Morrer em Lisboa

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Inês Ruim | Morrer em Lisboa

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Morrer em Lisboa

D i a s C ã e s

Por Inês Ruim

Inês Ruim | Morrer em Lisboa

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Em 1932, a pequena Donzília chegara à estação de Santa Apolónia,

vinda do norte do país, pelas mãos dos seus pais e de uma velha avó materna.

O momento ficaria para sempre marcado por uma azáfama que não conhecia

mas lhe animou o pulso. A criança, que aqueles tempos duros nem sempre lhe

permitiram ser, sentiu-se abalada por um entusiasmo que não havia de

perdurar nos olhos por muitas mais décadas mas que, por ser ainda criança,

não tinha como o saber.

A agitação da saída do comboio, entre gente apressada com rostos que

não conhecia, e os constantes puxões que a sua mãe lhe dava para garantir

que não desaparecia entre pernas e sapatos de homens e mulheres da cidade,

não haviam de passar de uma lembrança distorcida e turva que não demoraria

mais de um par de segundos a recordar. Mas era uma doce lembrança. Não

tinha porque não o ser. Com o passar dos anos, e apesar de as imagens se

terem esbatido mais do que seria justo, a história da sua chegada a Lisboa

haveria de ser cada vez mais desenhada e alindada, por acontecimentos nem

sempre tão verídicos quanto deveriam mas que o avançar da idade legitimou.

As sua recordações, ao contrário dos acontecimentos daquela época,

haveriam sempre de começar pelas longas horas de comboio, pela chegada a

Santa Apolónia, pelo corrupio de malas, pela correria das pessoas pela gare, o

bater de asas afoito dos pombos, o fumo das castanhas assadas à porta da

estação e por uma lufada de ar fresco e húmido que sentiu embater-lhe nas

faces. O rio. Aquele imenso rio que confundiu com o mar.

O rosto embeveceu-se-lhe de espanto! Reteve para sempre a imagem

do rio. Nas muitas vezes que contaria a sua história da chegada a Lisboa,

havia de começar sempre pelo rio e só depois relataria os anos que

antecederam aquele momento, e os que lhe seguiriam. Os anos difíceis do

antes, e aqueles anos que o destino lhe quis dar no depois.

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A pequena Donzília herdou o nome de uma vizinha que a ajudou a

nascer e da qual não havia de se lembrar mais tarde, quando a sua mãe lhe

contou o episódio do seu difícil nascimento. Mas a fama da tal vizinha Donzília

era a de mulher séria e dela foi tudo o que reteve e conheceu.

Donzília era um bonito nome, não o negava, mas, dentro de si,

lamentava não ter herdado, antes, o nome de uma madrinha de batismo. Ou

lamentaria, em boa verdade, o facto de nunca ter merecido a bênção de um

batismo e, com ele, as graças de receber o nome de uma madrinha, como

acontecia com todas as suas colegas da escola lá da aldeia. Ter-se-ia sentido

mais orgulhosa da decisão da sua mãe, quando escolheu o seu nome, se esta

tivesse passado por um padre em vez de passar por uma parteira que nunca

conheceu. Havia de sentir o resto da vida que as atenções que recebeu da sua

mãe não foram mais que um espelho da decisão que levou à escolha

desamorosa do seu nome.

Apesar de a sua mãe lhe ter dado amor, aquele de quem só conseguiu

trazer um único e precioso filho ao mundo, a pele áspera do seu rosto e o peso

que carregava nos ombros faziam dela uma mulher de expressões firmes e

pouco dóceis. Sorria pouco, a mãe da pequena Donzília. Uma graça trocada

entre vizinhas, à porta da mercearia da aldeia, sobre os cortes de cabelo que o

barbeiro bêbedo inventava nos seus maridos, seria a única ocasião para ver o

seu rosto ressequido vergar-se um pouco.

Também a sua mãe teria sido assim com a sua idade e, também por

isso, só soube dar a mesma instrução e ensinar os mesmos modos ásperos.

Não seria diferente com a filha e com a neta e não conhecia outro modo de

educar que não fosse este, em que os afectos não importavam para fazer

crescer rapazes e raparigas e transformá-los em homens e mulheres capazes

de trabalhar.

O pai da pequena Donzília, entregue a uma casa de três mulheres,

metia-se pouco nos assuntos delas e na criação da sua única filha. Eram

coisas de mulheres e ele não se incomodava por o deixar entre elas. Apesar de

se falar lá pela aldeia que uma casa sem um filho rapaz estava condenada ao

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fim de um nome e de uma família, ele nunca tinha, verdadeiramente, pensado

em como seria importante ter um rapaz que o pudesse ajudar no campo, em

vez de ter a sua pequena Donzília, em casa, a aprender as coisas que as

mocinhas da sua idade têm de aprender sobre uma casa e as suas lides.

Olhava para a sua pequena como uma continuidade de si e tinha-lhe

verdadeira adoração mas, à semelhança da sua mulher, não sabia ou conhecia

a utilidade de demonstrar. Por vezes, por graça, chama-lhe “o meu rapaz” e lá

entre eles, nos dias mais leves, riam de olhos postos sobre a mesa ou com

uma mão em frente do rosto, a impedir que as risotas se alastrassem.

Apesar da rudeza da sua educação e da falta de um par de braços

quando caía de joelhos na terra e se magoava, a pequena Donzília não se

havia nunca de queixar das opções de vida que os seus pais tomaram por si.

Mais tarde, não muito mais, quando abandonassem a aldeia e aquela vida

entre pó e tristezas, a pequena Donzília haveria de perceber que os afectos

que não foram demonstrados pelos seus pais e pela sua velha avó, em forma

de beijos na testa antes de dormir, foram transformados num cenário de

possibilidades para que o seu destino, aquele que achava inevitável, pudesse

ter um infindável número de finais prováveis, em vez do único que lhe parecia

existir.

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Um primo do pai da pequena Donzília, um dos tantos que não conhecia,

porque há muito se lhe tinha perdido o rasto, havia-se mudado há muito tempo

para a capital e dele não se tinha sabido mais notícias. Julgava-se que o rapaz

se tinha desorientado em aventuras. Quando escreveu uma carta a pai da

pequena Donzília pensaram-no em apuros e que a carta seria desesperada e

com um pedido de auxilio camuflado. O espanto ficou-se nas suas caras

quando, no desenrolar da escrita, o primo relata com entusiasmo a

modernidade da vida em Lisboa, de como as pessoas se comportavam de

maneira diferente e, sobretudo, elogiava o mundo de facilidades, do seu novo

trabalho e do ordenado que não envergonhava ninguém. Aliciava o primo a

juntar-se a ele com a sua família e prometeu orientação na chegada à cidade,

um abrigo temporário na casa que dividia com mais dois colegas e ajuda para

procurar trabalho.

O pai de Donzília demorou um ano a decidir-se a carregar com a mulher,

a sogra, a filha e um par de malas, até Lisboa e começar uma vida nova. Mas

lá se decidiu e, com o consentimento entre dentes da mulher e uma

resmunguice rezada da sogra, lá meteram os pés dentro do comboio e os

corações fora do peito.

A pequena Donzília, ainda mal tinha acabado de aprender os números e

as letras, saiu de malas feitas com a sua família da aldeia onde viviam - um

bom pedaço para lá de Braga - forçados pelos curtos tostões e pelas

promessas de uma vida melhor na capital.

Não esperava nada. Ou esperava tudo com o desapego próprio de uma

criança da sua idade. Não percebia o que se seguiria ao arrumar de malas nem

a uma noite de nervos antes de partirem da aldeia mas soube apreciar a

excitação de andar de comboio pela primeira vez. De ver a paisagem mudar

por atrás das janelas da carruagem. De ouvir as conversas, atropeladas, em

voz alta. Nunca esqueceu a primeira vez que pisou a estação de comboios da

capital.

Deslumbrada com a gare de Santa Apolónia, com as pessoas

desconhecidas, com o rio, e com a tantas outras coisas que lhe eram novas,

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acabaria por não se dar conta que o primo do seu pai nunca chegou a aparecer

na gare para os receber e orientar. As promessas escritas no papel nunca se

haviam de concretizar. Por embaraço, e falta de dinheiro para os bilhetes de

volta, os seus pais encheram os peitos de ar e enfrentaram sozinhos a cidade

que vibrava, incógnita, para lá das grandes portas da estação de comboios.

Nunca se havia de compreender o que sucedera ao primo do pai. O

porquê de lhes falhar. Pensou-se ter acontecido uma tragédia mas, com o

passar dos anos e com o amargar de boca, percebeu-se não ter passado de

uma trapaça para lhe encobrir uma vida desalinhada. Na verdade, nunca

pensou que o primo ficasse interessado em se mudar para Lisboa e a carta não

teria servido mais do que para pintar um cenário de sonho e tranquilizar a

família que ainda lhe restava na aldeia. Quando o pai da pequena Donzília caiu

em si, sentiu-se tolo. Enganado pelo primo finório que morava na capital. A

cidade deturparia assim tanto as almas dos homens? Com os anos acabou a

perdoar a rasteira mas aprendeu a lição de não confiar num homem que

promete mais do que lhe é sabido poder.

A vida nova começava, assim, de maneira menos auspiciosa que teriam

sonhado mas não desistiram. Tinham uma pequena Donzília de olho neles, a

pedir-lhes uma oportunidade de se fazer mulher longe da ruralidade da aldeia.

Sabiam entre eles, que à noite, depois da pequena se deitar, trocavam

promessas de dar à filha a vida que não tiveram. E por ela, pelo futuro que lhe

desenhavam, não hesitaram em avançar para lá das portas da gare. Por isso

não tardou a que a mãe encontrasse trabalho em casa de uma família

abastada, como criada, e que o pai aprendesse o ofício de motorista. Parecia,

realmente, que trabalho não havia de faltar, assim a sorte e a saúde os

ajudasse. Lembraram-se mais uma vez do primo cobarde: pelo menos nisto

não lhes faltou à verdade.

A menina Donzília crescia sob os seus olhos cuidadosos dos pais e sob

o desafio de estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Não subiu na escolaridade

mas as suas mãos habilidosas encaminharam-na para um ofício que havia de

guardar para o resto da vida. Lamentava, ainda assim, não ter aprendido mais

que escrever umas linhas simples e fazer umas contas tortas. Não precisou de

mais na sua vida, é certo, mas quando olhava as filhas dos patrões dos seus

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pais, sabia que o seu lugar nunca seria o mesmo e que a falta de instrução não

a faria obter os mesmos vestidos, as idas ao teatro, e até os pretendentes, que

as outras raparigas que estudavam conseguiam ter.

Lembrava-se da avó repetir vezes sem conta, no alto da sua demente

idade, que só havia duas maneiras de se ser moça rica: ou se nascia rica ou se

casava rica. Em pequena não entendia o significado da sabedoria da sua velha

avó mas mais tarde percebeu, com a chegada à juventude e um desejo de se

integrar, que aquela lição era tão valiosa como o sentido da própria vida. Por se

lembrar tantas vezes desta regra de ouro, parecia esforçar-se cada vez mais

por deixar as asas dos pais e a condição de filha dos criados para traçar o seu

próprio destino e continuar a escrever a história próspera que os pais iniciaram

no dia em que chegaram a Lisboa.

Mas desde tenra idade não lhe sobraram alternativas que não fosse

começar a trabalhar com a mãe e ajudar na casa dos senhores ricos. A mesma

casa onde se confrontava, todos os dias, com a vida desafogada e feliz das

suas filhas que teriam também a sua idade. Com os projectos que os pais ricos

delas faziam, de as levar a fazer os estudos no estrangeiro, a arranjar belos

maridos e terem muito filhos rapazes, que dessem continuidade ao seu bom

nome.

A menina Donzília, também sonhava os sonhos das meninas ricas.

Acreditou até tarde que a vida lhe daria uma família farta e feliz, sem olhar a

oportunidades ou riquezas. Que olharia para o seu valor como moça prendada

e conhecedora de todas as obrigações de uma dona de casa.

Durante muito tempo, talvez demasiado tempo, cresceu no ofício de

serviçal em casa dos patrões dos pais mas mais tarde, na senda de encontrar

uma maneira de se libertar dali, abraçaria a arte de costurar - herdada pelo

gosto de sua mãe e de sua avó, mais que o gosto e aptidão para servir com os

modos finos com os quais não tinha nascido - e faria dela a sua profissão.

Apesar da vida de criada de lhe ter servido de polimento à rudeza que

lhe corria pelo sangue, não lhe bastou servir os outros para se querer tornar

senhora e não lhe chegava observar a vida sumptuosa que levavam, de longe.

Queria estar dentro dessa vida. Queria ser como aquelas jovens mulheres que

via passear pelas avenidas novas ou as que se sentavam nos bancos do

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Jardim da Estrela a comer um gelado de glacé, enquanto se distraiam em

risinhos e conversas informais com as amigas.

Donzília havia de fazer parte da cidade, pela qual se apaixonou no

primeiro piscar de olhos sobre o rio, e parecer uma das muitas jovens

senhoritas que não contavam os tostões para mandar fazer um vestido novo ou

comprar uma capeline de feltro. Na busca por essa vida confortável, a

costureira soube amealhar o conforto de uma vida parca mas feliz. Não lhe

faltou nada nos limites do razoável. Haviam de lhe faltar os amores e também

os filhos, que gostaria de ter tido para educar e levar a passear à Feira Popular.

Faltaram-lhe os laços de uma família criada por si e acabou envelhecendo em

toda a dignidade da solidão.

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Os anos pareceram correr, de modo injusto e desigual e, em menos de

um sopro, via um reflexo velho no espelho do quarto em vez da pele fresca e

rosada dos tempos em que a chamavam, legitimamente, de menina. Sabia que

a vida na cidade a tinha ajudado a manter um ar jovem até mais tarde mas que,

inegavelmente, a idade pesava independentemente da localização geográfica.

Com muito tempo livre, agora que já não recebia as visitas das clientes que lhe

encomendavam vestidos, ocupava a cabeça com suposições e perguntas para

as quais nunca obteria respostas e, não raras vezes, vagueava as ideias pelo

passado antes de chegar a Lisboa. Pensava nas pessoas que lá ficaram e de

como e a que ritmo teriam envelhecido. Questionava-se se também estariam

sós.

Imaginava mais vezes, agora que era velha, o que seria ter ficado pela

aldeia e ter-se feito mulher por lá. Enchia-se de uma certeza inabalável em

como, se tivesse ficado pela aldeia, não se sentiria tão só agora. Que sempre

teria umas vizinhas menos anónimas que aquelas com quem partilhava o

prédio onde morava. Mesmo os assuntos que nunca lhe foram caros passavam

a ser questionados. Chegava a sentir falta de um quintal onde pudesse plantar

umas flores, talvez umas ervas aromáticas, e onde pudesse passar tempo

entre a terra. Esquecia-se da importância que em tempos atribuíra à vida de

luxo e à necessidade vital de se integrar na cidade e de ter um grupo de

amigas que a sociedade reconhecesse como boas companhias. As amigas que

nunca teve. Com a idade, a experiência e os abanões da vida, as coisas

importantes da juventude não passam de bolhas de sabão.

Acabara a render-se à solidão da cidade. Não encontrou utilidade em

lutar. Mesmo inventando na sua cabeça que a vida na aldeia podia ter sido

mais branda com a sua solidão, sabia, dentro de si, que não teria feito sentido

regressar a um lugar onde não conhecia os caminhos. Sabia melhor o estigma

que a perseguiria por parte dos aldeões, que nunca olhariam como uma filha

da terra mas apenas como mais uma que os renegou por querer ser moderna.

A pequena Donzília nunca decidiu nada na sua vida e a D.ª Donzília

também já não. Não decidiu abandonar a aldeia, não foi ela que escolheu ir ver

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o rio e não foi, de modo algum, a pessoa que não constituiu família nem fez

amizades por vontade própria. Teria sido tudo tão diferente se a D.ª Donzília

não vivesse esquecida num prédio cinzento da imensa Lisboa...

Com o passar dos anos, e a chegada do peso às pernas, já não se

permitiam agora as muitas viagens de outrora, cima-abaixo, feitas à sua

habitação num penoso 4º andar e, por isso, as saídas começaram a rarear.

Contingências da vida! Bem o sabia. Nestas alturas a mente afundava-se

novamente na tal família que não construiu e imaginava quão diferente podia

ser aquela solidão se os muitos filhos e netos, que gostaria de ter tido, a

visitassem. Talvez pudesse voltar ao Jardim da Estrela se um par de braços a

ajudassem a descer do seu 4º andar. Mas não os tinha e, ao abrir de olhos,

realizava-o de forma conformada e condescendente.

Quando se sentava no seu velho cadeirão de veludo, em tons de bege já

coçado, e o sol lhe surripiava o rosto por entre as cortinas de musselina,

transportava-se mais uma vez até à margem do rio, devaneando que os seus

reflexos prateados e a brisa fresca lhe limpavam as faces e acalmavam as

rugas. Ficava ali, entregue ao calor reconfortante do sol da manhã, aquecido

pelos vidros velhos das janelas.

Sempre que os olhos se fechavam de moleza, era atraída pelas

memórias que, inexplicavelmente, teimava em guardar como as melhores da

sua vida. Recordava, repetidamente, a sua chegada a Lisboa. Talvez fossem

mais que imagens que revia como um filme mudo. Às imagens, que já nem

conseguia organizar com rigor, juntava-lhes os cheiros, os sons, a luz, que

nesse dia foram, com certeza, mais intensos que em todos os outros que se

seguiriam. Nem os amores e desamores, chorados e sofridos, na época das

ilusões, lhe causavam tantas emoções. Nunca haveria de saber explicar a si

mesma a razão para tal. Interrogava-se, de tempos em tempos, se associaria a

chegada a Lisboa ao últimos dias de vida da sua velha avó, se à novidade da

agitação a que entretanto se habituou ou se à simples magia de ser criança

numa história que não compreendia totalmente.

Perdia horas sem fim, recostada no seu cadeirão de veludo bege, a

juntar imagens, a pensar na vida como ela foi, como poderia ter sido, e a

pensar no pouco que lhe havia de restar para viver, dentro do pequeno

apartamento num 4º andar.

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Sentia-se tão bem naquele vaguear descansado, sem as horas a contar,

que muitas vezes se esquecia de abrir os olhos. Ficava ali, quase acordada,

sentada, com a companhia do som de fundo da televisão, mas de olhos

fechados. Deixava-se perder nos dias da cidade e não conseguiu evitar pensar,

como seria a sua vida, agora, se vivesse na sua distante aldeia, para lá de

Braga. Como seria ser-se velho e morrer-se por lá.

Muitos dias antes do dia em que imaginaria poder morrer, a D.ª Donzília

passava em revista uma preocupação, um lamento constante, que acabou por

não conseguir atenuar enquanto pode. Pensava muitas vezes, com a

tranquilidade de quem conhece a inevitabilidade do fim da vida, no dia em que

a morte lhe chegaria, de como seriam os preparativos do seu funeral, de

quantas pessoas iriam e se conseguiriam avisar atempadamente todas as

aquelas que ela gostaria que estivessem presentes. Mentalmente revia a roupa

que queria levar vestida: um fato de saia e casaco que ela mesma tinha feito

alguns anos antes e que gostava de levar à missa. Já a mortalha dos seus pais

tinham merecido os seus maiores cuidados e, sabendo-se sozinha, importava

pensar no dia em que chegasse o seu fim.

Mas não estava em paz com um sentimento. Algo antigo, tão antigo

quanto a sua própria existência, e que a sua mãe lhe tinha destinado não ter: o

sacramento do batismo.

A D.ª Donzília era católica por vontade própria e não por educação. Ia

todos os Domingos à missa, rezava todos os dias, era uma crente, uma pessoa

de fé e, no entanto, nunca concretizou o desejo de se batizar e garantir, assim,

a entrada na vida eterna pelas mãos do Deus a quem sempre fora devota.

Na vaguidão dos seus dias longos, e de todo o tempo livre para magicar,

acabava sofrida com a ideia de não poder ser enterrada por um padre, com

direito à extrema unção, e não por uma qualquer parteira de funerais.

Afogueava-lhe o peito pensar que podia morrer sozinha sem a companhia de

Deus. Sem alguém por perto para a receber e que ela conhecesse bem.

A crueldade do seu destino, e as muitas histórias escritas e rasuradas

sobre as possibilidades de desfechos da sua vida, acabaram por traçar um fim

sem glória para a D.ª Donzília. Perdeu-se o sentido aos planos que fazia para o

dia em que tal iria acontecer. Sem preparativos, sem a mortalha que costurou,

sem família ou amigos. Sem batismo.

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Num dia, como tantos outros dias, a D.ª Donzília, simplesmente, já não

despertou. Num dia, esse agasalho que eram as imagens do passado e aquele

sol de tons torrados acarinharam-lhe tanto o corpo que a alma se desprendeu.

Ficou-se tão sossegadamente no velho cadeirão que a sua expressão mais

parecia a de quem se delicia com uma sesta numa tarde de Domingo.

A D.ª Donzília, do 4º- Esquerdo, deixou vago um apartamento sem

herdeiros. Ninguém brigou por bens e teve o funeral digno, modesto e sem

preparativos que a vida justamente lhe retribuiu.

As flores nunca haveriam de abundar porque a família, distante em

Braga, também o era em grau de parentesco e não se havia de apoquentar

com sentimentos de última hora. E as poucas amizades, feitas em todos estes

anos na capital, há muito que não aguentaram o peso da idade e já tinham

partido.

Após trezentos e setenta e cinco dias decorridos sobre a sua morte, o

corpo da D.ª Donzília foi retirado de sua casa. O senhorio, alarmado por um

ano de rendas em atraso nem questionou, ao primeiro mês em falta, a

regularidade exemplar dos quarenta anos que lhe antecederam.

Após trezentos e setenta e cinco dias, a D.ª Donzília lá teve um par de

braços para a ajudar a descer do seu 4º andar.

Mas desta vez, lamentavelmente, não seria para voltar a ver o rio.

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Créditos: Título: Morrer em Lisboa Textos do Blog: “Dias Cães” Endereço: http://diascaes.blogspot.com Autora: Inês Ruim Ano de publicação online: 2013, Setembro