MORAES, A. C. R. - Geografia; Pequena Historia Crítica

download MORAES, A. C. R. - Geografia; Pequena Historia Crítica

of 48

Transcript of MORAES, A. C. R. - Geografia; Pequena Historia Crítica

ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES

GeografiaPequena Histria Crtica

ndicePg Apresentao Capitulo 1 - O Objeto da Geografia Capitulo 2 - O Positivismo como fundamento da Geografia Tradicional Captulo 3 - Origens e pressupostos da Geografia Captulo 4 - A sistematizao da Geografia: Humboldt e Ritter Captulo 5 - Ratzel e a Antropogeografia Captulo 6 - Vidal de La Blache e a Geografia Humana Captulo 7 - Os desdobramentos da proposta lablachiana Captulo 8 - Alm do Determinismo e do Possibilismo: a proposta de Hartshorne Captulo 9 - O movimento de renovao da Geografia Captulo 10 - A Geografia Pragmtica Captulo 11 - A Geografia Crtica Palavras finais 3 4 7 11 15 18 22 27 31 34 37 42 48

Apresentao Este livro foi escrito com um objetivo didtico. Quem j se encontrou frente necessidade de ministrar um curso introdutrio e geral de Geografia, conheceu as dificuldades decorrentes da falta de bibliografia. Esta, parca em termos absolutos, se limita aos manuais franceses ou americanos; ambos insatisfatrios para quem visa um conhecimento crtico. O intuito da presente obra o de contribuir para a superao desta situao, oferecendo um panorama dessa disciplina num tratamento que procura ir alm das verses oficiais. Apresentamos aqui, de forma sucinta, como no poderia deixar de ser numa obra introdutria, o que foi e o que vem sendo o pensamento geogrfico, tentando cotejar as formulaes com as formulaes com o contexto histrico que as engendrou. Assim, apontar algumas mediaes mais evidentes entre a produo geogrfica e o desenvolvimento do modo de produo capitalista. O plano de exposio apoiou-se no programa do curso que ministramos, nos anos de 1980/81, aos alunos de Cincias Sociais e Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de Campinas. A prtica didtica ajudou muito na sistematizao e organizao dos tpicos. Nesse sentido, deixamos registrada nossa dvida de gratido com nossos alunos que, atravs de debates e questionamentos, nos fizeram avanar no estudo da histria do pensamento geogrfico. Ainda ao nvel dos agradecimentos, gostaramos de mencionar o nome de Wanderley Messias da Costa, companheiro de muitos trabalhos, e que poderia mesmo ser considerado um co-autor de muitas partes deste volume. Tambm agradecemos ao amigo Milton La Huerta, pela leitura dos textos na sada do forno e pelas valiosas sugestes. Agradecemos ainda ao professor Geraldo Rodrigues, que gentilmente executou a reviso de nosso texto. Finalmente, gostaramos de fazer um agradecimento ao conjunto do Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo, bero de nossas indagaes geogrficas, fonte de informaes e estmulos, e espao de nosso trabalho atual. Se este livro estimular os gegrafos quanto necessidade de repensar o passado de nossa disciplina, e contribuir para um slido e claro posicionamento dos iniciantes, nossas expectativas estaro plenamente atingidas.

Captulo 1 O objeto da Geografia A questo que introduz este volume o que Geografia? aparentemente bastante simples, porm refere-se a um campo do conhecimento cientfico, onde reina enorme polmica. Apesar da antiguidade do uso do rtulo Geografia, que foi mesmo incorporado ao vocabulrio cotidiano (qualquer pessoa poderia dar uma explicao do seu significado), em termos cientficos h uma intensa controvrsia sobre a matria tratada por esta disciplina. Isto se manifesta na indefinio do objeto desta cincia, ou melhor, nas mltiplas definies que lhe so atribudas. Alguns autores definem a Geografia como o estudo da superfcie terrestre. Esta concepo a mais usual, e ao mesmo tempo a de maior vaguidade. Pois a superfcie da Terra a teatro privilegiado (por muito tempo o nico) de toda reflexo cientfica, o que desautoriza a colocao de seu estudo como especificidade de uma s disciplina. Esta definio do objeto apia-se no prprio significado etimolgico do termo Geografia descrio da Terra. Assim, caberia ao estudo geogrfico descrever todos os fenmenos manifestados na superfcie do planeta, sendo uma espcie de sntese de todas as cincias. Esta concepo origina-se das formulaes de Kant. Para este autor, haveria duas classes de cincias, as especulativas, apoiadas na razo, e as empricas, apoiadas na observao e nas sensaes. Ao nvel das segundas, haveria duas disciplinas de sntese, a Antropologia, sntese dos conhecimentos relativos ao homem, e a Geografia, sntese dos conhecimentos sobre a natureza. Desta forma, a tradio kantiana coloca a Geografia como uma cincia sinttica (que trabalha com dados de todas as demais cincias), descritiva (que enumera os fenmenos abarcados) e que visa abranger uma viso de conjunto do planeta. As maiores polmicas ensejadas por esta perspectiva, denominada corolgica (viso espacial, em oposio cronolgica ou enfoque temporal), dizem respeito ao significado preciso do termo superfcie terrestre. Alguns autores vo falar em biosfera (esfera do planeta, que apresenta formas viventes); em outros, em crosta terrestre (camada inferior da atmosfera, mais a capada superior da litosfera), encobrindo, com a discusso terminolgica, a vaguidade desta definio do objeto. Enfim, a idia de descrio da superfcie da Terra alimenta a corrente majoritria do pensamento geogrfico. Outros autores vo definir a Geografia como o estudo da paisagem. Para estes, a analise geogrfica estaria restrita aos aspectos visveis do real. A paisagem, posta como objeto especifico da Geografia, vista como uma associao de mltiplos fenmenos, o que mantm a concepo de cincia de sntese, que trabalha com dados de todas as demais cincias. Esta perspectiva apresenta duas variantes, para a apreenso da paisagem: uma, mantendo a tnica descritiva, se determinaria na enumerao dos elementos presentes e na discusso das formas da ser denominada de morfolgica. A outra, se preocuparia mais com a relao entre os elementos e com a dinmica destes, apontando para um estudo de fisiologia, isto , do funcionamento da paisagem. A perspectiva da morfologia apresenta, em sua gnese, fundamentos oriundos da Esttica: o captulo inicial da obra de Humboldt Cosmos se intitula Dos graus de prazer que a contemplao da natureza pode oferecer, e um dos autores a mais citados no o filsofo ou cientista, mas o literato Goethe. Caberia observar o horizonte abarcado pela viso do investigador, e desta contemplao adviria a explicao. Da a grande valorizao da intuio, nos procedimentos de anlise propostos por esta perspectiva, dela decorrendo uma considervel carga irracional no pensamento geogrfico. A perspectiva da fisiologia da paisagem seria um organismo, com funes vitais e com elementos que interagem. geografia caberia buscar estas inter-relaes entre fenmenos de qualidades distintas que coabitam numa determinada poro do espao terrestre. Esta perspectiva introduz a Ecologia no domnio geogrfico. Uma outra proposta encontrada, na verdade uma variao sutil da anterior, a daqueles autores que propem a Geografia como estudo da individualidade dos lugares. Para estes, o estudo geogrfico deveria abarcar todos os fenmenos que esto presentes numa dada rea, tendo por meta

compreender o carter singular de cada poro do planeta. Alguns gegrafos vo buscar esta meta atravs da descrio exaustiva dos elementos, outros pela viso ecolgica, encontrando, no prprio inter-relacionamento, um elemento de singularizao. Em ambas as propostas, a individualidade local o que importa. Esta perspectiva teria suas razes em autores da Antiguidade Clssica, como Herdoto ou Estrabo, que realizaram estudos mostrando os traos naturais e sociais das terras, por onde andaram. Modernamente, tal perspectiva tem sua expresso mais desenvolvida na chamada Geografia Regional. Esta prope, como objeto de estudo, uma unidade espacial, a regio uma determinada poro do espao terrestre (de dimenso varivel), passvel de ser individualizada, em funo de um carter prprio. A definio da Geografia, como estudo da diferenciao de reas, uma outra proposta existente. Tal perspectiva traz uma viso comparativa para o universo da analise geogrfica. Busca individualizar reas, tendo em vista compar-las com outras; da a tnica nos dados que diferenciam cada uma. Desta forma, a explicao buscada acima (se bem que por intermdio) dos casos singulares. Das definies vistas, esta a primeira a propor uma perspectiva mais generalizadora e explicativa. So buscadas as regularidades da distribuio e das inter-relaes dos fenmenos. Tal concepo mais restritiva, em termos de abrangncia, do pensamento geogrfico. Existem ainda autores que buscam definir a Geografia como o estudo do espao. Para estes, o espao seria passvel de uma abordagem especfica, a qual qualificaria a anlise geogrfica. Tal concepo, na verdade minoritria e pouco desenvolvida pelos gegrafos, bastante vaga e encerra aspectos problemticos. O principal deles incide na necessidade de explicitar o que se entende por espao questo polmica, ao nvel da prpria Filosofia. Sem querer penetrar na polmica, podemse apontar trs possibilidades mais usuais no trato da questo: o espao pode ser concebido como uma categoria do entendimento, isto ,toda forma de conhecimento efetivar-se-ia atravs de categorias, como tempo, grau, gnero, espao etc. Nesta concepo, o espao, alm de ser destitudo de sua existncia emprica, seria um dado de toda forma de conhecimento, no podendo qualificar a especificidade da Geografia. O espao tambm pode ser concebido como um atributo dos seres, no sentido de que nada existiria sem ocupar um determinado espao. Nesta concepo, o estudo do atributo espacial de qualquer fenmeno dar-se-ia na prpria anlise sistemtica deste. Assim, no seria possvel prop-lo como um estudo particular, logo, como objeto da Geografia. Finalmente, o espao pode ser concebido como um ser especfico do real, com caractersticas e com uma dinmica prpria. Aqui haveria a possibilidade de pens-lo como objeto da Geografia, porm, s depois de demonstrar a afirmao efetuada. Esta perspectiva da Geografia, como estudo do espao, enfatiza a busca da lgica da distribuio e da localizao dos fenmenos, a qual seria a essncia da dimenso espacial. Entretanto, esta Geografia, que prope a deduo, s conseguiu se efetivar custa de artifcios estatsticos e da quantificao. um campo atual da discusso geogrfica. Finalmente, alguns autores definem a Geografia como o estudo das relaes entre o homem e o meio, ou, posto de outra forma, entre a sociedade e a natureza. Assim, a especificidade estaria no fato de buscar essa disciplina explicar o relacionamento entre os dois domnios da realidade. Seria, por excelncia, uma disciplina de contato entre as cincias naturais e as humanas, ou sociais. Dentro desta concepo aparecem, pelo menos, trs vises distintas do objeto: alguns autores vo apreend-lo como as influncias da natureza sobre o desenvolvimento da humanidade. Estes tomam a ao do meio sobre os homens e as sociedades, como uma verdade inquestionvel, e caberia Geografia explicar as formas e os mecanismos pelos quais esta ao se manifesta. Desta forma, o homem posto como um elemento passivo, cuja histria determinada pelas condies naturais, que o envolvem. O peso da explicao residiria totalmente no domnio da natureza. Tal perspectiva pode aparecer em formulaes de um radicalismo gradual, porm o limite da ao humana sempre estaria no mximo na adaptao ao meio. Os fenmenos humanos seriam sempre efeitos de causas naturais; isto seria uma imposio da prpria definio do objeto, identificado com aquelas influncias. Outros autores, mantendo a idia da Geografia, como o estudo da relao entre o

homem e a natureza, vo definir-lhe o objeto como a ao do homem na transformao deste meio. Assim, invertem totalmente a concepo anterior, dando o peso da explicao aos fenmenos humanos. Caberia estudar como o homem se apropria dos recursos oferecidos pela natureza e os transforma, como resultado de sua ao. H ainda aqueles autores que concebem o objeto como a relao entre si, com os dados humanos e os naturais possuindo o mesmo peso. Para estes, o estudo buscaria compreender o estabelecimento, a manuteno e a ruptura do equilbrio entre o homem e a natureza. A concepo ecolgica informaria diretamente esta viso. A discusso, entre estas trs vises do objeto, expressa o mais intenso debate do pensamento geogrfico. Entretanto, em qualquer delas encontra-se a idia de que a Geografia trabalha unitariamente, com os fenmenos naturais e humanos. Este breve painel das definies da Geografia, que no pretendeu ser de modo nenhum exaustivo, j justifica a afirmao inicial, quanto s dificuldades contidas na proposta deste volume. O mosaico de definies apresentado restringe-se a formulaes genricas, no desce ao nvel de propostas especficas, nem a autores particulares o que multiplicaria enormemente o numero e as possibilidades de definio. Pois, nas propostas singulares, muitas das vezes se encontraro tentativas de relacionar duas ou mais das definies apresentadas. Alm disso, quase todo autor d uma roupagem prpria (embora, s vezes, apenas ao nvel terminolgico) sua concepo do objeto geogrfico. Assim, o painel restringe-se a grandes modelos puros de definio, e apenas aos de maior repercusso. Tambm se deve levar em conta que o painel abarcou somente as perspectivas da Geografia Tradicional, isto , no foram abordadas as propostas atuais, oriundas do movimento de renovao, que domina o conjunto do pensamento geogrfico contemporneo. Isto mostra quo mais complexo o problema da definio da Geografia. Levou-se em conta apenas a Geografia tradicional, pois nessa que a questo do objeto aflora de modo mais contundente. A Geografia Renovada no se prende a uma viso to estanque da diviso das cincias, no coloca barreiras to rgidas entre as disciplinas, logo, no possui uma necessidade to premente de formular uma definio formal do objeto. A Geografia Renovada busca sua legitimidade na operacionalidade (para o planejamento) ou na relevncia social de seus estudos. Estas questes sero retomadas. Aqui, cabe apenas enfatizar que o painel apresentado se limita s perspectivas do pensamento geogrfico tradicional. Do que foi dito, pode-se depreender que inexiste um consenso, mesmo no plano formal, a respeito da matria tratada pela Geografia. As vrias definies formais de objeto atestam a controvrsia reinante. Diante deste fato, muitas pessoas poderiam perguntar de onde vem ou mesmo se existe, a unidade do pensamento geogrfico. Para tentar encaminhar esta indagao, ainda se ficar no plano restrito da Geografia Tradicional.

Captulo 2 O Positivismo como fundamento da Geografia Tradicional Apesar do elevado numero de definies de objeto existentes na reflexo geogrfica, possvel apreender-se uma continuidade neste pensamento. Esta advm, principalmente, do fundamento comum de todas as correntes da Geografia Tradicional sobre as bases do positivismo. nesta concepo filosfica e metodolgica que os gegrafos vo buscar suas orientaes gerais (as que no dizem respeito especificamente Geografia). Os postulados do positivismo (aqui entendido como o conjunto das correntes no-dialticas) vo ser o patamar sobre o qual se ergue o pensamento geogrfico tradicional, dando-lhe unidade. Uma primeira manifestao dessa filiao positivista est na reduo da realidade ao mundo dos sentidos, isto , em circunscrever todo trabalho cientfico ao domnio da aparncia dos fenmenos. Assim, para o positivismo, os estudos devem restringir-se aos aspectos visveis do real, mensurveis, palpveis. Como se os fenmenos se demonstrassem diretamente ao cientista, o qual seria mero observador. Da a limitao de todos os procedimentos de anlise introduo, posta como a nica via de qualquer explicao cientfica. Tal postura aparece na Geografia atravs da desgastada mxima A Geografia uma cincia emprica, pautada na observao presente em todas as correntes dessa disciplina. Em primeiro lugar, coloca-se algo que comum a todas as cincias o referir-se ao real como um elemento de especificidade da Geografia. E mais, numa viso empobrecedora da realidade, reduz-se esta a mero empirismo. A descrio, a enumerao e classificao dos fatos referentes ao espao so momentos de sua apreenso, mas a Geografia Tradicional se limitou a eles; como se eles cumprissem toda a tarefa de um trabalho cientfico. E, desta forma, comprometeu estes prprios procedimentos, ora fazendo relaes entre elementos de qualidade distinta, ora ignorando mediaes e grandezas entre processos, ora formulando juzos genricos apressados. E sempre concluindo com a elaborao de tipos formais, a-histricos e, enquanto tais, abstratos (sem correspondncia com os fatos concretos). Esta concepo, presente em todas as definies apresentadas, emperrou a possibilidade de chegar a Geografia a um conhecimento mais generalizador, que no fosse custa do formalismo tipolgico. Enfim, de que ele ultrapassasse a descrio e a classificao dos fenmenos. Por esta razo, a Geografia Geral, to almejada pelos gegrafos, na prtica sempre se restringiu aos compndios enumerativos e exaustivos, de triste memria para os estudantes do secundrio. Outra manifestao da filiao positivista, tambm traduzida numa mxima geogrfica, a idia da existncia de um nico mtodo de interpretao, comum a todas as cincias, isto , a noaceitao da diferena de qualidade entre o domnio das cincias humanas e o das cincias naturais. Tal mtodo seria originrio dos estudos da natureza, as cincias mais desenvolvidas, pelas quais as outras se deveriam orientar. Esta concepo, que incide na mais grave naturalizao dos fenmenos humanos, se expressa na onipresente afirmao: A Geografia uma cincia de contato entre o domnio da natureza e o da humanidade. Postura esta que serviu para tentar encobrir o profundo naturalismo, que perpassa todo o pensamento geogrfico tradicional. O homem vai aparecer como um elemento a mais da paisagem, como um dado do lugar, como mais um fenmeno da superfcie da Terra. Apesar de algumas vezes valorizado nas introdues dos estudos, no corpo do trabalho acaba reduzido a um fator, num conjunto de fatores. Da a Geografia a falar sempre em populao (um conceito puramente numrico), e to pouco em sociedade. Na verdade, a Geografia sempre procurou ser uma cincia natural dos fenmenos humanos. Isto se expressa, por exemplo, na colocao de J. Brunhes de que, para a Geografia, a casa (como elemento fixo da paisagem) tem maior importncia do que o morador. Ou, na afirmao de C. Vallaux, de que o homem importa, para a anlise geogrfica, por ser um agente de modelagem do relevo, por sua ao como fora de eroso. Tal perspectiva naturalizante aparece com clareza no fato de buscar esta disciplina a compreenso do relacionamento entre o homem e a natureza, sem se preocupar com a relao entre

os homens. Desta forma, o especificamente humano, representado nas relaes sociais, fica fora do seu mbito de estudos. Assim, a unidade do pensamento geogrfico tradicional adviria do fundamento comum domado ao positivismo, manifesto numa postura geral, profundamente empirista e naturalista. Outra idia, presente em todas as definies apresentadas, que indiretamente se vincula a este fundamento, est traduzida na mxima: A Geografia uma cincia de sntese. Esta concepo alimenta-se no af classificatrio do positivismo, sempre s voltas com uma hierarquizao das cincias. No caso, revelando enorme imodstia, tornar-se-ia a Geografia como a culminncia do conhecimento cientifico, isto , como a disciplina que relacionaria e ordenaria os conhecimentos, produzidos por todas as demais cincias. Seria uma especificidade mesmo de fenmenos que compem o real, num leque que abrangeria, desde aqueles tratados pela Fsica, at os do domnio da Economia ou da Antropologia. Assim, tudo entraria na anlise geogrfica, que desta forma tenderia a ser exaustiva em termos dos elementos abarcados. Tudo aquilo que interfere na vida da superfcie da Terra seria passvel de integrar o estudo; para se ter uma idia de quo abrangente pode ser esta concepo, basta lembrar a afirmao de Humboldt de que os homens se relacionam com os fenmenos celestes atravs da luz e da gravitao. Esta concepo atribui Geografia um carter anti-sistemtico, que a distinguiria das demais cincias, sendo por excelncia um conhecimento sinttico, que unificaria os estudos sistemticos efetuados pelas demais cincias. Na verdade, a idia de cincia de sntese serviu para encobrir a vaguidade e a indefinio do objeto. Tal idia, que postulava um conhecimento excepcional, desvinculava tal cincia de uma exigncia do prprio positivismo a definio precisa do objeto de estudo. Assim, esta mxima serviu para legitimar o estudo geogrfico com base num fundamento, do qual no se cumpriria uma exigncia central. Alm de se apoiar nestas, a continuidade do pensamento geogrfico tambm se sustentou custa de alguns princpios elaborados no processo de constituio dessa disciplina, e tidos como inquestionveis. Estes princpios, formulados a partir da pesquisa de campo, seriam conhecimentos definitivos sobre o universo da anlise, que o gegrafo no poderia deixar de lado em seus estudos. Atuam assim como regras de procedimento, e por esta razo forneceram um elemento de unidade para a Geografia. A saber, so eles, para ficar apenas nos mais expressivos: O princpio da unidade terrestre a Terra um todo, que s pode ser compreendido numa viso de conjunto; o princpio da individualidade cada lugar tem uma feio, que lhe prpria e que no se reproduz de modo igual em outro lugar; o princpio da atividade tudo na natureza est em constante dinamismo; o princpio da conexo todos os elementos da superfcie terrestre e todos os lugares se interrelacionam; o princpio da comparao a diversidade dos lugares s pode ser apreendida pela contraposio das individualidades; o princpio da extenso todo fenmeno manifesta-se numa poro varivel do planeta; o princpio da localizao a manifestao de todo fenmeno passvel de ser delimitada. Estes princpios atuaram como um receiturio de pesquisa, definindo regras gerais, no trato com o objeto, que, no podiam ser negligenciadas. De certo modo, definiam os traos que faziam um estudo aceito como de Geografia. Deve-se ressaltar que a idia de princpio bastante cara ao pensamento positivista, o que reafirma o juzo de que a Geografia deve sua unidade a um fundamento comum com esta corrente filosfica. No mais, a atitude principista restringiu uma verdadeira discusso de metodologia, dando margem para a diversidade de posies tambm nesse nvel. A generalidade dos princpios permitia que posicionamentos metodolgicos antagnicos convivessem em aparente unidade. As mximas e os princpios so os responsveis pela unidade e continuidade da Geografia. Ambos veiculam formaes de um nvel bastante elevado de generalidade e vaguidade, permitindo que se englobem em seu seio propostas dspares e mesmo antagnicas. Tal fato enseja os dualismos que perpassam todo o pensamento geogrfico tradicional: Geografia Fsica Geografia Humana, Geografia Geral Geografia Regional, Geografia Sinttica Geografia Tpica e Geografia Unitria Geografias Especializadas. Estas dualidades afloram, no trabalho prtico de pesquisa, em vista da

no-resoluo do problema do objeto, ao nvel terico. As solues propostas so, na maior parte dos casos, puramente formais (lingsticas), e se diluem na pesquisa de campo. Nesta, ou se d nfase aos fenmenos humanos, ou aos naturais; ou se trabalha com uma viso global do planeta, ou se avana na busca da individualidade de um dado lugar; ou se analisa a um nvel superficial a totalidade dos elementos presentes, ou se aprofunda o estudo apenas duma classe de elementos. Enfim, a prtica de pesquisa fora as opes claras, que a indefinio do objeto e a vaguidade e generalidade dos princpios e mximas deixaram em aberto. Estas dualidades perseguem a Geografia Tradicional, como uma sombra. As mximas e os princpios vo sendo incorporados e transmitidos, no pensamento geogrfico, de uma forma no-crtica. Isto , so tomados como afirmaes verdadeiras, que em momento nenhum so questionadas. Tal fato decorre de serem tais afirmaes o patamar dos estudos geogrficos, o qual, apesar de frgil, fornece a nica sustentao da autoridade e legitimidade desta disciplina. Se questionado e contestado esse apoio, viria a ruir o edifcio geogrfico. Assim, a assimilao acrtica das mximas e princpios teria por funo evitar que se rompesse a autoridade da Geografia, para isto no questionando a fragilidade de suas formulaes. Tal prtica se apia na defesa de posies assentadas, no receio s inovaes e na falta de perspectiva. Porm, tudo isso dissimulado sob a capa da tradio. A repetio constante das mximas e princpios vai-lhes dando um tom de verdade consuetudinria; fetichizam-se, adquirem ares de legitimidade. No limite, so assimilados, pelos autores menos crticos e por aqueles que se encontram s voltas com a pesquisa emprica, de forma automtica, sem uma avaliao detalhada, e mesmo sem conscincia de seus fundamentos implcitos. Por isso as dualidades se mantm, e se reproduzem. De todas estas razes, surgem as dificuldades para qualquer um que se proponha a explicar o que a Geografia. E, mesmo assim, sem se haver penetrado no movimento de renovao da Geografia, empreendido a partir dos anos sessenta, o qual engendra uma srie de novas definies, alm de abrir a possibilidade para outras tantas. Este, colocando perspectivas de fundamentao fora do positivismo clssico (a Fenomenologia, o estruturalismo, o neo-positivismo, e o marxismo, entre outras), abre discusso geogrfica caminhos at ento nunca trilhados, o que vai multiplicar as dificuldades existentes para definir a matria tratada por esta disciplina. Na verdade, as mximas, os princpios e, principalmente, o trabalho de pesquisa, engendrado em anos de atividades (quase dois sculos de Geografia), acabam por constituir um temrio geral, ao qual se associa a designao de Geografia. Isto s facilita em parte a tarefa de definir esta disciplina, pois fornece uma indicao genrica e implcita da matria por ela tratada. Serve mais para dizer o que no Geografia, do que para definir-lhe o objeto. O temrio realiza a circunscrio mais abrangente do domnio do conhecimento geogrfico. ele que, apesar de constitudo no perodo da Geografia tradicional, mantido pelo movimento renovador, criando um elo entre os produtos destes dois pensamentos. Entretanto, como j foi mencionado, este temrio implcito. E, mais ainda, s se manifesta substantivado nas propostas tericas e nos trabalhos empricos desenvolvidos. Assim, sua fluidez no lhe permite ser a definio do objeto em si. Caso se tentasse assim proceder, reeditar-se-ia a vaguidade das definies positivistas da Geografia tradicional. Pelo temrio geral da Geografia, essa disciplina discute os fatos referentes ao espao e, mais, a um espao concreto finito e delimitvel a superfcie terrestre. S ser geogrfico um estudo que aborde a forma, ou a formao, ou a dinmica (movimento ou funcionamento) , ou a organizao, ou a transformao do espao terrestre. Qualquer tentativa de explicitar ou precisar estes enunciados redundaria em mais uma definio formal, que limitaria a generalidade e a vaguidade do temrio, custa de uma proposta parcial, que deixaria de lado algumas perspectivas. Seria v toda tentativa de buscar um consenso, que no fosse vago. A impossibilidade de existir um contedo consensual na Geografia est no fato de o temrio geral se substantivar em propostas apoiadas em concepes de mundo, em metodologias e em posicionamentos sociais diversificados, e muitas vezes

antagnicos. As vrias definies do objeto geogrfico refletem (e refletiro sempre) o temrio geral, filtrado luz de posicionamentos sociais (polticos, ideolgicos e cientficos) diferenciados. S atravs d omito da cincia assptica, supra-ideolgica, que paira acima das paixes, seria possvel pensar uma definio de objeto consensual. Sendo a sociedade de classes, logo conflituosa, e sendo as cincias expresses dessa sociedade, como esperar que nelas reine a harmonia? Os mtodos de interpretao expressam posicionamentos sociais, ao nvel da cincia. A existncia da diversidade metodolgica expressa o conflito, que reina numa sociedade de classes. luta de classes corresponde a luta ideolgica, que tem, no domnio do conhecimento cientfico, seu palco privilegiado. A Geografia, aceitando-se este rtulo como o que nomina os estudos abarcados pelo temrio geral apresentado, sendo tambm uma emanao da prtica social, no escapa a esse quadro. Toda tentativa de definir o objeto geogrfico, que no leve em conta esta realidade, dissimuladora, ideolgica. As diferenciadas propostas veicularo sempre contedos e interesses da classe. Sendo a estrutura de classes contraditria, as propostas sero necessariamente antagnicas. Frente a estas razes, a pergunta o que Geografia? adquire uma conotao nova. Escapa-se do plano da abstrao, quando se aceita que existem tantas Geografias quanto forem os mtodos de interpretao. E mais, que Geografia apenas um rotulo, referido a um temrio geral. E que este s se substantiva atravs de propostas orientadas por mtodos, que expressam posicionamentos sociais. Assim, o que Geografia depender da postura poltica, do engajamento social, de quem faz Geografia. Assim, existiro tantas Geografias, quantos forem os posicionamentos sociais existentes. Dessa forma, explicar o que Geografia, passa a ser a explicitao do contedo de classes subjacente a cada proposta. Assim, cabe realizar uma breve histria crtica do pensamento geogrfico, enfatizando os interesses e as tarefas veiculadas por esta disciplina. Um gegrafo militante j disse que a Geografia uma prtica social referida ao espao terrestre, a qual pode ser de dominao (como tem sido na maioria das vezes), mas tambm de libertao. Por isso, cabe tambm realizar um inventrio da discusso geogrfica recente, analisando as propostas surgidas aps o movimento de renovao. E, atravs dessas, identificar os agentes e as prticas sociais referidas ao espao em jogo na atualidade. Em outras palavras, investigar o estgio da luta ideolgica, desenvolvida nesse campo de debate especfico, que a Geografia. E mais, em funo desta luta, propor direcionamentos gerais, que permitam pensar esta disciplina como instrumento de uma prtica libertadora.

Captulo 3 Origens e pressupostos da Geografia O rtulo Geografia bastante antigo, sua origem remonta Antiguidade Clssica, especificamente ao pensamento grego. Entretanto, apesar da difuso do uso deste termo, o contedo a ele referido era por demais variado. Ficando apenas ao nvel do pensamento grego, a j se delineiam algumas perspectivas distintas de Geografia: uma, com Tales e Anaximandro, privilegia a medio do espao e a discusso da forma da Terra, englobando um contedo hoje definido como da Geodsia; outra, com Herdoto, se preocupa com a descrio dos lugares, numa perspectiva regional. Isto para no falar daquelas discusses, hoje tidas como geogrficas, mas que no apareciam sob esta designao, como a da relao entre o homem e o meio, presente em Hipcrates, cuja principal obra se intitula Dos ares, dos mares e dos lugares. Muitas vezes, na obra de um mesmo autor, aparece em vrios momentos a discusso de temas, hoje tidos como da Geografia, sem que houvesse a mnima conexo entre eles; o caso, por exemplo, de Aristteles, que discute a concepo de lugar, na sua Fsica, sem articul-la com a discusso da relao homem-natureza, apresentada em sua Poltica, e sem vincular esses estudos com sua Meteorologia (onde ensaia uma classificao dos tipos de clima) e com suas descries regionais, como a efetuada sobre o Egito. Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geogrfico se encontrava disperso. Por um lado, as matrias apresentadas com essa designao eram bastante diversificadas, sem um contedo unitrio. Por outro lado, muito do que hoje se entende por Geografia, no era apresentado com este rtulo. Este quadro vai permanecer inalterado at o final do sculo XVIII. Isto no quer dizer que inexistam autores expressivos, no decorrer deste enorme perodo da Histria da humanidade, que tenham dado esta rotulao a seus estudos. Basta pensar em Cludio Ptolomeu, que escreve uma obra Sntese Geogrfica que, principalmente em sua verso rabe intitulada Almagesto, vai constituir-se num dos principais veculos que resgatam as descobertas do pensamento grego clssico, durante a Idade Mdia. Ou em Bernardo Varenius, cuja obra Geografia Generalis vai ser um dos fundamentos das teorias de Newton. Porm, ao se analisar as colocaes desses autores, observa-se que a maior parte dos temas tratados pouco ou nada tm em comum com o que posteriormente ser considerado Geografia. Assim, at o final do sculo XVIII, no possvel falar de conhecimento geogrfico, como algo padronizado, com um mnimo que seja de unidade temtica, e de continuidade nas formulaes. Designam-se como Geografia: relatos de viagem, escritos em tom literrio; compndios de curiosidades, sobre lugares exticos; ridos relatrios estatsticos de rgos de administrao; obras sintticas, agrupando os conhecimentos existentes a respeito dos fenmenos naturais; catlogos sistemticos, sobre os continentes e os pases do Globo etc. Na verdade, trata-se de todo um perodo de disperso do conhecimento geogrfico, onde impossvel falar dessa disciplina como um todo sistematizado e particularizado. Nlson Werneck Sodr denomina-o de pr-histria da Geografia. A sistematizao do conhecimento geogrfico s vai ocorrer no incio do sculo XIX. E nem poderia ser de outro modo, pois pensar que a Geografia como um conhecimento autnomo, particular, demandava um certo numero de condies histricas, que somente nesta poca estaro suficientemente maturadas. Estes pressupostos histricos da sistematizao geogrfica objetivam-se no processo de produo. Assim, na prpria constituio do modo de produo capitalista. O primeiro destes pressupostos dizia respeito ao conhecimento efetivo da extenso real do planeta. Isto , era necessrio que a Terra toda fosse conhecida para que fosse pensado de forma unitria o seu estudo. O conhecimento da dimenso e da forma real dos continentes era a base para a idia de conjunto terrestre, concepo basilar para a reflexo geogrfica. Esta condio comea a se realizar com as grandes navegaes, e as conseqentes descobertas, efetuadas pelos europeus, a partir do quinhentismo. A constituio de um espao mundial, que tem por centro difusor a

Europa, elemento destacado do processo de transio do feudalismo para capitalismo. A formao deste modo de produo exige a articulao de suas relaes a uma escala planetria, o que faz expandir sua rea de ao das sociedades europias a todo o globo terrestre. Este processo de formao de um espao mundializado, pela primeira vez na Histria da humanidade, s est plenamente constitudo em fins do sculo XIX. O que no quer dizer que, nesta poca, todos os pontos da Terra j haviam sido visitados, mas que sua existncia era conhecida. Havia conscincia dos contornos gerais da superfcie terrestre, das terras existentes. Outro pressuposto da sistematizao da Geografia era a existncia de um repositrio de informaes, sobre variados lugares da Terra. Isto , que os dados referentes aos pontos mais diversificados da superfcie j estivessem levantados (com uma margem de confiana razovel) e agrupados em alguns grandes arquivos. Tal condio incidia na formao de uma base emprica, para a comparao em Geografia. S a partir da, seria possvel discorrer, com base em evidencias, sobre o carter varivel dos lugares, sobre a diversidade da superfcie da Terra. Assim, o levantamento de realidades locais, em nmero elevado, aparece como fundamento de uma reflexo geogrfica slida. Tal condio vai se substantivando com o prprio avano do mercantilismo e com a formao dos imprios coloniais. A apropriao de um dado territrio implicava o estabelecimento de uma relao mais estreita com os elementos a existentes, logo, num maior conhecimento de sua realidade local. O domnio implicava em ir alm do simples conhecimento de novas terras, era necessrio penetr-las e criar a estabelecimentos constantes, enfim apropri-las. A explorao produtiva dos territrios coloniais, com o estabelecimento de atividades econmicas, aprofundava ainda mais o conhecimento de suas caractersticas. Com o desenvolvimento do comrcio colonial, os Estados europeus vo incentivar o inventrio dos recursos naturais, presentes em suas possesses, gerando informaes mais sistemticas, e observaes mais cientificas. Assim, passou-se dos relatos ocasionais aos levantamentos mais tcnicos; das expedies exploradoras s expedies cientficas. O interesse dos Estados levou ainda fundao de institutos nas metrpoles, que passaram a agrupar o material recolhido, como as sociedades geogrficas e os escritrios coloniais. A Geografia da primeira metade do sculo XIX foi, fundamentalmente, a elaborao desse material. Outro pressuposto para o aparecimento de uma Geografia unitria, residia no aprimoramento das tcnicas cartogrficas, o instrumento por excelncia do gegrafo. Era necessrio haver possibilidade de representao dos fenmenos observados, e da localizao dos territrios. Assim, a representao grfica, de modo padronizado e preciso, era um requisito da reflexo geogrfica; era tambm uma necessidade posta pela expanso do comrcio. O aparecimento de uma economia global, que articulava distintas e longnquas partes da Terra, demandava mapas e cartas mais precisas. Era fundamental, para a navegao, poder calcular as rotas, saber a orientao das correntes e dos ventos predominantes, e a localizao correta dos portos. Estas exigncias fizeram desenvolver o instrumental tcnico da cartografia. Finalmente, a descoberta das tcnicas de impresso, difundiu e popularizou as cartas e os Atlas. Todas estas condies materiais, para a sistematizao da Geografia, so forjadas no processo de avano e domnio das relaes capitalistas. Dizem respeito ao desenvolvimento das foras produtivas, subjacente emergncia do novo modo de produo. Entretanto, existe uma outra classe de pressupostos, a dos referidos evoluo do pensamento. Estes se substantivam no movimento ideolgico, engendrado pelo processo de transio do feudalismo ao capitalismo. Assim, foram a correspondncia, no plano filosfico e cientfico, das transformaes operadas ao nvel econmico e poltico. Estes pressupostos implicavam a valorizao dos temas geogrficos pela reflexo da poca, a ponto de legitimarem a criao de uma disciplina especfica dedicada a eles. Estas condies necessrias se expressam nas fontes imediatas do pensamento geogrfico, naqueles autores e escritos diretamente citados pelos primeiros gegrafos. Assim, estes

pressupostos referem-se ao conjunto de formulaes que, incidindo sobre os temas tratados pela geografia, valorizam-nos, legitimam-nos, enfim dotam-nos de uma cidadania acadmica. Uma primeira valorizao do temrio geogrfico vai ocorrer na discusso da Filosofia. As correntes filosficas do sculo XVIII vo propor explicaes abrangentes do mundo; formulam sistemas que buscam a compreenso de todos os fenmenos do real. A meta geral de todas as escolas, neste perodo, ser a afirmao das possibilidades da razo humana; a aceitao da existncia de uma ordem, na manifestao de todos os fenmenos, passvel de ser apreendida pelo entendimento e enunciada em termos sistemticos; uma f na viabilidade de uma explicao racional do mundo. Esta postura progressista insere-se no movimento de refutao dos resqucios de ordem feudal, pois esta se apoiava numa explicao teolgica do mundo. Propor a explicao racional do mundo implicava deslegitimar a viso religiosa, logo, a ordem social por ela legitimada. Esta perspectiva, de explicar todos os fenmenos, englobava tambm aqueles tratados pela Geografia, sendo assim um fundamento geral de sua sistematizao. Porm, havia discusses filosficas especificas, que diretamente tratavam de temas geogrficos. Os autores que se dedicaram Filosofia do Conhecimento, como Kant ou Liebniz, enfatizaram a questo do espao. No caso de Kant, sem articular esta discusso (posta ao nvel da razo pura) com aquela por ele efetuada com o rtulo explcito de Geografia (posta ao nvel da razo prtica). Outros filsofos, que discutiram a Filosofia da Histria, como Hegel ou Herder, destacaram a questo da influncia do meio sobre a evoluo das sociedades. Herder levanta uma idia, que ser acatada com entusiasmo pelos gegrafos, a de ver a Terra como teatro da humanidade. Enfim, estas formulaes trouxeram uma valorizao do temrio da Geografia. Outra fonte da sistematizao geogrfica pode ser detectada nos pensadores polticos do Iluminismo. Estes autores foram os porta-vozes do novo regime poltico, os idelogos das revolues burguesas, os propositores da organizao institucional, que interessava ao modo de produo emergente. Em suas argumentaes, passaram por temas prprios da Geografia, notadamente ao discutir as formas de poder e de organizao do Estado. Rousseau, por exemplo, discutiu a relao entre a gesto do Estado, as formas de representao e a extenso do territrio de uma sociedade. Dizia ele que a democracia s era possvel nas naes pouco extensas, e que os Estados de grandes dimenses territoriais tendiam necessariamente a formas de governo autocrticas. Outro autor iluminista, Montesquieu, em sua clebre obra O esprito das leis, dedica todo um captulo discusso sobre a ao do meio no carter dos povos. Nesse sentido, elabora teses profundamente deterministas, como a de que os povos que habitam regies montanhosas teriam uma ndole pacfica (pois contariam com uma proteo natural do meio), ao passo que os habitantes da plancie seriam naturalmente guerreiros (em face da contnua possibilidade de invases propiciada pelo relevo plano). De todo modo, estas discusses vieram enriquecer a posio desfrutada pelos temas geogrficos; suas citaes so comuns nos trabalhos dos primeiros gegrafos. Tambm os trabalhos desenvolvidos pela Economia Poltica atuaram na valorizao dos temas geogrficos. Esta disciplina foi responsvel pelas primeiras anlises sistemticas de fenmenos da vida social. Seu desenvolvimento precoce se deve s prprias necessidades prticas postas pelo incremento do comrcio e das relaes econmicas em geral, que impunham a criao de uma contabilidade racional e a ordenao padronizada das finanas. Os economistas polticos discutiram questes geogrficas, ao tratar de temas como a produtividade natural do solo; a dotao diferenciada dos lugares, em termos de recursos minerais; o problema da distncia, o do aumento populacional, entre outros. Suas teorias divulgaram estas questes, que posteriormente constituiriam o temrio clssico da Geografia. Da o fato de autores, como Adam Smith e Malthus serem citados com freqncia pelos sistematizadores do conhecimento geogrfico. Finalmente, o temrio geogrfico vai obter o pleno reconhecimento de sua autoridade, com o aparecimento das teorias do Evolucionismo. Estas, contemporneas da sistematizao da geografia,

forneceram o patamar imediato da legitimao cientifica dessa disciplina. O Evolucionismo, visto como conjunto de teorias, que partem das formulaes de Darwin e Lamarck, d um lugar de destaque, em sua explicao, ao papel desempenhado pelas condies ambientes; na evoluo das espcies, a adaptao ao meio seria um dos processos fundamentais. So inmeras as aluses a Darwin e Lamarck, nas obras dos primeiros gegrafos. Tambm um discpulo deste, Haeckel, vai ser bastante citado; desenvolveu a idia de Ecologia, isto , do estudo da inter-relao dos elementos que coabitam um dado espao. Dada a difuso das teorias evolucionistas, no meio acadmico da poca, a Geografia nelas teve uma base cientfica slida para suas indagaes. Tal fonte foi, em grande parte, responsvel pela metodologia naturalista, que impregnou as propostas dos primeiros gegrafos e que passou, como herana, aos seus sucessores. Ao incio do sculo XIX, a malha dos pressupostos histricos da sistematizao da Geografia j estava suficientemente tecida. A Terra estava toda conhecida. A Europa articulava um espao de relaes econmicas mundializado, o desenvolvimento do comrcio punha em contato os lugares mais distantes. O colonizador europeu detinha informaes dos pontos mais variados da superfcie terrestre. As representaes do Globo estavam desenvolvidas e difundidas pelo uso cada vez maior dos mapas, que se multiplicavam. A f na razo humana, posta pela Filosofia, abria a possibilidade de uma explicao racional para qualquer fenmeno da realidade. As bases da cincia moderna j estavam assentadas. As cincias naturais haviam constitudo um cabedal de conceitos e teorias, do qual a Geografia lanaria mo, para formular seu mtodo. E, principalmente, os temas geogrficos estavam legitimados como questes relevantes, sobre as quais cabia dirigir indagaes cientficas. Estas condies haviam se constitudo no prprio processo de formao, avano e domnio das relaes capitalistas. Tal processo realiza tanto os pressupostos materiais, quanto os vinculados evoluo do pensamento. A sistematizao da Geografia, sua colocao como uma cincia particular e autnoma, foi um desdobramento das transformaes operadas na vida social, pela emergncia do modo de produo capitalista. E, mais, a Geografia foi, na verdade, um instrumento da etapa final deste processo de consolidao do capitalismo, em determinados pases da Europa. Assim, os pressupostos histricos e as fontes da sistematizao geogrfica se forjaram no perodo da transio, na fase herica da burguesia, em que esta classe agia e pensava no sentido de transformar a ordem social existente. Sua luta, contra os resqucios do modo de produo feudal, dava um contedo progressista sua prtica e ao seu pensamento. Por outro lado, a sistematizao geogrfica, em si mesma, ocorria j num momento de pleno domnio das relaes capitalistas, em que a burguesia j se sedimentara no controle dos Estados. Deste modo, a efetivao da Geografia, como um corpo de conhecimentos sistematizado ocorria j no perodo da decadncia ideolgica do pensamento burgus, em que a prtica dessa classe, ento dominante, visava a manuteno da ordem social existente. Este um dado fundamental para se compreender o que foi a Geografia. O processo de transio do feudalismo para o capitalismo manifestou-se a nvel continental na Europa. Porm, no de forma homognea. Ao contrrio, obedecendo a particularidades, em cada pas onde se apresentou. Existiram, assim, vias singulares de desenvolvimento do capitalismo, que engendraram manifestaes mpares. A Geografia ser filha de uma destas singularidades. Aquela da via particular do desenvolvimento do capitalismo na Alemanha, sem a qual no se pode compreender a sistematizao da Geografia. Os autores considerados os pais da Geografia, aqueles que estabelecem uma linha de continuidade nesta disciplina, so alemes Humboldt e Ritter. Na verdade, todo o eixo principal da elaborao geogrfica, no sculo XIX, estar sediado neste pas. da Alemanha que aparecem os primeiros institutos e as primeiras ctedras dedicadas a esta disciplina; de l que vm as primeiras teorias e as primeiras propostas metodolgicas; enfim, l que se formam as primeiras correntes de pensamento. Tal relao, entre o aparecimento da Geografia e a via do desenvolvimento do capitalismo na Alemanha, no gratuita ou aleatria. Por esta razo, cabe discuti-la.

Captulo 4 A sistematizao da Geografia: Humboldt e Ritter A especificidade da situao histrica da Alemanha, no incio do sculo XIX, poca que se d a ecloso da Geografia, est no carter tardio da penetrao das relaes capitalistas nesse pas. Na verdade, o pas no existe enquanto tal, pois ainda no se constituiu como Estado Nacional. A Alemanha de ento um aglomerado de feudos (ducados, principados, reinos) cuja nica ligao reside em alguns traos culturais comuns. Inexistente qualquer unidade econmica ou poltica, a primeira comeando a se formar no decorrer do sculo XIX, a segunda s se efetivando em 1870, com a unificao nacional. Assim, a Alemanha no conhece a monarquia absoluta (forma de governo prpria do perodo de transio), nem qualquer outro tipo de governo centralizado. O poder est nas mos dos proprietrios de terras, sendo absoluto e a nvel local a estrutura feudal permanece intacta. neste quadro que as relaes capitalistas vo penetrar, sem romper (ao contrrio, conciliando) com a ordem vigente. Tal penetrao vai produzir um arranjo singular, aquilo que j foi chamado por alguns autores de feudalismo modernizado. Isto , um relativo desenvolvimento do capitalismo, engendrado por agentes sociais prprios do feudalismo a aristocracia agrria; uma transformao econmica, que se opera sem alterar a estrutura do poder existente. O capitalismo penetra no quadro agrrio alemo sem alterar a estrutura fundiria. A propriedade da terra, origem de todo o poder, permanece nas mos dos elementos pr-capitalistas. Estes se tornam capitalistas, pela destinao dada produo: o latifndio, que possua uma economia fechada, de autoconsumo, passa a produzir para um mercado. Entretanto, as relaes de trabalho no se alteram - a servido (forma de relao de trabalho tpica do feudalismo) permanece como base de toda a produo. Assim, mesclam-se elementos tipicamente feudais com outros prprios do capitalismo: produo para o mercado, com trabalho servil. O comrcio local no se desenvolve, sendo a produo destinada ao exterior. O comrcio entre as unidades, os principados e os ducados alemes, tambm no se intensifica, em funo das barreiras alfandegrias existentes entre eles. Em funo disso, pouco se desenvolvem as cidades, e tambm a classe que lhes prpria a burguesia. Esta, pulverizada e dbil, na verdade uma pequena burguesia local; no consegue impor seus interesses, como suas congneres francesa ou inglesa. No ocorre, na Alemanha, uma revoluo democrtico-burguesa. A burguesia alem s se desenvolver sombra do Estado, e de um Estado comandado pela aristocracia agrria. Este o quadro da Alemanha, na virada do sculo XVIII. A prpria sedimentao das relaes capitalistas e, principalmente, o expansionismo napolenico, vo acender nas classes dominantes alems a idia da unificao nacional. Esta meta passa a ser, a partir de um certo momento, uma necessidade para a prpria continuidade do desenvolvimento alemo. Este se havia acelerado, em funo do bloqueio continental imposto por Bonaparte, que propiciou uma incipiente industrializao em algumas cidades da Alemanha, alm de incrementar o comrcio interno. Este ideal de unidade vai ter suam primeira manifestao concreta com a formao, em 1815, da Confederao Germnica, que congregou todos os principados alemes e os reinos da ustria e da Prssia. Apesar de no constituir ainda uma unificao nacional, estabeleceu maiores laos econmicos entre seus membros, com o fim dos impostos aduaneiros entre eles. dentro desta situao que se pode compreender a ecloso da Geografia. A falta da constituio de um Estado nacional, a extrema diversidade entre os vrios membros da Confederao, a ausncia de relaes durveis entre eles, a inexistncia de um ponto de convergncia das relaes econmicas todos estes aspectos conferem discusso geogrfica uma relevncia especial, para as classes dominantes da Alemanha, no incio do sculo XIX. Temas como domnio e organizao do espao, apropriao do territrio, variao regional, entre outros,

estaro na ordem do dia na prtica da sociedade alem de ento. , sem dvida, deles que se alimentar a sistematizao geogrfica. Do mesmo modo como a Sociologia aparece na Frana, onde a questo central era a organizao social (um pas em que a luta de classes atingia um radicalismo nico), a Geografia surge na Alemanha onde a questo do espao era a primordial. As primeiras colocaes, no sentido de uma Geografia sistematizada, vo ser a obra de dois autores prussianos ligados aristocracia: Alexandre Von Humboldt, conselheiro do rei da Prssia, e Karl Ritter, tutor de uma famlia de banqueiros. Ambos so contemporneos e pertencem gerao que vivencia a Revoluo Francesa: Humboldt nasce em 1769 e Ritter em 1779; os dois morreram em 1859, ocupando altos cargos da hierarquia universitria alem. Humboldt possua uma formao de naturalista e realizou inmeras viagens. Sua proposta de Geografia aparece na justificativa e explicitao de seus prprios procedimentos de anlise. Assim, no estava preocupado em formular os princpios de uma nova disciplina. Desta forma, seu trabalho no tinha um contedo normativo explcito. Seus principais livros so Quadros da Natureza e Cosmos, ambos publicados no primeiro quartel do sculo XIX. Humboldt entendia a Geografia como a parte terrestre da cincia do cosmos, isto , como uma espcie de sntese de todos os conhecimentos relativos Terra. Tal concepo transparece em sua definio do objeto geogrfico, que seria: A contemplao da universalidade das coisas, de tudo que coexiste no espao concernente a substncias e foras, da simultaneidade dos seres materiais que coexistem na Terra. Caberia ao estudo geogrfico: reconhecer a unidade na imensa variedade dos fenmenos, descobrir pelo livre exerccio do pensamento e combinando as observaes, a constncia dos fenmenos em meio a suas variaes aparentes. Desta forma, a Geografia seria uma disciplina eminentemente sinttica, preocupada com a conexo entre os elementos, e buscando, atravs dessas conexes, a causalidade existente na natureza. Em termos de mtodo, Humboldt prope o empirismo raciocinado, isto , a intuio a partir da observao. O gegrafo deveria contemplar a paisagem de uma forma quase esttica (da o ttulo do primeiro captulo do Cosmos: Dos graus de prazer que a contemplao da natureza pode oferecer). A paisagem causaria no observador uma impresso, a qual, combinada com a observao sistemtica dos seus elementos componentes, e filtrada pelo raciocnio lgico, levaria explicao: causalidade das conexes contidas na paisagem observada. Da a afirmao de Humboldt: a causalidade introduz a unidade entre o mundo sensvel e o mundo do intelecto. Pois , ao mesmo tempo, algo existente de fato na natureza, porm s apreensvel pela razo, assim, uma inerncia do objeto e uma construo do sujeito. A obra de Ritter j explicitamente metodolgica. Em seu principal trabalho, Geografia Comparada, h um intuito deliberado de propor uma Geografia, sendo assim um livro normativo. A formao de Ritter tambm radicalmente distinda da de Humboldt, enquanto aquele era gelogo e botnico, este possui formao em Filosofia e Histria. Ritter define o conceito de sistema natural, isto , uma rea delimitada dotada de uma individualidade. A Geografia deveria estudar estes arranjos individuais, e compar-los. Cada arranjo abarcaria um conjunto de elementos, representando uma totalidade, onde o homem seria o principal elemento. Assim, a geografia de Ritter , principalmente, um estudo dos lugares, uma busca da individualidade destes. Toda esta proposta se assentava na arraigada perspectiva religiosa desse autor. Para ele, a cincia era uma forma de relao entre o homem e o criador (com uma dimenso interior de revelao), uma tentativa de aprimoramento das aes humanas, assim uma aproximao divindade. Neste sentido, caberia Geografia explicar a individualidade dos sistemas naturais, pois nesta se expressaria o desgnio da divindade ao criar aquele lugar especfico. A meta seria chegar a uma harmonia entre a ao humana e os desgnios divinos, manifestos na varivel natureza dos meios. Para Ritter, a ordem natural obedeceria a um fim previsto por Deus, a causalidade da natureza obedeceria designao divina do movimento dos fenmenos. Deste modo, haveria uma finalidade na natureza, logo uma predestinao dos lugares. Compreender esta predestinao seria a tarefa do conhecimento geogrfico, que no limite, para esse autor, seria uma forma de contemplao da

prpria divindade. A proposta de Ritter , por estas razes, antropocntrica (o homem o sujeito da natureza), regional (aponta para o estudo de individualidades), valorizando a relao homemnatureza. Em termos de mtodo, Ritter vai reforar a anlise emprica para ele, necessrio caminhar de observao em observao. A obra destes dois autores compe a base da Geografia Tradicional. Todos os trabalhos posteriores vo se remeter s formulaes de Humboldt e Ritter, seja para aceit-las, ou refut-las. Apesar das diferenas entre estas a Geografia de Ritter regional e antropocntrica, a de Humboldt busca abarcar todo o Globo sem privilegiar o homem os pontos coincidentes vo aparecer, para os gegrafos posteriores, como fundamentos inquestionveis de uma Geografia unitria. Assim, estes autores criam uma linha de continuidade no pensamento geogrfico, coisa at ento inexistente. Alm disso, h de se ressaltar o papel institucional, desempenhado por eles, na formao das ctedras dessa disciplina, dando assim Geografia uma cidadania acadmica. Entretanto, apesar deste peso no pensamento geogrfico posterior, no deixam discpulos diretos. Isto , no formam uma escola. Deixam uma influncia geral, que ser resgatada por todas as escolas da Geografia Tradicional. As colocaes de Humboldt e Ritter so bastante divulgadas. Vrios dos mais eminentes gegrafos da gerao seguinte foram alunos deste ltimo: E. Reclus, Semenov Tyan-Shanskiy, F. Von Richthofen, entre outros. Porm, mesmo estes formulam propostas prprias. Foi talvez na Rssia que as idias de Humboldt e Ritter tiveram aplicao mais literal, em autores como Mushketov, Dokuchaev e Woiekov. Apesar de realizar a Geografia russa vigoroso trabalho de campo, , sem dvida, na Alemanha que a discusso metodolgica permanece acesa. Portanto, foi desse pas que vieram as maiores contribuies sistematizao do pensamento geogrfico. Isto no quer dizer que inexistam gegrafos importantes em outros pases. Basta pensar no citado Elise Reclus, da Frana. Entretanto, o eixo da discusso geogrfica continua na Alemanha, durante todo o sculo XIX. A gerao que se segue de Humboldt e Ritter vai se destacar pelo avano empreendido na sistematizao de estudos especializados, do que da Geografia Geral. o caso de W. Penk, com a Geomorfologia (estudo do relevo), e de Hann e Koppen, com a Climatologia. Pode-se aventar que o desenvolvimento destes estudos era um pr-requisito para avanar, alm das formulaes de Humboldt e Ritter, a sistematizao da geografia. Dois autores alemes merecem destaque neste sentido: O. Peschel e F. Von Richthofen. O primeiro realizou uma reviso crtica da obra de Ritter, contestando-a. Para Peschel, a Geografia era um estudo das formas existentes nas paisagens terrestres, o qual, entre elas, deveria buscar as semelhanas, atravs da comparao. Richthofen realizou inmeros trabalhos de campo, aprimorando as tcnicas de descrio. Tambm, avanou no que tange elucidao e preciso dos conceitos empregados. Propunha uma das definies mais empricas do objeto geogrfico, vendo-o como a superfcie terrestre. Estes autores ajudam a manter aberta uma via de discusso terica do pensamento geogrfico, na Alemanha; nos outros pases da Europa, a Geografia seguia constituda de levantamentos empricos e enumeraes exaustivas sobre os diferentes lugares da Terra.

Captulo 5 Ratzel e a Antropogeografia Um revigoramento do processo de sistematizao da Geografia vai ocorrer com as formulaes de Friedrich Ratzel. Este autor, tambm alemo e prussiano, publica suas obras no ltimo quartel do sculo XIX. Enquanto Humboldt e Ritter vivenciaram o aparecimento do ideal de unificao alem, Ratzel vivencia a constituio real do Estado nacional alemo e suas primeiras dcadas. Suas formulaes s so compreensveis em funo da poca e da sociedade que as engendram. A Geografia de Ratzel foi um instrumento poderoso de legitimao dos desgnios expansionistas do Estado alemo recm-constitudo. L. Febvre chegou a denomin-la de manual de imperialismo. Assim, cabe analisar, mesmo que em linhas gerais, o processo de unificao da Alemanha. Observou-se, algumas pginas atrs, que as relaes capitalistas penetraram tardiamente neste pas, e numa conciliao com a estrutura herdada do feudalismo. Observou-se tambm que a Confederao Germnica foi o primeiro passo no sentido da unificao. Mesmo assim, em meados do sculo passado, o poder ainda se encontrava disperso pelas vrias unidades confederadas. Era fruto de dominaes locais, sem a existncia de um governo central. A Prssia e a ustria disputavam a hegemonia dentro da Confederao. O segundo passo, no sentido da unificao, foi forjado na represso aos levantes populares de 1848. Nesse ano, a vaga revolucionria, que assola a Europa, manifesta-se tambm em vrias cidades da Confederao Germnica: Viena, Berlim, Frankfurt, entre outras. A reao das classes dominantes locais, a estes movimentos, aproxima-as, pois se estabelecem alianas e aes unificadas, e mesmo centralizadas num comando comum. Assim, na contra revoluo, forma-se um bloco reacionrio unitrio, estreitam-se os laos polticos e militares. Alm disto, a proposta da unificao constava do iderio dos revolucionrios, o que, por reflexo, reforou-a ao nvel das prprias classes dominantes locais, que perceberam o respaldo das massas unificao. Enfim, este foi o caminho direto da constituio do Estado alemo. A conscincia desse fato, e a possibilidade prxima da unificao, acirraram a disputa, entre a ustria e a Prssia pelo comando e domnio do processo, que culminou com a guerra entre dois reinos. A vitria do segundo determinou que a unidade fosse estabelecida atravs da prussianizao da Alemanha. Isto , o Estado prussiano imprimiria suas caractersticas na nova nao. A principal caracterstica da Prssia era a organizao militarizada da sociedade e do Estado. A direo deste estava nas mos da aristocracia junker, os proprietrios de terras, os mais claros representantes da velha ordem feudal. Sob essa liderana, erguia-se uma monarquia extremamente burocratizada, que estendeu a ao do Estado a todos os domnios da sociedade civil. Uma grande represso social interna, e uma agressiva poltica exterior completam o quadro da Prssia em 1871, ano de constituio do imprio alemo. Estas caractersticas do prussianismo foram passadas para o conjunto da Alemanha, atravs de uma poltica cultural nacionalista, estimulada pelo Estado, que colocava os prprios elementos da situao de atraso social como peculiaridades do esprito ou da alma alem. Tal ideologia chauvinista assentava-se numa poltica exterior agressiva e expansionista. So inmeras as guerras de conquista empreendidas por Bismarck, o primeiroministro da Prssia e do Imprio Alemo. Essa unificao reacionria, essa organizao militarizada, esse expansionismo latente do Estado alemo, podem ser explicados pela situao concreta da Alemanha, no contexto europeu; como bem definiu Poulantzas, ela era um elo dbil da cadeia imperialista. Isto , este pas emergia como mais uma unidade do centro do mundo capitalista, industrializada, porm sem colnias. A unificao tardia da Alemanha, que no impediu um relativo desenvolvimento interno, deixou-a de fora da partilha dos territrios coloniais. Isto alimentava um expansionismo latente, que aumentaria com o prprio desenvolvimento interno. Da, o agressivo projeto imperial, o propsito constante de anexar novos territrios. E, por esta razo, mais uma vez, o estmulo para pensar o espao, logo, para fazer Geografia.

Ratzel vai ser um representante tpico do intelectual engajado no projeto estatal; sua obra prope uma legitimao do expansionismo bismarckiano. Assim, a Geografia de Ratzel expressa diretamente um elogio do imperialismo, como ao dizer, por exemplo: Semelhante luta pela vida, cuja finalidade bsica obter espao, as lutas dos povos so quase sempre pelo mesmo objetivo. Na histria moderna a recompensa da vitria foi sempre um proveito territorial. O principal livro de Ratzel, publicado em 1882, denomina-se Antropogeografia fundamentos da aplicao da Geografia Histria; pode-se dizer que esta obra funda a Geografia Humana. Nela, Ratzel definiu o objeto geogrfico como o estudo da influncia que as condies naturais exercem sobre a humanidade. Estas influncias atuariam, primeiro na fisiologia (somatismo) e na psicologia (carter) dos indivduos e, atravs destes, na sociedade. Em segundo lugar, a natureza influenciaria a prpria constituio social, pela riqueza que propicia, atravs dos recursos do meio em que est localizada a sociedade. A natureza tambm atuaria na possibilidade de expanso de um povo, obstaculizando-a ou acelerando-a. E ainda nas possibilidades de contato com outros povos, gerando assim o isolamento e a mestiagem. Ratzel realizou extensa reviso bibliogrfica, sobre o tema das influncias da natureza sobre o homem, e concluiui criticando as duas posies mais correntes: a que nega tal influncia, e a que visa estabelec-la de imediato. Diz ele que estas influncias vo se exercer mediatizadas, atravs das condies econmicas e sociais. Para ele, a sociedade um organismo que mantm relaes durveis com o solo, manifestas, por exemplo, nas necessidades de moradia e alimentao. O homem precisaria utilizar os recursos da natureza, para conquistar sua liberdade, que, em suas palavras, um dom conquistado a duras penas. O progresso significaria um maior uso dos recursos do meio, logo, uma relao mais ntima com a natureza. Quanto maior o vnculo com o solo, tanto maior seria para a sociedade a necessidade de manter sua posse. por esta razo que a sociedade cria o Estado, nas palavras de Ratzel: Quando a sociedade se organiza para defender o territrio, transforma-se em Estado. A anlise das relaes entre o Estado e o espao foi um pontos privilegiados da Antropogeografia. Para RAtzel, o territrio representa as condies de trabalho e existncia de uma sociedade. A perda de territrio seria a maior prova de decadncia de uma sociedade. Por outro lado, o progresso implicaria a necessidade de aumentar o territrio, logo, de conquistar novas reas. Justificando estas colocaes, Ratzel elabora o conceito de espao vital; este representaria uma proporo de equilbrio, entre a populao de uma dada sociedade e os recursos disponveis para suprir suas necessidades, definindo assim suas potencialidades de progredir e suas premncias territoriais. fcil observar a ntima vinculao entre estas formulaes de Ratzel, sua poca e o projeto imperial alemo. Esta ligao se expressa na justificativa do expansionismo como algo natural e inevitvel, numa sociedade que progride, gerando uma teoria que legitima o imperialismo bismackiano. Tambm sua viso do Estado como um protetor acima da sociedade, vem no sentido de legitimar o Estado prussiano, onipresente e militarizado. A geografia proposta por Ratzel privilegiou o elemento humano e abriu vrias frentes de estudo, valorizando questes referentes Histria e ao espao, como: a formao dos territrios, a difuso dos homens no Globo (migraes, colonizaes, etc), a distribuio dos povos e das raas na superfcie terrestre, o isolamento e suas conseqncias, alm de estudos monogrficos das reas habitadas. Tudo tendo em vista o objetivo central que seria o estudo das influncias, que as condies naturais exercem sobre a evoluo das sociedades. Em termos de mtodo, a obra de Ratzel no realizou grandes avanos. Manteve a idia da Geografia como cincia emprica, cujos procedimentos de anlise seriam a observao e a descrio. Porm, proponha ir alm da descrio, buscar a sntese das influncias na escala planetria, ou, em suas palavras, ver o lugar como objeto em si, e como elemento de uma cadeia. De resto, Ratzel manteve a viso naturalista: reduziu o homem a um animal, ao no diferenciar as suas qualidades especficas; assim, propunha o mtodo geogrfico como anlogo ao das demais cincias da natureza; e concebia a causalidade dos

fenmenos humanos como idntica a dos naturais. Da, o mecanicismo de suas afirmaes. Ratzel, ao propor uma Geografia do Homem, estendeu-a como uma cincia natural. Os discpulos de Ratzel radicalizaram suas colocaes, constituindo o que se denomina escola determinista de Geografia, ou doutrina escola determinista de Geografia, ou doutrina do determinismo geogrfico. Os autores dessa corrente partiram da definio ratzeliana do objeto da reflexo geogrfica, e simplificaram-na. Orientaram seus estudos por mximas, como as condies naturais determinam a Histria, ou o homem um produto do meio empobrecendo bastante as formulaes de Ratzel, que falava de influncias. Na verdade, todo o trabalho destes autores se constitua da busca de evidncias empricas, para teorias formuladas a priori. Seus mais eminentes representantes foram: E. Semple e E. Huntington. A primeira gegrafa americana, americana, aluna de Ratzel, foi a responsvel pela divulgao das teses deste nos EUA. Um exemplo das forumlaes de Ellem Semple, pode ser obtido na sua teoria, que relaciona a religio com o relevo: nas regies acidentadas, predominariam religies politestas. As teorias do gegrafo ingls Elsworth Huntington eram um pouco mais elaboradas. Este autor concebia um determinismo invertido, isto , para ele, as condies naturais mais hostis seriam as que propiciariam o maior desenvolvimento. O livro mais importante de Huntington denomina-se Clima e sociedade; nele o autor defende a idia de que os rigores do inverno explicariam, pelas necessidades impostas (abrigo, estocagem de comida), o desenvolvimento das sociedades europias. As teses deterministas, apesar do seu simplismo, foram bastante divulgadas, e aparecem com freqncia no iderio do pensamento conservador. Basta pensar nas interpretaes da histria brasileira, que lanam mo de teorias como a indolncia do homem tropical, ou o subdesenvolvimento, como fruto da tropicalidade (e a inevitvel comparao com o desenvolvimento dos E.U.A., tambm colnia, mas em clima temperado). Enfim, o determinismo incorre na mais completa naturalizao da Histria humana. Outro desdobramento da proposta de Ratzel manifestou-se na constituio da Geopoltica. Esta corrente, dedicada ao estudo da dominao dos territrios, partiu das colocaes ratzelianas, referentes ao do Estado sobre o espao. Estes autores desenvolveram teorias e tcnicas, que operacionalizavam e legitimavam o imperialismo. Isto , discorriam sobre as formas de defender, manter e conquistar os territrios. Os autores mais conhecidos dessa corrente foram: Kjellen, Mackinder e Haushofen. O primeiro, um sueco, foi o criador do rtulo Geopoltica. O segundo, um almirante ingls, trouxe a discusso para o nvel dos estados-maiores, tratando temas como o domnio das rotas martimas, as reas de influncia de um pas, e as relaes internacionais. Halford Mackinder, cuja principal obra intitula-se O piv geogrfico da Histria, desenvolveu uma curiosa teoria sobre as reas pivs, que seriam o corao de um dado territrio; para ele, quem o dominasse, dominaria todo o territrio. O general alemo Karl Haushofer, amigo de Hitler e presidente da Academia Germnica no seu governo, foi outro terico da Geopoltica. Deu a esta um carter diretamente blico, definindo-a como parte da estratgia militar. Este autor, que desenvolveu teorias referentes ao do clima sobre os soldados, criou uma escola e influenciou diretamente os planos de expanso nazistas. At hoje a Geopoltica persiste, sendo debatida nos Departamentos de Estado e nas Academias militares. Uma ltima perspectiva, que saiu das formulaes de Ratzel, foi a chamada escola ambientalista. Esta, mais recente, no pode ser considerada uma filiao direta da Antropogeografia. Entretanto, sem dvida, foi Ratzel o primeiro formulador de suas bases. Esta corrente prope o estudo do homem em relao aos elementos do meio em que ele se insere. O conjunto dos elementos naturais abordado como o ambiente vivenciado pelo homem. O ambientalismo representa um determinismo atenuado, sem viso fatalista e absoluta. A natureza no vista mais como determinao, mas como suporte da vida humana. Mantm-se a concepo naturalista, porm sem a causalidade mecanicista. O ambientalismo se desenvolveu bastante modernamente, apoiado na Ecologia. A idia de estudar as inter-relaes dos organismos, que coabitam determinado meio, j estava presente em Ratzel, pela influncia que ele sofreu de

Haeckel, o primeiro formulador da Ecologia, de quem havia sido aluno. Entretanto, mias ao determinismo que ao ambientalismo, que o nome de Ratzel acabou identificado. Pelos desdobramentos expostos, pode-se avaliar o peso da obra de Ratzel na evoluo do pensamento geogrfico. A prpria Geografia francesa, que ser vista a seguir, uma resposta s formulaes desse autor. A importncia maior de sua proposta reside no fato de haver trazido, para o debate geogrfico, os temas polticos e econmicos, colocando o homem no centro das anlises. Mesmo que numa viso naturalizante, e para legitimar interesses contrrios ao humanismo.

Captulo 6 Vidal de La Blache e a Geografia Humana A outra grande escola da Geografia, que se ope s colocaes de Ratzel, vai ser eminentemente francesa, e tem seu principal formulador em Paul Vidal de La Blache. Para compreender o processo de ecloso do pensamento geogrfico na Frana, e o tipo de reflexo que este engendrou, necessrio enfocar os traos gerais do desenvolvimento histrico francs no sculo XIX, e, em detalhe, a conjuntura da Terceira Repblica e o conflito de interesses com a Alemanha. A Frana foi o pas que realizou, de forma mais pura, uma revoluo burguesa. Ali os resqucios feudais foram totalmente varridos, a burguesia instalou seu governo, dando ao Estado a feio que mais atendia a seus interesses. A Frana havia conhecido uma unificao precoce, que j datava de alguns sculos; a centralizao do pode restava garantida pela prtica da monarquia absoluta. Isto havia propiciado a formao de uma burguesia slida, com aspiraes consolidadas, e com uma ao nacional. Esta classe formulou e comandou uma transformao radical da ordem existente, implantando o domnio total das relaes capitalistas. Napoleo Bonaparte completou este processo de desenvolvimento do capitalismo na Frana, o qual teve seu ponto de ruptura na Revoluo Francesa, que varreu do quadro agrrio deste pas todos os elementos herdados do feudalismo. Neste movimento, a burguesia agiu como classe revolucionria, levantando-se contra a estrutura social existente e formulando um projeto hegemnico, que aglutinava os interesses do conjunto da sociedade. A revoluo francesa foi um movimento popular, comandado pela burguesia, dirigido pelos idelogos dessa classe. Nesse processo, o pensamento burgus gerou propostas progressistas, instituindo uma tradio liberal no pas (esta via expressar-se algumas em posturas defendidas pela Geografia francesa). O carter revolucionrio da via de desenvolvimento do capitalismo, na Frana, ampliou a representao e o espao da ao poltica. Trouxe, para a arena poltica, as camadas populares da sociedade, com a consolidao do domnio burgus, tal caracterstica de massas da poltica vai produzir um acirramento da luta de classes, neste pas, a qual atingir formas agudas desconhecidas at ento. Por esta razo, a Frana foi o bero do socialismo militante, e o lugar onde o carter classista da democracia burguesa primeiro se revelou. As jornadas de 1848 e da Comuna de Paris, e suas sangrentas represses, atestaram o cair da mscara da dominao burguesa, refletindo o fim da fase herica desta classe, que agora era dominante e lutava para manter o poder do aparelho de Estado. Os ideais e as propostas liberais e progressistas, forjadas na fase revolucionria, caem por terra, frente aos imperativos autoritrios demandados pela manuteno do status quo. Porm, so mantidos no discurso, como veculos ideolgicos. Forjou-se uma ideologia da defesa das liberdades formais, porm subjugada a ordem. Tentou-se apresentar a instabilidade poltica e os golpes de Estado, sob uma aurola de legalidade. A cincia cumpriu um papel importante, nesse movimento ideolgico. Foi posta como distante dos interesses sociais, envolvida num manto de neutralidade. E, atravs dessa pretensa objetividade, legitimou autoritrias doutrinas da ordem. Assim, a Frana foi o pas que demonstrou, de modo mais claro, as etapas de avano, domnio e consolidao da sociedade burguesa. Entretanto, como foi visto, a via de realizao desse processo deixou uma herana bastante distinta da encontrada na Alemanha, notadamente no aspecto ideolgico. E a Geografia foi uma das manifestaes dessas diferenas. Na segunda metade do sculo XIX, a Frana e a Alemanha, no caso ainda a Prssia, disputam a hegemonia, no controle continental da Europa. Havia, entre estes dois pases, um choque de interesses nacionais, uma disputa entre imperialismos. Tal situao culminou com a guerra franco-prussiana, em 1870, na qual a Prssia saiu vencedora. A Frana perde os territrios e Alscia e Lorena, vitais para sua industrializao, pois neles se localizavam suas principais reservas de carvo. No contexto da guerra, caiu o Segundo Imprio de Lus Bonaparte, ocorreu o levante da

Comuna de Paris, e, sob as suas runas, ergueu-se, com o beneplcito prussiano, a Terceira Repblica francesa. Foi nesse perodo que a Geografia se desenvolveu. E se desenvolveu com o apoio deliberado do Estado francs. Esta disciplina foi colocada em todas as sries do ensino bsico, na reforma efetuada pela Terceira Repblica. Foram criadas, nessa poca, as ctedras e os institutos de Geografia. Todos estes fatos demonstram o intuito do Estado no sentido de desenvolver esses estudos. Tal interesse advm de conseqncias da prpria guerra. Uma frase de Thiers, primeiro-ministro da Frana, bem o demonstra; diz ele: a guerra foi ganha pelos instrutores alemes. A guerra havia colocado para a classe dominante francesa, a necessidade de pensar o espao, de fazer uma Geografia que deslegitimasse a reflexo geogrfica alem e, ao mesmo tempo, fornecesse fundamentos para o expansionismo francs. Como foi visto, a Geografia de Ratzel legitimava a ao imperialista do Estado Bismarckiano. Era mister, para a Frana, combat-la. O pensamento geogrfico francs nasceu com esta tarefa. Por isso, foi, antes de tudo, um dilogo com Ratzel. O principal artfice desta empresa foi Vidal de La Blache. Este autor, que publicou suas obras nas ltimas dcadas do sculo passado e nas primeiras do atual, fundou a escola francesa de Geografia e, mais, deslocou para este pas o eixo da discusso geogrfica, at ento sediado na Alemanha. Do mesmo modo que as colocaes de Ratzel embasavam-se na situao concreta de sua poca e de sua sociedade, a Geografia de Vidal de La Blache s ser compreensvel em relao conjuntura da Terceira Repblica, ao antagonismo com a Alemanha, e particularidade do desenvolvimento histrico da Frana. Ambos veicularam, atravs do discurso cientfico, o interesse das classes dominantes de seus respectivos pases. Por terem sido diferenciadas as vias de desenvolvimento capitalista, na Alemanha e na Frana (logo, as prprias classes dominantes), foram diferentes as formas e os contedos desses discursos. A proposta de Ratzel exprimia o autoritarismo, que permeava a sociedade alem; o agente social privilegiado, em sua anlise, era o Estado, tal como na realidade que este autor vivenciava. A proposta de Vidal manifestava um tom mais liberal, consoante com a evoluo francesa, e sua anlise partiu do homem abstrato do liberalismo. Esta diferena de tonalidade das propostas foi o patamar , a partir do qual foram tecidas as crticas de Vidal Antropogeografia de Ratzel. E que lhe permitiu cumprir a funo ideolgica, que estava destinada a esta disciplina pelas classes dominantes francesas. Uma primeira crtica de princpio, efetuada por Vidal s formulaes de Ratzel, dizia respeito politizao explcita do discurso deste. Isto , incidia no fato de as teses ratzelianas tratarem abertamente de questes polticas. Vidal, vestindo uma capa de objetividade, condenou a vinculao entre o pensamento geogrfico e a defesa de interesses polticos imediatos, brandindo o clssico argumento liberal da necessria neutralidade do discurso cientfico. Com esta postura, atacou diretamente o carter apologtico do expansionismo alemo, contido nas formulaes de Ratzel. Isto no quer dizer, como ser visto a seguir, que a Geografia vidalina no veiculasse uma legitimao ideolgica dos interesses franceses. Apenas, esta vinculao era mais dissimulada, os temas polticos no eram tratados diretamente, a legitimao do imperialismo francs era mais mediatizada e sutil. Na verdade, Vidal imprimiu, no pensamento geogrfico, o mito da cincia assptica, propondo uma despolitizao aparente do temrio dessa disciplina. Este posicionamento, de acobertar o contedo poltico da cincia, originou-se do recuo do pensamento burgus (aps a sedimentao dessa classe no poder) temeroso do potencial revolucionrio do avano das cincias do homem. Vidal reproduz esta dessocializao do saber, que na verdade uma forma de descompromet-lo com a prtica social e de dissimular seu contedo ideolgico. Efim, este foi um primeiro front, no debate com a Geografia alem. Temas como o do espao vital foram duramente criticados, a partir desta tica, e, atravs deles, o prprio expansionismo germnico. Entretanto, a Geografia francesa que esconjurou a Geopoltica vai criar uma especializao denominada Geografia Colonial.

Outra crtica de princpio s formulaes de Ratzel incidiu no seu carter naturalista. Isto , Vidal criticou a minimizao do elemento humano, que aparecia como passivo nas teorias de Ratzel. Nesse sentido, defendeu o componente criativo (a liberdade) contido na ao humana que no seria apenas uma resposta s imposies do meio. Assim, valorizou a Histria, valendo-se de sua formao acadmica de historiador. Aqui, residiu sem dvida a contribuio mais importante de Vidal de La Blache para o desenvolvimento do pensamento geogrfico. Entretanto, apesar de aumentar a carga humana do estudo geogrfico, este autor no rompeu totalmente com uma viso naturalista, pois diz explicitamente: a Geografia uma cincia dos lugares, no dos homens. Desta forma, o que interessaria anlise seria o resultado da ao humana na paisagem, e no esta em si mesma. De qualquer modo, este foi um segundo ponto de crtica ao pensamento de Ratzel. Uma terceira crtica de Vidal Antropogeografia, derivada da anterior, atacou a concepo fatalista e mecanicista da relao entre os homens e a natureza. Assim, atingiu diretamente a idia da determinao da Histria pelas condies naturais. Vidal vai propor uma postura relativista, no trato dessa questo, dizendo que tudo o que se refere ao homem mediado pela contingncia. Este posicionamento, aceito por seus seguidores, fez com que a Geografia francesa abandonasse qualquer intento de generalizar. Jogou-se a criana com a gua do banho, isto , na crtica ao determinismo naturalista de Ratzel, a proposta de Vidal negou a prpria determinao. A partir destes trs pontos, Vidal de La Blache construiu sua proposta de Geografai sempre como um dilogo crtico com sua congnere alem. Em torno de suas formulaes, articulou-se o que seria a escola francesa de Geografia. Antes de penetrar nas teorias vidalinas, cabe ressalvar que o fato de colocar a ecloso do pensamento geogrfico na Frana em redor da dcada de 1870 e de centraliz-lo na figura de Vidal de La Blache, no implica a afirmao de que, antes dessa data e na reflexo de outros autores, tal pensamento no existisse. Apenas observamos que, nesse perodo e com este autor, surgiu uma Geografia com nova viso, que buscava ir alm das enumeraes exaustivas e dos relatos de viagem. Em termos de outros autores, um relevo deve ser dado figura de Elise Reclus, menos por suas formulaes do que por seu engajamento poltico, mpar entre os gegrafos. Reclus foi um militante anarquista, que pertenceu Primeira Internacional e participou da Comuna de Paris. Entretanto, suas obras, Geografia Universal, publicada em dezenove volumes, e A Terra e o homem, em quatro volumes, foram pouco revolucionrias em termos de mtodo e de propostas. Alm do mais, Reclus viveu grande parte de sua vida exilado, tendo assim pouca influncia na evoluo da Geografia francesa. Outros autores, contemporneos de Vidal, como E. Levasseur, tambm deveriam ser lembrados. Porm, indubitavelmente, a partir da produo de La Blache que se articulou a Geografia francesa. Vidal de La Blache definiu o objeto da Geografia como a relao homem-natureza, na perspectiva de paisagem. Colocou o homem como um ser ativo, que sofre a influncia do meio, porm que atua sobre este, transformando-o. Observou que as necessidades humanas so condicionadas pela natureza, e que o homem busca as solues para satisfaz-las nos materiais e nas condies oferecidos pelo meio. Neste processo, de trocas mtuas com a natureza, o homem transforma a matria natural, cria formas sobre a superfcie terrestre: para Vidal, a que comea a obra geogrfica do homem. Assim, na perspectiva vidalina, a natureza passou a ser vista como possibilidades para a ao humana; da o nome de Possibilismo dado a esta corrente por Lucien Febvre. A teoria de Vidal concebia o homem como hspede antigo de vrios pontos da superfcie terrestre, que em cada lugar se adaptou ao meio que o envolvia, criando, no relacionamento constante e cumulativo com a natureza, um acervo de tcnicas, hbitos, usos e constumes, que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponveis. A este conjunto de tcnicas e costumes, construdo e passado socialmente, Vidal denominou gnero de vida, o qual exprimiria uma relao entre a populao e os recursos, uma situao de equilbrio, construda historicamente pelas sociedades. A diversidade dos meios explicaria a diversidade dos gneros de vida.

Vidal argumenta que, uma vez estabelecido, o gnero de vida tenderia reproduo simples, isto , a reproduzir-se sempre da mesma forma (por exemplo, uma sociedade com escassos recursos disponveis, criaria normas sociais tabus alimentares, infanticdio, etc. para manter seu equilbrio). Entretanto, alguns fatores poderiam agir, impondo uma mudana no gnero de vida. Relaciona em primeiro lugar a possibilidade de exaurimento dos recursos existentes; isto impulsionaria aquela sociedade a migrar, ou a buscar um aprimoramento tecnolgico, quando a possibilidade de migrao estivesse restrita por barreiras naturais. Para Vidal, quando uma sociedade migrava para um meio mais rico, possuindo um gnero de vida forjado em condies naturais mas adversas, adquiria a possibilidade de gerar um excedente, pela maior produtividade com o uso das mesmas tcnicas no meio mais rico. Outro fator de mudana dos gneros de vida seria o crescimento populacional; este poderia impulsionar a sociedade busca de novas tcnicas, ou lev-a a dividir a comunidade existente e a criar um novo ncleo, gerando assim um processo de colonizao. Finalmente, o contato com outros gneros de vida, foi destacado por Vidal como um fator de mudana. Para ele, na verdade, este seria o elemento fundamental do progresso humano. Em sua viso, os contatos gerariam arranjos mais ricos, pela incorporao de novos hbitos e novas tcnicas. Os pontos de convergncia (as cidades, por exemplo) das comunidades seriam verdadeiras oficinas de civilizao. Assim, os gneros de vida se difundiriam pelo Globo, num processo de enriquecimento mtuo, que levaria inexoravelmente ao fim dos localismos. A rea abrangida por um gnero de vida comum, englobando vrias comunidades, Vidal de La Blache denominou domnios de vicilizao. Geografia caberia estudar os generosa de vida, os motivos de sua manuteno ou transformao, e sua difuso, com a formao dos domnios de civilizao. Tudo isto tendo em vista as obras humanas sobre o espao, isto , as formas visveis, criadas pelas sociedades, na sua relao histrica e cumulativa com os diferentes meios naturais. J nessa breve exposio da concepo do objeto geogrfico, para Vidal de La Blache, possvel observar o sutil argumento que, num mesmo discurso, critica o expansionismo germnico, ao mesmo tempo em que resguarda uma legitimao da ao colonial francesa. As fronteiras europias definiriam domnios de civilizao, solidamente firmados por sculos de histria. Assim, qualquer tentativa de no respeit-las significaria uma agresso, na medida em que estes limites seriam fruto de um longo processo de civilizao. Note-se que a ao imperial francesa no se concentrava na Europa; era principalmente um expansionismo colonial, que tinha por espao a sia e a frica. Aqui se criticava a expanso alem. Por outro lado, estes dois ltimos continentes abrigariam sociedades estagnadas, imersas no localismo, comunidades vegetando lado a lado, sem perspectivas de desenvolvimento. Aqui, o contato seria necessrio, para romper este equilbrio primitivo. Ao definir o progresso como fruto de relaes entre sociedades com gneros de vida diferentes, num processo enriquecedor, Vidal de La Blache abriu a possibilidade de falar da misso civilizadora do europeu na frica. E, assim, legitimar a ao colonialista francesa. Dessa forma, uma legitimao indireta, onde o tema da expanso e do domnio territorial (assim como os demais assuntos diretamente polticos) no so sequer mencionados. Em termos de mtodo, a proposta de Vidal de La Blache no rompeu com as formulaes de Ratzel, foi antes um prosseguimento destas. As nicas diferenas residiram naqueles pontos de princpio j discutidos. Vidal era mais relativista, negando a idia de causalidade e determinao de Ratzel; assim seu enfoque era menos generalizador. De resto, o fundamento positivista aproxima as concepes dos dois autores, e, vinculado a este, a aceitao de uma metodologia de pesquisa oriunda das cincias naturais. Vidal, mais do que Ratzel, hostilizou o pensamento abstrato e o raciocnio especulativo, propondo o mtodo emprico-indutivo, pelos quais s se formulam juzos a partir dos dados da observao direta, considera-se a realidade como o mundo dos sentidos, limitase a explicao aos elementos e processos visveis. La Blache props o seguinte encaminhamento para a anlise geogrfica: observao de campo, induo a partir da paisagem, particularizao da rea enfocada (em seus traos histricos naturais), comparao das reas estudadas e do material

levantado, e classificao das reas e dos gneros de vida, em sries de tipos genricos. Assim, o estudo geogrfico, na concepo vidalina, culminaria com uma tipologia. Vidal de La Blache acentuou o propsito humano da Geografia, vinculando todos os estudos geogrficos Geografia Humana. Entretanto, esta foi concebida como um estudo da paisagem; da o homem interessar por suas obras e enquanto contingente numrico presente numa poro da superfcie da Terra. A Geografia vidalina fala da populao, de agrupamento, e nunca de sociedade; fala de estabelecimentos humanos, no de relaes sociais; fala das tcnicas e dos instrumentos de trabalho, porm no de processo de produo. Enfim, discute a relao homem-natureza, no abordando as relaes entre os homens. por esta razo que a carga naturalista mantida, apesar do apelo Histria, contido em sua proposta.

Captulo 7 Os desdobramentos da proposta lablachiana Vidal fundou