Montedor de José Rentes de Carvalho
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J. Rentes de Carvalho
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Montedor
QUETZAL lngua comum | J. Rentes de Carvalho
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DA CIDADE A MONTEDOR o mercadorias demorava hora emeia, por isso nos entretnhamos a jogar.
A maleta do Gordes servia de mesa, mas naquela tarde,ao fazer a agulha, o comboio deu um solavanco inesperadoe as cartas espalharam-se, pondo fim ao jogo que s vezescontinuvamos nos bancos da estao. Baixmo-nos a apa-nh-las.
Esto todas? perguntou o Matias, que era dono dobaralho.
Falta o s de copas! respondeu o Bezerra com umagargalhada.
O teu.O Matias tinha aquele jeito de responder torto, incapaz
de aceitar uma graa, sempre a temer indirectas mulher. Le-vantmo-nos, espera que o comboio parasse, contrafeitos,a temer a zanga que ficara no ar.
Chove? perguntou algum atrs de mim. No. Ainda no.No sei porque escolhi aquele momento, mas cheguei-
-me ao Gordes e toquei-lhe o ombro:
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Queria-lhe uma fala. Que ? L fora.No perguntou mais e saltou minha frente, o comboio
ainda em andamento, hbito de vinte anos. volta os outros do as boas-noites, o Bezerra agarra o
Matias pelo brao, dizendo-lhe que no seja urso, era umapalavra sem malcia:
Ento que h? Bem Eu O senhor podia A garganta engulha-
-se-me, as orelhas sentem o fogo, ele espera que eu explique. O senhor pode emprestar-me quinhentos mil ris?
O Gordes aperta a maleta contra o peito, espantadocomo se o fosse roubar.
Que isso, rapaz! Que ideia essa? Quinhentos milris! Eh! Eh! Se o teu Pai vem a saber! E como ias pagar?Ora, ora! Deixa-te de estroinices.
Eu Ento? Fizeste alguma? No senhor. Era um negcio.A cara dele vira do rosado ao carmesim, os braos prote-
gendo a maleta, olhando-me como se eu delirasse: Um ne-g-cio! Sim senhor. O teu Pai sabe? No senhor. Ora vai pelo teu caminho e deixa-te de fantasias.Joguei, vai ser tudo ou nada, e se for nada, pacincia Que fantasias?
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J disse, menino! Deixa-te disso. Agarra-te aos livros,estuda! Quinhentos escudos! Julgas que o dinheiro
No senhor. que Ento?Pe a maleta atrs das costas, o brao livre faz um gesto
que me despede e ao mesmo tempo aponta o cu, como quemdiz no e quer a conversa acabada.
Era um negcio de perfumes.Pra, irritado: Olha, rapaz, no quero saber dos teus negcios. Perfu-
mes, lulas, no me interessa. Nem sei como te atreves. D-tepor contente que no v daqui direito ao teu Pai. Enfim
Sinto as pernas bambas e fico na borda do caminho,dando-me conta dos barulhos que vm do rio, os grilos, as rsque coaxam, os assobios com que os espias avisam os pesca-dores da passagem dos guardas.
De medo deito-me a correr atrs dele: Senhor Gordes! Senhor Gordes! Que mais temos? Contrafeito, de m cara como se j
lhe devesse. O senhor no vai dizer, pois no? No. Fica descansado. Mas deixa-te de tolices. Boa
noite.
Agora que joguei e perdi, que era a salvao ou o fim domundo, e no veio uma coisa nem outra, ou tudo est paravir, com certeza o pior, atalho por entre os campos de milhoa encurtar caminho, apresso-me para casa, esquecido de ter
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medo das almas penadas dos contrabandistas que a Guardamatou e vagueiam noite nas encruzilhadas.
O difcil vai ser encontrar resposta para tantas pergun-tas. E isto? E aquilo? Como foi? E o professor? Quando queescrevem os resultados? Porque no vieste mais cedo? E ago-ra? Tens fome?
Faa-se a vontade do Todo-Poderoso. Subo a ladeira cor-rendo quanto posso e empurro a porta, esbaforido, esperade que se compadeam.
Boas noites.A Me volta-se, espeta os olhos em mim: Passaste? Faltam as orais.Ela, porque no compreende, fica espera que eu encha
o vazio, que explique pelo mido. Agora foram as ltimas escritas. Daqui a oito dias,
mais ou menos, vm os resultados. Depois, quem passou vais orais.
Orais? . Primeiro faz-se o exame escrito. Os que tm mdia
vo prova oral. E tu tens mdia? Ainda no sei! Como que vou saber se os resultados
s saem l para a outra semana!Passa a mo pelo queixo, num esforo, a sentir o estra-
tagema. Mas ento hoje que foste fazer cidade? Exame! Exame escrito! Compreende? Exame escrito?
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Sim. Exame escrito. O ltimo. Daqui a uma semanasai o resultado.
Mas andas a fazer exame h uma semana! Quinzedias!
Claro! E espanto-me, fao de aborrecido. Ah! Esta es-tupidez das mes que no foram escola!
Cada dia uma disciplina diferente! Compreende?E so oito disciplinas! Latim, Portugus, Matemtica Almdisso, chamam-nos por nmero, no vamos todos de umavez! Demora!
Veremos!A ameaa fica no ar. Ela, por si, esfrega as mos ao aven-
tal, volta s panelas e explica Av, com as minhas palavras,porque que os exames levam tempo.
Mas Av pouco importa, a Me que fala por falar,s interrompe o padre-nosso para dizer numa voz de mauagouro:
Este menino h-de trazer desgraa. Porqu, Av? Creso como quem ameaa, mas ela
nem olha. bendito o fruto de vosso ventre, Jesus Pai Nosso
que estais no cu Sai da.A Me empurra-me de leve, porque lhe fico no caminho,
e vou para a sala, a bufar como se a famlia me pesasse.No acendo a luz. Fico no escuro, a querer pr as ideias
em ordem, ao menos arranjar modo de adiar quanto puder.Com tudo pelo melhor ainda tenho dez dias, duas semanas.O pior pode vir por acaso. Se o Pai vai cidade, se a Me
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fala mulher do Silva, se se Nem adianta imaginar, questo de corda bamba, fio de cabelo, um resvs to finoque me aliviava se o temporal desabasse de vez.
O enredo pe-me maluco, e as mentiras encadeadas em-brulham a Me, tiram-lhe a coragem de perguntar mais, deme espremer. Se lhe tivesse um respeito por a alm perdia-oagora, porque afinal quem diz me diz monumento, coisa s-lida, algum que no se deixa meter os ps pelas mos.
Ela, duas tretas, uma cara feia, passou. O Pai idem, masesse ao menos no quer saber, curiosidade no com ele. V cidade ou fique, tenha exame ou me dedique pesca, omesmo. No se lhe d.
Por isso no durmo direito, e se durmo para acordar empesadelos, modo, suando frio. Que sem ps nem cabea sei--o eu, mas faltou-me a coragem. Talvez nem se zangassem setivesse confessado logo, mas o Pai comeou a gracejar, dali anada estava eu doutor, engulhei, no fui capaz de lhes dizer oresultado, inventei que tinha ido cidade e fiquei-me pelo pre-texto. Exame escrito. No comboio entretenho-me a jogar e seme perguntam respondo de lado.
Esse exame? Vai indo.
Duas semanas so uma eternidade, com os dias o medotorna-se mais agudo, descobri que tremo das mos, que a facese me arrepanha com tiques.
Tomara que algum me viesse tirar do mau passo, masningum vem, da a ideia de pedir quinhentos mil ris ao
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Gordes. No era m, faltou a boa vontade dele. Que levandosabo para Espanha e trazendo perfume, em quatro viagens ti-nha ganhado o dobro, bastante para me pr a andar. Acaba-vam os problemas.
A Me deve ter deixado esturrar a comida, o fedor aqueimado espalha-se pela casa e a Av vem pelo corredor,tossicando, espia para dentro da sala.
Eh! Vadio! Que ests tu a conspirar no escuro? Nada. Inimigo do Senhor! Por ti que as desgraas ho-de vir! Que desgraas? Que que eu Fao-lhe frente, ofen-
dido, mas no se desconcerta. s de m raa! Empurra-me como se lhe atravancas-
se o caminho, tira os pratos do guarda-loua e volta cozi-nha, j esquecida de mim, recomeando o padre-nosso.
Mesmo em pensamento nunca me atrevera a querer-lhemal, a culpa dela que me pe rabioso, vem-me uma gana dev-la morta. Nunca um sorriso, um benza-te Deus, do quefao nada lhe parece bem feito, relana-me de esguelha comose eu tivesse o poder do mau-olhado, se me fala para em-birrar. Que rebente!
E se rebenta A voz fala dentro de mim, suave, verda-deira, amiga. Para que havia de pedir ao Gordes? Ela temouro, anis, as correntes do Av! Devo ser bem tolo parater esquecido! Nem preciso de esperar. E pagas-te dumavez. Deix-la gritar. Que chame nomes, que insulte.
Saboreio, imagino o caso despachado, vejo-me a cem l-guas, nem parentes nem aderentes, vida grande e francesa,um venha-a-ns.
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Paga por todos e bom proveito me h-de fazer. Ao menosuma vez h-de ter razo em barafustar, e queira Deus que noestique a perna, que o mais certo se descobre a falcatrua.
Se me lembro guarda a caixa no guarda-vestidos. Difcil entrar no quarto, que ela tem ouvido de tsica, anda porcasa em chinelos de feltro, se me apanha a farejar entre ostrapos no se ensaia para me assentar uma bengalada.
Vens comer?Entro na cozinha a arredondar a ideia. A Av j est
mesa e o talher que falta explica-me a temperatura e os ais daMe, mas calo-me, h horas em que uma palavra estraga oresto de paz, e em nossa casa por pouco se comea um pranto.
Comemos em silncio. A falar verdade pouco se me dque o Pai venha ou fique, antes me faz arranjo no ter de re-petir estas histrias de exames. Melhor assim.
Ao fim da ceia a Av tossica, paramos, rezamos as gra-as, o dirio, com a diferena que a Me em vez de comeara lavar a loia atira tudo toa para cima da pia, traz doisbancos, a vassoura, o serrote, e diz Av que se amodorra:
Passa das nove.Mistrio. A Av deixa cair o rosrio dentro do bolso do
avental, segura a vassoura por um lado, enquanto a Me ser-ra e bufa, porque um cabo de vassoura duro como cornos,o serrote chia, a Av dana com o balano.
Ajudo a segurar, sem saber se fao bem ou mal, porqueelas no dizem palavra, nada que esclarea. Por fim a Me temo cabo cortado em dois cacetes de metro, segura um, toma-lheo peso, balana-o como quem ensaia a maneira de melhor fe-rir. Um teatro. Porque, mais vale diz-lo logo, uma alminha
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do Senhor, esmorece se tem de esfolar um coelho, paga a quemlhe degole as galinhas, e v-la em p de guerra a ensaiar umvarapau, com olhos que mal escondem as lgrimas, d pena,vontade de abra-la. Diga quem lhe fez mal, que saio eu a pe-dir contas, pobre do que se me atravesse no caminho.
E um cacete no seguro. A pistola do Pai, que ele dei-xa na mesinha de cabeceira, sim. Um aperto no gatilho, pum!
Uma tarde escondi-a no bolso, socapa, fui para o Mon-te e consolei-me, gastando o carregador que comprara ao Je-remias. Uma Mauser, um peso na mo, a quentura de quandose aperta um passarinho.
Atirara toa contra os pinhos, contra o inimigo que seescondia atrs das pedras, gritando-lhe que se rendesse, amea-ando-o de morte. Ah! Filmes de cowboys, Gunga-Din, OsTrs da Legio Estrangeira! Come on, you, bastard!
chegas por trs. Ningum te v, e se vir o mesmo,descarregas-lhe o pau na cachola.
Me!A Av levanta um dedo mando, no me deixa falar: Cama! No me faa perder a cabea!Olha para mim como se no acreditasse, ou eu estivesse
bbado, tomado de loucura repentina. Ora o besta! Ora o besta! A faltar-me ao respeito!
E avana de pau erguido, corro s voltas na cozinha, ela atrs,a bufar, at que a Me se interpe.
Pagas! Quem disse? respondo-lhe escarninho, protegido pela
mesa.
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A Me traa o xaile, esconde o varapau nas dobras eempurra-me de manso.
Vai para a cama, filho. A gente j volta. Mas Nada. Nada. Deita-te. Porque que no diz?Bem sinto que pedir-lhe que tire as tripas pela boca,
mas no corredor a claridade pouca, no lhe vejo os olhos: O teu Pai tem uma amsia no Freixo, nem vem comer,
fica-se com ela. Mas desta vez aprende. Quer que eu v? Deixe-me ir consigo! No. Deita-te, que no tardamos. E se lhe acontece alguma coisa? No acontece.A Av chega encapuchada, a resmungar, em vez de es-
conder o pau apoia-se nele como uma bengala, desce as esca-das primeiro.
Me, porque no leva antes a pistola? Anda, rapariga! Outro que tal! Bem te digo que este
tambm nasceu para teu castigo.A porta bate, fico sozinho no escuro, esquecido de acen-
der a luz, um arrepio de medo no v o Pai zangar-se, tomarpartido pela amante.
dos frescos, com aquele arzinho de quem no faz mala uma mosca, e a morder pela calada.
Vou apalpar a pistola dentro da gaveta, ningum sabe oque pode acontecer numa casa vazia. Entretenho-me a meteras balas no cano e a faz-las saltar sobre a cama. Seis. Se ti-vesse dinheiro comprava outro carregador.
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Ponho as balas no seu lugar, a pistola dentro da gaveta,s pressas, apago a luz e vou-me ao quarto da Av. Tinha es-quecido.
Ajoelho-me, rebusco dentro do guarda-vestidos, sufo-cado pelo mofo de roupa esquecida h anos. Cheira a bafio,naftalina, incenso, sapatos atirados toa. Da caixa, nem ras-to. Medalhas, rosrios, figuras de santos tem ela s dziasnos bolsos, em embrulhos que tilintam, pendurados mistu-ra com a roupa.
Experimento entre os colches. Um Menino Jesus, umSagrado Corao, outro rosrio, uma medalha de Santa Br-bara, mais nada.
Por baixo da cama est uma maleta onde guarda o ves-tido que preparou h anos e h-de ser o da mortalha. No med gana de lhe tocar porque mau agouro.
Abro? No abro? Se o guarda ali? J as mos voadiante do pensamento, apalpo sem olhar, sinto a caixa numcanto e no mo digo duas vezes.
Queria-me sem pressas, sem tremuras, mas no evito queas mos se embaralhem, quase estrago o fecho, bruta, nome dando conta de que primeiro tenho de desatar o n do fioque ela passou em volta, precauo simblica, acrescida deuma medalha de So Bento, santo que livra a gente dos mauscaminhos e acode aos pescadores sobre as guas do mar.
De certeza protege contra os ladres. Ser que sou la-dro? Entro na categoria? Ainda no roubei, no mexi no queest dentro da caixa. E se mexo? Ser roubo? O que da Av meu, ou no ?
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, porque sou o ltimo herdeiro. Hem? Pergunto, masno vem resposta, o que vem a lengalenga da Me a dizerque no se mexe no que est quieto, no se pega no que nonos pertence, etc. O medo. Imagina So Bento a aparecer e atirar-me a caixa das mos. Mesmo de brincadeira, s a fingir,d-me um arrepio.
Pacincia. Primeiro o ouro da minha Av, no dumestranho. Segundo, se no arranjo dinheiro de qualquer ma-neira
Basta, nem o pensamento precisa de ir mais longe. Seno arranjo dinheiro e no me ponho a andar daqui parafora, no dia em que se souber que no fiz exame cortam-mes postas. Um dcimo do que prometeram j seria demais.
Tiro dois anis, uma pulseira, dois elos duma correntemacia. Acho que chega. Pelo sim pelo no tiro outro anel,o que tem uma figura em relevo, e cuido que tudo fique comoestava, espalho o algodo em rama de modo que se abrir acaixa no d logo pela falta.
Ato a fita, ponho So Bento no seu lugar, a caixa no fun-do da maleta, a maleta por baixo da cama, acendo a luz,apalpo a colheita que guardo no bolso e vou varanda, aprecisar do ar fresco da noite.
Choveu. Ao longe, onde o rio faz um cotovelo, brilhamas luzes da ponte da fronteira. Imagino a Me a surrar a am-sia do velho, a gritaria, os curiosos, o falatrio que vai ser.
Vou-me cama, sentindo na mo o macio de ouro e naalma o consolo de que desta vez certo, fao-me um contode ris, e com um conto, minha gente, vou daqui ao fim domundo!
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