar; seus gritos excito antes compaixo do que terror. Que! um menino, que chora, que recebe ainda de sua mi todos os cuidados da ternura, e necessita de affagos, e caricias, poder despertar o susto, e o temor} No, no mister outra prova para convencer-te que elle vem salvar-te. O infancia bemaventurada, cuja fraqueza, cuja simplicidade mais forte, e mais sabia do que todos os homens, pois que a fora, e a sabedoria eterna divinisa todas as vossas aces; vs triumphastes do principe deste mundo, e assegurastes para sempre a nossa liberdade! Mas onde est o Deos promettido s naes por Isaias, perguntaria agora a presumida sciencia de seculo espantada duma srie de milagres to novos, e to incomprehensiveis} Onde est o Reparador, que o Propheta reconhecra carregado dos destinos de seu povo38} Eu s vejo um menino. Onde est o Omnipotente, que na sua immensidade contm os cos, e a terra39} Eu o ouo gemer, e chorar. Por ventura este menino o Deos, que David representava cingido de luz, qual um vestido40, e que fra collocar no37 38

Gen.c.3.v.10. Isai.c.40.v.9,10,11. 39 Jer.c.23.v.24. 40 Ps. 103.v.2.

sol seu tabernaculo41] Eu o descubro envolto em pobre roupa. Este menino, que soffre todas as miserias, e todas as fraquezas da humanidade, ser aquelle, diante de quem vacillo as abobadas do firmamento42; e os anjjos espero tremendo suas ordens soberanas43} Sim, respondem com Baruc todos os seculos. Elle mesmo o nosso Deos, e ninguem ousar contestar seus privilegios44: mas um Deos, que se despojou de todos os emblemas do poder para engrandecer o homem; e appareceu coberto de nossa enfermidades, para quebrar os ferros do nosso aviltamento: Vere dolores nostros ipse tulit, et languores nostros ipse portavit45. Admirai esta unio estupenda de humiliao, e grandeza, exclamava o Papa Santo Hormisdas transportado por esta economia celeste. Eis-ali aquelle que Deos, e homem, isto , a fora e a fraqueza; a baixeza, e a magestade; aquelle que deitado em um presepio apparece no co entre os esplendores da gloria. Elle est envolto nas faxas da infancia; e os Magos o adoro. Elle nasce entre os animaesk; e os anjos publico seu nascimento. A terra o rejeita, e o co o declara por uma estrella. Elle foi vendido; e nos resgata: foi pregado em uma cruz; e ahi mesmo distribue coras, e d reinos: enfermo, que cede mortek; poderosokk, a quem a morte no pde dominar: coberto de feridas; e medico de nossas enfermidades: collocado entre os mortos; e que d vida aos mortos; que nasce para morrer; e morre para ressuscitar. Meu corao no pde reprimir as emoes do reconhecimento, quando vejo um Deos esquecer-se do brilho, que o cerca, para levantar-me altura de seu throno, e assegurar-me os thesouros de sua misericordia, exclama S. Bernardo. Meu Senhor, quiz ser meu irmo, e os vinculos da fraternidade dissipro os terrores, que imprimira o sentimento de minha escravido. No41 42

Ps. 18.v.6. Job.c.26.v.11. 43 Dan.c.7.v.10. 44 Baruc. c.3.v.36. 45 Isai.c.53.v.4.

seio de sua immensidade, elle recebia as adoraes, e as homenagens dos anjos; suas maravilhas enchio os cos, e a terra; mas eu gemia no aviltamento; e arrastava chorando, escravo miseravel, as cadas de meu cativeiro. Mas vede a effuso de seu amor. Aquelle, que era admiravel nos cos, occulta a pupura debaixo dos andrajos de nossa escravido; desce morada de nossa miseria; estende sua mo, e nos arranca do opprobrio. Desarte se harmonisou esta vasta concepo da intelligencia divina, que espanta a natureza, que os anjos admiro, cobre de confuso os homens, e faz tremer o inferno: Hoc est quod miratur natura, reveretur Angelus, veretur homo, infernus exhorret. Neste momento eu no posso recusar-me a uma reflexo, que nasce dum mysterio to sublime, e deve servir para vossa instruco. J.C. deixa o seio de seu Pai celeste, e reveste-se de nossa humanidade, para sublimar com a humildade o homem ferido de morte por seu orgulho. Se as riquezas, a fortuna, e a gloria do seculo fossem compativeis com o plano de nossa regenerao; o Salvador teria apparecido pobre, humilde, e desconhecido? Se os prazeres, que procuramos, e as honras, que excito nossa cobia, fossem verdadeiras, diz Tertulliano; quem as teria merecido com mais justia, do que um Deos? Quem as teria obtido com mais facilidade, e gozado com maior ostentao? Que multido de guardas o cercaria! Qual no devia ser a pompa de sua crte! Que soberbo manto de purpura descanaria sobre seus hombros! Como seria puro o ouro de sua cora! Que delicias lhe procuraria toda a natureza, que obedece com tanta submisso sua vontade! No, no foi a pobreza, ou sua indigencia, que o privou dos regozijos do mundo; elle os rejeitou, porque muito quiz. No foi sua fraqueza, ou a m fortuna, que o precipitou na humiliao, e nas dres; elle mesmo escolheu este estado, julgando que estes bens, esta magnificencia, e este contentamento ero indignos delle, e dos seus: Gloriam saeculi alienam et sibi, et suis judicasset. Qual ser pois o

fundamento de nossa vaidade? Com que direito ousar ensoberbecer-se o p, e a cinza, depois que um Deos se fez homem, pergunta S. Bernardo? Como poder alguem considerar-se grande, tendo vista um Deos Menino? O Deos! assegurai-nos a ventura, a que nos chamastes por centenas de milagres. Arrancados do villipendio por um excesso da vossa benignidade, jmais poderemos corresponder ao vosso amor, nutrindo em nosso corao as paixes, que viestes destruir. As mos, que despedaro o sceptro do tyranno deste mundo, e fizero estalar os ferros de nosso cativeiro no tem perdido sua fora, nem esgotado seus dons. Aquelles, que vem offerecervos o tributo de seu reconhecimento, so vossos filhos por vossa adopo maravilhosa; so vossos irmos, porque lhes dstes o mesmo o Pai, que vos gerou antes dos seculos. Creai em sua alma as virtudes, que s podem justificar a vossa escolha; e possamos ns cantar com elles os canticos celestiaes, com que os anjos celebro sem cessar vossos triumphos. (FIM DO SERMO DO MANDATO)

I.

SERMO DE CINZA.

SOBRE A NECESSIDADE DA LEMBRANA DA MORTE EM ORDEM SALVAO.(Prgado na Capella Real do Rio de Janeiro, em 1819)

Nolite thesaurisare vobis thesauros in terra, ubi erugo, et tinea demolitur, et ubi fures effodiunt, et furantur.

No amontoeis riquezas na terra, onde a ferrugem, e os bichos as consomem, e donde os ladres as desenterro, e furto. S. Matheusk, c.6.v.19. Senhor(*). sem duvida bem espantosa esta advertencia, que denunca os revezes da ambio, e o escolho, em quese anniquilo as mais fagueiras esperanask. Deve ser bem energica esta lembrana, em que o homem forado a representar-se privado de seus titulos de gloria, abandonado de seus prazeres, e s acompanhado de suas aces. Era foroso, que a nova legislao, projectando libertar o homem do predominio de suas ms inclinaes, baralhasse suas idas orgulhosas, desenvolvendo a seus olhos o espectaculo de sua miseria, e o quadro horrivel de sua degradao. Nada mais capaz de humilhar o homem do que o sentimento de sua propria fraqueza: s a ida de suas desgraas o pde subtrahir s seduces da vaidade, e ao encanto dos sentidos. Ns podemos illudir-nos sobre as nossas qualidades pessoaes, ns podemos oppr os desvios duma imaginao brilhante s maximas severas da moral; o corao luta com vantagem contra as theorias mais sublimes, e irrefragaveis; porm a razo, o corao, a imaginao retrocede com espanto diante desta barreira invencivel da morte, contra a qual o genero humano despedaado; um grito de terror, levantando-se do seio dos tumulos, espanta essas paixes fogosas, que tinho resistido s ameaas da F, e s vehementes exhortaes dos mais eloquentes oradores. Nolite thesaurisare vobis, &c. No ser necessidade empregar uma longa serie de raciocinios para provar a necessidade desta lembrana saudavel, como um dos meios mais efficazes de assegurar a vossa salvao. No mister torturar a razo para descobrir no esquecimento da morte a causa principal da indifferena, em que viveis, esquecidos dos vossos deveres, deixando passar os vossos dias como se por ventura gozasseis da immortalidade, entretanto que tremeis menor sombra de perigo, e vos espantes desta lembrana funesta. Vs forcejaes por anniquilar o sentimento profundo de vossa destruio, e por uma cegueira incomprehensivel provocaes uma morte repentina, e terrivel, inutilisando todos os meios de vossa justificao. Cegos, e insensatos, vs sois arrastados no turbilho, que rola as

geraes; e como seres privados de reflexo, e moralidade, vos subtrahis aos fins immortaes, e gloriosos, que vos foro reservados. preciso, que a depravao dos costumes tenha chegado ao estado mais deploravel para inutilisar uma lembrana to saudavel, e to propria para sustentar-nos em o caminho da virtude! preciso, que o ruido tempestuoso dos crimes se tenha engrossado, a despeito dos esforos da Religio, para que nos vejamos mais commum, porm a mais importante nossa salvao! Eu vos provarei com toda a fora, de que fr capaz, que tudo nos falla da morte; que a morte se manifesta a cada instante para convercer-nos de nossa fragilidade, rasgar a venda, que cobre os nossos olhos, e dissipar os prestigios, que nos seduzem. Vs sereis forados a convir, que seu grito poderoso retumba sem cessar em torno de ns, para nos instruir dos nossos deveres neste mundo, e revelar nossos destinos na eternidade: vs no tereis meio para duvidar, que o esquecimento da morte a causa dos excessos, de que vos tendes feito culpado. Nolite thesaurisare vobis, &c. Eu tenho apresentado a analyse do meu discurso, e sinto minha alma penetrada de horror e medo!.... eu tenho de provar-vos a mais espantosa verdade; e o meu espirito desfallece!.. eu sinto o cheiro da morte, e vejo-me rodeado de suas sombras!.. O Deos, Deos tremendo nas vossas vinganas! No permittaes na vossa colera, que esta semente da salvao cia sobre pedras, ou em um terreno ingrato46. Vossa graa suppra as virtudes do orador, e derrame sobre as suas palavras a unco, que s pode ser obra vossa, e um effeito de vossa misericordia. Reflectindo-se na multido dos projectos, que o homem traa todos os dias, observando-se a confiana, com que se abandona aos encantos deste mundo, dirse-hia, que homem nada tem de miseravel; que o numero de seis dias est sua disposio47; que seu corao cercado com uma triplice muralha contra os ataques, que ameo sua existencia; e que este campo de batalha, em que deve militar, como se expressa Job48, no mais que o lugar do riso, dos jogos, e da alegria. Sejo porm quaes frem seus esforos, diz Santo Ambrosiok, tudo falla ao homem de sua quda, e sua destruio. Todos os objectos, que nos cero nos advertem, sem cessar, que a morte deve reduzir a p a obra prima da creao.46 47

Matheus c.3.v.8. Job.c.14,v.5. 48 Idem, c.7.v.1.

Nossos mesmos prazeres nos fatigo, depois de nos terem seduzido alguns momentos: nossos mais lisongeiros trimphos do uma gloria, que no recompensa nossas fadigas: as scenas mais brilhantes nos desgosto, ou nos entristecem. Ou ns procuremos gozar a formosura da natureza , ou dilatemos nosso corao vivacidade dos festins, e seduco dos instrumentos musicos, esta imagem affrontosa nos segue, e nos persegue: a sombra da morte escurece a pompa das salas mais sumptuosas, e priva a harmonia de todas as suas maravilhas. O homem ir ver no campo objectos, que o penalisem, diz S. Joo Chrysostomo: um rio, que corre, e desapparece; um tronco abatido por terra; uma flr murcha; um passaro, que o caador sorprendeu na velocidade de seu vo;um insecto, que se arrasta com difficuldade, e que o mesmo homem esmaga debaixo de seus ps... Ns vemos a morte passeando em roda de ns, escrevendo sua sentena no p, na casca das arvores. Ella se mostra em o nosso mesmo semblante, ou espalhando suas rugas, ou enfraquecendo nossa vista, ou imprimindo sua pallidez. Todo o Universo, diz S. Bernardo, no mais do que um vasto cemiterio rodeado de sepulcros, e cadaveres, onde seria difficultoso dar um passo sem marchar sobre montes de mortos, e olhar sem aperceber devastao, e estrago. Correi todos os paizes, diz S. Jeronymo, e vereis em todos esta imagem da morte: aqui sobre urnas, que s encerro cinzas: ali sobre inscripes pomposas, que indico seu imperio. o anjo exterminador sentado sobre as ruinas dos thronos, e dos imperios, ferindo o monarcha mais orgulhoso, e elutando os mais soberbos palacios. Ella cobre de luto a esposa no dias de suas nupcias; rouba duma multido de meninos um pai vigoroso, que lhes servia de apoio; estende a mo sobre os mares, e submerge a fortuna de muitos homens; va aos campos de batalha, lana por terra milhes de victimas, e mata os generaes mais destemidos. Deos, segundo a phrase de Tertulliano, tem a morte entre suas mos, como uma navalha afiada, com que corta, separa, e divide tudo, sem poupar o soberano, que sustenta a cora mais brilhante, e o subdito, que vive na sujeio, e na obscuridade. Como pois crivel, que o homem durma tranquillo no meio dos perigos, que ameao sua existencia! Como possivel, que elle dilate suas vistas por um futuro chimerico, ouse erguer o edificio de sua grandeza sobre alicerces abertos na ara! Por que fatalidade forceja por distrahir o som lugubre dos destroos, que se amontoo em torno delle, para entregar-se a todas as desordens! Por que

prestigio o homem tem coberto seus olhos de um vo espesso para no ver a luz, que o illumina, tem calcado todos os deveres mais sagrados, estendido sua mo contra o sanctuario, arrancado a lagrima do pobre, suffocado o grito do orpho, e da viuva, e devorado o campo do seu vizinho! O homem corre sua perda, como estes insensatos, que caminho cantando, sem lembrar-se de sua desgraa. So meninos, que brinco borda de um lago, cujas margens esto minadas por as aguas. Se o grito da Religio, que troveja em nossos ouvidos, no pde ser abafado com o ruido do seculo; se a morte a pena de nossa revolta, e nossos crimes a provocro: no loucura empregar nossas foras em anniquilar esta lembrana saudavel? Convencidos de que a morte nos espera, e que no escaparemos a seus golpes, instruidos que depois da morte comear uma vida, que no deve mais acabar, bem seguros de que nossa felicidade eterna depende deste momento fatal, no deveriamos por nosso proprio interesse regular-nos de maneira, que no chorassemos nossa vida, quando seu fio se cortasse? Penetrados de pavor todas as vezes, que reflectimos nesta passagem terrivel, no davamos uma prova de sabedoria premunido-nos contra este terror, que nos deve assaltar com tanta maior impetuosidade, quanto maior deve ser sua sorpresa? Reuni todos os vossos empenhos; afastai todos os quadros melancolicos, que recordo vossa destruio; eleve-se em vossa alma o grito de seduco, que parece prometter-vos a immortalidade; no seio de vossas familias a morte de um parente, ou de um amigo fulminado vossa vista, expirando entre os vossos braos, vem cobrir-vos de luto, e lembrar-vos o termo, que vos espera. Apenas sahis de vossa casa para evitar este pensamento importuno, o encontro imprevisto duma pompa funebre vos entrega s mesmas reflexes. Estes palacios da fortuna, estas casas dos grandes, e dos ricos, estes sumptuosos edificios, que no meio das nossas cidades revelo o triumpho magnifico do nada dos seus senhores, e os primeiros degros de seu tumulo. Entrai nos nossos templos, estendei nossas vistas por todas as partes; que vdes? As cinzas, e os tumulos vos cerco; vs sois como investidos da morte, vs no podeis dar um passo sem calcar alguma de suas victimas; e as sepulturas, que se multiplico por toda a parte, parecem como outras tantas boccas, gritar que ali vs todos sois esperados, que esta vida uma representao de theatro, que a morte acaba a

scena; e cada um, despojado dos seus titulos, e suas dignidades, ser restituido sua primeira baixeza. Qual pois meu dever neste momento? Empregarei ainda reflexes, e raciocinios? No, diz S. Joo Chrysostomo; s a morte vos pde fallar da morte: aqui o verdadeiro prgador, o nico a quem podeis ouvir, e attender, um feretro, um tumulo49. Vamos pois, contina este padre, vamos ver os sepulcros dos mortos; saiamos fra das portas de Constantinopla; transportemo-nos ao meio destes pomposos mausoleos, em que descanso as cinzas orgulhosas dos senhores da terra, e ahi escolhei o que pde convir melhor vossa instruco, o tumulo dum grande, ou dum rico; dum sabio, ou dum guerreiro; dum principe, ou dum here. Approximai-vos... reconhecei... Qual o primeiro objecto, que se offerece vossa vista? Que vdes sobre este marmore? Uma inscripo pomposa, que vos adverte que ali descansa um grande, e illustre personagem: hic jacet; enquanto s existe seu nome, e seus titulos, como para ensinar-nos, que a lisonja, e a mentira to inseparavel do homem, que o acompanha at o tumulo, e o engana at sobre suas cinzas. Que vdes mais? Ornatos, estatuas, urnas funubres, que, longe de mostrar a grandeza do personagem, s attesto seu orgulho, decorando seu tumulo, elevando um throno s suas cinzas, e dando sua vaidade mais durao, do que a natureza concedeu mais durao, do que a natureza concedeu sua vida. Mas no paremos no exterior, contina S. Joo Chrysostomo; arraquemos esta pedra, penetremos o interior deste tumulo; e, luz de um pallido archote, atravessemos este reino da morte, onde sentada sobre tumulos ella tem em suas mos a urna fatal, em que todas as geraes esto reduzidas a p. Que descobrs ainda? Um deserto, cujas trevas, cuja solido, e silencio enchem vossa alma de terror. Debalde vagueaes nesta noite profunda em busca do grande homem; o here, que descansa aqui, no apparece: e tendo emfim chegado ao fundo deste abysmo; a ponto de gritar: Ubi, quaeso est50? Onde est elle? Um p inutil, restou sepulcraes, ossos, que se esco rangendo, fazem vacillar vossos ps tremulos!... Parai, temerario!... um monarcha, um potentado que calcaes aos ps... grita S. Joo Chrysostomo; aqui que convem lembrar-vos as lies, e os mysterios encerrados nestas moradas sombrias:49 50

Cambac., Serm. sur la mort. Job., Cap.14,v.10.

Obsecro, videamus mysteria. E que mysterios so esses? Que no resta deste homem, que tinha sido to elevado no mundo; deste genio sublime, cujo nome retumba por todas as partes; deste homem poderoso, que reinava com tanto fausto; deste conquistador, que fizera tremer tantas naes; de todo este estrondo de gloria, e de grandeza, outra cousa mais do que um triste monto de cinza, e ossos, ou, quando muito, um fraco ruido de fama, que no se faz ouvir no silencio de seus sepulcros. o mysterio sublime, o objecto importante, que convinha meditar bem, e que no seria jmais sobejamente meditado. Mas posso eu acreditar que este espectaculo tem provocado algum interesse? No devo temer que, longe de entornar em vossa alma um terror saudavel, tenho despertado um sentimento de orgulho, guiando-vos a estes vastos sales da morte, onde esmagaes a pompa, e a grandeza humana? ... Mudemos de objecto, contina S. Joo Chrysostomo, deixemos estas ruinas de sceptros, de coras, de gloria humana, p eloquente, que falla, e no converte, que espanta, e no enternece; e para fazer a instruco mais sensvel, transportemo-nos ao tumulo de um destes idolos do seculo famoso por suas desordens, e seus escandalos, e que podemos considerar o tumulo das graas, e da belleza. Aqui no sereis sorprendidos nem do fausto das inscripes, nem da riqueza, nem dos primores darte. O marmore, e o bronze no orno o sepulcro destas victimas infelizes do prazer: tudo morre com ellas, at seu nome; e a depravao dos costumes ainda no chegou a ponto de erguer tropheos ao vicio, e ao escandalo. Mas o espectaculo por ser menos brilhante no far a lio menos sensivel. Supponhamos, diz S. Chrysostomo, que esta pessoa ha pouco tempo sepultada achava-se ainda em estado de se fazer ver: supponhamos ao mesmo tempo que para vossa instruco, Deos ordenava aos restos desta creatura se arrancassem aos bichos e corrupo, e se apresentassem diante de vs; e que sendo-me permittido empregar a energia das palavras, e a fora do pensamento para dar um novo colorido, e mesmo vida a este quadro, eu dissesse a vs, que a tinheis admirado, e to loucamente idolatrado: Eis-aqui esta belleza, que sobre um theatro profano tinha representado, e tinha inspirado tantas paixes, esta divindade a quem tinheis tudo prodigalisado, honra, riquezas, saude.... Mundano, que a adoraveis, por ventura a conheceis? Haeccine est illa Jesabel51? Ainda no tudo: e se acaso continuando a lio at onde pde ser levada, forando-vos,51

4 Reg.c.9,v.37.

apezar vosso, a chegar a este esqueleto horrivel, eu vos dissesse: Moo insensato, vinde agora vestir este cadaver com esses ornatos pomposos, com que se costumava enfeitar para sorprender a innocencia... tomai este pincel criminoso, de que ella mesma se servia com tanta arte; e para reanimara suas feies desfiguradas.... Que! vs recuaes de horror...! Julgaes ver este monto dossos, e podrido dissolver-se debaixo de vossas mos?... Parece-vos ouvir de sua bocca gelada esta sentena espantosa: Tu morrers: tu sers tambem reduzido a toda a humiliao do tumulo? Morte morieris52, et in pulverem reverteris53? Mundo perfido, eis-aqui o termo de tudo quanto possues de mais brilhante, e mais encantador! Eis-aqui este objecto de tantos votos, e suspiros, de tantos incensos, e louvores, destruido, esquecido, anniquilado; e talvez possa eu dizer, condemnado para sempre!... No pois de admirar, que este espectaculo, mais poderoso, que todas as verdades da moral, mais eloquente, que todos os discursos, tenha feito as mais estrondosas converses, santificado os maiores peccadores, povoado os desertos, e os claustros de penitentes, produzido reformadores celebres, e reformas as mais austeras; que os peccadores, que havio resistido a todas as ameaas da religio, no tenho podido subtrahir-se sua victoriosa influencia; e que elle tenha sido capaz de mudar os mesmos monstros de libertinagem em modelos de fervor, e santidade. Mas ns sabemos tudo isto muito bem, dizer os mundanos, estas bellas lies de moral so muito antigas. Eis at onde eu queria conduzir-vos, exclama ainda S. Joo Chrysostomo. Eis o mysterio que eu queria obrigar-vos a confessar, por ser o mais espantoso, e o mais difficil de conceber-se; que sabendo verdades to terriveis, e to formidaveis, possaes esquec-las, e vivaes como se as ignorasseis; que fora de as ouvir vos torneis insensiveis; que julgueis uma prova de grandeza dalma affrontar esta ida apezar de todos os seus horrores, e destrui-la inteiramente no vosso espirito. Vs vos enganaes ainda acreditando, que o pensamento da morte, abatendo vossa coragem, e annulando vossa intelligencia, vos arrojaria no fatalismo, forando-vos a esquecer vossos deveres domesticos, e vossas obrigaes sociaes. No: a morte uma ida forte, e sublime; a expresso da energia, e da actividade. Cada um diria: Eu devo morrer, e em pouco tempo; mas em vez de succumbir debaixo do peso de uma necessidade de52 53

Gen., Cap, 2,v.17. Gen.,Cap.3,v.19.

ferro, accrescentaria como um Christo: Eu devo portanto encher os deveres de meu estado, como quizera ter feito na hora da morte. Eu devo morrer, e em pouco tempo: convm pois que a morte no me tome de improviso sem ter nada feito para a eternidade, porque o Evangelho ensinak, que o servo inutil ser lanado nas trevas54. Eu devo morrer, e em pouco tempo: eu devo pois cuidar, e fallar de tudo, julgar e pensar de tudo, como julgarei e pensarei, no momento da morte. Assim no haverio usuras, e fraudes no commercio, porque o negociante, considerando-se mais vizinho da morte do que da fortuna julgaria a sua salvao o mais essencial de todos os seus interesses. No existiria o luxo excessivo da opulencia, porque o rico attentaria que seus thesouros, e suas riquezas devio desapparecer bem de pressa com elle55. No haveria altivez, e orgulho nas dignidades, porque os grandes, pensando que a morte iria bem de pressa confundi-los com o resto dos homens, no serio tentados a reputar-se Deoses56. No haveria ignorancia, ou injustia na magistratura, porque os juizes da terra pensario que a morte os iria julgar bem de pressa. Cessaria a libertinagem entre os militares, porque os guerreiros, que affronto a morte nos combates, so os mais cobardes no meio dos prazeres. No haverio os excessos, e as infamias, que degrado a mocidade, porque s falta aos moos para comear a ser Christos, julgarem a morte to perto quanto elles a considero distante. Com o pensamento da morte a virtude, e a Religio entrario nos seus direitos, porque no ha paixes to violentas, que no parem, e no retrocedo diante desta barreira, que ellas no podem saltar, deste freio incommodo, que mordem raivosas, e que s as pde domar. Levantai-vos pois acima de vs mesmos, meus irmos; entrai com a firmeza dum Christo nos abysmos espantosos da morte; reflecti a sangue frio nas consequencias inevitaveis, que acompanho vossa destruio, para destarte illudir as ciladas, de que o home tantas vezes assalteado. Que! no tendes fora para conservar a lembrana desta morte, a que sois irrevogavelmente condemnados57; e supportareis em o vosso corpo a Cruz de Jesus Christo, como ordena o Evangelho58? Vossa coragem vos abandona, quando pensaes na vossa dissoluo; e ousareis mortificar os vossos sentidos, fazer-lhes guerra, e doma54 55

Matth.c.25.v.30. Luc.c.12.v.20 e 21. 56 Ps. 81.v.6 e 7. 57 Gen.c.3.v.19. 58 S.Matth.c.10.v.38.

los com a penitencia?! Vs no vos podeis familiarisar com as humiliaes do tumulo: tremeis diante de um cadaver: um esquife vos penetra de pavor, e medo; e vencereis o orgulho, a vaidade, e todos esses excessos, contra os quaes um Christo deve sempre lutar, e combater?! Virgens sublimes, e heroicas, a quem a raiva dos tyrannos, e todos os horrores da morte no pudro inspirar o susto, nem arrancar do vosso corao o amor do vosso Deos, que dirieis de uma mulher, que se contempla ao espelho cem vezes no dia; e no tem valor para pensar que este rosto, objecto de tanta complacencia, destinado a ser pasto da corrupo, e dos bichos! Aquelles que se nutrem destes pensamentos, aquelles que fogem do seculo, para estudar no livro sublime da Morte as lies da mais alta philosophia, tem a combater a violencia das paixes; e poder reprimi-las os que suffoco esta importante lembrana? O som da trombeta celeste, as pompas funebres do tumulo no pudro abafar os canticos harmoniosos do mundo; a belleza volputuosa de Roma vem distrahir os serios pensamenos de S. Jeronymo; a lembrana desta meretriz famosa, que arrastava ao carro de suas victorias os grandes, e sublimes da terra59, desenvolve um resto de calor nos ossos descarnados do penitente, extenuado com jejuns, e deitado sobre a cinza, e o cilicio; e tereis fora para arrancar-vos dos prazeres do seculo, evitando com cuidado a lembrana do vosso derradeiro destino? Sim, Christos, se hoje apparecem entre ns mais escandalos, mais desordens, e corrupo nos costumes, porque hoje mais do que nunca vive-se sem pensar na morte. Por isso diz o Propheta rei: Elles tiro de sua saude um argumento de confiana, que os autorisa a peccar: Ideo.... prodiit quasi ex adipe iniquitas eorum60. Porque no se lembro que as paixes arruino a vida, elles entrego-se a toda sorte de abominaes: Transierunt in affectum cordis61. Porque no medito neste silencio, nestas trevas, neste horror do tumulo, que os espera, elles se vanglorio de seus crimes; gabo-se dos seus desvarios; publico suas infamias; e julgo-se autoridades para insultar com altivez o bom senso, e a probidade: Locuti sunt iniquitatem in excelso62. Porque no se lembro da conta rigorosa, que devem dar depois de sua morte, sua impiedade se levanta contra o59 60

Apoc.c.17.v.3,4,9 e 18. Ps. 72.v.7. 61 Ps.72.v.7. 62 Idem, v.8.

Co, zombando da Religio, e de seus mais augustos Mysterios: Posuerunt in caelum os suum63: enxovalho a moral, que seus pais, to famosos por sua f, tinho sempre respeitado; baralho os principios mais bem fundados da justia, e da equidade; cobrem de opprobrio os ministros da Religio; fazem de tudo quanto ha de mais sagrado o objecto de suas criminosas conversaes; e no poupo a innocencia, nem a virtude: Lingua eorum transivit in terram64. Escutai a palavra do Senhor: O vs, que no sois mais que p e cinza, exclama o propheta Jeremias: terra, terra, terra, audi sermonem Domini65; escutai, no esta palavra lisongeira, que vos diz: O mundo vossa herana, so vossos todos os seus bens; no esta palavra de seduco, que vos annuncia que tendes ainda longos dias para gozar de suas delicias, e seus prazeres; mas a palavra do Senhor, que nem lisonga, nem engana, que no se contenta com dizer a vs, e a todos aquelles, que vivem como vs, que sois p ,e que sereis reduzidos a p66; mas que vossa raa tem j soffrido esta sentena: que vossos pais vos espero; que vosso lugar j esta marcado; que vosso corpo se dissolve a cada momento; que a seu olhos j estaes lanados, estendidos, e corrompidos nesta terra, que pareceis ignorar, que affectaes esquecer, e cujo pensamento rejeitaes. Abjecti sunt ipse, et semen ejusk, ete projecti in terram quam ignoraverunt67. Porque tendes abusado de todas as minhas graas, e empregado no crime os annos, que vos foro dados para vossa santificao, eu entornarei sobre vs o calix de minhaira, diz o Senhor; eu vos assaltarei com uma morte repentina no meio de vossos mais lisongeiros projectos, eu vos cercarei de desesperao no leito de vossa enfermidade, e vos cobrirei de confuso no dia de meu juizo68. Quando abandonados de vossos melhores amigos, illudidos da esperana, com os medicos vos lisongeavo, frdes penetrados de todos os terrores da morte; quando as margens desta eternidade, de que zombaes no circulo dos companheiros de vossa dissoluo, se desdobrarem diante de vossos olhos espavoridos; quando esta Religio, cuja santidade no tinheis respeitado, se apresentar em toda a sua magnificencia para vos dar em rosto com a vossa impiedade; quando estes mesmos ministros do culto, estes homens to63 64

Idem, v.9. Ibidem. 65 Jeremias,c.22.v.20. 66 Gen. cap.3, v.19. 67 Jeremias, cap.22, v.28. 68 Prov.cap.1.v.24,26 e 28.

desprezados, to vilipendiados por vs, no puderem entornar em vosso corao o balsamo da esperana, vs conhecereis ento a omnipotencia, de que sou revestido para ferir-vos. Et scietis quia ego sum Dominus percutiens69. No, vs no escapareis vingana do Senhor: ha na sua colera segredos espantosos; seus flagellos seguem de perto a depravao dos costumes. Considerando o desprezo to completo de vossos deveres, reflectindo no esquecimento profundo de vosso ultimo fim, no podemos deixar de annunciarvos todo o genero de calamidades. Dia vir, em que todos os males, cahindo de tropel sobre vossa cabea, vinguem completamente o desprezo de tantas graas: Venient dies in te, eo quod non cognoveris tempus visitationis tuae 70. Quem de vs no tem visto realisada uma parte destas ameaas, tantas vezes fulminadas contra as naes! Quantos de vs mesmos tem sido testemunhas de nosso proprios desastres!... Salvai, Deos, salvai a este povo. So os netos dos heres, que levro a luz do Evangelho s extremidades da terra, so os filhos deste povo em outro tempo to celebre por sua piedade, onde Baal nunca teve altares, nem os Deoses das naes bosques, e oraculos. As virtudes de seus avs affrouxem o arco j brandido para feri-lo71. Vde sobre o throno portuguez o sangue de tantos reis, zelosos de vossa honra, e da exaltao de vosso nome; o sangue de Isabel, e de Mafalda. Enchei-o de gloria, e magnificencia entre as naes, para que o vosso Nome seja cada vez mais glorificado. Propter David servum tuum non avertas faciem Christi tui72.

CONCLUSO No momento de finalisar a revista das minhas Obras oratorias devo aos leitores uma advertencia, que tem por objecto remover alguns embaraos, e acabar com69 70

Ezech., cap.7,v.9. Luc., cap.19, v.44. 71 Ps.88, v.33 e 34. 72 Ps. 131, v.10.

quaesquer preconceitos. Convm saber, que existem dous methodos de numerar os versos dos Psalmos; um contendo, o outro excluindo da numerao a synopse dos mesmos psalmos. O primeiro methodo seguido por Du Hamel, sustentado na concordancia da Biblia: o segundo admittido por Sacy, e o Padre Antonio Pereira de Figueiredo. Desta sorte o verso do psalmo, que na Biblia de Du Hamel conserva, por exemplo, o numero 4, representa na Biblia de dous j citados autores o numero 3. Annotando os meus discursos fui obrigado a seguir o primeiro methodo, no s porque a Biblia de Du Hamel dirigra os meus primeiros estudos, mas ainda porque eu tinha necessidade de cingir-me numerao designada para a Concordancia: livro classico da maior importanciak, o unico indicador dos textos da Escriptura Santa. Assim o verso dum psalmo citado por mim deve ser para a Biblia de Sacy, e do Padre Antonio Pereira o verso antecedente. Terminando uma empreza to laboriosa, rendo os meus sinceros agradecimentos ao Sr. Eduardo Laemmert por seu zelo, sua perseverana, e o auxilio valioso, que prestou, afim de sahir luz com a maior nitidez, e perfeio muitas vezes estorvada por emergencias inevitaveis, e corrigida por um escriptor privado inteiramente da vista, e que devia contar smente com a energia da sua vontade, com o vigor da sua memoria, e a robustez da sua intelligencia. Tantos esforos, fadigas to aturadas ero precisas para deixar um vestigio da minha passagem nesta terra, onde recebi applausos, coras e ovaes, de que nenhum orador, nenhum philosopho antes de mim, ousou ainda gloriar-se. Exposto a dezoito annos, a todas as provaes, e sorvendo cada instante o calix da angustia, que a minha cegueira me propina, gozo ao menos da consciencia de no terem sido estereis tantos dias, nem enterrados os talentos, com que Deos me mandou negorciar (Matth.c.25.v.16,18). Sahirei pois deste mundo com a doce consolao, de que restar de mim uma lembrana honrosa, e no me ser recusada uma lagrima. Rio, 25 de Dezembro de 1853. Fr. F. do Monte Alverne