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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Curso de Psicologia Adriana Pereira Campos de Souza MORTE DE UM ENTE QUERIDO: a espiritualidade como facilitadora na elaboração do processo de luto Belo Horizonte 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Curso de Psicologia

Adriana Pereira Campos de Souza

MORTE DE UM ENTE QUERIDO:

a espiritualidade como facilitadora na elaboração do processo de luto

Belo Horizonte 2012

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Adriana Pereira Campos de Souza

MORTE DE UM ENTE QUERIDO:

a espiritualidade como facilitadora na elaboração do processo de luto

Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Orientadora: Rosana Carvalho de Oliveira

Belo Horizonte 2012

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Adriana Pereira Campos de Souza

MORTE DE UM ENTE QUERIDO:

a espiritualidade como facilitadora na elaboração do processo de luto

Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

________________________________________________ Rosana Carvalho de Oliveira (Orientadora) – PUC-Minas

________________________________________________ Eliana Ferreira Rodrigues da Silva – PUC-Minas

Belo Horizonte, 31 de maio de 2012

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à A.M.F. e T.A.A.M. pela confiança e carinho, me doando

parte de seu tempo para reviverem e falarem de suas dores diante das perdas que viveram.

Agradeço à psicóloga Júnia de Paula Drumond, pelo carinho e disponibilidade

imediata em me receber e pelo entusiasmo demonstrado pelo presente trabalho, me ajudando

a reencontrar um sentido para sua execução.

À psicóloga Maria Emidia de Melo Coelho, pela generosidade, pela verdadeira aula

sobre o tema e pela serenidade ao falar sobre ele, à qual eu tentei levar para a minha escrita.

À psicóloga Vanessa Correa Almeida Bittencourt, pelo carinho e cuidado em me

auxiliar em todas as questões abordadas.

À Professora Eliana Rodrigues Ferreira da Silva, a quem levarei no coração como uma

das melhores referências do Curso de Psicologia da PUC Minas.

À Professora Candice Vidal de Souza, minha primeira professora no primeiro dia de

aula na PUC, que me ensinou valores humanos preciosos os quais eu carrego comigo e me

despertou para a minha capacidade de ser uma boa profissional.

À Professora Rosana Carvalho de Oliveira, pela orientação, pelas ideias e

contribuições ao longo de todo esse trabalho.

À Aparecida Ferraz, Carla Mangabeira e Daniele Souza pela amizade incondicional e

pelas palavras de incentivo e de apoio em todos os momentos.

Aos meus irmãos, sempre presentes, sempre amigos, extensões de mim.

À minha mãe, pela forma simples que me ensinou tantas coisas ao longo da vida.

E, finalmente, à Deus, razão da minha espiritualidade, sem dogmas, sem rituais, sem

religiões, tão somente se fazendo presente em cada célula do meu ser.

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A alma contempla a beleza, mesmo quando a razão a nega. [...] Para entender

Deus, você tem que deixar de lado a razão. (WALSCH, 2000).

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RESUMO

Esta monografia teve como objetivo estudar sobre as possibilidades de a espiritualidade

facilitar o processo de luto por pessoas que perderam um ente querido. Para essa investigação

se fez necessário verificar, do ponto de vista da psicologia, a função que a espiritualidade

exerce na vida das pessoas que estão atravessando um processo de luto, tornado-se necessário

compreender o sentido da espiritualidade assim como os sentimentos despertados pelo luto e

pela morte. Foi realizada uma pesquisa de campo para coleta dos dados, além de um

levantamento bibliográfico sobre o assunto, que serviram como referência para este trabalho.

A pesquisa de campo se caracterizou por entrevista semiestruturada com pessoas enlutadas e

profissionais da psicologia. A pesquisa investigou as relações pessoais com a espiritualidade

assim como as questões existentes na elaboração do luto e as possíveis interações entre esses

dois temas com o objetivo de auxiliar as pessoas enlutadas. Os resultados mostram que a

espiritualidade auxilia efetivamente na elaboração do luto, agindo como um facilitador na

compreensão da perda e na reconstrução dos sentidos. A espiritualidade, quando vivenciada

de forma consciente e esclarecida auxilia significativamente a vivência de momentos

conturbados durante a vida e nos casos de luto, ela contribui de diversas formas amenizando o

processo, trazendo outras perspectivas para se dar continuidade à vida.

Palavras-chave: Luto. Espiritualidade. Morte. Perda.

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ABSTRACT

This monograph aimed to study about the possibilities of spirituality facilitate the process of

mourning for those who lost a loved one. For this investigation was necessary to verify, from

the standpoint of psychology, the role that spirituality plays in people's lives who are going

through a grieving process, become necessary to understand the meaning of spirituality as

well as the feelings aroused by grief and death . Was carried out a survey for data collection,

and a bibliography on the subject, which served as reference for this work. The field research

was characterized by semi-structured interviews with bereaved people and professionals of

psychology. The research investigated the relationships with personal spirituality as well as

the issues existing in the elaboration of mourning and the possible interactions between these

two themes with the aim of helping the bereaved. The results show that spirituality effectively

assist in the preparation of mourning, acting as a facilitator in the understanding of loss and

reconstruction of the senses. Spirituality, when experienced in a conscious and clear way

significantly during troubled times in life and in cases of mourning in many ways it helps

easing the process, bringing different perspectives to give continuity to life.

Keywords: Mourning. Spirituality. Death. Loss.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 8 2. ESPIRITUALIDADE ........................................................................................................ 12 3. MORTE .............................................................................................................................. 17 4. LUTO .................................................................................................................................. 22 5. METODOLOGIA .............................................................................................................. 28 6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS ......................................................................... 29

6.1. Espiritualidade ............................................................................................................ 29 6.2. Morte de um ente querido .......................................................................................... 34 6.3. Luto .............................................................................................................................. 37 6.4. Psicologia e espiritualidade no processo de luto ...................................................... 42

7. CONCLUSÃO .................................................................................................................... 45 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 47

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1. INTRODUÇÃO

Existem momentos difíceis com os quais todo ser humano se depara na vida e nesses

momentos é comum recorrer à vários caminhos a fim de suportar a situação. Muitas vezes

caminhos antes jamais pensados: uma oração, uma consulta com um terapeuta, a procura por

uma instituição religiosa. Essas e muitas outras alternativas são meios que as pessoas usam

para amenizar e para entender o sofrimento vivido e assim conseguirem dar continuidade à

própria vida. Sérgio Nazar David diz que “a religião ilude o homem porque, baseada em uma

hipótese superior dominante, propõe-se a não deixar nenhuma pergunta sem resposta. Desse

modo, tudo que inquieta o homem teria uma solução” (DAVID, 2003, p.8). Pode-se pensar na

religião como uma alternativa de apaziguamento e uma forma de expressão espiritual, e pode-

se encontrar nessa fala uma explicação que justifique o seu uso como meio de busca à

espiritualidade e à respostas para perguntas que conturbam o homem. Existem muitos outros

meios para se alcançar a espiritualidade e para cada um deles haverá uma explicação que

sustentará o sujeito na sua escolha.

A espiritualidade é um tema que está inerente ao ser humano. Se se pensar nas

escrituras sagradas, pode-se verificar que desde a criação do homem existe uma busca infinda

pelo encontro do “eu” com o sagrado. Ainda que as diversas doutrinas religiosas nomeiem de

forma diferente, parece um consenso a existência de uma força espiritual que rege o todo e

explica a existência e de tudo o mais que com o ser humano compartilha espaço no universo.

No caso dos ateus, pode-se pontuar que até para se negar a existência dessa força, é preciso

considerar sua existência. Portanto, de um jeito ou de outro, sempre haverá um

questionamento acerca do divino, do além do entendimento comum, de algo puramente

espiritual e que se funda – quase que exclusivamente – na fé.

Ao pensar sobre a existência de um ser superior que rege todas as coisas e explica a

criação do homem, o qual todos, de um jeito ou de outro, busca alcançar, por entendê-lo como

um ser de perfeição e, portanto, um modelo a ser alcançado, faz sentido analisar se essa busca

pela espiritualidade pode ser entendida como uma busca pelo caminho que levará ao encontro

com Deus, esse ser superior que, inclusive muitos, chamam de Pai.

Essa busca se faz através das relações, seja com o outro, seja com Deus, com o mundo

ou consigo mesmo. Farris diz que

a espiritualidade é a construção ou descoberta de significado no meio de relacionamentos, ou interações entre a pessoa, o outro e o mundo. Com base nessa

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compreensão, a espiritualidade é um fenômeno humano. Todos os seres humanos buscam significado dentro e por meio de relações (FARRIS, 2005, p.164).

Talvez seja por isso que em alguns escritos se encontrará entre várias definições do ser

humano, uma definição como um ser da falta, daquele que nunca se satisfaz. As pessoas estão

em constante busca pela aquisição, no sentido de possuir o máximo de bens possível, o

máximo de relações possível, se está sempre buscando por contatos e conhecimentos de

interesse, sendo assim, é difícil tolerar as perdas, é difícil deixar de possuir algo, pois vai

contra a esse ideal social que prega que as aquisições são comprovações de sucesso.

Na sociedade, desde os tempos mais remotos, as situações que mais expõem essa falta

é a morte. A única certeza em vida, paradoxalmente, ativa as maiores dúvidas, angústias e

anseios. E o medo. E ela não ativa tais sentimentos apenas nas pessoas que estão em fase

terminal, mas também – e talvez até mais intensamente – nas pessoas que fazem parte do ciclo

do falecido, pois após a partida essas pessoas começam a lidar com um processo sem período

definido – o luto –, que trará uma série de sentimentos e aflições sem receitas para contorná-

los, restando às essas pessoas tão somente lidar com eles.

A morte é um assunto que nunca se encerra e que gera inúmeros questionamentos na

vida das pessoas. Quando se perde alguém próximo esses questionamentos se intensificam,

trazendo angústia e sofrimento os quais muitas vezes não é possível superar sozinho, pois

lida-se com algo desconhecido onde só é sabido que dói.

Sobre a morte não se tem controle e ela expõe a fragilidade humana, fazendo com que

o homem busque significações para sustentar sua própria crença na possibilidade da

continuação da existência, mesmo após o fim da vida (FREIRE, 2006). Acreditar na

continuidade da existência após a morte pode servir como importante consolo na perda de um

ente querido, pois não será necessário lidar com o fim daquele ser, sendo preciso apenas

pensar num outro modo de permanência dele no universo. No entanto, tal crença não se baseia

em fundamentos racionais, sendo necessário para o sujeito se voltar para a espiritualidade.

Portanto, a pergunta que sustenta esse estudo é se a busca pela espiritualidade por

pessoas diante da perda de um ente querido favorece a elaboração do luto. Talvez a forma de

lidar com algo tão enigmático seja a busca por explicações em algo tão inexplicável quanto.

Pensando na busca das pessoas por experiências transcendentes quando estão

vivenciando o luto, será verificada, do ponto de vista da psicologia, a função que a

espiritualidade exerce na vida das pessoas que estão atravessando um processo de luto pela

perda de um ente querido. Para isso, torna-se necessário compreender o sentido da

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espiritualidade assim como os sentimentos despertados pelo luto que faz com que as pessoas

busquem por apoio espiritual.

Muitas questões levam às razões pelas quais as pessoas procuram a espiritualidade – e

todas as suas formas de expressão – nos momentos de luto e perda. Como parte do processo,

observa-se um cenário diante da morte que pode ser visto de forma bastante intrigante. Os

rituais, as convenções, as frases feitas, as reflexões sobre a vida que, normalmente, se

encerram no dia seguinte após o enterro. Mas não para aqueles que ficaram com o espaço

vazio deixado pela pessoa querida e que, mais do que sentir a falta, a viverão por tempo

indeterminado. Para eles, os rituais, mais do que convenções, terão o papel de cumprimento

(ou pelo menos uma tentativa) daquilo que não pôde ser feito em vida, é uma declaração de

amor ao falecido, uma maneira de deixar claro a falta que ele irá fazer, tentando de todas as

formas se conectar com ele.

No campo da psicologia, onde se deve primar pelo bem estar do sujeito e buscar

oferecer o melhor e mais ético acolhimento, pode-se pensar em como lidar com as questões

voltadas para espiritualidade que, assim como ela está presente na vida do outro, se faz

também presente na vida do psicólogo. Portanto, pretende-se verificar as possibilidades de

complementaridade entre a psicologia e a espiritualidade. De fato, a espiritualidade não é

tema ignorado pela psicologia.

A espiritualidade e os conceitos de religião, de fé, de pessoa e de construção de significado não são conceitos estranho à psicologia, em geral, e ao aconselhamento psicológico, especificamente. Quando a psicologia deixa o contexto de “como” agir, ou pensar, e entra no reino do “porquê”, ela está tratando de perguntas de significado e espiritualidade. (FARRIS, 2005, p.166)

Um acolhimento ético abrange todas as crenças do sujeito, que muitas vezes colidem

com as crenças do profissional. Neste momento, importa a forma que ele, o psicólogo, deixará

de lado suas crenças e procurará entender a função daquela fé na vida do sujeito e assim

ajudá-lo a usá-la ao seu favor, se assim o paciente desejar, a fim de lidar com o momento

difícil pelo qual está passando. Tal processo muitas vezes pode não ser muito simples, mas

deve ser bem trabalhado, tendo em vista as razões pelas quais uma pessoa procura por um

profissional nesse momento tão delicado, ou seja, ele procura por uma escuta desprovida de

qualquer julgamento ou pré-conceitos. E são justamente essas características que esperamos

de um psicólogo e pelas quais ele deve trabalhar no seu próprio self.

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No entanto, apesar de focar o luto frente à morte neste trabalho, é preciso esclarecer

que o processo de luto não se faz apenas diante da morte de uma pessoa querida, mas também

em toda perda significativa na vida de alguém, que pode ser traduzida por um divórcio, a

perda de um emprego, a impossibilidade de aquisição de algo muito almejado. É puramente

individual a importância que cada perda significa na vida de cada um e ela jamais deve ser

banalizada ou criticada, podendo, e até mesmo devendo, ser amparada psicologicamente.

Pensando nesses aspectos, interessa os sentimentos que o luto desperta nas pessoas e

que as levam à uma busca por algo que elas ainda não reconhecem dentro de si mesmas, na

verdade, pode-se dizer que trata-se de uma busca por esse reconhecimento, do sagrado, dentro

de si. A partir da compreensão dessas questões, o psicólogo terá subsídio para acolher e

auxiliar de forma mais significativa a vivência do luto e os conflitos que surgem com ele. Para

estudantes de psicologia que pretendem uma formação clínica, este trabalho propiciará

condições de lidar de forma mais verdadeira e efetiva com os referidos temas. A relevância do

presente trabalho está em despertar no profissional a sensibilidade não para entender (tendo

em vista a dor ser individual), mas para alcançar o sujeito em seu estado de angústia e ali

permanecer com ele, ajudando-o a significar os sentimentos presentes, inclusive, quando

necessário, auxiliá-lo no seu desejo de lidar com a espiritualidade tornando-a parte do

processo do luto.

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2. ESPIRITUALIDADE

Não se pode negar que se faz presente em na sociedade atual um sentimento de

incompletude e o desejo de um contato com alguma experiência espiritual. “A espiritualidade

é uma das fontes primordiais, embora não seja a única, de inspiração do novo, de esperança

alvissareira, de geração de um sentido pleno e de capacidade de autotranscendência do ser

humano” (BOFF, 2001, p. 9). Tal sentimento muitas vezes transcende o campo da religião,

tem uma característica mais diversificada, tendo em vista a mente das pessoas, talvez por

estarem bastante adaptadas à lógica e à ciência tão marcantes em nossa cultura capitalista, não

aceitarem acriticamente os dogmas e imposições que ela, a religião, prega. Não é sem razão

que cada vez mais se encontra diferentes religiões surgindo, adaptação das já existentes ou até

a perda da credibilidade de outras.

Apesar de se estar mais críticos em relação à esse tema – religião – ele ainda é

bastante intenso, dando conta ainda de organizar o desejo das pessoas na busca pela

espiritualidade.

Apesar do fato deste capítulo focar a espiritualidade, é impossível não citar

diretamente a religião devido ao fato de ser a forma mais comum, socialmente, do exercício

da espiritualidade e também pela constante confusão que existe entre esses dois termos, onde

muitas vezes são entendidos como sinônimos, o que não é o caso, como veremos mais

adiante.

Ao citar a religião, Freud pontua:

A religião é um poder imenso que tem a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos. Sabe-se muito bem que, em períodos anteriores, abrangia tudo o que desempenhava um papel intelectual na vida do homem, que ela assumia o lugar da ciência ali onde mal havia algo que se assemelhasse à ciência, e que ela construía uma Weltanschauung1 coerente e auto-suficiente num grau sem paralelo e que, embora profundamente abalada, persiste na atualidade. (FREUD, 1933/1996, p.158).

Freud coloca de maneira muito clara a força e a importância que a religião exercia – e

ainda exerce – na vida dos seres humanos. O apego à uma crença na existência de uma força

superior subsidia a existência do homem desde o início dos tempos. Essa crença faz pelo

                                                             

1 No Volume  em questão, o  tradutor  explica que  a palavra  alemã pode  ser  traduzida  como  “uma  visão do universo”. A tradução literal retirada do Google Tradutor fornece o termo “ideologia”. 

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homem o que a ciência jamais conseguiu, pois fornece conformação para questões não

respondidas ao longo dos tempos. “A ciência não pode competir com a religião quando esta

acalma o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe

garante um fim feliz e lhe oferece conforto na desventura.” (FREUD, 1933/1996, p.158).

Diversas religiões, com seus dogmas, rituais e costumes oferecem aos seus membros

vários meios para se exercer a espiritualidade. Ainda que tais meios, muitas vezes, nada têm a

ver com o crescimento espiritual das pessoas, muitas delas vivenciam experiências em que

suas espiritualidades podem ser expressas. As religiões pregam formas de oração, formas de

comportamento e de pensamento, pregam obrigações e ordens. Criam métodos de adoração à

um deus e como se portar para ser reconhecido por ele. Boff, ao definir religião, explica:

elas são edifícios culturais grandiosos. Primeiro, porque toda religião promete ao ser humano salvação, defende a vida e nos abre à eternidade. Depois, porque ela mostra o caminho para chegar a essa eternidade, que é o caminho da reta doutrina e da retidão da vida. As religiões todas fornecem assim uma visão sobre Deus, sobre o céu, sobre quem é o ser humano e o que deve fazer neste mundo. Elaboram doutrina e apontam caminhos para a luz. Mas as religiões não anunciam só prédicas, elas acentuam também práticas. As religiões são fontes de ética, isto é, de comportamentos. No caso do cristianismo, sãos os comportamentos que definitivamente salvam. (BOFF, 2001, p. 17).

Através da própria fé, de uma atitude plenamente subjetiva, essas pessoas encontram

na religião e nesses rituais um caminho direto para esse encontro transcendente creditando tal

experiência ao cumprimento dessas regras e, por sua vez, permanecem nesse caminho para

que tais experiências possam ser constantes.

Sendo assim a religião nada mais é que um meio de alcance à espiritualidade, mas de

forma alguma ela é o único. “Aderir a uma crença religiosa pode ser uma forma de viver a sua

espiritualidade. Mas também é possível viver a espiritualidade sem ter religião”

(HENNEZEL; LELOUP, 1997, p. 18). Portanto, se deve atentar que religiosidade e

espiritualidade não são a mesma coisa. Hennezel e Leloup esclarece, ainda, a distinção entre

ambos os termos.

A espiritualidade faz parte de todo ser que se questiona diante do simples fato de sua existência. Diz respeito à sua relação com os valores que o transcendem, seja qual for o nome que lhes atribua. As religiões representam as respostas que a humanidade tem procurado dar a tais questões, através de um conjunto de práticas e crenças. (HENNEZEL; LELOUP, 1997, p. 18).

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Religiosidade e espiritualidade são vivenciadas de forma distintas, são experiências

independentes e uma não se explica através da outra. Giovanetti pontua que o termo

espiritualidade:

tem no Ocidente uma grande carga da tradição, isto é, ele vem contaminado e entrelaçado com o significado de religiosidade. Temos a tendência de colocá-los como sinônimos, atribuindo conteúdos idênticos tanto ao conceito de religiosidade como ao de espiritualidade. Isso é tão verdade que falamos de espiritualidade cristã quando designamos uma prática de um cristão, sustentada pela vivência da fé. (GIOVANETTI, 2005, p.136).

Dalai Lama citado por Boff diz que “espiritualidade é aquilo que produz no ser

humano uma mudança interior” (DALAI LAMA apud BOFF, 2001, p. 13). Encontra-se na

literatura diversas definições para o termo espiritualidade. A psicologia biodinâmica a define

como:

uma opção, nunca uma imposição. Significa vibrar em si certas cordas sutis que re-ligam a uma ordem maior, que remetem a uma harmonia que transcende o prosaico cotidiano. Reconhecer que este é um caminho que se apresenta a alguns no decorrer de seu desenvolvimento pessoal e que muitas vezes dá um sentido ao aparente caos dos (muitas vezes estranhos) acontecimentos que permeiam a vida de cada um. Acreditamos que a verdadeira espiritualidade não está necessariamente nos grandes eventos ou profecias, mas sim no pequeno gesto do dia a dia. O verdadeiro homem espiritual não faz marketing pessoal, ele influencia o outro apenas com sua presença simples e contagiante, fazendo o outro sentir a espiritualidade que tem dentro de si. (IBPB, 2012).

A psicologia existencial, na teoria de Kierkegaard, fala da espiritualidade como

necessária para o alcance da existência humana, como um último estágio que o homem

atravessa durante sua existência (LIMA, 2008). Para Carl Rogers, é a integração numa

globalidade que transcende o homem e que o insere numa harmonia global do universo. Para

ambos a espiritualidade leva o homem ao encontro consigo mesmo e o transcende para além

do espaço terreno (HIPÓLITO, 1999).

Ferris define a espiritualidade como “a relação com aquilo que nos inclui e transcende

e dá significado à vida” (FERRIS, 2005, p.166). Ele pontua que para a maioria das pessoas a

espiritualidade significa a existência de Deus, mas que nem todo mundo considera essa

existência em sua escala de valores e mesmo aqueles que consideram, acrescentam outros

centros de poder que dão significado à vida.

O que fica claro é que a espiritualidade explica uma busca por algo que se fará

entender a existência, conforme Kovács afirma:

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A espiritualidade é, também, uma busca humana em direção a um sentido, com uma dimensão transcendente. Envolve a tentativa de compreensão de uma força superior que pode estar ligada a uma figura divina ou força superior. Traz um sentido de pertença maior do que o âmbito individual. (KOVÁCS, 2007, p.246).

Durante a trajetória de vida se lida com situações diversas e adversas a todo o

momento. Não se coloca a refletir quando algo de bom acontece na vida, não se questiona

sobre o merecimento que possibilitou ser agraciado de alguma maneira. Receber e vivenciar

coisas boas parece perfeitamente normal. É diante das más ocorrências que ocorre a angústia e

os questionamentos e é na presença de questões que há a busca por respostas e por

significações.

As pessoas possuem carências que em um determinado momento da vida irá se

manifestar e o que se pode observar ao longo do tempo é que por mais que se faça aquisições,

alcance conquistas ou realiza sonhos, elas sempre se queixam de uma falta, de algo que as

impedem de se sentirem completas, mas que elas não dão conta de explicar o que é. Essas

carências despertam sentimentos e pensamentos que muitas vezes fogem da compreensão e

faz com que a busca pelo preenchimento dessa falta se torne uma corrida sem rumo, por não

se saber o que exatamente se está buscando.

No entanto, essa busca exige uma mudança interior, uma aceitação para o novo e um

movimento para permitir novas possibilidades. Frei Cláudio van Balen, citado por Coelho,

relaciona a espiritualidade com essas mudanças:

Espiritualidade tem tudo a ver com o despertar e o transformar da consciência, em vista de um estilo de vida inovador e libertador com boa qualidade. [...] Espiritualidade é vitória sobre o medo e acomodação, sobre alienação e isolamento, sobre autoritarismo e insensibilidade, sobre introversão e passividade, sobre pessimismo e hostilidade. [...] Religião é caminho, espiritualidade é caminhada. (VAN BALEN apud COELHO, 2011, p. 36).

O encontro com a espiritualidade é um meio de contato com o interior de cada um e

traz compreensão aos sentimentos inomináveis que todos possuem e que não se encontra da

forma prática como as pessoas estão acostumadas a solucionar seus enigmas. A

espiritualidade oferece experiências que preenchem alguns espaços de forma que as vezes

também não é possível explicar, como se ela preenchesse um vazio, dando lugar a uma

relação diferente consigo mesmo, uma experiência mais profunda e intensa, levando a pensar

que aquele algo mais faltante talvez seja um encontro com nós mesmos.

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A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano. Essa dimensão espiritual que cada um de nós tem se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental. É alimentar um sentido profundo de valores pelos quais vale sacrificar tempo, energias e, no limite, a própria vida. (BOFF, 2001, p. 51).

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3. MORTE

Sabe-se que morte é simplesmente deixar de estar vivo. Não há pulso, não há

consciência nem calor. A morte é o fim do ser e isso é o máximo que o senso comum

consegue dizer dela. “A morte não é um fracasso, ela faz parte da vida [...] uma realidade que

nos convida a criar, pensar, procurar um sentido” (HENNEZEL; LELOUP. 1997, p.40).

Apesar de inevitável, a morte não é tema presente no cotidiano. Existem meios de se

vivenciar todas as questões que se farão presentes na vida: carreira, família, estudo,

relacionamentos, viagens, enfim, para tudo existe um meio de informação, de discussão e

existe o interesse. Para a morte, se limita a pensar nela quando ela é fato através da partida de

alguém próximo. Hennezel e Leloup fala dessa distância entre o ser humano e a morte:

O mundo que nos rodeia não nos ensina a morrer. Tudo é feito para esconder a morte, para incitar-nos a viver sem pensar nela, em termos de um projeto, como se estivéssemos voltados para objetivos a serem alcançados e apoiados em valores de efetividade. Tampouco nos ensina a viver. No máximo a ter êxito na vida, o que não é a mesma coisa. Trata-se de “fazer”, de “ter” cada vez mais, em uma corrida desenfreada em busca de uma felicidade material a respeito da qual acabamos por perceber, mais cedo ou mais tarde, não ser suficiente para conferir um sentido às nossas existências. É assim que às vezes ouvimos da boca de agonizantes revoltados, amargurados, o derradeiro lamento de terem passado ao lado do essencial. Não é necessário ser particularmente religioso para sentir que não estamos nesta terra para passar nossa vida a produzir e consumir. (HENNEZEL; LELOUP, 1997, p. 17).

Há de se pensar sobre essa extrema dificuldade em compreender a morte como parte

da vida e que traz muito sofrimento quando ela se aproxima. Como exposto pelos autores

acima e sempre colocado quando se tem a oportunidade de ler ou ouvir a respeito de perdas,

cuidados paliativos e finitude, parece que nos momentos de partida as pessoas sofrem muito

com as reflexões sobre a vida que estão deixando, sobre os valores que foram agregados nas

coisas equivocadas durante a vida e assim prevalece um lamento por não se ter vivido

plenamente as coisas mais profundas do ser, fazendo com que todas as conquistas e aquisições

se pareçam tão sem sentido e desnecessárias.

Na verdade, a morte é parte da vida e pode representar mais do que o fim da existência

de um ser, nem sempre estando atrelada à um corpo. Kovács fala que pode-se dizer de várias

mortes.

Sobre que morte falar? Existe uma morte, aquela do final da vida, da qual em princípio, não temos consciência durante o seu processo, pois “ninguém voltou para contar”, como diz o povo. Segundo os budistas, ou seja, de acordo com a sua

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religião e filosofia, a morte é o momento de máximo consciência, e os homens iluminados lembram suas mortes e suas outras vidas. Então não há só uma morte, mas várias, durante todo o processo evolutivo. (KOVÁCS, 1992, p. 1).

A morte aparece de diversas maneiras sempre com o mesmo desfecho e a forma como

ela é vista pode definir a forma de se viver (KOVÁCS, 1992), ou melhor, as crenças que

existem sobre suas consequências, ou seja, no que existe (se é que algo existe) depois dela.

Ainda que negada, a certeza da morte pode nortear muitas pessoas na definição do próprio

estilo de vida, implicando em atitudes, costumes e rotinas.

A partir do século XII, a familiaridade com a morte vai adquirir uma carga dramática, devido a uma preocupação específica com a finitude de cada indivíduo: o conceito de destino coletivo volta-se para o conceito de destino pessoal, através do qual cada um vai preocupar-se com a sua própria morte, o que reflete um redescobrimento da individualidade – indicado pelo destino da alma, que, a partir de então, acreditava-se ser julgada no momento da partida. A consciência da morte suscita, neste momento, a consciência da vida, da sua fragilidade e da sua fugacidade. O destino da alma nada mais é que um reflexo, uma consequência dos atos e dos momentos vividos. (FREIRE, 2006, p. 54).

Rothschild e Calazans, usando da abordagem fenomenológico existencial, expõem que

“a morte é a possibilidade mais peculiar, irrefutável e irrepresentável do ser-aí. Dentro de

todas as minhas possibilidades, já está presente a absoluta impossibilidade de não estar mais

aí” (ROTHSCHILD; CALAZANS, 1992). Eles também falam de uma morte diária.

A todo momento temos de escolher. A cada escolha que fazemos decretamos a morte da outra possibilidade não escolhida. Isso frequentemente nos traz ansiedade frente ao conflito de não podermos viver tudo ao mesmo tempo, de não podermos estar em mais que em um lugar ao mesmo tempo. O ser-aí morre cotidianamente todos os dias. (ROTHSCHILD; CALAZANS, 1992, p. 146).

A busca por explicações sobre a morte deu origem à uma ciência que vem ganhando

espaço na área da saúde e agregando adeptos em diversas áreas.

A tanatologia é uma ciência que busca explicações no processo da morte. De acordo

com a Rede Nacional de Tanatologia, ela se define como:

uma ciência interdisciplinar que estuda a relação do homem com a própria morte e com a morte do outro, adquirindo corpo teórico com definição de conceitos e questionamentos para compreensão do comportamento humano em relação às perdas, luto e separação, levando-nos a refletir e debater sobre nossa própria finitude. O objeto de estudo da Tanatologia é compreender a relação do homem com a morte; qual o impacto deste evento na subjetividade humana, agregando não somente a morte física mas também a morte enquanto experiência simbólica, vivida em

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situações de mudanças. É também preocupação da Tanatologia a maneira como as pessoas reagem emocional e psicologicamente às perdas e quais mecanismos de defesa está utilizando para se readaptar a nova situação. No escopo das produções em Tanatologia são recorrentes temas como morte, perdas simbólicas, separação, processo do luto, qualidade de morte, eutanásia, bioética, aborto, estados vegetativos recorrentes, doenças sem possibilidades terapêuticas, assassinato, suicídio, fases da morte, dentre outros... (RNT, 2011).

Segundo Alves D’Assumpção (2002), A tanatologia é a ciência mais antiga da

humanidade e também uma das mais novas. Ele observa que ela começou com a própria

humanidade quando nossos mais antigos ancestrais já faziam uma contemplação reflexiva do

fenômeno morte de modo significativo.

Como ciência de fato ela teve início na década de 60, através da psiquiatra suíça

radicada nos Estados Unidos, Elisabeth Kübler-Ross, quando ela teve sua atenção voltada

para os enfermos em estado terminal no hospital onde trabalhava. Por não terem mais chance

de vida, esses enfermos eram esquecidos pela equipe médica e Ross, tocada pela situação,

começou a formar grupos para esses enfermos propondo-se a ajudá-los em seus últimos dias

de vida. Esses grupos foram crescendo e outros membros do hospital e familiares dos

enfermos começaram a participar, tornando esses encontros cada vez mais frequentes. Hoje,

os escritos de Ross são referências sobre os estudos da morte, cuidados paliativos e tudo que

abrange os referidos temas.

Apesar de existir até mesmo uma ciência em busca de explicações para a morte, o fato

é que ela ainda representa um grande enigma para a humanidade e, entre outras coisas, levanta

a inexplicável questão da continuidade da vida, da possibilidade de existir após o morrer.

A morte mexe com a questão mais fundamental, mais intrigante, mais desafiadora e que mais inquieta a humanidade, a da sobrevivência pós-morte, desde que descemos das árvores nas savanas africanas há mais de dois milhões de anos. Até hoje não se chegou a um consenso nem das religiões, nem dos sistemas filosóficos, nem das ciências a respeito do que é a morte e se sobrevivemos ou não a ela. Ainda hoje, para a maioria de nós, a morte permanece uma figura sombria cuja presença é só levemente percebida. Nós tendemos a relegá-la à periferia de nossas vidas, acreditando que se ela for colocada fora da nossa vida, também o será da nossa mente. (SANTOS, 2007, p. 13-14).

A relação do homem com a morte é distante, sem intimidade, como se ela fosse

adversária ao processo de viver. O assunto é tabu. Quem conversa sobre a morte nas rodas

entre amigos? Ao falar a respeito as pessoas repudiam, “batem na madeira”, procuram mudar

de assunto. A morte é vista como algo do mau, maligno, uma punição, jamais legitimada

como sequência da vida e ao pensar sobre isso não deixa de ser tocante a pergunta feita por

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Leloup e Hennezel “Não conviria aprofundar esta contradição aparente: aceitar não

compreender o porquê da morte, mas viver plenamente o mistério de existir e de morrer?”

(HENNEZEL; LELOUP, 1997, p. 17). Não seriam as angústias e medos causados pelo morrer

inexistentes se se pudesse compreender que a morte é tão somente uma parte do processo de

viver? Para tanto, talvez seja necessário aceitar a impotência diante de certos aspectos da vida.

Valorizamos a vida, mas nos esquecemos de aceitar a morte. E não a aceitamos porque a tememos. Porque não a controlamos, como acreditamos controlar a vida. Nossa prepotência se curva, se desfaz, se torna nada diante da realidade da morte. Por isso queremos desqualificá-la, ignorá-la. (D’ASSUMPÇÃO, 2002, p.36).

O ser humano tende a temer o desconhecido, talvez pelas razões expostas por

D’Assumpção, a arrogância do homem o impede de discutir sobre aquilo que ele não domina

e assim a resistência sobre o assunto representa um efeito da ignorância. Como é fato que

todos irão morrer, é quase certo que, cedo ou tarde, todos irão experimentar a morte de

alguém próximo e, consequentemente, experimentarão as dores provenientes de tal perda e a

dificuldade em lidar com a morte provavelmente aumenta ainda mais o sofrimento, pois

sempre é difícil lidar de forma saudável com aquilo que não se compreende. E talvez o que

mais gera dor diante da morte seja a sua irreversibilidade e, por ser assim, a impotência

estabelecida diante do fato, que pode ser cruel com qualquer pessoa que o enfrenta.

Como manobras contra a morte, o ser-humano, ao logo do tempo, elaborou conceitos

que de alguma forma propõe a ideia de imortalidade do homem. Freire explica:

Surgem as noções de duplos, das almas e dos seus destinos: “céu”, “purgatório”, “inferno”, e ainda, “além” ou “outro mundo”, como formas de negação à finitude humana. A morte, assim, não apresenta o aniquilamento do homem, ele permanece existindo por meio de construções simbólicas originárias desta negação. É preciso notar que a concepção dos duplos remete diretamente à noção individualizante da morte. É o temor pela própria partida que cria a perspectiva de continuidade, como uma atribuição de uma imortalidade. A alma pode ser vista então como um outro que acompanha o eu já em vida, e que alcança sua existência legítima a partir da desvinculação do corpo. Assim, o duplo, concebido através do temor à finitude, é uma experiência que o homem tem de si. (FREIRE, 2006, p. 43-44).

A psicologia, com suas diversas abordagens, traz várias teorias a respeito da morte. No

entanto, parece ser nas teorias existencialistas, através principalmente de Kierkegaard,

Heidegger e Sartre, que se encontra um maior estudo sobre o tema.

Acreditamos que a corrente filosófica que atualmente mais impregna o conceito de morte na Academia, bem como a educação para a morte é o existencialismo. Essa

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corrente filosófica tentará, no seu esforço mais notável, manter-se na angústia, a fim de procurar nela a verdade da vida e da morte. Assim, a angústia, e por conseqüência a própria morte, é o fundamento mais certo da individualidade. [...] No existencialismo, a morte representa, pois, a última experiência, que dará completude ao indivíduo e é por isso que para o existencialismo o ser se completa na morte, pois que após a morte só existe o nada. (SANTOS, 2007, p. 23).

Pode-se tecer inúmeras teorias a respeito da morte e do morrer. O fato é que para

nenhuma se pode atribuir o crédito da veracidade. As questões relativas à morte estão

completamente fora do conhecimento humano. Nunca se sabe quando a morte chegará para

cada um. Várias são as histórias de superação onde costuma se dizer que “fulano venceu a

morte” ou, por outro lado, que “a morte veio tão de repente”. Apenas se especula, discorrendo

pelas próprias crenças para lidar com o tamanho mistério imposto pelo morrer.

No entanto, aceitar sua inevitabilidade e aprender a lidar com ela poderia trazer

bastante benefício para vida humana, pois não se teria a ideia da morte como algo puramente

negativo e sim como algo que, causa sim dor, mas não se trata necessariamente de um

acontecimento terrível.

O sofrimento causado pelos sentimentos presentes no morrer poderia ser suprimido se

se compreendesse que a morte faz sim parte da vida e que possivelmente ela não significa o

fim. Todos são capazes de expressar inúmeros sentimentos que mantém vivos aqueles que não

existem mais num corpo, mas que podem continuar existentes nas mentes, nas lembranças e

nos corações.

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4. LUTO

Dor é, por definição segundo o dicionário Aurélio, uma sensação desagradável, de

variável intensidade (FERREIRA, 1999), é um pesar, uma aflição a qual nunca se está

preparado para enfrentar. Não é fácil usá-la de forma produtiva em nossa trajetória. Na

verdade, durante toda a vida muitos são os meios aos quais se recorre a fim de evitá-la, o que

leva a uma série de manobras para não se deparar com o sofrimento. A espiritualidade não

deixa de ser uma dessas manobras. Entende-se que a dor e o sofrimento muitas vezes não

podem ser evitados, portanto busca-se meios de lidar melhor com eles, formas de apaziguá-los

ou até mesmo anulá-los.

O ser humano não é preparado para perder. Ele tenta a todo custo se poupar de

qualquer frustração, evitando assim as experiências da perda, tão fundamentais para desde

cedo aprender que nada na vida é permanente, nem mesmo ela própria.

“O luto é o lento processo de redefinição do nosso mundo sem a presença de alguém

que amamos” (GUEDES, 2012). Diante do luto, muitos são os sentimentos que nos envolvem

e muitas vezes eles se confundem trazendo um grande sofrimento para as pessoas envolvidas

e precisam de um tempo para serem administrados, sendo muito importante que eles possam

ser externados e compreendidos, pois trata-se de um remanejamento da vida que nesse

momento, encontra-se desordenada.

O estar enlutado configura-se, assim, num processo de inadequação social pelo qual passam aqueles que sofrem uma perda nos dias de hoje. Como efeito, temos o aprofundamento da dor e o afrouxamento daquilo que teria sido para o indivíduo enlutado como sentido de vida e de pertencimento social. Caracterizam-se também neste campo o enfraquecimento dos relacionamentos sociais e a fragmentação do enlutado enquanto sujeito na sociedade. (FREIRE, 2006, p. 78).

Para Freud “o luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de

alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal

de alguém.” (FREUD, 1917/1996, p. 249). A relação com o luto se dá através das crenças de

cada um, mas há algumas características que parecem comum à todas as formas de vivenciá-

lo. A saudade, os planos que não serão concretizados, a dor pela certeza de não ver mais

aquela pessoa, palavras que talvez não tenham sido ditas e que agora não poderão mais serem

faladas, o lugar que o falecido ocupava e que agora, vazio, coloca o enlutado em conflito com

a relação estabelecida com esse lugar, pois o luto somente ocorre quando existem laços

afetivos. John Bowlby fala sobre essa dor.

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A perda de uma pessoa amada é uma das experiências mais intensamente dolorosas que o ser humano pode sofrer. É penosa não só para quem a experimenta, como também para quem a observa, ainda que pelo simples fato de sermos tão impotentes para ajudar. Para a pessoa enlutada, apenas a volta da pessoa perdida pode proporcionar o verdadeiro conforto; se o que lhe oferecemos fica aquém disso, é recebido quase como um insulto. (BOWLBY, 1985, p.4).

O momento do luto é um período bastante delicado, com cargas emocionais

extremamente intensas e que requerem cuidados para que não se desencadeie um processo

destrutivo das pessoas envolvidas. Os rituais que a atual sociedade adota para o momento da

morte podem auxiliar no processo. O velório pode ser um facilitador na compreensão da

perda, pois fornece um tempo às pessoas para prestarem seus sentimentos em relação à pessoa

falecida. Muitas pessoas aproveitam esse momento para dizer aquilo que nunca foi dito antes,

são feitas declarações, homenagens e o enlutado sente que pôde fazer algo pela pessoa que

partiu. Horpaczky explica:

Ver o corpo da pessoa falecida pode, para alguns, ser uma forma de começar a ultrapassar isto e começar a superar a perda. Da mesma forma, para algumas pessoas, o velório e o enterro podem ser situações onde a realidade começa a ser encarada. Apesar de ser difícil lidar com estas situações, o fato é que elas constituem um modo de dizer adeus àqueles que amamos. Estes acontecimentos podem parecer demasiadamente dolorosos, mas o fato é que fugir a eles pode trazer problemas mais tarde, muitas vezes, provocando um certo arrependimento. (HORPACZKY, 2012).

O processo de luto é único e pessoal e sofre influências culturais, sociais e de padrões

familiares. Portanto, não deve ser tratado de forma padronizada, na tentativa de encaixar o

enlutado em uma categoria exata e assim tentar explicar e prever seus comportamentos.

Todavia, existe a possibilidade de se traçar um perfil coerente do processo, que pode se

manifestar em várias pessoas de forma semelhante. Para isso, existem teorias que explicam,

de diferentes formas, o processo de luto, separando-o por fases. Kovács traz a seguinte

definição para o luto: “O processo de luto por definição é um conjunto de reações diante de

uma perda” (KOVÁCS, 1992, p. 151). Ela também traz as fases do luto propostas por

Bowlby.

1. Fase de choque que tem a duração de algumas horas ou semanas e pode vir

acompanhada de manifestações de desespero ou de raiva. 2. Fase de desejo e busca da figura perdida, que pode durar também meses ou

anos. 3. Fase de desorganização e desespero. 4. Fase de alguma organização. (KOVÁCS, 1992, p. 151).

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O entorpecimento, a dificuldade de assimilar a perda num primeiro momento parecem

ser características comuns em todas as teorias que descrevem os processos de luto, pois a

primeira reação parece ser a de não acreditar no falecimento, não acreditar que aquilo está

acontecendo. Acredita-se que ver o corpo pode ser um momento que irá liberar o enlutado

desse entorpecimento, levando-o a aceitar que aquela pessoa não estará mais presente.

Após esse primeiro sentimento, outros vão dando sequência ao processo do luto,

conforme descrito nas fases acima, e precisam ser vividos e elaborados pacientemente. Nesse

processo a presença de familiares e de amigos é muito importante, palavras de conforto e

gestos amorosos auxiliam o enlutado a lidar com o momento ou até mesmo um ombro

silencioso ajudará na vivência da dor. O importante é que o auxílio seja honesto. Frases feitas,

a presença apenas para o cumprimento de um protocolo não são bem vindos nesse momento.

A sensibilidade nos momentos de luto é muito intensa e pode facilmente ser ferida, portanto, é

importante que as pessoas dispostas a ajudarem o façam honestamente e quando não há

palavras a serem ditas, é muito válido que a pessoa fale isso, pois a pessoa atravessando o luto

irá entender e irá encontrar espaço para falar ela mesma de sua dor.

Atrelada à essas fases, acontecem outras situações durante o luto que podem ser

consideradas normais, mas que em alguns casos precisa-se observar a intensidade para que

tais situações não desencadeiem num processo patológico. Freud pondera que “o luto, embora

envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais

nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento

médico” (FREUD, 1917/1996, p. 249). No entanto, é necessário observar alguns fatores para

se verificar a necessidade de uma intervenção no sentido de auxiliar a pessoa em processo de

luto. Kovács explica:

Em algumas fases do processo de luto podem acontecer identificações com o morto, por exemplo, quando a pessoa se percebe fazendo coisas de que o outro gostava. Podem ocorrer conflito e mal-estar quando a pessoa, de repente, se percebe fazendo coisas que nunca fazia, nem gostava, que eram as atividades do conjugue. Estes processos, que seriam considerados patológicos em outras instâncias, fazem parte normalmente do processo de luto. Eles se tornam patológicos se forem compulsivamente repetidos. A identificação pode ocorrer também quando o enlutado passa a manifestar os mesmos sintomas do morto, acredita que o morto está presente em certos objetos ou pessoas. Conforme o grau e a perda de contato com a realidade, estes fatos podem ser indicativos de aspectos patológicos. (KOVÁCS, 1992, p. 153)

A forma com que a morte ocorre também influencia bastante no processo, pois

existem diferenças em como a pessoa irá lidar com a perda caso ela tenha sido a conclusão de

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um processo sofrido desencadeado por uma patologia ou se ocorreu repentinamente, em um

acidente, por exemplo. O suicídio também estabelece algumas características no processo do

luto. Escudeira explica:

Nesse caso um alto grau de culpa e rejeição se estabelecerá. Pode vir o sentimento de que poderíamos ter feito algo para evitar o fato. Também sentimos raiva do morto por ter nos colocado em uma situação onde além de perdermos somos estigmatizados pela sociedade como alguém que não foi capaz de impedir o acontecimento. (ESCUDEIRO, 2012).

No caso de um assassinato, Escudeiro também diferencia:

Outro tipo de perda que leva a um luto mais dificultoso é a perda por assassinato. Sabemos que se o assassino continua solto após cometer o crime dificilmente a família ou o ente querido mais atingido conseguirá entrar no processo do luto enquanto o assassino não for apenado. As questões legais e a morosidade da justiça dificulta a entrada da pessoa no processo e o que se observa é um desejo de vingança ou justiça, que embotam outros sentimentos que deveriam emergir para facilitar o processo do luto. (ESCUDEIRO, 2012).

Escudeiro também fala da perda sem um corpo:

Outro tipo de perda de difícil resolução é a perda ambígua. Conforme (Walsh, 1998) a dificuldade em aceitar a realidade da perda e dar vazão ao processo do luto é a ausência do corpo do morto, nesse caso fica a sensação de que a qualquer momento a pessoa perdida poderá reaparecer. É muito difícil, por exemplo, para uma mulher que foi à praia com o marido e esse desaparece repentinamente no mar sem nunca mais retornar. O filho seqüestrado ou desaparecido leva a mãe à não se desligar mais do evento da perda e a esperança de reencontro poderá durar indefinidamente. (ESCUDEIRO, 2012).

Refletindo sobre as questões citadas: subjetividade, influências, formas de

falecimento, etc, pode-se pensar que, de fato, o luto é um momento que requer cuidados e

atenção por parte dos profissionais e das pessoas que cercam a pessoa enlutada. Trata-se de

um momento extremamente singular onde é preciso respeitar a maneira que cada um escolheu

para vivenciá-lo assim como o tempo em que se leva para a sua conclusão. É preciso dar

vazão aos sentimentos sufocantes. “É hora de destinar um lugar adequado para o ente querido

que não está mais aqui conosco, mas que poderá permanecer para sempre em nossas

lembranças” (ESCUDEIRO, 2012).

Como início do processo, é muito importante que a pessoa aceite a realidade da perda,

pois somente a partir dessa aceitação o luto pode ser vivenciado e posteriormente elaborado. É

importante viver as dores dessa perda e as consequências acarretadas por ela. A dor precisa

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ser sentida e vivida, de todas as formas que a pessoa encontrar para expressá-la. Muitas

lamentações chegarão, arrependimentos e culpas irão povoar a mente, sentimentos confusos

sobre todos os planos que incluíam a pessoa que partiu. Somente vivenciando essas situações

é que se poderá viver a nova vida que se estabelece, sem a presença física da pessoa amada.

Raimbault explica que o processo do luto só pode ser elaborado mediante algumas atitudes:

1. Uma desidentificação e um desligamento dos sentimentos em relação à morte. 2. A aceitação da inevitabilidade da morte. 3. Quando for possível encontrar um substituto para a libido desinvestida.

(RAIMBAULT apud KOVÁCS, 1992, p. 154).

A autora completa:

Se não tiver ocorrido este desligamento do objeto perdido, em cada nova relação se buscará coisas da anterior, com consequências desastrosas. [...] É necessário tempo para o processo de luto. O final deste processo, segundo Raimbault, é a possibilidade de ter paz, disponibilidade para novos investimentos. É a possibilidade de ter recordações, olhar uma foto e sentir a presença na ausência. (KOVÁCS, 1992, p. 154).

Hoje em dia existem diversos meios onde se pode encontrar auxílio para os períodos

de luto. Existem profissionais qualificados para atendimento dedicado ao tema, assim como

grupo de encontros; workshops e afins. Receber acompanhamento psicológico durante o

processo, conviver com pessoas que atravessam o mesmo momento e poder falar dos

sentimentos presentes pode ser de grande ajuda ao enlutado, auxiliando-o na elaboração da

perda.

A expressão de sentimentos numa situação de perda, como o abandono e a solidão, que evocam a raiva, a tristeza e a culpa, facilita a sua elaboração. Pode auxiliar no processo de desidentificação e na possível reinvestida libidinal, oferecer um ambiente acolhedor e de continência tão necessário nesse momento. O processo psicoterápico pode, em muitos momentos, configurar-se como um elemento preventivo para que não se desenvolva um processo de luto patológico. (KOVÁCS, 1992, p. 164).

Cassorla (1992), utilizando-se de teorias psicanalíticas, explica sobre as dificuldades

de elaboração do luto e propõe algumas soluções que auxiliam o processo.

Como elaborar melhor os lutos? Isto vai depender dos mais variados fatores que têm a ver com as “séries complementares”, descritas por Freud. Mas, não tenho dúvida de que alguns fatores socioculturais têm dificultado essa elaboração. A negação da morte, o terror que ela inspira, a falta de rituais que auxiliem na sua elaboração, e

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que têm a ver com momentos históricos, [...] são motivos importantes. A falta de auxílio individual, que poderia ser efetuado por profissionais de saúde treinados psicanaliticamente, é importantíssima. Comumente, e eu próprio tenho alguma experiência nisso, é de grande valia ouvir o paciente, desde que este não tenha conflitos muito sérios. Médicos, assistentes sociais e outros profissionais, não necessariamente psicanalistas, mas com uma visão da importância das fantasias inconscientes, pode ser de grande ajuda. (CASSORLA, 1992)

Não se pode discutir que o luto dói, Freud fala de uma transigência penosa e da

impossibilidade de se explicar essa dor tão peculiar (FREUD, 1917/1996, p. 251). O luto

apresenta ao enlutado um estado de profundo esvaziamento de sentido. Diante de tamanha

angústia e tristeza, a pessoa em processo de luto precisa se dar o direito de vivenciá-lo da

forma que der conta e pedir ajuda se julgar necessário. Antes de qualquer um, é ela quem

precisa se compreender no meio de toda a turbulência e se permitir lidar com ela no seu ritmo,

no seu tempo, pois assim como é sabido que dói, compreende-se também que passa e é o

meio do caminho entre esses dois extremos que se trabalha a elaboração do luto.

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5. METODOLOGIA

O presente trabalho foi realizado dentro da abordagem qualitativa que, segundo Gil

(1991), é bastante flexível de modo que facilita e possibilita a consideração dos mais variados

aspectos relativos ao tema que se pretende abordar. Ao tratar de sentimentos, emoções e

tantas outras questões tão subjetivas, esta abordagem é a que se mostra mais adequada.

Como método de pesquisa, foi adotado pesquisa de campo e pesquisa bibliográfica,

sendo a pesquisa de campo feita através de entrevista individual. Como recurso à pesquisa de

campo, a pesquisa bibliográfica buscou responder sobre as questões relacionadas ao tema,

assim como a postura que a psicologia adota perante ambos. O tipo de pesquisa proposto foi a

pesquisa descritiva, que, conforme explicado por Gil, “tem como objetivo primordial a

descrição de determinadas características de determinada população.” (GIL, 2002, p.42).

Sendo assim, esta forma de pesquisa foi capaz de fornecer maior subsídio para o que se

pretende investigar no presente trabalho.

O universo explorado é bastante amplo, tendo em vista o tema não pertencer à uma

amostra específica, mas à todos os seres humanos. Como instrumentos para coleta de dados,

as entrevistas se deram através de questões verbais, semi-estruturadas, gravadas (com a

devida permissão do entrevistado e com devido termo de consentimento assinado), gerando

um diálogo entre o pesquisador e a pessoa abordada para que se extraísse o máximo possível

de informação sobre o tema. Ou seja, permitiu-se que o entrevistado falasse livremente para

que a compreensão do processo fosse a mais fiel aos seus sentimentos. A amostra consistiu

em 05 pessoas entrevistadas, sendo 03 profissionais da psicologia, do sexo feminino, os quais

todos trabalham diretamente com pessoas enlutadas, seja através de atendimento individual,

seja através de grupos. Os profissionais entrevistados estão identificados através de nome,

sobrenome e profissão. Também foram entrevistadas 02 pessoas, do sexo feminino, em

processo de enlutamento, as quais foram identificadas através das iniciais de seus nomes e

idade. Uma pessoa foi indicada por um dos profissionais e a outra foi localizada pelo próprio

pesquisador.

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6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Após pesquisa bibliográfica realizada que possibilitou o compilamento de ideias nos

capítulos anteriores, associar-se-á a seguir a teoria às entrevistas realizadas, analisando-se,

como categorias de análise, a espiritualidade, a morte de um ente querido e o luto como um

contexto na vida das pessoas que sofrem a perda de alguém, assim como as possibilidades de

trabalho da psicologia no auxílio às essas pessoas. Tais categorias foram apontadas após as

entrevistas e serão descritas e analisadas a seguir.

6.1. Espiritualidade

A espiritualidade, como dimensão inerente ao ser humano, é expressa em diversos

momentos no decorrer da vida e suas formas de expressão variam consideravelmente de

acordo com várias características que vão desde a cultura até experiências pessoais e

certamente é uma das questões mais subjetivas às quais estamos sujeitos a vivenciar. “A

espiritualidade tem a ver com a expressão da subjetividade”. (Maria Emidia Coelho,

psicóloga). A questão da inerência, além de ser ressaltada por vários autores, apareceu nas

falas dos profissionais entrevistados. “A espiritualidade é um traço antropológico e universal

inerente a todo ser humano, quando a gente fala de uma necessidade de dar sentido à nossa

vida, à nossa existência.” (Maria Emidia Coelho, psicóloga). “Sobre a espiritualidade, eu

acho, eu acredito que é algo inerente ao ser humano, eu acredito muito que todo ser humano

tem”. (Júnia Drumond, psicóloga).

Muitas pessoas (senão todas) em algum momento da vida especulam sobre a própria

existência, sobre os mistérios que rondam o universo e toda a história da humanidade, e

encontra muito pouca resposta nesse sentido. Quando se fala em espiritualidade,

transcendência, Deus, ou qualquer fator relacionado à todo esse mistério, ficamos fadados às

teorias comuns e muitas vezes cada um vai tecendo suas próprias, baseando-se nos próprios

pensamentos e experiências. Sabe-se que de um modo geral a pessoas estão vivendo a vida

“como se não houvesse amanhã” e não estão dedicando tempo à questões desse tipo. Esse

momento citado acima, de especulação, geralmente é fugaz. Proporcionalmente, o que se

percebe é que poucas pessoas seguem em frente nessa busca pela transcendência e,

observando nossa atual sociedade, essa busca parece estar mais presente nos momentos

difíceis, de angústia e sofrimento.

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A religião é o meio mais comum em nossa sociedade de se vivenciar a espiritualidade.

É muito comum a confusão entre os termos espiritualidade e religião e parece ser uma

constante atrelar um ao outro, conforme as pessoas entrevistadas relataram. “Se não fosse a

espiritualidade, se não fosse a religião, eu não sei não, eu ia estar... não sei, uma atéia mesmo,

e aí que eu ia estar perdida, porque a gente tem que ter algum lugar para se apegar.”

(T.A.A.M. 61 anos). “No meu modo eu acho que a espiritualidade está ligada à religião.

Porque Deus é um espírito né, ele pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo”. (A.M.F.

68 anos). Mas fica claro que esses dois termos são completamente distintos e a espiritualidade

se estabelece independentemente da religião. Conforme descrito por HENNEZEL e LELOUP

(1997), a religião é um meio de expressão da espiritualidade e certamente não é o único. As

psicólogas entrevistadas concordam e separam os termos, não excluindo assim as

possibilidades de interação entre eles.

Eu acho que a espiritualidade vai além dessa questão religiosa. Ela não é simplesmente uma demanda de buscar uma crença religiosa, uma resposta para suas dúvidas ou seu sofrimento. [...] a espiritualidade pode sim ser manifestada através de uma crença religiosa e é o mais comum de a gente perceber, a espiritualidade sendo expressa através da religião. Mas ela vai muito além da religião. [...] Espiritualidade não é um ritual de crença, ela vai muito além disso. (Maria Emidia Coelho, psicóloga). “A espiritualidade vai muito além da religião, é uma crença em algo maior, algo superior a esse plano terrestre que a gente vive, de que a gente veio com um propósito de que há algo que transcende a esse nível terrestre, [...] então esse transcendental pra mim é muito maior do que as religiões. As religiões são uma manifestação, uma busca por nomear um pouco essa fé”. (Júnia Drumond, psicóloga).

“Eu acho que a espiritualidade não está atrelada na religiosidade, mas eu vejo que

talvez ela possa ser facilitada na medida em que você vai vivenciando e participa de qualquer

religião”. (Vanessa Bittencourt, psicóloga).

A elaboração dessa distinção se faz fundamental para que a espiritualidade seja

vivenciada de forma plena e positivamente significativa na vida das pessoas. É necessário que

se compreenda que a religião, conforme exposto anteriormente, é um meio de expressão da

espiritualidade e ela só fará sentindo e diferença se a pessoa se reconhecer naquele processo

proposto pela religião, ou seja, o cumprimento dos rituais, as orações, os eventos necessários

como meios de se professar aquela fé deverá fazer sentido para o sujeito, ele deverá fazer

conforme seu entendimento e desejo e não automaticamente, conforme aponta as psicólogas

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Maria Emidia Coelho e Júnia Drumond, mais abaixo. Espiritualidade está muito além dos

mecanismos convencionais os quais estamos acostumados a lidar.

Portanto, torna-se claro que é possível falar de espiritualidade sem a necessidade de

atrelá-la à religião, pois suas inúmeras formas de expressão nem sempre se relacionam à

religiosidade, como por exemplo, as relações, a amizade, o altruísmo, que muitas vezes levam

as pessoas à um sentimento para além do físico, para além do plano terrestre. Também pode-

se falar da meditação, que busca uma transcendência sem necessariamente se apegar à uma

entidade e que objetiva um encontro transcendental.

Fica evidente, ao longo dessa pesquisa, que nos momentos difíceis a espiritualidade se

torna um fator bastante positivo e facilitador que permite vive-los de forma mais amena. No

caso do luto, ela se apresenta sim como um meio de significar a perda e de poder elaborar o

processo de forma menos sofrida.

A espiritualidade vai ajudar aquela pessoa a ter uma visão diferente com relação ao luto, talvez até se abrir um pouco mais, até para se relacionar, talvez não diretamente ao luto, mas para viver essa espiritualidade e o significado dela. [...] Na psicologia [...] a gente vê a importância dessa espiritualidade em que vários estudos aí comprovam, quando a pessoa tem um embasamento, uma espiritualidade, uma fé, uma religiosidade, ela passa pelas adversidades da vida de uma forma diferente. (Vanessa Bittencourt, psicóloga).

A espiritualidade vem como uma alternativa de saúde. Traz conforto, esperança de um propósito, traz um sentido para vida e para a morte, faz com que a coisa seja um processo e não um fim. Ajuda e conforta. [...] A espiritualidade ajuda e ajuda muito, é comprovado cientificamente que a pessoa que tem uma fé genuína lida com qualquer perda muito melhor que uma pessoa que não tem, já é comprovado. [...] Em geral a espiritualidade, a gente percebe, é como se ela fosse um último suspiro no meio de uma dor muito profunda, que ainda segura a onda daquela pessoa, ela ajuda muito, desde que ela seja bem cuidada, bem trabalhada, de uma maneira saudável. [...] Em muitos casos a pessoa acaba entendendo novos valores, relativizando questões que eram muito absolutas para ela, a qualidade de vida melhora depois que ela trabalha bem essas questões diante da morte, diante da perda. (Júnia Drumond, psicóloga). Uma coisa muito importante, para as pessoas mais espiritualizadas, que têm uma busca interna mais intensa, que procuram dar um sentindo e um valor à vida, agregar valor e significado, elas lidam com a morte de uma forma mais natural e consequentemente têm um luto bem mais tranquilo, sofrem do mesmo jeito, mas aceitam a morte como uma contingência natural da vida. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Em alguns momentos da pesquisa, a busca da espiritualidade como um facilitador

apareceu como parte do processo, muitas vezes como última alternativa para aliviar o

sofrimento. “As pessoas buscam como último recurso, [...] é comum pessoas que não eram

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tão espiritualizadas e que nesse momento de dificuldade apelam para algo como se fosse o

último recurso para sobreviver àquela perda maior”. (Júnia Drumond, psicóloga). A

espiritualidade como auxílio pode aparecer depois de vários momentos de negação da própria

fé. “Na fase do luto é muito normal as pessoas se rebelarem contra Deus ou o nome que ele

tiver aí, perdem a fé, lá pelo quarto mês, as pessoas ficam descrentes, questionam porque

Deus levou aquela pessoa, começam a perder a fé”. (Júnia Drumond, psicóloga). De fato, as

pessoas entrevistadas que vivem ou vivenciaram o luto afirmam que na hora da perda a fé

falha e é preciso uma elaboração da relação espiritual para se voltar às crenças e assim usá-la

positivamente.

O pior é que a gente enfraquece, quando a gente está dentro do problema a gente enfraquece. Muitas vezes deixa de buscar [...] eu não sei explicar porque, eu acho que não é só eu, mas a maioria das pessoas. Quando está dentro do problema, dentro da dificuldade, enfraquece um pouco, a fé abala um pouco. [...] Mas aí eu mesma me sacudi, eu falei, onde está sua fé? E Deus me deu livramento. [...] Na hora do sufoco a fé da gente abala. (A.M.F. 68 anos).

Como era esperado, o inverso, que é recorrer à espiritualidade como primeira

alternativa para lidar com a dor, também acontece, comprovando que a vivência espiritual é

subjetiva e única. “A partir dessa dor, a minha busca se intensificou muito, muito, mas demais

mesmo. A ponto de eu começar a achar que eu estava começando a ficar fanática, que eu

estava perturbada”. (T.A.A.M. 61 anos).

Percebeu-se, através de algumas falas, a importância de se ter bem esclarecida a

relação espiritual, pois como já dito, existe uma confusão em relação à religião e à

espiritualidade e essa confusão pode trazer consequência danosas à vida das pessoas. Muitas

vezes a busca pela espiritualidade, sem uma compreensão, sem o devido esclarecimento do

seu sentido na vida do sujeito, é feita de forma ambígua, oscilando entre revolta e redenção o

que, muitas vezes gera culpa para pessoa fazendo com que o sofrimento vivido aumente ainda

mais.

As pessoas ficam descrentes, questionam porque Deus levou aquela pessoa, começam a perder a fé... Aí vem um desinformado que diz que ele não pode ser rebelar contra Deus, que é pecado e aí além da dor da perda, ela vai ter a dor de uma culpa para ela remoer, que pode levar mais culpa do que melhoria, do que ajuda, que tem muito a ver com a desinformação, que não entendem o que há de maior por trás da religião, daquele amor incondicional, daquele ser superior que não é cheio de falhas como a gente. (Júnia Drumond, psicóloga).

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Essa busca desenfreada e, muitas vezes, equivocada, tem muito a ver com a tendência

das pessoas necessitarem de uma razão concreta, de encontrarem respostas, um consolo para o

acontecido. No entanto, feito dessa forma, essa busca não encontrará os resultados esperados.

No caso do luto, a busca pela espiritualidade é a busca de uma explicação, de um significado, e as vezes de forma desesperada, totalmente inconseqüente às vezes. [...] Se é uma busca de crescimento e não só de resposta, pode surtir muito efeito. Agora, se é uma busca totalmente inconsciente, só querendo uma resposta, por que morreu? Não vai ajudar, não. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Pode-se pensar que o desejo por respostas explique o fato de muitas pessoas buscarem

o espiritismo nesses momentos de perda, tendo em vista ser esta religião que propõe uma

teoria da continuidade da vida após a morte e a possibilidade de comunicação com esse ente

que partiu.

Na minha prática o que eu percebo é o seguinte, que o espiritismo é uma religião que propõe e aborda muito essa questão da morte, do contato com essa pessoa que se foi, de um recado... E isso para eles é precioso. Então quando a pessoa perde um ente querido, ter a esperança de receber um recado é uma coisa importantíssima para ele. [...] Eu já tive vários casos em que a pessoa nunca tinha ido e aí em alguns momentos a pessoa balança na fé e nesse momento que ela balança ela procura outras religiões. E em muitos momentos o espiritismo dá um embasamento para eles, não é um embasamento, é uma confiança e uma esperança. Eles passam a buscar os encontros, as palestras espíritas, porque eles falam muito de como deve ser... (Vanessa Bittencourt, psicóloga). Para algumas pessoas a necessidade de ter uma resposta concreta é que muitas vezes leva à essa busca, principalmente no espiritismo. Eu separo muito espiritismo da espiritualidade, mas parece que o espiritismo tem uma forma de abrandar a dor dessas pessoas com algumas respostas concretas. Por isso que muitas vezes as pessoas buscam isso. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

O apego à uma religião na tentativa de facilitar os momentos difíceis ou a própria vida

e buscar vivenciar a espiritualidade é um caminho que merece um maior e melhor

esclarecimento. Muitas pessoas se apegam, na verdade, aos dogmas impostos e colocam os

rituais no centro do exercício da fé, preocupando-se pouco com verdadeiro sentindo daquelas

ações para a própria vida. Seguir uma religião fielmente (e isso é muito diferente de vivenciar

a espiritualidade) muitas das vezes parece como um cumprimento de dever social. A

aprovação de um pastor ou de um padre, ou de um rabino às vezes parece ter maior peso do

que a própria aprovação da pessoa quanto aos seus atos. “Na maioria das vezes, eu diria, que

as pessoas têm uma relação com a prática religiosa sem consciência, vai à missa porque é um

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ritual que tem que ir, vai e não sabe nem o que está fazendo lá, repete as coisas de uma forma

muito automatizada” (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

A gente vive numa sociedade que as pessoas tem uma religião, mas elas não sabem muito bem sobre essa religião que elas dizem ter, se dizem religiosas, mas eu percebo que essas pessoas são muito pouco informadas a respeito daquela religião. [...] Essa fé pobre, essa religiosidade não cultivada saudavelmente, com conhecimento rasteiro, pode prejudicar em alguns momentos e aí tem um efeito mais maléfico do que benéfico. (Júnia Drumond, psicóloga).

A pesquisa de campo junto aos entrevistados trouxe uma perspectiva que corrobora

com a teoria citada nos capítulos anteriores, que é da espiritualidade diretamente ligada às

relações, ou seja, as relações parecem ser fundamentais para se vivenciar a espiritualidade

verdadeiramente. “A disponibilidade integral de escuta, de estar com o outro, isso pra mim

que é espiritualidade”. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Porque eu vejo a espiritualidade como uma coisa muito íntima, mas que, além disso, te remete às relações, então ela é intima, mas ela te remete quando você busca determinadas questões relacionadas à espiritualidade... Fazer isso sozinho eu acho muito difícil, espiritualidade envolve relações. Não é só falar da espiritualidade, do ser ali com a sua espiritualidade, eu acho que isso facilita também essa convivência. Eu vejo muito a espiritualidade nessas duas vertentes, que é uma coisa muito íntima, mas que ela envolve relações e aí quando vai envolvendo relações é favorável para a pessoa. [...] Eu acho que a espiritualidade esta nas relações, (Vanessa Bittencourt, psicóloga).

Talvez essa seja uma perspectiva demasiada cristã, mas o fato é que de todas as formas

de expressão da espiritualidade colocadas aqui e mesmo aquelas que não foram abordadas,

remete à alguma relação com alguma coisa, ainda que seja uma relação consigo mesmo. E,

correndo-se o risco de se fazer aqui apologia à alguma ou algumas religiões e/ou teorias,

acredita-se que a busca por relações saudáveis, a doação de amor, atenção e respeito por um

outro e por si mesmo seja a forma mais simples e acessível de expressão da espiritualidade.

6.2. Morte de um ente querido

A perda de um ente querido é uma das dores mais intensas à qual o ser humano está

sujeito e promove mudanças substanciais na vida dele. A ausência de alguém com quem havia

o hábito de uma convivência, uma rotina, uma relação prazerosa, desencadeia sentimentos

intensos e perturbadores e muitas vezes difíceis de serem nomeados. “Ah, não tem jeito de a

gente definir, é muito forte, muito forte mesmo, a gente fica muito carente né, as vezes

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qualquer coisa que outras pessoas falam com a gente a gente fica nervosa, a gente irrita, a

gente fica muito sensível mesmo”. (A.M.F. 68 anos). Pode-se dizer que se trata de uma perda

de referência. “Eu senti como se eu tivesse caindo, caindo, caindo num lugar totalmente

desprotegida, é como se diz mesmo, o seu chão acaba”. (T.A.A.M. 61 anos). Viorst (2012)

estabelece algumas condições que irão caracterizar os sentimentos presentes na perda de um

ente querido.

Como lamentamos e, ou se, nossa lamentação vai terminar depende do modo como sentimos nossa perda, depende na nossa idade e da idade de quem perdemos, depende de o quanto estamos preparados para isso, depende de como a pessoa sucumbiu à mortalidade, depende das nossas forças interiores e do apoio externo e, sem dúvida, depende da nossa história – nossa história do lado da pessoa que morreu e nossa história individual de amor e de perda. (VIORST apud RODRIGUEZ, 2009).

É um momento extremamente pessoal e com reações subjetivas. O choque inicial

desestabiliza, os pensamentos são incoerentes e atravessam a mente de forma rápida e

confusa. É comum as pessoas terem nesse primeiro momento um sentimento de revolta e

injustiça, questionando o acontecimento como algo planejado pelo universo. “A gente faz

muitos questionamentos, sobre a injustiça, o fato de aquela pessoa ser tão boa e ter ido,

quando há tantos bandidos por aí, como se a vida fosse muito justinha e não é. Ninguém está

livre da morte, da perda”. (Júnia Drumond, psicóloga).

As circunstâncias em que a morte ocorreu influenciam bastante as reações, pois não se

pode negar que a notícia chega de um jeito, no caso de pessoas enfermas cujo diagnóstico

deixa claro a possibilidade de um falecimento, e de outro completamente diferente no caso

das mortes repentinas. “Uma morte acidental, repentina por exemplo é muito mais trágica e

um dificultador nesse processo de elaboração e aí a pessoa fica muito mais transtornada”.

(Júnia Drumond, psicóloga).

Conforme apontado anteriormente, o ser humano não é preparado para morte,

especialmente na nossa sociedade ocidental, existe uma tendência em negar a morte lidando

com ela como um fator alheio à vida. Atualmente, vive-se numa sociedade onde perder tem

uma conotação altamente negativa e faz-se todo o possível para fugir dessa possibilidade. Mas

da morte não se foge, ela chega, mais cedo ou mais tarde.

Já há algum tempo as pessoas tem uma tremenda dificuldade de tudo que se refere a perda, então assim, de perdas pequenas, materiais até a morte que a maior de todas, é sempre uma negação atrás da outra, a gente incentiva a todo tempo a produzir, ganhar, a ter resultados, a ganhar, a ser feliz, como essa sociedade de facebook,

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sempre de festa, com alegria, muitas festas, você tem milhões de amigos, fotos maravilhosas, e aí e uma frustração danada, porque aí a pessoa olha e diz puxa está todo mundo bem, só eu estou mau. Vende-se uma imagem muito diferente daquilo que o ser humano é de fato. Que bom que temos vínculos construtivos, mas perdas fazem parte da vida, isso é inerente ao ser humano, desde quando a gente nasce a gente começa a perder, o conforto do útero, e ai vai para o resto da vida, a gente precisa perder inclusive para poder ganhar, novas etapas, crescimento, só que a gente não é ensinado dessa maneira, a sociedade nada em direção opostas à essa realidade. Aí grande parte dos conflitos nessa situação é como é difícil as pessoas se depararem com essa mortalidade, de que a gente não é super-homem. Então a gente se angustia bastante, porque a gente não é preparado para isso. (Júnia Drumond, psicóloga).

Essa negação acaba que traz mais sofrimento para lidar com a morte e pode-se pensar

que toda essa dificuldade de aceita-la como parte natural da vida seja o fato de nos momentos

de perda de pessoas próximas, as pessoas tendem a refletir sobre a limitação da vida e total

falta de controle no processo de viver e é interessante lembrar que o homem é o único ser vivo

que tem consciência de sua morte (FREIRE, 2006).

“Falar da morte é algo muito complicado, porque a gente se depara com a própria

morte, a própria finitude”. (Maria Emidia Coelho, psicóloga). Sendo assim, a morte de um

ente querido além de trazer a dor da ausência da pessoa amada, desencadeia sentimentos em

relação ao término da própria vida. E com a ausência dessa pessoa, por mais que doa,

percebe-se que a vida tem sua continuidade, os dias e as noites passam da mesma forma, as

coisas não deixam de acontecer por que aquela pessoa se foi e, portanto, não deixarão de

acontecer quando cada ser humano partir um dia. “Imagina o tanto que é duro a gente saber

que o mundo já existia antes de você existir e que vai continuar a existir mesmo que você... a

gente não para pensar nessas questões e isso é muito angustiante”. (Maria Emidia Coelho,

psicóloga).

A morte de um ente querido é um acontecimento que não se resume à um curto

período entre a morte em si e os rituais que se seguem após. Para as pessoas próximas é um

acontecimento que demanda tempo para ser compreendido e elaborado. Trata-se de um

processo que precisa ser vivido à maneira de cada um para então entender aquela perda como

parte da vida, que traz dor e lembranças mas que também pode trazer alegria de ter tido a

chance de dividir momentos com o aquela pessoa querida que partiu.

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6.3. Luto

“O luto é o lento processo de redefinição do nosso mundo sem a presença de alguém

que amamos”. Essa definição de Guedes (2012) para esse período tão perturbador explica de

forma simples um dos momentos mais difíceis que uma pessoa enfrenta na vida. É um

momento onde muitas coisas precisam ser restabelecidas. Existe um desajustamento da vida,

da rotina, dos costumes e, dependendo do vínculo com a pessoa que morreu, aquele que fica

vivencia períodos de profunda dor, angústia e sofrimento e muita dificuldade de se

reestruturar numa nova rotina. “Eu me via às vezes fazendo mais comida, fazendo quiabo, não

sei o que... aquele tanto. Aí eu dizia, gente pra que esse tanto de comida... aí eu caía no choro

e não comia mesmo”. (T.A.A.M. 61 anos).

O período do luto compreende várias fases que diferem para cada pessoa e que são

vividas na medida das possibilidades de cada um. Essas fases não são, de forma alguma,

rígidas, elas não têm uma sequência exata e não são, necessariamente, todas elas vividas pelo

enlutado. Elas aparecem no sentido de nortear e compreender o momento que a pessoa em

luto está vivenciando e assim facilitar um entendimento tanto dela mesma quanto das pessoas

que estão próximas à ela, auxiliando na construção de um novo sentido, de uma

ressignificação para a vida. “Eu vejo que as vezes realmente (as fases) prevalecem, é uma

característica no geral, claro, em tempos diferentes, uns mais, outros menos, a gente sabe que

muitas vezes essas fases são cíclicas, elas não tem uma ordem, isso eu vejo que prevalece

sim”. (Vanessa Bittencourt, psicóloga).

Como a Kübler Ross fala, quando ela estabeleceu as cinco fases, ela não queria dizer que aquilo era uma coisa rígida, isso é dinâmico, então as pessoas passam pelas fases de uma forma dinâmica, ela vai e volta, como também às vezes ela não sai de uma mesma fase, às vezes ela fica na raiva até morrer, e isso acontece com profissionais e com a família. Então quando a gente compreende essas fases é mais fácil da gente conduzir o processo, principalmente quando a gente está no lugar de acompanhar uma pessoa enlutada, como profissional, é importante a gente conhecer isso para que você entenda que as reações tem um sentido dentro daquele contexto e quando elas são acolhidas a pessoa se sente compreendida e isso facilita a elaboração da perda. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

A fase inicial se caracteriza pelo entorpecimento diante da notícia, o susto de saber

que aquela pessoa morreu. Essa fase geralmente é confusa, com pensamentos diversos e

oscilantes. É muito comum nos velórios e até nas missas de sétimo dia, as pessoas se

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desesperarem, gritarem, algumas passam mal, chegando a desmaiar, minutos depois se

recompõem, outros minutos depois se desesperam novamente. Sobre a fase inicial:

O começo do luto é um período de muita turbulência, de muito... De tudo muito, de muita tristeza, de as vezes muita revolta, o que faz com que a pessoa fique um pouco anestesiada, num estado de choque mesmo, sem entender aquela realidade, como se tivesse vivendo um sonho, então é como se ela estivesse sendo levada por um furacão, que tivesse passado pela vida dela ali. (Júnia Drumond, psicóloga).

É muito comum num primeiro momento muita raiva, que às vezes é expressa de maneira agressiva, as pessoas ficam meio que com raiva do mundo e é muito comum uma raiva de Deus, porque Deus faz isso comigo? [...] Por que comigo? Por que agora? E isso às vezes, dependendo da pessoa, gera um comportamento agressivo, que passa, mas... Nos primeiros dias a pessoa meio que perde o centro, a rotina, se houve uma doença prolongada, mais ainda a pessoa as vezes fica desorientada, pois ela estava muito envolvida na rotina dos cuidados diários e quando a pessoa morre ela se pergunta o que fazer. Os pensamentos ficam confusos, o sono fica alterado, o apetite fica alterado. Tanto que é difícil a gente trabalhar nos dois primeiros meses, porque a pessoa quase que não tem condição psíquica de elaborar absolutamente nada. Ela está vivendo um transtorno tanto físico quanto psíquico e tudo fica alterado, as funções de sono, apetite, digestão e geralmente com duas semanas a pessoa começa a se aprumar de novo, algumas já começam a pensar em voltar trabalhar, assumir as atividades normais. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Essa fase, de certa forma, acaba sendo também a fase onde se encontra mais suporte

para o desabafo, pois as pessoas ficam mais próximas.

Mas é um momento também que tem muitas pessoas por perto, está tudo muito recente, todo mundo muito preocupado, muito próximo uns dos outros, óbvio que isso também muitas vezes acontece ao contrário, tem pessoas que não tem uma família, não tem um suporte e tal, mas de uma maneira em geral é um momento que tem muita gente perto e que é marcado por um estado de choque, um anestesiamento mesmo. (Júnia Drumond, psicóloga).

No entanto, o que se percebeu na pesquisa é que não é esse início do luto o mais difícil

de ser vivenciado. É o período que se passa, podendo variar entre a terceira semana e o

segundo, terceiro mês, que o enlutado experimenta suas maiores angústias da perda. Nesse

período, as pessoas próximas retomam a rotina e começam a esperar uma melhora do

enlutado, como se o luto tivesse prazo para acabar e aí começa um processo de, além da dor,

muitas cobranças.

Depois desse estágio inicial que tem muitos rituais, que é recheado por várias comemorações, de sete dias, de um mês e tudo mais, tem uma fase que as pessoas começam elas mesmas se cobrarem para melhorar, quem está em volta já começa a esperar uma melhora e quem está em volta também acaba que se afasta um pouco

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por conta de esperar que essa pessoa já esteja num caminho de melhora desse sofrimento inicial. Só que é justamente a fase que esse estágio de choque começa a parar, a diminuir e aí vem o que a gente brinca de cair a ficha sabe, olha morreu, eu estou com minha vida toda atrapalhada, a rotina toda mudada, tudo em volta de mim mudou muito, alem de uma perda efetiva, uma dor no coração tremenda e que não tem jeito, é irreversível, é isso aí, eu não estou sonhando, eu estou numa realidade muito cruel. E aí quando essa ficha cai, junta tanta pressão de estar melhor tanto da própria pessoa como das pessoas que estão em volta, é um período muito, muito difícil, a gente costuma dizer que é o olho do furacão, é o período mais difícil, não é o período inicial, é por volta de 3, 4, 5 meses, que a pessoa se encontra mais sozinha talvez, desamparada, as pessoas tocando o rumo da vida e aí ela se encontra nesse momento que a ficha está caindo e percebendo uma realidade cruel, é muito doloroso, muito doloroso, então não é incomum a gente perceber que as pessoas questionam por estarem tão pior do que estavam, eu devia estar melhorando, agora eu estou pior, tem alguma coisa errada acontecendo, é nesse momento que a gente costuma receber as pessoas. (Júnia Drumond, psicóloga).

Geralmente com duas semanas a pessoa começa a se aprumar de novo, algumas já começam a pensar em voltar trabalhar, assumir as atividades normais. Mas algumas pessoas têm um tempo maior, elas não conseguem voltar tão rapidamente, e como nossa cultura não tem nenhuma preparação para a morte, a gente não tem nenhuma educação para a morte, a gente é ensinado a negar a morte o tempo inteiro. Então o que que acontece de uma forma geral? Há uma pressão da sociedade para você voltar rapidamente para as suas atividades, seja criança ou adulto. E isso as vezes pode ser muito prejudicial porque se a pessoa não está pronta ainda para assumir as atividades, ela pode incorrer no que a gente chama de um luto mais complicado, ela pode ter sintomas de depressão, uma agitação que podem se transformar em sintomas físicos e as vezes precisar ser medicada. (Maria Emidia Coelho).

Fica claro que o restabelecimento após a perda de um ente querido não tem data para

iniciar e esse período, tão subjetivo, precisa ser respeitado pelas outras pessoas, para que

cobrança e culpa não sejam agravantes nesse momento de tanto sofrimento. De acordo com as

falas, percebeu-se que a dimensão da dor de uma pessoa que enfrenta um luto é muito difícil

de ser compreendida por alguém que nunca passou por essa experiência e ao mesmo tempo

falta ao enlutado palavras para expressar o que está sentindo, pois muitas vezes ele não vai

conseguir verbalizar tamanho sofrimento e diante disso muitas vezes falta sensibilidade das

outras pessoas em compreender essa realidade.

Depois de um tempo prevalece a queixa da solidão, da dificuldade em poder falar desse luto, isso acontece muito. E aí eu até estendo mais. Até determinado momento da vida as pessoas são escutadas, daí um tempo elas se sentem cobradas no sentido de concluir o luto, cobrada do outro. Elas se sentem como se fossem caladas nessa dor. Muitas dizem que não podem falar mais do filho que morreu, as pessoas dizem “nossa, você ainda está falando?”. Então eu escuto muito “quando eu estou chorando os outros falam: você ainda está chorando?” Muitas vezes eu quero falar daquela pessoa, eu quero ver uma foto daquela pessoa. Então tem uma queixa de solidão, de desamparo. Então eu vejo que isso tem predominado muito. Muitas vezes eu vejo que a família, na intenção de ajudar, tem atitudes até evasivas e a pessoa fica tão ressentida daquilo. Tem pessoas que querem desfazer dos pertences, tem outras que levam mais tempo, tem outras que não querem, e fica uma cobrança dos outros por

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uma atitude. Essa queixa é muito constante e esse sentimento faz com que as pessoas se sintam sozinhas. (Vanessa Bittencourt, psicóloga).

Como auxílio à coleta de dados, durante a pesquisa, participou-se de dois encontros de

pessoas enlutadas. O primeiro foi o API – Apoio à Perdas Irreparáveis – organizado pela

psicóloga Gláucia Tavares. O segundo foi o GAL – Grupo de Atendimento a Enlutados – que

é um grupo criado pela SOTAMIG (Sociedade de Tanatologia de Minas Gerais) com o apoio

da Associação Médica de Minas Gerais, cujas coordenadoras são a psiquiatra Mariel Partule e

a psicóloga Júnia Drumond e atende pessoas em no mínimo dois meses de luto. Ambos os

encontros são gratuitos e abertos ao público.

Nesses encontros, pôde-se perceber claramente que, para o enlutado, poder falar

abertamente de sua dor é fundamental. As pessoas falavam de uma dor muito íntima e própria,

mas ao mesmo tempo, pareciam aliviadas de poder falar disso, de expor os sentimentos, falar

da pessoa que partiu, lembrar de momentos, características pessoais, apareceu todo tipo de

comentário, inclusive sobre as preferências entre sepultamento e cremação. Percebeu-se que o

importante era falar, expor aquele sentimento o tanto quanto podiam, aproveitar aquele espaço

justamente criado para isso. E poder falar disso com outras pessoas que passam pelo mesmo

momento, que compreendem o estado daquele sujeito, parece ser extremamente benéfico,

proporcionando alívio e permitindo que a pessoa se sinta aceita na sua angústia.

A relação que era estabelecida com a pessoa que morreu, o grau de parentesco, o

tempo de convivência são fatores que influenciam no luto e muitas vezes tornam-se um fator a

mais para lidar durante o processo. Tal afirmação se faz diante de situações observadas nos

encontros, como por exemplo, o caso de um casal que perdeu um filho de quase dois meses de

idade. Sempre que eles iriam falar, eles justificavam o pouco tempo de convivência com o

filho como se esse detalhe fosse capaz de ilegitimar a dor deles diante da dor dos demais, que

perderam pessoas adultas. No entanto, fica claro que o tempo de convivência não é capaz de

limitar a dor, até porque apesar dessa criança ter estado com seus pais apenas por quase dois

meses, existe todo o investimento relativo à ela muito antes dela nascer e que, sem dúvida,

conta nesse processo de perda.

Foram observadas pessoas em luto recente, menos de um mês, e outras que já

perderam o ente querido há mais de um ano e o que se observou é que o tempo é muito

relativo no sentido de aliviar a dor da perda. O sentido da dor exposto nas falas pareceu ser o

mesmo, independente do tempo do luto. “O trabalho de luto não tem um tempo definido e a

gente não sabe o que vai dar. Cada caso é um caso”. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

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Conseguir lidar de forma mais tranquila, mais conformada com a morte da pessoa querida,

conseguir dar continuidade à vida com menos pesar pela perda pareceu ser uma característica

mais relacionada à personalidade do enlutado do que com a passagem do tempo, ou seja, se a

pessoa tem uma tendência a ser mais compreensiva, mais tolerante com os momentos difíceis

durante a vida, se ela tem um esclarecimento melhor, uma maior sabedoria sobre o processo

de viver, ela tende a lidar mais brandamente com o luto desde o princípio.

Passados alguns meses, a pessoa enlutada tende a começar a organizar sua vida, agora

sem a presença da pessoa que faleceu e, portanto, em um novo contexto. É um período em

que os estados de ânimo oscilam muito e a pessoa começa a se restabelecer, organizando sua

rotina novamente. A impressão é que a pessoa reaprende a viver, dependendo do vínculo com

a pessoa que morreu, é um processo de reaprender a fazer as coisas que antes eram feitas com

o falecido, reconhecer as outras pessoas amadas que estão próximas e se permitir dar

continuidade à vida, entendendo que isso não é uma traição à pessoa que morreu.

Depois disso, de um tempo de mais ou menos uns dois ou três meses começa a de novo acalmar o coração, que a pessoa começa a se sentir forte, tanto no emocional dela mesmo, uma rede social legal que também possa ajudar nessa força, elas passam por esse serviço, e aí até completar o período do primeiro ano é um período de muitos altos e baixos. De começar a melhorar, acordar um dia e nossa eu estou disposta, eu estou com vontade de ir ao cinema, de voltar a trabalhar, isso e aquilo... E aí um ou dois dias depois ela acorda de novo e fala assim, estou mal. Normalmente isso acontece muito perto de datas comemorativas, aniversário tanto de nascimento como falecimento, lembrança de quando a pessoa internou no hospital, dia das mães, dia dos pais, dia dos namorados, enfim. Essas datas acabam fazendo com que as pessoas relembrem e acabem revivendo um pouco daquela dor. Até completar esse primeiro ano é um período de realmente muitos altos e baixos. (Júnia Drumond, psicóloga).

Em situações que a elaboração do luto ocorre dentro de um período esperado e com

reações que não denunciem nenhuma anormalidade, a pessoa começa a levar a vida mais

tranquilamente, com os sentimentos mais compreendidos e começa a fazer as coisas que

gosta, começa a pensar em outras formas de ter prazer, de se divertir, sua atenção se foca em

outras coisas do cotidiano.

O segundo ano já é o começo da elaboração do luto. Não são dois anos de sofrimento aí constante e o primeiro é com certeza o mais difícil, no segundo a pessoa ainda não encontrou um novo sentido, não se estabeleceu completamente naquela nova vida, mas já começa a vislumbrar a possibilidade de isso acontecer e a procurar seus próprios recursos para entender como ela vai viver agora sem aquela parte dela. Então o segundo ano seria o ano de encontrar essas novas possibilidades, dar um novo significado para a vida dela. O luto é muito característico por ter um

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processo, com começo, meio e fim. Isso seria o natural, o esperado. (Júnia Drumond, psicóloga).

Quando o luto ocorre após um longo período de tratamento da pessoa que morreu e

que demandou um cuidado maior do enlutado, esse processo também tende a trazer, junto

com a dor da perda, outros sentimentos a serem organizados, pois além da ausência da pessoa

querida, perde-se toda uma rotina que estava estabelecida naquele cuidado, deixando um lugar

vago na vida dessa pessoa, fazendo com que ela tenha que encontrar outras formas de ocupá-

lo. “Eu lembro mais do sofrimento, foram quatro anos. [...] foi um ano e pouco depois,

quando minha ficha caiu que ele não ia voltar”. (T.A.A.M., 61 anos).

Se houve uma doença prolongada, mais ainda a pessoa as vezes fica desorientada, pois ela estava muito envolvida na rotina dos cuidados diários e quando a pessoa morre e ela se pergunta o que fazer. [...]. Se realmente você não se apegar em algo mais que te dê força, que te sustente, é difícil. Principalmente quando é o caso de uma doença prolongada, porque o desgaste emocional, físico, a desestruturação, as desorganizações que vão acontecendo são muito intensas, então é necessário alguma coisa que sustente, que ajude nesse processo porque sozinho as vezes é meio difícil, alguma sequela vai ficar disso. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

O luto é um período pessoal e a pessoa em processo de luto precisa e deve vivê-lo de

forma própria, sem cobranças ou culpa, entendendo que é um processo e, portanto, irá passar.

Mas até lá, até a elaboração se dar por completo, o luto é para ser vivido como uma etapa da

vida, que irá trazer inúmeros sentimentos e também aprendizagem.

6.4. Psicologia e espiritualidade no processo de luto

Ficou claro, de acordo com o estudo realizado, que é possível uma atuação

profissional diante do luto usando-se como auxílio a espiritualidade da pessoa enlutada. De

forma alguma, esta característica deve ser ignorada pelo profissional, pelo contrário, ela deve

ser acolhida e usada a favor no processo de elaboração do luto.

Se há pessoas que tendem a buscar auxílio psicológico para lidar com o luto e elas

também tendem a buscar auxílio espiritual nesse momento, é importante que a psicologia

tenha subsídios para lidar com esse paciente nesse momento e acolhê-lo em toda sua

demanda. Compreender suas crenças e sua dor se faz de grande importância para o

atendimento.

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E o que eu sinto é que esse limite entre o apoio psicológico e o apoio espiritual é muito tênue, porque se você fala que a espiritualidade tem a ver com a expressão da subjetividade e um lugar de escuta para que isso se manifeste, eu estou falando de psicologia, do lugar do psicólogo. Se você começa a falar de uma espiritualidade mais religiosa, você não está mais falando de espiritualidade, você está falando de religiosidade. E aí sim, uma intervenção com o sacramento, orações mais específicas, isso cabe ao agente religioso. Agora, você pode aproveitar daquela pessoa que você está acompanhando o significado da religião dela. E porque que a gente fala que é importante você conhecer várias religiões? Porque na hora da doença, na hora da morte, na hora do luto, isso aparece como primeiro ponto que as pessoas se apegam. Então se você compreende o que é o espírita, o que é o católico e o que é pregado nessas doutrinas, você pode acompanhar a pessoa com mais facilidade. Então você vai entender que para uma senhora que reza o terço todos os dias, aquilo tem um significado e aquilo tem um poder curativo. Ou um espírita que vai lá tomar um passe porque quando ele toma um passe ele vai se recuperar, ele vai se revitalizar, enfim, é muito importante o respeito. A psicologia ela precisa aprender a respeitar essa diversidade religiosa e entender como ela se manifesta porque só dessa forma é que você vai acolher uma pessoa enlutada porque isso vai ser manifestado e se você não conseguir compreender, ou se você julgar ou se você começar a teorizar em cima disso, você não vai estar ao lado da pessoa. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Sabe-se que a psicólogo atua de forma mais efetiva quando ele compreende a demanda

e o momento de seu paciente, portanto é importante o conhecimento teórico das diversidades

que abrangem o ser humano. No entanto, mais importante que a teoria, ouvir o paciente

atentamente e desprendido de qualquer julgamento é a melhor forma de aprender sobre ele,

pois é o paciente que vai ensinar ao profissional os significados de cada atributo de sua vida, é

o paciente que vai direcionando o profissional e o ouvir atentamente se faz fundamental.

Infelizmente, a psicologia ainda está distante do ideal do tratamento ao luto. A

carência de profissionais que têm conhecimento do tema, que tem conhecimento para lidar

com o momento de perda e auxiliar as pessoas em processo de luto ainda é muito grande.

A gente vê na psicologia um despreparo absoluto para trabalhar com luto, com morte. A gente quase não vê isso nas disciplinas, aliá, não tem no currículo, as vezes aparece como disciplina optativa. Não se trabalha com a morte, não se trabalha com o luto e não se trabalha com a questão religiosa. E quando eu digo questão religiosa, não é para estudar religião não, é para entender como isso se manifesta. E se você sabe que isso existe, você vai poder acompanhar a pessoa nesse momento, se não, você vai ficar a margem, ou senão você vai ficar interpretando. Então a psicologia está longe ainda de saber acompanhar uma pessoa enlutada, porque a gente não tem isso na nossa formação. Isso é algo muito recente. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

A pesquisa revelou que o trabalho do psicólogo diante do luto e da espiritualidade não

é um trabalho isolado. A multidisciplinaridade se faz necessária para a eficácia do tratamento.

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Eu imagino que isso acontece em outras áreas mas na tanatologia por exemplo a gente trabalha o tempo todo com profissionais de todas áreas, incluindo capelães, padres, pastores, a gente entende que o ser humano é constituído pelo menos de três instâncias, o psicológico, o espiritual e o físico e se um dos três não vai bem, o outro vai sentir. Se um desses três componentes está mal trabalhado, está fragilizado, vai dar algum revertério que pode prejudicar todo o ser humano. A gente acredita muito nesse atendimento integral da pessoa como um ser espiritual, emocional e físico. Não adianta só o medico dar um remédio para dor, porque muitas vezes a gente sabe que a dor tem outros componentes, a dor também é emocional, também é espiritual, é social, então a gente tem que entender que isso faz parte do ser humano e tentar andar em parceria para tentar entender e ajudar, pois o ser humano é muito complexo e que não dá para poder simplificar qual especialidade vai ajudar nessa hora, só o médico que vai dar uma solução com um antidepressivo ou só o psicólogo para fazer uma terapia ou uma análise, ou o que for, não é por aí, a gente precisa de todo mundo para trabalhar junto, porque o ser humano merece isso. (Júnia Drumond, psicóloga).

Eu acho que a gente já está saindo daquele momento onde a psicologia só trabalha com psicologia, o médico só trabalha com medico, está na hora da gente estar fazendo uma troca, uma intervenção com todos os saberes juntos. (Maria Emidia Coelho, psicóloga).

Para tanto, é necessário sair do lugar, sair do consultório e se abrir para outras

intervenções. Nenhum saber responde à tudo e nenhum profissional acumula todos os saberes.

Sendo assim, é fundamental a interação entre as profissões que envolvem os temas aqui

abordados para se auxiliar efetivamente a pessoa em processo de luto, pois a perda, a ausência

de uma pessoa querida na vida de qualquer um é uma dor muito intensa.

A morte dá uma rasteira na vida das pessoas, ela cancela planos, ela modifica rumos,

ela separa, ou ela junta, ela traz transformações e para nada disso existe um preparo, um

planejamento ou uma elaboração prévia. A espiritualidade, como fator inerente ao ser

humano, tende a aparecer ainda mais nesse momento, muitas vezes confundida com a

religiosidade (como já visto), ela está muito atrelada às esses momentos de perda.

O psicólogo precisa compreender a dimensão da morte na vida de uma pessoa assim

como o sentido da espiritualidade para ela. E ele vai trabalhar melhor quando entender esses

temas, quando ele buscar auxílio em outros profissionais, quando ele ouvir atentamente o

enlutado e se abrir completamente à tudo que é dito, para assim oferecer o mais efetivo

acolhimento e, consequentemente, o mais efetivo tratamento.

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7. CONCLUSÃO

Durante o trabalho de pesquisa, tanto bibliográfica quando a de campo, ficou bastante

claro que morte, luto e espiritualidade são temas que carregam em si muitos conflitos e,

principalmente a morte, carece de muito entendimento por parte das pessoas.

O luto, conforme pôde ser evidenciado, é um momento de profunda dor e angústia

para as pessoas que o vivenciam. A perda de um ente querido é uma dor íntima e para quem

apenas escuta, fica impossível mensurar o quanto aquilo está doendo no enlutado. Existe uma

dimensão muito própria de quem perde alguém e que fica restrita à essa pessoa, deixando

claro que os velhos chavões que aparece na hora dos pêsames nada acrescenta para aliviar a

dor.

A espiritualidade, por outro lado, se apresenta como um fator positivo, favorecendo a

vida em seus diversos âmbitos. Mas ficou evidente a importância de se compreender a

diferença entre espiritualidade e religião, pois religiosidade é apenas um meio de expressão

espiritual e, se pensarmos na dimensão da espiritualidade e na grandeza do seu sentido na vida

de todos os seres, eu diria inclusive que se trata de um meio restrito, pois se prende à muitos

dogmas e teorias, o que muitas vezes dificulta que as pessoas vivenciem a espiritualidade

verdadeiramente, restringindo a espontaneidade e a liberdade de vivenciá-la de acordo com o

desejo de cada um.

A espiritualidade é uma das vertentes mais verdadeiras e intensas do ser humano,

levando-o à uma dimensão para além do corpóreo, mas ainda próprio de cada um. Poder

vivenciá-la com liberdade é algo que todas as pessoas merecem fazer, pois quando se atenta

para a própria espiritualidade se percebe que a vida é muito mais daquilo que conhecemos e

vivenciamos no nosso dia-a-dia, ela oferece um entendimento muito maior da humanidade e

apresenta uma nova opção de viver a vida, uma opção que nos mantém em maior contato com

nós mesmos, com os outros e com as nossas origens.

Entre a pesquisa de campo e a pesquisa bibliográfica, pôde-se perceber que ambas se

complementam, não havendo divergências, pelo contrário, as entrevistas endossam o que

havia sido previamente pesquisado na literatura, como as fases do luto, as diferenças entre

religião e espiritualidade, as dificuldades de aceitação da morte. Essas são algumas das

questões expostas na revisão de literatura que foram pontuadas na pesquisa de campo,

confirmando de forma prática a veracidade de cada uma delas.

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Também fica claro que, para o senso comum, ainda existe muita dificuldade de

distinguir a religião da espiritualidade, tornado muito difícil compreender as questões

espirituais fora da perspectiva da religiosidade. Percebe-se que ainda há equívocos nas

relações religiosas que pouco têm a ver com a espiritualidade, tendo em vista os dogmas, os

rituais e os cumprimentos das normas religiosas serem constantemente confundidos como

únicas formas de expressão espiritual.

Os resultados da presente pesquisa indicam que a espiritualidade favorece a

elaboração luto. O luto desperta sentimentos conflituoso, os quais oscilam muito durante o

processo, fazendo com que o enlutado experiencie sentimentos diversos, que trazem muito

sofrimento e angústia. Neste momento, de fato, buscar por apoio espiritual auxilia na

compreensão do processo, trazendo reflexões que leva o enlutado à novas perspectivas e

auxiliando no entendimento sobre a morte e sobre a perda, muitas vezes trazendo mudanças

que a pessoa leva para outros aspectos do cotidiano, havendo inclusive uma melhora na

qualidade de vida.

Do ponto de vista da psicologia, ficou notória a possibilidade de complementaridade

entre essa ciência e a espiritualidade. A atuação do psicólogo, como já é de conhecimento, se

torna mais competente quando ele tem conhecimento sobre as diversas áreas que abrangem o

ser humano. E a espiritualidade, como fator inerente ao homem, pode ser utilizada como meio

de auxílio nos atendimentos. É claro que não se trata de impor as próprias crenças ao paciente,

não se está falando de utilizar a própria espiritualidade para ser converter o sujeito. Trata-se

de ter o conhecimento das diversas formas de expressão espiritual, utilizar de uma escuta

atenta no sentido de perceber esse tema na fala do paciente e a partir disso usá-la a favor do

melhor atendimento, sempre buscando o bem estar do paciente, sempre priorizando a sua

saúde física, mental e espiritual, afinal, todo ser humano se faz a partir de pelo menos essas

três instâncias e será mais completo e mais feliz quando elas estiverem saudáveis.

A psicologia existe por causa do ser humano. É por causa dele que o trabalho faz

sentido e é por ele que se busca aprimorar o conhecimento, para que nos atendimentos, seja

qual for a abordagem utilizada pelo profissional, se possa oferecer o melhor acolhimento,

buscando sempre uma evolução positiva, sob todos os aspectos, do paciente.

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