morar na praça pública

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  Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.2, n.2, Dossiê: Cultura e Política, dez.2012. ISSN: 2237 -0579 22 MORAR NA PRAÇA PÚB LICA: REDES E FLUXOS ENTRE HABITANTES DE RUA Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz 1  Resumo: O presente artigo é fruto de pesquisa etnográfica realizada entre habitantes de uma praça situada no município de Niterói, Rio de Janeiro. A investigação nasce de uma atividade de extensão universitária que visa produzir uma reflexão sobre a experiência do espaço urbano vivida por esta população; observamos que o mesmo espaço físico se reconfigura a depender das diferentes formas de apropriação que se dão no território estudado. A partir da análise das narrativas colhidas entre moradores de rua, pensamos as dificuldades de comunicar a experiência socialmente considerada como de insucesso, na elaboração de uma etnografia da duração. Tecemos, a partir da relação com os sujeitos estudados, uma arqueologia do lugar que considera as metamorfoses no espaço vivido resultantes de projetos de urbanização e modernização de áreas de moradia popular e as estratégias construídas para lograr permanecer no local em que se escolhe viver. A partir da experiência de produção de vídeo com esses moradores refletimos sobre a linguagem da pesquisa etnográfica na apresentação de casos de experiência traumática. Palavras-chave: Moradores de rua, modo de vida, socialidade, narrativa, etnografia da duração, antropologia visual. Abstract: This article is based on ethnographic research conducted among residents of a square located in Niterói, Rio de Janeiro, Brazil. The research comes from a university extension activity that aims to produce a reflection on the experience of 1  Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o Laboratório do Filme Etnográfico. É autora de Dramaturgias da Autonomia. Pesquisa Etnográfica entre grupos de trabalhadores  (2009) e de séries de filmes etnográficos realizados entre diversos grupos urbanos.

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com moradores de rua

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    MORAR NA PRAA PBLICA: REDES E FLUXOS ENTRE

    HABITANTES DE RUA

    Ana Lcia Marques Camargo Ferraz1

    Resumo: O presente artigo fruto de pesquisa etnogrfica realizada entre habitantes

    de uma praa situada no municpio de Niteri, Rio de Janeiro. A investigao nasce

    de uma atividade de extenso universitria que visa produzir uma reflexo sobre a

    experincia do espao urbano vivida por esta populao; observamos que o mesmo

    espao fsico se reconfigura a depender das diferentes formas de apropriao que se

    do no territrio estudado. A partir da anlise das narrativas colhidas entre

    moradores de rua, pensamos as dificuldades de comunicar a experincia socialmente

    considerada como de insucesso, na elaborao de uma etnografia da durao.

    Tecemos, a partir da relao com os sujeitos estudados, uma arqueologia do lugar

    que considera as metamorfoses no espao vivido resultantes de projetos de

    urbanizao e modernizao de reas de moradia popular e as estratgias

    construdas para lograr permanecer no local em que se escolhe viver. A partir da

    experincia de produo de vdeo com esses moradores refletimos sobre a linguagem

    da pesquisa etnogrfica na apresentao de casos de experincia traumtica.

    Palavras-chave: Moradores de rua, modo de vida, socialidade, narrativa, etnografia

    da durao, antropologia visual.

    Abstract: This article is based on ethnographic research conducted among residents

    of a square located in Niteri, Rio de Janeiro, Brazil. The research comes from a

    university extension activity that aims to produce a reflection on the experience of

    1 Ana Lcia Marques Camargo Ferraz professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o Laboratrio do Filme Etnogrfico. autora de Dramaturgias da Autonomia. Pesquisa Etnogrfica entre grupos de trabalhadores (2009) e de sries de filmes etnogrficos realizados entre diversos grupos urbanos.

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    urban space experienced by this population. We found that the same physical space

    reconfigures itself depending on the different forms of experience in the studied

    area. From the analysis of the narratives collected from homeless people, we think

    the difficulties of communicating the experience socially considered as failure, in

    developing an ethnography of duration. From the relationship with the subjects

    studied, I consider the metamorphosis in the lived space resulting from urbanization

    and modernization projects in the areas of working class housing and built to

    achieve the strategies to remain in place where one chooses to live. From the

    experience of ethnographic filmmaking with these people I reflect on the language of

    ethnography in the study of traumatic experience.

    Keywords: Homeless, way of life, sociality, narrative, ethnography of duration,

    Visual Anthropology.

    A partir de pesquisa etnogrfica realizada entre moradores de uma praa em

    Niteri, Rio de Janeiro, gostaria de desenvolver algumas consideraes acerca da

    centralidade das redes de socialidade na produo de estratgias de ocupao do

    tecido urbano por sujeitos que, por sua posio social nos extratos mais

    desfavorecidos da classe trabalhadora, so excludos dos projetos estatais. A cidade,

    em sua histria de ocupao, tem sido recortada por projetos de desenvolvimento

    que desconsideram as populaes do territrio em questo que recortado por obras

    de impacto natural e social, construo de grandes vias pblicas, edificaes

    privadas e outras metamorfoses que incidem sobre as condies de reproduo dessa

    populao. Reflito ainda nesse artigo sobre a dificuldade de narrar a experincia

    vivida em trajetrias de sujeitos marcados pelo trauma e, sobre as abordagens e as

    formas da etnografia capazes de lidar com as linguagens dos homens e mulheres que

    experimentam e nomeiam o mundo em que vivem.

    Este trabalho nasce de um projeto de extenso intitulado Sociabilidades urbanas

    e Comunicao social: Oficinas de Vdeo entre moradores de bairros populares de Niteri

    vinculado Universidade Federal Fluminense, iniciado h apenas um ano e rene

    uma equipe de pesquisadores em formao em nvel de graduao e ps-graduao

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    das reas de antropologia, sociologia e cinema. Apresento aqui primeiras

    aproximaes de nossos achados empricos e elaboraes metodolgicas.

    Encontramos na noo de fluxos urbanos uma chave de anlise dos fenmenos que

    observamos na pesquisa de campo nos locais de moradia popular que cercam a

    Universidade. Recortamos como espao da observao etnogrfica uma regio que

    vai se reconfigurando a partir dos percursos e relaes construdas pela populao

    estudada.

    Na histria da urbanizao de Niteri, o bairro de So Domingos ocupa um

    lugar contraditrio, prximo regio central, em direo ao que, no imaginrio da

    metrpole carioca, pode ser concebido como zona sul, recebe projetos de

    desenvolvimento urbano com aterramento de extensas faixas litorneas, construo

    de grandes vias e do campus da Universidade. Mais recentemente, uma poltica de

    reforma urbana com o cercamento das praas como poltica pblica foi levada a cabo

    pelas autoridades municipais (Botelho, 2006:17). No iderio desse tipo de

    interveno urbana desconsidera-se completamente a cidade como tecido vivido,

    ignorando as formas de vida e impondo obras e aes sobre uma populao que se

    reterritorializa permanentemente.

    A Praa Leoni Ramos, localizada em frente ao campus universitrio,

    construdo nos anos 50 sobre regio de aterro martimo, hoje o centro de um ncleo

    ocupado na geografia urbana como rea dedicada a atividades de lazer, abrigando

    uma srie de bares, restaurantes, casas noturnas, onde diferentes grupos culturais da

    regio metropolitana do Rio de Janeiro, estudantes, vendedores ambulantes e

    moradores de bairros populares socializam-se. Em torno da praa, edifcios altos de

    apartamentos residenciais dividem o espao com antigas casas ocupadas por

    pequenos estabelecimentos comerciais ou cortios. A praa fica em frente Estao

    Cantareira, espao tombado pelo patrimnio histrico, antigo estaleiro para

    manuteno das barcas que faziam o transporte martimo entre Niteri e a cidade do

    Rio de Janeiro, cruzando a Baa da Guanabara, antes da regio ser aterrada. O prdio

    foi incendiado em 1959, por insatisfao da populao com o servio prestado pelas

    barcas. Em 1979, o governo desapropria o imvel que passa a ser administrado pelo

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    estado que o cede prefeitura de Niteri. Depois de ficar abandonado retomado

    pelos movimentos culturais em torno do bairro de So Domingos. Retomado pela

    empresa Barcas S.A., o prdio na porta da Universidade permanece em litgio, sendo

    alugado ocasionalmente para festas ou feiras. Hoje um grande galpo que tem a

    fachada do prdio histrico mantida e abre eventualmente para shows pagos que

    renem estudantes universitrios e jovens da cidade.

    Assim, a Praa da Cantareira, fica no centro de um espao urbano povoado

    por diferenas. Em nossa abordagem, a praa torna-se espao de pontos de vista.

    Nesse momento da investigao nos detemos no ponto de vista dos moradores de

    rua que habitam a praa e em suas relaes construdas com os morros, os cortios,

    as vielas ocupadas pelas classes trabalhadoras que habitam o bairro, os pequenos

    comerciantes, as Igrejas e o trfico de drogas. Faz parte desse panorama ainda a

    situao que a regio metropolitana do Rio de Janeiro vive nesse momento com a

    poltica pblica de policiamento ostensivo dos espaos populares, o chamado

    choque de ordem, que fragiliza posies sociais, legitimando a violncia como

    linguagem da apropriao do espao urbano.

    Ao definir o campo estudado como espao de pontos de vista, nos

    aproximamos de uma antropologia da experincia que se interessa por compreender

    a cidade vivida, percebida e concebida pelos homens e mulheres que a ocupam. O

    terreno de pesquisa mediado pela produo de vdeo, no estudo das relaes que

    alguns distintos personagens estabelecem com a Praa da Cantareira. Visamos

    desenvolver abordagens audiovisuais em torno das distintas experincias que esses

    sujeitos fazem do espao. O trabalho com o filme etnogrfico na praa nos permite

    desenvolver diversos recursos para estabelecer relaes compreensivas com

    diferentes experincias. Na pesquisa, moradores dos morros invisibilizados pelo

    traado urbano, que habitam a praa, em seus percursos, relaes e tempos de lazer,

    narram histrias de vida e ocupao urbana.

    Observamos a permanncia de formas residuais de trabalho no bairro e a

    permanncia de atividades produtivas de pequena escala, saberes-fazer que se

    mantm a partir de relaes de vizinhana e da presena de outros personagens:

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    estudantes, moradores de cidades perifricas da regio, frequentadores dos bares e

    restaurantes em frente Universidade, passantes. Jovens pichadores deixam marcas

    nos vrios tempos que revela a arquitetura do lugar. Eles tm uma linguagem

    prpria, um discurso que se impe e que pensa a sua circulao, num controle sobre

    os cdigos da comunicao social. Casas antigas so cortios, abrigam muitas

    famlias. Moradores de cortios confraternizam-se com moradores da praa que

    variam sazonalmente entre a praia e a coleta de marisco e pedir esmolas, tomando

    sol, bebendo cachaa, enquanto as crianas brincam.

    A Praa da Cantareira apresenta-se como o centro de redes de socialidade e

    lugar privilegiado de observao por reunir diferentes experincias do espao

    urbano: moradores de morros com suas casas prprias, moradores de cortios,

    habitantes de rua, incluindo tambm estudantes e pequenos comerciantes.

    Vendedores ambulantes, que disputam a possibilidade de estar ali, no contexto do

    choque de ordem, em dias e horrios especficos, so protegidos pela multido de

    estudantes que param para tomar cerveja s noites de quinta-feira. Mas, a poltica do

    choque de ordem no parece rivalizar com o trfico de drogas ilcitas, que continua

    seu negcio, impondo zonas de circulao proibida para aqueles que se indispem

    com as organizaes solidamente enraizadas num tecido de relaes sociais e

    cdigos compartilhados por grupos especficos nos locais de moradia popular.

    Nessa pesquisa encontramos um tecido urbano extremamente recortado por

    diversas formas de violncia e jogos de poder e nos instalamos em um espao de

    pontos de vista, segundo a abordagem que construmos na prtica de produo do

    vdeo etnogrfico, estreitando o dilogo com aqueles que permanecem no espao da

    praa, habitando-a como casa ou como espao de convivncia. Estreitando dilogos

    com aqueles que vivem noite e dia nesse territrio, buscamos compreender como

    que vai-se configurando uma poltica do cho (Lepecki, 2012). Gostaria de tecer

    um dilogo com a definio proposta por Andr Lepecki, pensador do campo da

    teoria da performance, para melhor compreender o que est em jogo na situao

    estudada.

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    A poltica do cho no mais do que isto: um atentar agudo s particularidades fsicas de todos os elementos de uma situao, sabendo que essas particularidades se co-formatam num plano de composio entre corpo-e-cho chamado, histria. (...) S assim pode uma cidade deixar de ser esse amlgama de construes e leis criadas com o objetivo de se controlar cada vez mais totalmente os espaos de circulao (de corpos, desejos, ideais, afetos); s assim pode uma cidade se tornar uma coreografia de atualizao de potncias polticas e de viver contidos sempre em todo e qualquer cidado: deixando a poltica acontecer na sua verdadeira face, de modo a que se possa esperar que o inesperado aja (performs) o infinitamente improvvel, como disse Arendt. (Lepecki, 2012: 20; 25, passim)

    Os moradores da Praa permanecem ali h anos, alguns desaparecem por um

    tempo, viajam, vo para a casa de conhecidos ou para instituies, mas retornam. A

    praa parece ser lugar de encontro, de debate, de troca entre moradores da cidade.

    Espao habitado, que se aproxima da ideia de praa pblica, cada vez mais rara e

    esvaziada pelo tempo acelerado da metrpole e pela vida sobre rodas produtora do

    trnsito e de uma relao acelerada com as ruas nas grandes cidades. Mas, a

    Cantareira parece resistir. As pessoas que se afirmam como moradores da praa no

    pretendem sair dali e constroem suas estratgias de subsistncia ancoradas no estar

    ali. Morar na rua se apresenta como modo de vida. Forma essa baseada em mltiplas

    relaes construdas com os outros habitantes do mesmo espao.

    As mulheres que vivem na praa so bravas. Algumas delas evitam quaisquer

    contatos com a pesquisa, ao longo desse ano de trabalho compreendemos sua

    posio nas relaes com atividades ilcitas no circuito do trfico de drogas. Casais e

    homens sozinhos no se recusam ao dilogo, expondo suas razes e trajetrias.

    Maria e Pel so os pais de Pedro2. Ela morava no Beco do 27, uma viela cheia de

    barracos localizada na rua dos fundos da Praa, era casada e Pel era o melhor amigo

    de seu marido. Eles se aproximam e passam a manter uma relao, quando ela

    engravida e sai de casa. Desde ento eles foram morar na praa, Pedro fez quatro

    anos recentemente. Maria habita a regio h mais de vinte anos. Pel trabalha

    reunindo e vendendo caixas de madeira e outros objetos reciclveis, enquanto ela

    2 Os nomes dos interlocutores da pesquisa foram transformados.

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    pede dinheiro para obter o alimento para sua famlia. Nos momentos em que

    precisam de ajuda o seu primeiro marido os socorre. Diariamente, vrias pessoas que

    passam por ali almoam com eles, dormem nos bancos da praa, encontram os

    amigos para tomar cachaa e comentar os acontecimentos.

    Mas, quem mora na rua no mora na rua, h inmeras relaes com casas,

    famlias, viagens, barracos, lugares onde deixar as coisas, pessoas, saberes, como

    nosso exemplo nos faz ver. Um modo de cozinhar articula-se com formas de

    conseguir doaes e armazenar alimentos. Reutilizar da gua, explorar o espao

    urbano e a criar novas formas de uso das fontes de energia encontradas: a energia

    eltrica, a madeira, o alimento. Valorar tais elaboraes como saberes parece ser um

    demarcador importante de uma abordagem, aquela que reconhece como legtimos os

    pontos de vista dos sujeitos estudados.

    Os estudos sobre moradores de rua que tem se multiplicado nas ltimas

    dcadas apontam a centralidade de formas de trabalho e de atividades em torno da

    produo de alimento. O foco da vida econmica passa a ser o alimento (Neves,

    2010:120), mas, mais que isso, a atividade produz uma subjetividade particular, uma

    corporalidade, uma atividade centrada na subsistncia cotidiana. Como neste estudo

    de caso:

    Em meio quela confuso de pessoas, cachorros, colches, o fogo parecia um lugar isolado, mantido parte. A comida e sua criativa elaborao, junto com a pinga pareceram garantir a vitalidade daquele agrupamento. Nos modos de cozinhar e comer, expe-se um embate constante entre um parmetro civilizador idealizado e a realidade subtrativa na qual as formas de cozinhar e de comer tm que ser adaptadas. E, desse conflito, emergem formas criativas e inusitadas de exerccio do mundo domstico no espao pblico, bem como uma enunciao clara de agenciamentos corporais dinmicos, sobreviventes e reformuladores dos cdigos sociais que se pretendem homogneos (Frangela, 2004:247).

    Encontramos no dilogo com essa populao suas histrias de migrao

    organizadas a partir de experincias de trabalho, faz-se necessrio reconhecer seus

    hbitos e modo de vida particulares, seus valores e as solues que elaboram como

    tticas de reproduo da vida, esse passo exigiria uma outra concepo de cincia,

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    aquela que tem como primordial o dilogo com a lgica dos sujeitos estudados, e

    uma crtica ao modo como a poltica pblica elaborada de forma antidemocrtica.

    Nessa pesquisa, a abordagem da histria de vida s parece render frutos com

    os senhores mais velhos, que tem em sua trajetria o trabalho como experincia

    central, marcadora de uma posio, de um modo de vida. Com aqueles mais jovens

    que no chegaram a atuar em relaes formais de trabalho, exercendo atividades

    como lavadores ou guardadores de carros, ou mulheres que se dedicam ao cozinhar

    e cuidar de crianas, atuando em ocupaes subvalorizadas a pergunta pela histria

    de vida rapidamente repelida. Em seu lugar mostram suas cicatrizes no corpo,

    passado presente como marca. Encontramos no dilogo com alguns desses sujeitos a

    dificuldade de narrar suas histrias de vida. A escuta das narrativas visando

    produzir uma etnografia da durao (Eckert e Rocha, 2009:110) encontra relatos

    que testemunham a transfigurao urbana que desvaloriza os saberes-fazer

    apreendidos ao longo da vida, para os quais damos ateno.

    partir do levantamento das trajetrias de vida de nossos interlocutores

    sabemos que muitos deles so ex-trabalhadores manuais ou tcnicos, pedreiros,

    eletricistas, soldadores, jardineiros, uma grande parcela dedica-se pesca, cata de

    material reciclvel e mendicncia. Ex-pescadores de alto-mar, qui trabalhadores

    dos antigos estaleiros de quando a estao Cantareira era sediada na Praia Grande,

    antes do aterro, h mais de meio sculo.

    A permanncia dessa populao na rua, na praa e na praia, a sua tranquila

    relao com os moradores do entorno, podem indicar um reconhecimento tcito de

    seu direito a permanecer ali fundado numa histria de metamorfose no espao

    urbano pautada na implementao de projetos de desenvolvimento de autoria do

    Estado que desconsidera certos personagens. Transcrevo aqui a fala do senhor

    Marcha Lenta, morador da Praa da Cantareira, por quem fomos observados ao

    longo de meses em diferentes situaes, quando ele decide espontaneamente dar o

    seu depoimento para a cmera:

    Eu j andei por esse Brasil inteiro. Eu tenho raiva de So Paulo porque quando eu sa daqui do Rio pra ir pra So Paulo, pra trabalhar l, me perguntaram: Voc no bebe cachaa? No vai tomar banho frio! Sabe o que aconteceu? Todo dia na hora de tomar o banho eu tinha que tomar um copo de cachaa. Na poca l a cachaa era

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    Trs Fazendas. Tomei raiva de So Paulo porque aprendi a beber cachaa. Todo dia um copo cheio, a vicia! Mas, um lugar bom. No um lugar bom, bom, bom. Bom o Rio de Janeiro. O Rio um lugar bom, bom, bom! Considero um lugar bom Minas, Bahia. Tem muito mais lugar que eu conheo, Paran, tem muito lugar que eu conheo, Curitiba. Mato Grosso no vou dizer que um lugar bom, l eles faziam um contrato pra trabalhar, mas tem que ter um olho no padre outro na missa. S tinha gente ruim do Cear. No podia dormir. Peguei um trem em Curitiba, trabalhei no Mato Grosso. Trabalhei na Bahia. Trabalhei nos dois Hotis Sheraton, trabalhei no Vidigal, depois eu fui pra Bahia. Antes de trabalhar no Sheraton, primeiro eu trabalhei no Meridien, esse aonde faz a passagem de ano. Eu trabalhei ali, da fundao at o fim. A cozinha dele l em baixo, subterrnea, do hotel Sheraton no terceiro andar. Eu constru e sei tudo. eu trabalhei l, trabalhava com eletricidade, instalei tudo. Pode perguntar pra qualquer um se a cozinha do Hotel Sheraton no no terceiro andar e a do Meridien no em baixo. Pode ligar pra qualquer um que conhea, pra qualquer um que conviveu nesse hotel. Vou at dizer quantos andares tem, pra senhora saber que eu conheo de cima em baixo. Tem 26 andares. A senhora pode ligar pra saber, l eles vo dizer, tem 26 andares. Eu trabalhei da fundao at l em cima. E matou a minha prainha, acabou com a praia do Vidigal aquele hotel. Ali era nossa praia, na infncia. E, o senhor est em Niteri desde quando? Em Niteri, desde 79. Minha famlia toda de Niteri. Vim pra c em 79, com 31 anos, arrumei famlia aqui. Eu no conheo o Brasil todo ainda no mas conheo muito. No conheo a Amaznia, que o fruto do Brasil, no dia que eu conhecer a Amaznia vou dizer que conheo, mas conheo muita coisa. Vou dizer: Eu conheci uma pouca parte do brasil, mas no conheci tudo. Conheo muito, muito, muito, muito. Minha vida foi trabalho e querer conhecer. Vim arrumar famlia com 32 anos. Servi no Leme, do Leme fui morar em Nova Iguau, de Nova Iguau arrumei uma famlia e fui morar em Queimados e a minha vida foi assim. Com essa mesma mulher que morei em Queimados, morei em Nova Holanda, de Bom Sucesso, com ela morei antes em Tribob. Depois no deu certo. De Tribob fomos morar no morro do Crcere no deu certo, com ela eu no tive filho no. A eu arranjei famlia e vim pra c. Desde ento o senhor est morando na mesma casa? Aqui? Eu moro na rua! Os meus filhos vem aqui me resgatar, mas eu no quero, so todos casados, no quero ser um intruso na vida deles. Eles vem. Pode perguntar pra qualquer um a. Pai vamos pra casa. No vou. Aqui eu como, eu bebo, arrumo minhas latinhas, eu como ali, oito real, ali na padaria. no como a, no (aponta para os outros moradores da praa). Todo dia eu arrumo, graas a Deus, no preciso ficar me humilhando na comida deles ali. ou no ? A senhora me viu me humilhando na comida deles ali? Pra mim uma vergonha. Eu saio me arrastando do jeito que eu ando. tem vez que eu arrumo aqui 30, 40 s de latinha. Eu no uso droga, uso minha cachaa. Paga dez contos fica mais com vontade de pa, pa, pa. daqui a pouco cem, vai tudo. Se eu comprar de manh uma garrafa de 2,80 dura pra mim at o outro dia. Se eu comprar um mao de cigarro, vai at o outro dia. Isso no despesa, despesa? Pra quem tira 30, 40 contos s de latinha? Eu vou falar pra senhora, a vida muito boa, tem que saber viver. Marcha Lenta, em depoimento concedido nos bancos da praa da Cantareira, em setembro de 2012.

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    Nossa atividade est na descrio dos fenmenos observados, esboando uma

    compreenso das formas atuais, segundo as perspectivas dos sujeitos que vivem a

    cidade. Observamos redes de circulao conhecidas dos moradores de rua que

    apontam interseces entre distintos moradores da regio, entre diversas posies

    sociais. Temos espaos utilizados como depsitos de objetos, relaes pessoais

    estabelecidas. A relao com a Igreja, com instituies, e outros personagens urbanos

    compem parte das aes empreendidas visando a mobilizao por alimento e

    outros recursos (Silva, 2010:80). O estudo dessa populao nos leva a por em questo

    categorias pensadas como universais na reflexo sociolgica, tais como: pblico e

    privado, domstico, ntimo.

    Essa investigao partiu da concepo de uma etnografia da durao

    (Eckert e Rocha, 2009) que busca a produzir narrativas, configurando tempos e

    espaos da experincia da vida na cidade, que coexistem em sua pluralidade e

    diferena. No dilogo com a reflexo de Ricoeur (2000), em torno do rememorado e

    do esquecido na experincia subjetiva do tempo que a memria quando narrada,

    configuramos experincias que compem um quadro de fluxos e relaes que

    constituem o territrio urbano tal como subjetivamente percebido. No entanto,

    encontramos algumas dificuldades para a produo de narrativas referidas `as

    experincias socialmente valoradas como de insucesso. Os relatos trazem histrias

    trgicas, de abandono, violncia domstica, orfandade, que so rapidamente

    referidas como justificativa ao estar ali. Uma abordagem do presente, colada s

    prticas e s performances, aos corpos em relao, que constituem a paisagem

    humana do espao estudado, a que nos auxilia a estabelecer relaes

    compreensivas com esta populao.

    Recentes debates acadmicos apontam diferentes modos de nomear os

    moradores de rua: mendigos, pessoas em situao de rua, moradores de rua, sem

    teto. Em cada uma dessas formas h uma concepo que reconhece no outro uma

    possibilidade de vida mais ou menos legtima. O modo como os movimentos

    referem-se essa experincia, pessoas em situao de rua, nomeia a situao

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    destacando o seu carter transitrio. No me parece que essas pessoas tenham o

    projeto de voltarem a suas casas.

    A perspectiva das pessoas permanecer ali, habitando nos bancos de praa,

    onde, aprendendo a ver, podemos enxergar claramente o espao da casa ocupado, na

    cozinha entre os canteiros de rvores, no quarto onde se recebe os amigos mais

    ntimos, ou na sala, nos bancos da praa onde se recebe os menos prximos para uma

    conversa ocasional com os passantes. Aprender a ver o aprendizado que a pesquisa

    etnogrfica proporciona.

    Em processos de produo de imagens, compartilhamos com os sujeitos

    estudados a produo de narrativas sobre a cidade, de pontos de vista sobre o espao

    urbano. Atravs da metodologia do filme etnogrfico, levantamos narrativas acerca

    de socialidade e fluxos urbanos, e sobre como que o tecido urbano se configura. A

    Antropologia Visual tem histria no estudo dos modos de ver das populaes

    estudadas e na compreenso das questes relevantes para estes grupos. Refiro-me

    aos trabalhos fundantes em etnografia visual de Mead e Bateson (1985), alm dos

    trabalhos de seus continuadores, Sol Worth e John Adair (1972). Em ambos os casos,

    temos um antroplogo e um especialista em comunicao em contato com a cultura

    de grupos especficos. E o recurso produo de imagens - em fotografia ou cinema -

    como modo de levantar as formas da cultura e, mais que isso, as perspectivas dos

    homens que a vivem. A partir de tais estudos temos um campo aberto para a

    investigao mediada pelo vdeo etnogrfico. No nosso caso, a partir da produo de

    narrativas e da apropriao do vdeo como instrumento na produo de olhares

    sobre o tema dos fluxos urbanos. Alguns experimentos nessa direo foram j

    iniciados por Ana Galano (1995), que formou um ncleo de estudos em antropologia

    visual a partir da prtica da etnografia mediada pela produo de imagens em

    favelas no Rio de Janeiro. Nesses estudos h um processo de adoo de pontos de

    vista sobre o espao de moradia construdo no dilogo com os moradores dos bairros

    estudados, da eleio de tais pontos de vista pode-se encontrar os temas e problemas

    relevantes para a populao que vive o espao.

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    A presena da cmera em campo foi sendo negociada em situaes delicadas.

    No dia em que Maria fazia seu almoo em latas sobre uma fogueira na porta da

    Universidade nos aproximamos e dissemos que gostaramos de grav-la fazendo o

    almoo. Ela se negou. Acatamos, desligamos e guardamos o equipamento, mas

    continuamos por ali, estabelecendo dilogos. Tendo nos visto conversando com

    outras pessoas de sua relao ela foi aos poucos permitindo a nossa aproximao. Os

    senhores que habitam a praa disseram que um dia bom para grav-los seria o

    domingo pela manh, quando a Igreja distribui um caf da manh e os moradores da

    praa tm um tempo de convivncia mais tranquilo. Seguimos essa orientao, mas

    naquele dia conflitos emergiram. Na praa h dias em que as situaes so tensas.

    Seguindo as orientaes do prprio grupo vamos reposicionando nossa abordagem.

    Ha indivduos que no querem ser filmados, h aqueles que so receptivos e h

    aqueles senhores narradores com longas histrias e experincias.

    Desde o incio da pesquisa de campo a presena da cmera de vdeo foi

    central no estabelecimento das relaes. Mas o sujeito que fala elabora sua fala para a

    pesquisa. Ele est envolto, inserido em relaes, o vdeo tambm documenta esse

    dado. Depois de termos sido identificados como pessoas ligadas Universidade, Sr.

    Expedito seleciona e dirige o seu discurso aos estudantes, criticando-os. Todo ato de

    fala sempre contextual.

    Como David MacDougall argumenta, em seu percurso do cinema

    observacional cmera interativa, o sujeito que se sabe no mundo, estabelece

    relaes, de posies especficas.

    Advogo hoje a favor de uma elaborao mltipla ao invs de conjunta, resultando numa forma de cinema intertextual. Este passo pode fazer com que a diferena cultural e geopoltica que separa o realizador do sujeito, seja reconhecida mais claramente, a fim de que seja respeitada a integridade de cada voz. Podemos dizer que qualquer filme etnogrfico inscreve o texto do realizador no texto de uma outra sociedade: um cinema intertextual poderia adotar formas mais complexas como a incluso de vozes mltiplas, o recurso de interpretaes diferentes, a montagem de materiais provenientes de realizadores diversos, a sobreposio de antigos textos sobre novos, etc. Tais aproximaes colocariam o filme etnogrfico em melhor posio para confrontar vises opostas de uma mesma realidade e para assegurar a reciprocidade das experincias (MacDougall, 1994:74).

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    Dessa maneira, temos como perspectiva construir abordagens metodolgicas

    que nos instrumentalizem, para aprofundar a produo de tais olhares situados em

    experincias particulares do espao urbano que se encontram no tecido das relaes

    entre aqueles sujeitos que a cidade aproxima.

    A edio de vdeo prepara material para o olhar dos que aparecem nas

    imagens, devolver o material gravado, editado, para os sujeitos filmados, momento

    de poder reencontrar-se com a prpria imagem, em sesses coletivas de exibies de

    vdeo. O objetivo inicialmente concebido, a realizao do mapeamento das formas de

    ocupao do espao urbano e das redes de relaes entre moradores do bairro de So

    Domingos, foi se definindo e especificando. O levantamento dos fluxos e uma

    histria das formas de habitao na regio est ainda em esboo. O centro de nossa

    cartografia o espao da Praa e as relaes que ali encontramos, cheias de conflitos

    que emergem no espao pblico. Reunimos linguagens: o stencil, a fotografia, o

    vdeo, com projees de filmes, visando possibilitar e aprofundar o dilogo. Na

    Praa, o trabalho com imagens, vai assumindo a forma que a relao estabelecida

    com os moradores da rua indica. A aproximao de nossos personagens foi

    registrada e a presena da cmera vai construindo a sua possibilidade. Inicialmente,

    a abordagem do desenho foi frustrada pela falta de familiaridade dos sujeitos com o

    lpis. A fotografia deve ainda ser experimentada como meio suficiente para a

    produo de apreenses da experincia vivida do espao urbano, da perspectiva dos

    sujeitos estudados.

    A abordagem do stencil com imagens referidas ao universo dos habitantes do

    espao estudado forma de dilogo com jovens moradores e meio de interveno

    sobre o lugar em que se vive. No projeto de extenso, o stencil, praticado pelos

    estudantes participantes do projeto, foi apropriado como linguagem no

    estabelecimento de marcas em percursos inscritos pela pesquisa na cidade.

    Reconhecido como marca de percurso, a imagem grafitada em alguns pontos-chave

    abriu o debate em torno de algumas questes delicadas: a discriminao do espao

    do morro. Um morador do morro recusa a imagem enquanto forma de

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    identificao. Esse elemento nos provoca a reflexo em torno dos esteretipos

    enfrentados por esta populao, que recusa uma poltica de atribuio de uma

    identidade.

    A realizao de vdeo e a formao da equipe para a produo e edio de

    vdeo passam, necessariamente, por devolues com exibio do material produzido

    na Praa, para os sujeitos filmados. O momento de ver-se opera no aprofundamento

    da relao de confiana na pesquisa.

    A moradia popular, construda a partir da ocupao mais ou menos irregular

    dos morros e encostas pelas classes trabalhadoras h dcadas, tem recebido uma

    reflexo esparsa pela literatura. As etnografias produzidas acerca das favelas

    revelam categorias, estratgias de ocupao do espao urbano, pautadas em um

    padro de moradia que caracteriza uma noo ampliada de famlia extensa que

    abriga descendentes, agregados, em casas que vo se ampliando verticalmente entre

    vielas escondidas pela arquitetura urbana. Na regio que adotamos como objeto de

    nossa cartografia, que rene os bairros de So Domingos e Gragoat, em Niteri,

    pequenos morros abrigam residncias de trabalhadores.

    A Praa da Cantareira, espao ocupado de diversas maneiras pelos nossos

    personagens, abriga homens e mulheres que elaboram estratgias de subsistncia

    que adotam a rua como espao de moradia. Debates em torno de como nomear essa

    populao e como construir abordagens de pesquisas capazes de lidar com a sua

    existncia tem mobilizado a produo de textos (Silva, 2010; Neves, 2010; Turra-

    Magni e Bruschi, 1998; Frangella, 2004), o que denota um esforo reflexivo para

    compreender uma populao. A sua existncia impe a necessidade sociolgica de

    categorizar suas formas de vida. Pessoas que adotam relaes econmicas informais

    em diferentes atividades episdicas (catadores, guardadores de carros, carregadores,

    vendedores, eventuais pedreiros, ex-soldadores, pescadores) moram na praa, os que

    so casados com empregadas domsticas tm casas no morro. Acompanho os fluxos,

    as relaes e as estratgias de subsistncia adotadas. Trocas, ddivas e dvidas,

    marcam relaes que duram.

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    A itinerncia, adotada como estratgia de vida desse extrato da classe

    trabalhadora, colabora na construo de uma territorialidade que promove uma

    desterritorializao nas expectativas e imagens feitas por aqueles extratos da

    populao que produzem e reproduzem o discurso hegemnico que circula nos

    grandes meios de comunicao. Uma invisibilidade marca a relao dos moradores

    de rua com outros personagens que ocupam o mesmo espao, os estudantes, em seu

    modo de ocupar a praa como lugar de lazer, no notam a casa invisvel que existe

    nas prticas dessa populao.

    O jornal O Fluminense de 19 de maio de 2012 divulga em fotografia de capa de

    sua edio de sbado a interlocutora da pesquisa tendo seu filho sendo recolhido

    pela Guarda Municipal em ao conjunta com a polcia militar. Numa das chamadas

    de capa Oito moradores de rua so recolhidos e vo para abrigos diz-se: Operao da

    Secretaria de Segurana e Controle Urbano percorreu os bairros de So Francisco,

    Icara e So Domingos. As pessoas retiradas das ruas receberam alimentao,

    condies de higiene e cadastro. Essa no a primeira vez que o Choque de Ordem

    realizado em Niteri. A fotografia de Mria tendo seu filho segurado por policiais

    utilizando luvas cirrgicas enquanto ela era algemada estampada na capa do jornal

    da cidade.

    Encontro Maria na Praa com seu filho depois do dia tenso que fora a

    vspera. Alterada, exausta, dormindo no asfalto com um lenol de algodo,

    amamentando Pedro, na porta da Universidade fechada, ela se inflama ao pegar o

    jornal de minha mo. Os moradores da praa negam que algum tenha sido

    recolhido da praa na vspera.

    A poltica pblica do choque de ordem produz esse tipo de visibilidade

    negativa da populao que vive margem do mercado de trabalho formal.

    Associando-os aos problemas urbanos, os meios de comunicao de massa so os

    principais sujeitos do discurso da ordem. O jornal da cidade ao divulgar imagens

    como a da violncia policial sofrida por Maria contribui com a cegueira que impede

    o reconhecimento do lugar de tais sujeitos na vida da metrpole carioca. Essa

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    invisibilizao cria espao para um processo de criminalizao dessa parcela da

    populao trabalhadora.

    Imagens publicadas pelo jornal O Fluminense de 19 de maio de 2012.

    Imagem 01: Fonte: O FLUMINENSE, 2012

    Imagem 02 . Fonte: O FLUMINENSE, 2012

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    Imagem 03: Fonte: Jornal O FLUMINENSE, 2012

    Para discutir o modo como os media constroem um discurso sobre os

    moradores da praa, parece-me eloquente emprestar aqui o conceito de corpos

    abjetos tal como definido por Judith Butler. O abjeto relaciona-se a todo tipo de

    corpos cujas vidas no so consideradas vidas e cuja materialidade entendida como

    no importante. A autora coloca a questo do ser da seguinte maneira:

    Como que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como que eles contam ou se qualificam como reais? Nesse caso, estamos falando sobre a distribuio de efeitos ontolgicos, que um instrumento de poder, instrumentalizado para fins de hierarquia e subordinao, e tambm com vistas excluso e produo de domnios do inimaginvel (Butler, 2002:160, traduo da autora).

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    Butler se pergunta como que o domnio da ontologia, ele prprio est delimitado

    pelo poder (Prins e Meijer, 2002). Colocar a questo da ontologia dessa maneira,

    associada questo do poder, nos remete de volta ao problema do reconhecimento

    das formas de vida dessa parte da classe trabalhadora, que, no Rio de Janeiro, se

    reproduz nas ruas, como catadores de mariscos ou de materiais reciclveis, criando

    solues para o problema da subsistncia. Esses sujeitos, que as abordagens

    sociolgicas ou os movimentos sociais chamam de sem-teto, pessoas em situao

    de rua, ou ainda de lumpem proletariado, lanam olhares sobre as relaes sociais

    institudas, narram suas experincias, criam estratgias para se relacionarem com a

    ordem estabelecida. Aqui, a questo do reconhecimento chega ao seu limite. O ser

    morador de rua recusa a sua prpria identidade.

    Butler dialoga com a questo dos corpos abjetos colocada por Julia Kristeva

    em Pouvoirs de lhorreur. Essa ltima define o abjeto como "aquilo que um distrbio

    identidade, ao sistema, ordem. O que no respeita fronteiras, posies, regras"

    (Kristeva, 1982:16). Nem sujeito, nem objeto, habitante de fronteiras, sem desejo

    nem lugar prprios, errante, dor e riso juntos, em um mundo imundo, o sujeito

    abjeto age em revolta. A noo coloca-nos no lugar onde o sentido colapsa,

    retornando ao problema da identidade recusada, do limite do sentido, do absurdo da

    misria, da fome, da desvalorizao que justifica toda forma de violncia fsica e

    simblica. Entrar em contato com estas experincias nos impe a necessidade de

    ouvir os silncios, ler os corpos, notar estratgias que negam quaisquer discursos

    rpidos e superficiais sobre a situao, sobre o instante em que a vida se d, cheia de

    limites e perigos.

    Construmos, com a abordagem do vdeo etnogrfico, uma outra forma de

    lidar com o problema da visibilidade. A pesquisa etnogrfica contou com a medio

    da cmera de vdeo, mas sabendo das insuficincias e de tudo o que tambm no

    pode ser mostrado. Uma antropologia compartilhada com a experincia particular

    dos moradores da Praa, reconstri uma temporalidade especfica, relaes.

    Fotografando a moradia popular, antroplogos encontram a questo do ponto de

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    vista (Galano, 1995; Andrade, Motta e Lara, 1995; Carvalho, 1995; Madeira e Pontes,

    1995).

    Barbara Glowczevski (2006) nos apresenta o desafio de reconstruir percursos,

    trajetos vividos ou imaginados, na pesquisa por um dilogo entre as linguagens da

    etnografia e as linguagens do mundo, na busca por modos de reportar a experincia

    da pesquisa de campo, em uma base multimdia. Um site deve apresentar essa

    cartografia de mltiplas experincias, percepes, relaes com um mesmo espao

    geogrfico, que se torna outro quando vivido diferentemente por perspectivas

    particulares. Experincias distintas propem a localizao de diferentes pontos de

    vista e de escuta da praa. Sujeitos que, ao ocuparem o espao de determinada

    forma, vm um espao que completamente outro a cada ponto de vista. Pontos que

    possibilitam uma percepo, lugares de ensurdecimento e cegueira em relao a

    outros.

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