Morrer em vida é fatal - Martha Medeiros
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Transcript of Morrer em vida é fatal - Martha Medeiros
Nunca esqueci de uma senhora que, ao responder por quanto tempo pretendia
trabalhar, respondeu com toda a convicção: “Até os 100 anos”.
O repórter, provocador, insistiu:
“E depois?”.
“Ué, depois vou aproveitar a vida”.
É de se comemorar que as pessoas aparentem ter menos idade do que realmente têm e que mantenham a
vitalidade e o bom humor intactos – os dois grandes elixires da juventude.
No entanto, cedo ou tarde (cada vez mais tarde, aleluia), envelheceremos todos.
Não escondo que isso me amedronta um pouco.
Ainda não cheguei perto da terceira idade,
mas chegarei, e às vezes me angustio por
antecipação com a dor inevitável de um dia
ter que contrapor meu eu de dentro com
meu eu de fora.
Rugas, tudo bem.
Velhice não é isso, conheço gente enrugada que está saindo da
faculdade.
A velhice tem armadilhas bem mais elaboradas do que vincos em torno
dos olhos.
Ela pressupõe uma desaceleração gradativa: descer escadas de forma
mais cautelosa, ser traída pela memória com mais regularidade,
ter o corpo mais flácido, menos frescor nos gestos, os órgãos internos não respondendo com tanta presteza,
o fôlego faltando por causa de uma ladeira à toa, ainda que isso nem
sempre se cumpra: há muitos homens e mulheres que além de um ótimo aspecto, mantêm uma saúde de
pugilista.
A comparação com os pugilistas não é de
todo absurda: é de briga mesmo que
estamos falando.
A briga contra o olhar do outro.
Muitos se queixam da pior das invisibilidades:
“Não me olham mais com desejo”.
Ouvi uma mulher belíssima dizer isso num programa de tevê, e eu pensei:
não pode ser por causa da embalagem, que é tão charmosa.
Deve estar lhe faltando ousadia, agilidade de pensamento, a mesma
gana de viver que tinha aos 30 ou 40.
Ela deve estar se boicotando de alguma forma, porque só cuidar da embalagem
não adianta, o produto interno é que precisa seguir na validade.
Quem viu o filme “Fatal” deve lembrar do professor sessentão, vivido por Ben
Kingsley, que se apaixona por uma linda e jovem aluna (Penélope Cruz) e passa a ter com ela um envolvimento que lhe serve
como tubo de oxigênio e ao mesmo tempo o faz confrontar-se com a própria finitude.
No livro que deu origem ao filme (O Animal
Agonizante, de Philip Roth), há uma frase que
resume essa comovente ansiedade de vida:
“Nada se aquieta, por mais que a gente
envelheça”.
Essa é a ardileza da passagem do tempo: ela não te sossega por dentro da mesma
forma que te desgasta por fora.
O corpo decai com mais ligeireza que o espírito, que, ao contrário, costuma
rejuvenescer quando a maturidade se estabelece.
Como compensar as perdas inevitáveis que a idade traz? Usando a cabeça: em vez de lutarmos para não envelhecer, devemos
lutar para não emburrecer.
Seguir trabalhando, viajando, lendo, se relacionando, se interessando e se
renovando. Porque se emburrecermos, aí sim, não restará mais
nada.
FORMATAÇÃO: Mima (Wilma) Badan
Texto publicado no jornal ZERO HORA em 03/05/2009
MÚSICA: My way
Interpretação: Frank Sinatra
IMAGENS: Retrato de Cora Coralina
(Repasse com os devidos créditos)
www.mimabadan.blogspot.com
www.slideshare.net/mimabadan