Morte Cerebral Como Presente

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- 137 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... A MORTE CEREBRAL COMO O PRESENTE PARA A VIDA: EXPLORANDO PRÁTICAS CULTURAIS CONTEMPORÂNEAS BRAIN DEATH AS A PRESENT FOR LIFE: EXPLORING CONTEMPORARY CULTURAL PRACTICES LA MUERTE CEREBRAL COMO UN REGALO PARA LA VIDA: EXPLORANDO LAS PRÁCTICAS CULTURALES CONTEMPORÁNEAS Mara Ambrosina Vargas 1 , Flávia Regina Souza Ramos 2 1 Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atua no Centro de Terapia Intensiva Adulto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Membro do Grupo Práxis na UFSC. 2 Enfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem pela UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC. Pesquisadora do Grupo Práxis na UFSC. Endereço: Mara Ambrosina Vargas. R. dos Pessegueiros, 155 92.320-360 - Harmonia, Canoas, RS E-mail: [email protected] RESUMO: O ensaio reflexivo aborda a morte cerebral e a doação de órgãos situando-as como práticas culturais contemporâneas e tendo como suporte teorizações que problematizam o corpo e o sujeito na pós-modernidade, especialmente estudos pós-estruturalistas. São destacadas as relações entre as di- mensões culturais, científicas, filosóficas e jurídicas que constituem um campo de contestações e nego- ciações, onde se dão as decisões, normas e aparatos tecnológicos em torno da morte, doação e trans- plante de órgãos. ABSTRACT: This reflexive essay approaches brain death and organ donation, establishing both as an contemporary cultural practice. It is based on the theorization that argues for the body and the subject in the postmodernism, especially in post structural studies. This study also highlights the relationships between cultural, scientific, philosophical and legal dimensions that constitute a field of contestation and negotiation in which the decisions are made towards norms and technological devices concerning death, organ donation and organ transplantation. RESUMEN: El ensayo reflexivo trata sobre la muerte cerebral y la donación de órganos situándolas como prácticas culturales contemporáneas, cuyo soporte está en las teorizaciones que problematizan el cuerpo y el sujeto en la post-modernidad, en especial los estudios post-estructuralistas. Se destacan las relaciones entre las dimensiones culturales, científicas, filosóficas y jurídicas, quienes constituyen un campo de contestaciones y negociaciones, en donde ocurren las decisiones, las normas y los aparatos tecnológicos respecto a la muerte, donación y el trasplante de órganos. PALAVRAS-CHAVE: Morte cerebral. Cultura. Bioética. En- fermagem. KEYWORDS: Brain death. Culture. Bioethics. Nursing. PALABRAS CLAVE: Muerte cerebral. Cultura. Bioética. Enfermería. Artigo original: Reflexão teórica Recebido em: 08 de agosto de 2005 Aprovação final: 17 de fevereiro de 2006

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artigo sobre a questão da doação de orgãos

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- 137 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.A morte cerebral como presente para a vida...A MORTE CEREBRAL COMO O PRESENTE PARA A VIDA: EXPLORANDOPRTICAS CULTURAIS CONTEMPORNEASBRAIN DEATH AS A PRESENT FOR LIFE: EXPLORING CONTEMPORARY CULTURALPRACTICESLA MUERTE CEREBRAL COMO UN REGALO PARA LA VIDA: EXPLORANDO LAS PRCTICASCULTURALESCONTEMPORNEASMara Ambrosina Vargas1, Flvia Regina Souza Ramos21 Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educao pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atua no Centrode Terapia Intensiva Adulto do Hospital de Clnicas de Porto Alegre. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico (CNPq). Membro do Grupo Prxis na UFSC.2 Enfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem pela UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do Programade Ps-Graduao em Enfermagem da UFSC. Pesquisadora do Grupo Prxis na UFSC.Endereo: Mara Ambrosina Vargas.R. dos Pessegueiros, 15592.320-360 - Harmonia, Canoas, RSE-mail: [email protected]: O ensaio reflexivo aborda a morte cerebral e a doao de rgos situando-as como prticasculturais contemporneas e tendo como suporte teorizaes que problematizam o corpo e o sujeito naps-modernidade,especialmenteestudosps-estruturalistas.Sodestacadasasrelaesentreasdi-menses culturais, cientficas, filosficas e jurdicas que constituem um campo de contestaes e nego-ciaes, onde se do as decises, normas e aparatos tecnolgicos em torno da morte, doao e trans-plante de rgos.ABSTRACT: This reflexive essay approaches brain death and organ donation, establishing both as ancontemporary cultural practice.It is based on the theorization that argues for the body and the subjectin the postmodernism, especially in post structural studies. This study also highlights the relationshipsbetween cultural, scientific, philosophical and legal dimensions that constitute a field ofcontestationand negotiation in which the decisions are made towards norms and technological devices concerningdeath, organ donation and organ transplantation.RESUMEN: El ensayo reflexivo trata sobre la muerte cerebral y la donacin de rganos situndolascomo prcticas culturales contemporneas, cuyo soporte est en las teorizaciones que problematizan elcuerpo y el sujeto en la post-modernidad, en especial los estudios post-estructuralistas. Se destacan lasrelacionesentrelasdimensionesculturales,cientficas,filosficasyjurdicas,quienesconstituyenuncampo de contestaciones y negociaciones, en donde ocurren las decisiones, las normas y los aparatostecnolgicos respecto a la muerte, donacin y el trasplante de rganos.PALAVRAS-CHAVE: Mortecerebral. Cultura. Biotica. En-fermagem.KEYWORDS:Braindeath.Culture. Bioethics. Nursing.PALABRAS CLAVE: Muertecerebral.Cultura.Biotica.Enfermera.Artigo original: Reflexo tericaRecebido em: 08 de agosto de 2005Aprovao final: 17 de fevereiro de 2006- 138 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.Vargas MA, Ramos FRSACESSO AO TEMAA aproximao a este tema pode ser considera-dadeduasperspectivas.Aprimeira,reportaaumainseroemestudosacadmicossobreaintensifica-o da tecnologia e influncia desta sobre o sujeitotrabalhador da enfermagem e sobre a qualidade de vidadossujeitospacientes;osdirecionamentospossveisna problemtica da doao e dos transplantes de r-gosdadospelabioticaepelasre-significaesdoviver e morrer, da sade e doena em tempos denomi-nados ps-modernos. J a segunda, relaciona-se, justa-mente, ao aporte terico utilizado para refletir sobreestas temticas. Ou seja, para o desenvolvimento des-tareflexo,buscou-seapoionateorizaoculturaleno trabalho de autores e autoras, entre outros MichelFoucault, que tm problematizado a noo de corpo ede sujeito, na ps-modernidade, a partir de pressupos-tos tericos do ps-estruturalismo. Tais pressupostosso assumidos por se entender que noes como hu-mano, tecnologia, vida, morte, sade e doena s po-dem ser significadas culturalmente, j que so produ-zidas no mbito de prticas discursivas especficas. Ditodeoutromodo,apreende-sequetaisprticasdiscursivas, institudas por e instituntes de relaesde poder, fazem mais do que simplesmente designar etranscreveroreal;elascriamelegitimamaquiloquepassa a ser reconhecido como sendo a realidade.1Convm, ainda enfatizar, a assertiva de que atu-almentequaseimpossvelescaparmosdacultura.Nesta perspectiva, tal exploso da cultura explica-sena medida em que a mesma est atrelada a assuntos deimportncia emprica. Isto , entende-se que as prti-cas culturais e institucionais esto intrinsecamente pre-sentes em todos os campos da vida social. Na rea datecnobiomedicina,porexemplo,ocrescimentodosmeios de comunicao, as novas tecnologias de ima-gem e de interveno sobre o corpo humano, mesmoque possam traduzir avanos tecnolgicos cientficos,tm um profundo impacto nas maneiras como se or-ganiza a prpria vida e nas formas como as pessoas serelacionamumascomasoutras.Logo,deumpapelsecundrio em relao cincia, a cultura veio ocuparum papel constituinte nas cincias sociais. Em vez deservistacomoumameraleiturasobreosprocessoseconmicos ou polticos, colocada no lugar de outrointerveniente sobre o que era realmente fundante, acultura agora considerada como sendo constitutivado mundo social, tanto quanto tais processos econ-micos e polticos. No apenas isto; na perspectiva te-rica, ora operada, a cultura assume uma centralidade,j que se parte-se do argumento de que todas as prti-cas sociais so prticas de significao, fundamental-mente culturais. Entende-se, pois, que toda conduoda prtica social remete a certos significados, ou a con-dies de pensar significativamente sobre ela. A pro-duo de significados sociais , portanto, um requisitonecessrio ao funcionamento de qualquer prtica so-cial e uma explanao das condies culturais das pr-ticas sociais precisa tomar parte da explanao socio-lgica de como elas funcionam.2Isto posto, o propsito deste ensaio reflexivo o de a partir do tema contemporneo da morte cere-braledadoaodergos,demonstrarnoapenascomo e por qu prticas culturais e institucionais vie-ram desempenhar um papel to crucial na vida no pre-sente,mastambmintroduziralgunsdosconceitoscentrais de anlise envolvidos na realizao de um es-tudo cultural. Assim, busca-se sinalizar que as frontei-rasondeasdiferenasentrevidaemorte,corpoemente, humano e tecnologia, natural e artificial, org-nico e inorgnico so definidas, tornaram-se ambguas.Cientes de que tal ambigidade no explcita, o exer-ccio que se faz o de, justamente, pretender dar-lhevisibilidade.Considera-se,tambm,apertinnciadepensar as novas tecnologias, as que possibilitam defi-nir a morte cerebral para uma efetivao da doao dergosnasociedadeocidental,comoexpressasatra-vs de pontos de vista multifacetados. Isto , que taistecnologias tm sido abordadas por diferentes, contra-ditrias e complementares perspectivas, entre estas: acultural, a cientfica, a filosfica, a social, a jurdica, aeconmica e a poltica, cada qual, inserindo a seu modo,tambm, um vis biotico. Infere-se que tais perspec-tivas tornaram-se participantes ativas no processo denaturalizao de um conjunto de elementos que atual-mentecompemasdecises,asnormaseasrotinasde programas e polticas que tratam da morte, da doa-o e do transplante de rgos. Esse o elemento quese quer destacar: tal processo de naturalizao, por si,no bom ou ruim, intencional ou espontneo, certoou errado, justo ou injusto. , pois, reflexo da comple-xidade, determinaes e contingncias das prticas desade na contemporaneidade.O QUE TORNA A MORTE CEREBRAL EA DOAO DE RGOS PARTE DE NOS-SA CULTURA?Pode-se dizer que a vida e a morte foram ques-tionadas e pensadas nas mais diversas culturas e pers-pectivasfilosficasereligiosas,atravsdostempos.- 139 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.A morte cerebral como presente para a vida...Alm disso, nunca antes podem ser encontradas tantasmaneiras de significar tais noes dentro de uma mes-maracionalidade,acientfica.Talvezissoexpresseaespecificidade desta poca, na medida que a medicinaavanada, a que inova em transplantes de rgos e uti-liza procedimentos de reanimao, se v confrontadaa uma relativizao da definio de morte.Viver e morrer, fronteiras radicalmente rompi-das com a intensificao da tecnobiomedicina? Vida emorte, pensados e vividos em suas conexes com asmquinas do incio sculo XXI, tornam ambguas asdiferenas entre aquilo que se autocria (por exemplo,ohumano)eaquiloqueexternamentecriado(porexemplo, esse mesmo humano com um corao doa-do por outro humano). Em tempos atuais, parece quepesa mais ainda o que pode, afinal, significar a mor-te quando se trata de produzir sentidos sobre o que,afinal, viver. Paradoxalmente, quanto mais se envol-ve nesse empreendimento, mais a definio do que morrer, afinal, escapa.1Concomitante ao exposto, explorar o advento dasnovas tecnologias na constituio de subjetividades podefazer pensar ontologicamente, uma vez que aquilo quecaracteriza a vida, o ser vivo, faz problematizar aquiloque caracteriza a morte. Por exemplo, diante de um/apaciente com diagnstico de morte cerebral, medianteessa concepo de morte-morrer, este/a ainda teria seusrgosvivos;ele/elaseria,portanto,umserquecon-tm, em si, elementos prprios de quem est vivo e, aomesmo tempo, elementos que sustentam a sua morte.1Como j referido, a morte foi pensada de muitasformas,nasdiferentessociedadeseculturas.Nessadireo,estudiososfazemumaabrangentecontextualizao histrica de como a morte tem sidopensada e vivida pelo homem, ocidental, desde a anti-gidade at a contemporaneidade.3,4 Segundo tais es-tudos, na antigidade, a morte era experimentada nocoletivo e na vida cotidiana como fato previsvel mas,tambm, misterioso. A morte, ao ser vivida como umacontecimento menos privado, acarretava um contatomaisestreitocommoribundose,porisso,imputavaaos indivduos a crena da prpria morte.4 Para almdisso, a proximidade da morte manifestava-se atravsde pestes, guerras e de uma medicina ainda incipiente,quando comparada do sculo XXI. O paciente ter-minal da sociedade medieval, seja por qual fosse a causaou patologia, tinha uma morte considerada natural e,muitas vezes, no diagnosticada.5Outro aspecto importante desse perodo era o fatode que a morte muitas vezes se fazia anunciar: ora comsinaisoupremoniessobrenaturais,oracomsinaisnaturais. Assim, frente a essas premonies e naturali-dade da morte, as pessoas preparavam-se para morrer.Em seu leito de morte, eram assistidas e acalentadas,sem que nenhum interdito interrompesse esse processode morrer. Como resultado, nessas sociedades tradicio-nais, terminado o funeral, terminava a desolao.3:16De Homero a Tolstoi, a expresso constante deuma mesma atitude global perante a morte permitiria atentao de pensar em uma continuidade nos modos deconceb-la e viv-la nesse perodo de quase dois milni-os. Em contrapartida, a morte estaria agora to apagadados costumes das sociedades civilizadas que tornar-se-ia difcil imagin-la e compreend-la. A atitude antiga,em que a morte era ao mesmo tempo prxima, familiare menos temida ope-se, demasiadamente, atual, emque ela parece causar tanto medo que j no se ousariapronunciar o seu nome: por isso que, quando cha-mamos a esta morte familiar a morte domada, no en-tendemos por isso que antigamente era selvagem e quefoi em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo con-trrio, que hoje se tornou selvagem quando outrora noo era. A morte mais antiga era domada.3:40Num contraponto posio deste autor, susten-tada por sua anlise da narrativa de Tolstoi sobre o pro-cesso de morrer do servo e do senhor,3 aponta-se o ar-gumento que no se pode negligenciar a conexo entreo modo de viver e o modo de morrer de um e de outro,e que talvez Tolstoi isso quisesse demonstrar, ao enfatizaressa diferena de conduta perante a morte do servo edo senhor.4 Assim, defendido que seria interessantefazer um levantamento de todas as crenas que as pes-soas mantiveram ao longo dos sculos para habituar-seao problema da morte e sua ameaa incessante a suasvidas; e ao mesmo tempo mostrar tudo o que fizeramumas s outras em nome de uma crena que prometiaque a morte no era um fim e que os rituais adequadospoderiam assegurar-lhes a vida eterna.4:12Pode-se apreender dessa argumentao que, maisdo que caracterizar o processo de morte-morrer comosendo mais natural at meados do sculo XX, im-portanterelativizaraidiadeque,necessariamente,todos os indivduos e, em especial as culturas de queesses faziam parte, aceitassem a morte passivamente.O que se pode dizer que as formas de morrer e dedefinir a morte esto limitadas s possibilidades de cadapoca. Ento, desde o final do sculo XX, diante deiniciativascomoasdesenvolvidaspelatecnocinciacontempornea, a morte evidencia mudanas em suasconfiguraes. Isto , essa passou a ser encarada como- 140 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.Vargas MA, Ramos FRSumadisfunopassveldeserevitadaou,pelome-nos, postergada, ampliando o sentido de poderio tc-nico, to forte na modernidade.6:86 E nessa possibi-lidade de intervir, mais ativamente, sobre o processode morrer que se pode localizar uma descontinuidadenoprocessodemorte-morrer.Ouseja,oaprimora-mento da tecnobiomedicina estabeleceu condies quepermitemintervirsobreamortedasmaisvariadasmaneiras. O indivduo hospitalizado, diferente das so-ciedadesantigas,notemmaisacertezadequevodeix-lo morrer. Na dvida, mdicos e enfermeiras seprecipitam sobre o morrer dos moribundos, impedin-do-o, prorrogando-o, desfigurando-o.1O objetivo primeiro do atendimento a um/a pa-cienteamanutenodavida.Osprofissionaisdesade so preparados para a manuteno da vida, tendodificuldadesparalidarcomsituaesdemorte-mor-rer.5:14 Ou seja, o/a paciente de hoje, com diagnsticose hipteses prognsticas definidas, dificilmente ter mor-te natural. Ele/ela tem grandes possibilidades de pas-sar por respirao artificial, filtrao renal, quimioterapia,drogas vasoativas, reanimao cardiorrespiratria, den-tre os inmeros recursos existentes.5:14A imortalidade est baseada menos na aprecia-o do que seja vida e mais no medo da morte. Seriaum temor que, nesse caso, estaria centrado na imagemantecipada da morte. Estaramos diante de uma socie-dade que busca incessantemente a imortalidade. Nes-sa perspectiva, a mortalidade tornada annima, es-condida, e a imortalidade que visibilizada,7 j queconsidera-se cada vez mais normal substituir o direi-to sade pelo direito de no mais morrer.8:23 A cin-cia criou a vida crnica, e a ambio de limitar a morte o outro lado da moeda da vontade de tornar a vidailimitada e infinda.Analisando a relao do viver e do morrer como poder, enfatiza-se na literatura que, de maneira ex-trema, se poderia crer que hoje a morte mais objetodetabudoqueosexo.9Comesseentendimento,relacionado o ocultamento da morte a uma transfor-mao das tecnologias de poder. At o sculo XVIII, amorteerademasiadamentevalorizadaeritualizadaporquesetratavadamanifestaodeumapassagemde um poder ao outro: do poder do soberano terrestreaopoderdosoberanoceleste.Deumdireitocivilepblico, de vida e morte, a um direito que era de vidaeterna ou de eterna condenao. Prosseguindo nessaargumentao,refere-sequeasatuaistecnologiasdepoder biopoltico tomam como alvo a vida, na medidaem que a velha potncia da morte que simbolizava opoder soberano agora, cuidadosamente, recoberta pelaadministraodoscorposepelagestocalculistadavida.10:131 Nesta direo, o biolgico reflete-se no po-ltico, pois o fato de viver cai, em parte, no campo decontrole do saber e da interveno do poder. A morte o limite, o momento que lhe escapa.10:130 Terminadaa vida, termina o poder, pois a morte encontra-se forada capacidade de ao do poder. O poder, incapaz dedominaramorte,dominaramortalidade.H,por-tanto,umprocessodeexclusodamortecomumaconcomitante valorizao da imortalidade, como pos-sibilidade de uma permanncia da ao do poder. Tal-veztalanlisedeestudo9ajudeaexplicaraatualdesqualificaodamorte,marcadapelodesusodosrituais que a acompanhavam.Destaanlisepode-selanaropressupostodeque a tecnobiomedicina s exerce seu poder sobre amorte, como diria, exercendo seu direito de prolongaravida,otimizandooudefinindoregularidadeseregulaes para o que se pode caracterizar como o es-tado de vida.9 Nessa perspectiva de valorizao da vida,a medicina fracassa se, e quando, a morte ocorre. Elapareceexercercadavezmenosodireitodedeixarmorrer e cada vez mais o direito de intervir para fazerviver.Aritualizaorecai,agora,sobreacapacidadede promover novos arranjos que, interminavelmente,sustentemavidae,assim,opoder.Controlaravidaimplica constantemente ressignificar a morte e, nessadireo, o discurso cientfico sobre a morte tem sidoarticulado na confluncia dos discursos mdico (comseusdesdobramentosnatecnobiomedicina),jurdicoe tico. E assim, chega-se a morte na terceira pessoa, amorte em geral, a morte abstrata e annima, um obje-to como outro qualquer, um objeto que pode ser des-crito e analisado. Para alm disso, chega-se tambm aum processo permanente de aprendizado, ora sobre asreconceitualizaesdemorte-morrer,oraacercadasmaneiras de interromp-la ou, se for o caso, decret-la. A esse respeito, alguns especialistas tm sido con-vocados para legitimar esse discurso cientfico sobre amorte, por exemplo, o mdico neurologista, para diag-nosticar uma morte enceflica.1Estudosqueutilizamdocumentosdahistriarecente e materiais publicados na mdia contempor-nea, demostram o esforo para tornar inquestionveis,dentro do crculo profissional mdico, os argumentosutilizadosparaainstitucionalizaoelegitimaodamorte cerebral como sinal inequvoco de cessao davida no corpo humano (assim como os conceitos demortevegetativaedeparadadocoraoedospul-- 141 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.A morte cerebral como presente para a vida...mes, seguidos por sua rotinizao). Tal desejo de de-finir a vida e a morte como conceitos cientificamentecomprovveis e como categorias verificveis, tm fo-mentado discusses e esforos em todo o mundo.11,12Como as/os profissionais enfermeiras/os se re-lacionam com o processo de morte e morrer e de do-ao de rgos? pertinente lembrar que tais profissi-onais esto diretamente implicados nestes processos,ao menos pelas seguintes evidncias: conectam paci-entesadiferentesequipamentosparamant-los/lasvivos/as; detectam limiares tnues e deslizantes entreo viver o e morrer quando esto conectadas a diferen-tesmquinas;cuidamdos/dasreceptores/asder-gos de outro ser humano com o objetivo de que ob-tenham uma sobrevida; conservam pacientes doado-res/as de rgos conectados/as a vrias mquinas paraamanutenodascondiesideaisparadoarseusrgos a outro(s) ser(es) humano(s); participam ativa-mente do processo de definio do tipo e do momen-to da morte, justamente porque esto amparadas poruma infinidade de protocolos assistenciais que os au-xiliam,oumelhor,osconduzem,indicandoqualomanejo destas situaes. E, mais recentemente, inte-gram a equipe de captao de rgos.Nessa perspectiva, a discusso da morte permi-te assinalar e, atravs desse procedimento, questionareproblematizaralgumaspolaridades,taiscomo:asrelaes entre a mente e o corpo; a morte cerebral e amorteorgnica;oreverssveleoirreverssvel;os/aspacientes vivos/as e os corpos mortos; o/a receptor/avivo/aeo/adoador/acadver;aavaliaoclnicada morte e a avaliao tecnolgica da morte; as deci-ses mdicas e as opinies e valores; e o/a especialistacientfico/aeos/asoutros/asespecialistas.Permite,tambm, operar com essas dicotomias para coloc-lassob tenso e, assim, demonstrar a inexistncia da pos-sibilidadedeumadelimitaoentresuasfronteiras,obrigandoconvivnciacomtaisrelaesdeformaambivalente, polissmica e polmica.1Um tema j tocado, e que agora pode ser reto-mado, o da ntima relao entre as polticas de mortee as polticas de transplante. De certa maneira, poss-vel afirmar que a morte cerebral est sendo estabelecidaa partir de, e em funo de critrios e convices deri-vados da necessidade de conseguir mais rgos e, porextenso, mais vida.Morte cerebral ou morte enceflica uma defini-o que comeou a ser utilizada, na dcada de 60, nosEstados Unidos e na maior parte da Europa, para faci-litar a doao de rgos e justificar o desligamento dosventiladores mecnicos. O mais importante que temsido possvel sustentar uma pessoa com diagnstico demorte-cerebral por algumas horas, semanas e, mais re-centemente, por perodos mais longos de tempo. Medi-anteessesavanostecnolgicos,muitaspessoascommorte cerebral mantm seus coraes batendo natu-ralmente.Algumasvezes,quandoumcoraopra,ele pode ser reanimado, ou mquinas podem fazer essepapel e, nesse caso, esses corpos so chamados por al-guns mdicos de cadveres sem batimentos.Nacitao,MorteenceflicaMORTE![...]declarar o paciente CADVER, corpo, afastar as fal-sas esperanas!13:216 evidencia-se um esforo em es-tabelecer uma uniformidade em relao a como tra-taromomentoemquediagnosticadaumamorteenceflicaaomesmotempoemquesebusca,tam-bm, dirimir qualquer dvida sobre como proceder,nesse caso. No entanto, as palavras destacadas peloautor no conseguem escamotear toda a tenso queatravessaossignificadosqueamorteassumeemnossocontextocultural.Acitaotambmpareceendossaropressupostodequedeterminadostiposdemorterecebemumaabordagemmai sintervencionista,nosentidodeestabelecer,dema-neira mais imediata, o momento em que a vida cessaeseinstalaamorte.Nocasoemquesto,amorteenceflica tratada com um tipo de morte que ne-cessita dessa imediatez e exatido.Uma investigao etnogrfica12 comparou a re-percussodadefiniocientficademortecerebralemumpasocidentalenoJapoeconcluiuqueosnorte-americanosadotamadefiniocientficademorte, que discutida pelos e entre os/as cientistas,na perspectiva da valorizao do transplante e apro-veitamento de rgos e com nfase no/a receptor/a,idia prtica de chances de vida. J os japoneses teri-am uma viso mais holista da morte e no incorpo-ram tanto o dualismo mente/corpo. As maneiras delidar com a morte so discutidas publicamente, e osjaponesesnoaceitamcomonaturalaviolaodocorpodeum/apossveldoador/a,preocupando-se,inclusive,maiscomo/adoador/adoquecomo/areceptor/a. No entanto, destaca-se o fato de que tan-to os japoneses quanto os norte-americanos, com suasperspectivasaparentementedivergentes,nofogemaoscritrioscientficos,jqueosespecialistasjapo-neses da terapia intensiva tambm no problematizamoscritriosquepermitemestabeleceramortecere-bralcomoindicativoirreversveldequeamorteseaproximaou,inclusive,jchegou.Almdisso,elestambm analisam a morte cerebral como sendo algo- 142 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.Vargas MA, Ramos FRSdistinto de outras situaes em que o crebro seve-ramente afetado, incluindo um estado vegetativo per-sistente. Mas eles foram alm, pois (os japoneses) as-sumemestabelecerodiagnsticodemortecerebralsustentados nas evidncias criadas tecnologicamente,secundarizando um julgamento clnico de morte. En-tretanto, na situao do Japo, o que muda a manei-ra de lidar com o corpo aps a morte, e a determina-o de quem est autorizado a dizer o que fazer comesse corpo aps a morte. Ou seja, h outros/as espe-cialistas, alm dos/as que seguem os princpios cien-tficos e racionais a quem se atribui uma legitimidadecapaz de fazer com que sejam ouvidos nesse campode disputas. Em suma, foi demonstrado como sabe-res e valores culturais e sociais, acerca do mesmo even-to, podem ser normalmente reconhecidos e partilha-dosemumcontexto(Japo)enoseremaceitasecompartilhadas em outro (o crculo em que so toma-das decises mdicas norte-americanas).12Sobre os conflitos perante a deciso de ampliarou limitar o uso de tecnologias mdicas em casos es-pecficos de pacientes legalmente mortos, so levanta-daspertinentesquestessobreanovamorte.Oexemplo do caso de Janet, gestante declarada em mor-te cerebral, mantendo seu feto vivo, incita a questio-nar: o que morte, se nesse caso, vida saudvel podesair da?.* apontado o fato de que alguns profissio-nais da sade no gostam do termo morte cerebral,porqueessemarcaumadiferenciaoentremorteemorte cerebral. Em funo disso, indaga-se: mas esseno o caso? Seguindo um protocolo, o corpo de Janetno estava morto? [...] Parabns s mquinas que sus-tentaram esse estado. Sua inteligncia se foi, mas tal-vez no sua alma [...] ela foi menos do que um huma-no, mas mais do que um morto.7:108No entanto, a morte enceflica no uma novi-dade criada pela lei de doao de rgos, em seu artigo3, mas interessante destacar a ambigidade geradapor ele: Alis, somente este artigo mereceria um de-bateespecial,pois,paraoimaginriodemuitos,doravante, morrer e viver mudaram de sentido: a vidadocorao,outrorargoreiouavidadopulmo,quenoapogeudatermodinmicafoiconsideradoocentrodocalorvital,orgodoesprito,devemsermantidosapsamorteenceflicaparapossibilitarotransplante. Aqui a morte ideal no aquela em que odescanseempazpodeserditoatodososrgos.Bichat havia afirmado que a vida era um conjunto deforasqueresistemorte.Hoje,paradoxalmente,amorte enceflica, a morte ideal para possibilitar o trans-plante, tambm possui esse significado.8:73Antesdaintensificaodosprocedimentosdetransplante de rgos, as mortes cerebrais no se cons-tituam em problema e, por isso, os pacientes poderiampermanecer longos perodos mantidos em morte cere-bral. Foi justamente aps a implementao dos trans-plantes de rgos que se instituiu a necessidade da dis-cusso e legitimao da definio de morte cerebral. interessante lembrar que o primeiro transplante carda-co foi realizado por Barnard em 1968, na frica do Sul.O doador, do corao, era negro e o receptor era bran-co. Depois das experincias dos primeiros transplantes que a Organizao Mundial da Sade e a OrganizaoMundial dos Mdicos, a Harvard Medical Scholl e ou-tras instituies deram uma nova definio de morte: ade morte cerebral, legitimado no ano de 1969., ainda, pertinente lembrar que, j em 1975, obioeticista Tristram Engelhardt levantou que a defini-o de irreversibilidade da morte seria uma definioconservadora.Apoiadofirmementenadicotomiadecorpo/mente,eleacreditavaqueumadecisointeli-gente seria definir a morte no instante da morte cere-bral,dizendoqueavidabiolgicahumananoamesmaqueavidapessoalhumana.Mesmoestandovivo e intacto, ele no seria mais uma pessoa singular enica.Obioeticistaaindaapontavaasmudanasadvindas desde o desenvolvimento da neurologia mo-derna, e de como a neurofisiologia toma como base oconceito de que ser uma mente, neste mundo, ter umcrebro funcionando de forma intacta. Para ele era umaconclusolgicaquepacientes,comfaltadefunocerebral e em persistente estado vegetativo, no vivempor muito tempo. O conceito de desumanidade, apoi-ado na definio de morte cerebral, oferece medici-na um caminho para distinguir os pacientes para comos/as quais ela tem obrigaes, e essa distino quetorna possvel que os rgos das pessoas com mortecerebral possam ser usados para ajudar pessoas aindavivas. Deste modo, no existiria obrigaes para comos rgos, e nenhuma tica perduraria sobre a remo-odergosdaqueles/asdefinidos/ascomono-pessoas.12* Caso descrito em artigo, tratando de paciente grvida de 22 semanas que apresentou um aneurisma cerebral e, em 24 horas, teve declarada sua morte cerebral, masseu feto ainda vivia.7 O hospital colocou uma equipe de enfermeiras especializadas para tratar de Janet e seu beb antes que ocorresse o parto. Apesar de Janet estarlegalmente morta e as enfermeiras saberem disso, sentiam que ela estava viva. Seu cabelo e unhas cresciam, seu beb tambm. Em referncia a um caso semelhante,Grmek afirma que uma grvida de um feto ainda vivo, suscita nas pessoas a idia de que no se pode falar que a mesma esteja morta mesmo que a noo demorte cerebral j esteja bem divulgada entre os indivduos. Como uma criana nasceria de uma me morta? O tratamento dado como para um caso de coma.- 143 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.A morte cerebral como presente para a vida...Se a distino entre vida e morte, entre ser vivoou ser cadver, est hoje condicionada a padres maisou menos consensuados, cientificamente balizados e,portanto,sobodomniodeumacomunidadedeprofissionais,istonoquerdizerquecomunicaesno se estabeleam entre diferentes crculos ou comu-nidadesequeaculturaestejaexcludadestesoudascomunicaes possveis entres os mesmos. A dimen-sojurdicaexemplardestarelaoentrecinciaecultura. Sob a anlise jurdica, cadver coisa (nomais pessoa ou ser de direito), mas coisa sui generis,que por preservar a imagem de uma pessoa, deve serrespeitada em condies especiais e diferenciados emrelao a qualquer outra coisa.Assim,possveldestacarmaisalgumasdasconflitualidades presentes nessa discusso sobre mor-te cerebral. No caso brasileiro, atualmente a legisla-o tem orientao organicista: a morte s reconhe-cida pela Justia quando h parada cardaca.13:216 Comose v, mesmo com a realizao intensificada dos trans-plantes de rgos e com a divulgao ampla da neces-sidade de aprimoramento do diagnstico de morte ce-rebral, no se estabelece uma sincronia entre o consi-derado avano cientfico e sua legislao. Pode-se deli-near, tambm, nessa argumentao, a polarizao en-tre o orgnico e a mente. Corao e pulmo esto rela-cionados com a ordem da morte orgnica. O sistemanervoso est relacionado com a ordem da morte men-tal. Mas, desde quando o sistema nervoso deixou deser rgo dentro do paradigma cientfico? Desde quan-do a tecnologia naturalizada e, deste modo, encobreos inevitveis conflitos que resultam da mistura entreoeueooutro?Partindodopressupostodequenomundoocidentalacinciaimperacomoformahegemnica de construir a realidade,14 torna-se impor-tante resgatar certa inconformidade ao papel exclusi-vo de porta-voz da discursividade tecnocientfica.Cabe ainda refletir que, de maneira geral, os dis-cursos que permeiam o contexto social dos transplan-tes de rgos o legitimam como um presente da vida.Tambm cabe lembrar que, nesse contexto social, hou-ve necessidade de reconceitualizar a morte como umaforma de obter rgos vitais, adequados para a reali-zao desses transplantes. Em suma, mais do que ostransplantes de rgos, paradoxalmente, a morte ce-rebral o presente para a vida.Mas como a construo de significados um pro-cesso progressivo, estendido, de algo que j se conhe-ce para algo novo, atravs da chamada cadeia de signi-ficado,umoutroaspectodediscussoseapresenta,sobre a doao de rgos. E a, talvez, mais do que aquesto da morte cerebral, a questo da doao de r-gos informa sobre o que determinada prtica de sadepode vir a significar para aqueles que a usam. Ou seja,na medida em que se acredita que os sujeitos, pacientese profissionais, no so ingnuos e/ou indiferentes, hsempre uma determinada persuaso para estabelecer oque se passa a considerar como necessidade. As neces-sidadesso,portanto,maisculturaisdoquenaturais.Isto quer dizer que as necessidades tanto so definidascomo produzidas pelos sistemas de significao atravsdosquaisseatribusentidoaomundoe,assim,elasesto abertas para serem trabalhadas e transformadas.2Istooquevemacontecendocomanecessidadededoao de rgos, inserida em um campo amplamentecontestado, de lutas, de relaes de poder, exatamenteporque de liberdades: o do direito a ter direito.ComoadventodaCartaMagnade1988ficougarantida, em seu artigo 5 e incisos, a tutela do direito vida a qualquer indivduo. Deste direito, h o de exis-tncia,quesecaracterizanodireitodeestarvivo,delutar pelo viver, de defender a prpria vida, de perma-necervivo.Nestecampo,emprincpio,queincide,novamente, uma das propostas de anlise deste ensaioreflexivo,apolissemiaeocarterambguo,agora,dotermo direito ter direito. Vale dizer, a possibilidade demanuteno da vida por um indivduo que, procurandoexercer este direito, acaba por procurar um profissionalda sade, o qual, empregando as tcnicas e os conheci-mentos existentes na rea do transplante de rgos, tor-napossveloprolongamentodavidadaquelequeseencontra em situao de grave enfermidade.15No caso especfico dos transplantes de rgos,este direito vida se entrecruza com o direito de deci-dir e o direito integridade fsica do doador de rgos.Ou seja, quando se cuida de algum com diagnsticodemortecerebraleestealgumnospreencheoscritrios de incluso para doao de rgos, como estinternado em um local articulado base organizacionaldecaptaodergosparatransplante,automatica-menteestealgumpassaaserumprovveldoadorcadver. Na verdade, h duas maneiras de obteno dergos: atravs do doador cadver e do doador vivo.Aps a tramitao de vrios projetos de lei noCongressoNacional,foisancionadaaLein.9.434,de4defevereirode1997,disciplinandoquetodososbrasileirossodoadores,salvomanifestaodevontadeemcontrrio.15:161Paramanifestar-seem Foucault argumentaria que o poder s pode ser exercido onde existe liberdade e portanto, um grau de incerteza em qualquer relao.- 144 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.Vargas MA, Ramos FRScontrrio,todoindivduodeveriaenfrentaraburo-cracia do sistema para alterar a Carteira de Identida-deouaCarteiraNacionaldeHabilitao,visandocolocar,ali,aexpressono-doador.Em1998,aMedida Provisria 1.718 disciplinou, que na ausn-cia de manifestao de vontade do potencial doador,o pai, a me, o filho ou o conjugue poder manifes-tar-se contrariamente doao, o que ser obrigato-riamenteacatadopelasequipesdetransplanteere-moo.15:162AcitadaMedidaProvisria(de1998)sofreu 32revises, at chegar a verso MP 2.083-32de 22/02/2001 e converter-se na Lei 10.211 de 23/03/2001. Desta forma, atualmente, a autorizao dadoao de rgos depende da autorizao do cnju-geouparente,maiordeidade,obedecidaalinhasucessria, reta ou colateral, at o segundo grau, fir-mada em documento subscrito por duas testemunhaspresentes verificao da morte.15Oqueseobservou,nesterpido,masintensoprocessodeelaboraolegislativa,foiumentornoconflituoso, tanto do ponto de vista de algumas pol-micasenvolvendoaopiniopblicaeapressodosprofissionais mdicos, em franco processo de desobe-dincia civil doao presumida. Assim, antes de umaproposta de efetiva adaptao cultural, ou mesmo ba-ses concretas para a anlise das representaes e ma-nifestaessociaisemrelaolei,aautoridadegovernante sucumbiu s presses e acabou com a do-ao presumida no pas.Na experincia internacional h, alm da doaovoluntria, o consentimento presumido, o qual parte dapremissa de que todo cidado doador de rgo, pordefinio. Este consentimento presumido dividido emdois tipos: o forte e o fraco. O forte, adotado em algunspases da Europa, possibilita que o mdico remova r-gos de todo e qualquer cadver, enquanto que o fracoapenas do que no declararam objeo a este procedi-mento.16 Mas, a prtica tem mostrado que, mesmo coma possibilidade do consentimento presumido forte, osfamiliares tm sido consultados.Emsuma,poder-se-iadizerqueaabordagemjurdica, ora procurando preservar o desejo do poss-vel doador, ora transferindo a escolha para os familia-res, tem sustentado, sempre, algum tipo de transgres-so ao direito a ter direito. No entanto, sabe-se que taisaspectos legais refletem todo um contexto de discus-soparamuitoalmdojurdico.Ouseja,arelaomorte cerebral e doao de rgos no mais apenasparte de nossa cultura. Ela, a relao, possui uma cul-tura prpria em torno de si, desenvolveu-se um con-juntodesignificadoseprticas;elaumsignificadocom alto grau de consenso em nossa poca.ENFIM...possvelsedizerquealgobomporquefoiprovado? Do ponto de vista cientfico: sim. E mais, doponto de vista cientfico conseguir provar algo tornareste algo verdadeiro, idia que em nossa sociedade, quasesempre vem acompanhada de outros tantos atributos,muitosdelesmistificados.Assim,verdadecientficaverdade neutra, boa, nica, universal e igual para todomundo. No entanto, em tempos atuais, insustentvel anoo de um essencialismo cientfico, em que a cinciaeseuscientistasoperariamapartirdeumgrandeparadigmauniversal.Emvezdisso,cadapeadoco-nhecimentocientfico,naperspectivaaquiadotada,considerada como produto de determinado lugar e tem-po, faz sentido neste tempo e lugar, mas em outro tem-po e/ou lugar pode no fazer sentido, pode at ser com-pletamente ignorado e/ou esquecido. Abandona-se, pois,a idia de que a cincia superior, mesmo que distinta,detodasasdemaisformasdeatividadesociocultural.Na verdade, tudo o que considerado como bom expe-rimento socialmente negociado. A cincia , tambm,umamplocampodenegociaese,comotal,nuncaesteve alheia aos complexos fenmenos sociais com queinterage e das quais produto, tanto quanto a moral.14Se a cincia como tal no pode ser tica ou moralmen-tequalificada,podes-la,noentantoautilizaoquedela se faa, os interesses a que serve e as conseqnci-as sociais de sua aplicao.17:221De tudo isto, o que ainda se pode destacar, es-pecialmente ao se olhar para o lugar ocupado pelas/osenfermeiras/os nas instituies que hoje tomam parasiamortecomoobjeto,talvezsejaexatamenteistoquecaracteriza,demodotopeculiar,odesafiodetrabalharcomamorte:ofatodamorteexperincia(to ntima e to estranha a todos) se mostrar, muitasvezesecadavezmais,distanciadadamorteobjeto,rigorosamentedefinida,monitorada,prolongada.Amorte tomada pelos profissionais, transformada, ela-borada e detida pelo hospital e pelas mquinas conse-gue ser uma abstrao da morte real e, ao mesmo tem-po, a objetivao concreta da morte subjetiva. Encarara fragilidade de qualquer noo que se pretenda exataou perfeita, para o encontro com a mera utilidade queelas possam nos assegurar o conforto possvel e, tal-vez, a responsabilidade necessria.Se tal conforto ainda pequeno face ao tamanhoda precariedade, a reside algo interessante, a atitude ti-- 145 -Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2006; 15(1): 137-45.A morte cerebral como presente para a vida...ca fundamental que viria, exatamente, do desconforto.Atitude que pode significar assumir a si prprios comosujeitos do desconforto e, portanto, sujeitos capazes decolocar sob questo as prprias referncias, as verdadesteis, as instituies e os longos aprendizados que cons-tituem as prprias identidades culturais, polticas e mo-rais, enfim, o desconforto que pergunta como existir.E, afinal, esta a tarefa de uma histria do pen-samento por oposio histria dos comportamentosou das representaes: definir as condies nas quais oser humano problematiza o que ele , e o mundo noqual ele vive [...] analisar no os comportamentos, nemas idias, no as sociedades, nem suas ideologias, masas problematizaes atravs das quais o ser se d comopodendo e devendo ser pensado, e as prticas a partirdas quais essas problematizaes se formam.18:14-5REFERNCIAS1Vargas MAO, Meyer DEE. 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