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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 1 Morte presumida sem decretação de ausência e o retorno do cônjuge: efeitos jurídicos matrimoniais Amanda Cristina Freitas Pereira 1 Sumário: 1. Introdução - 2. Fim da personalidade jurídica: A morte - 3. A morte presumida sem decretação de ausência e os efeitos jurídicos matrimoniais com o retorno do cônjuge - 4. Conclusão - Referências 1. Introdução O Código Civil Brasileiro no artigo 7°, elenca de forma exaustiva os casos em que pode haver decretação de morte presumida sem declaração de ausência. Logo, somente pode ser decretada a morte presumida de alguém, se for extremamente provável que estava em perigo de vida, ou se tiver desaparecido em campanha ou feito prisioneiro e não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Entretanto, o Código Civil de 2002 deixou de prever os efeitos jurídicos matrimoniais decorrentes do retorno do cônjuge com reconhecimento da morte presumida sem declaração de ausência, dedicando o capítulo III do título I ao instituto da ausência, ou seja, houve previsão dos efeitos da morte presumida com decretação de ausência. Prevê o Código Civil: Art 22: Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador. Art 23: Também se declarará a ausência, e se nomeará curador, quando o ausente deixar mandatário que não queira ou não possa exercer ou continuar o mandato, ou se os seus poderes forem insuficientes. 1 Advogada. Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Universidade Estácio de Sá.

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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica

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Morte presumida sem decretação de ausência e o retorno do cônjuge:

efeitos jurídicos matrimoniais

Amanda Cristina Freitas Pereira1

Sumário: 1. Introdução - 2. Fim da personalidade jurídica: A morte - 3. A morte presumida

sem decretação de ausência e os efeitos jurídicos matrimoniais com o retorno do cônjuge -

4. Conclusão - Referências

1. Introdução

O Código Civil Brasileiro no artigo 7°, elenca de forma exaustiva os casos em que pode

haver decretação de morte presumida sem declaração de ausência. Logo, somente pode ser

decretada a morte presumida de alguém, se for extremamente provável que estava em

perigo de vida, ou se tiver desaparecido em campanha ou feito prisioneiro e não for

encontrado até dois anos após o término da guerra.

Entretanto, o Código Civil de 2002 deixou de prever os efeitos jurídicos matrimoniais

decorrentes do retorno do cônjuge com reconhecimento da morte presumida sem declaração

de ausência, dedicando o capítulo III do título I ao instituto da ausência, ou seja, houve

previsão dos efeitos da morte presumida com decretação de ausência.

Prevê o Código Civil:

Art 22: Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver

notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba

administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou

do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador.

Art 23: Também se declarará a ausência, e se nomeará curador, quando o

ausente deixar mandatário que não queira ou não possa exercer ou

continuar o mandato, ou se os seus poderes forem insuficientes.

1 Advogada. Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Universidade Estácio de Sá.

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No que tange aos efeitos matrimoniais, o novo Código prevê, singelamente, que o

casamento do ausente é dissolvido pela presunção de morte do mesmo, senão vejamos:

Art. 1571, § 1°: O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos

cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste

Código quanto ao ausente.

Verifica-se que o legislador apenas mencionou a hipótese do cônjuge supérstite ver

dissolvido seu primeiro casamento, com a declaração de ausência do cônjuge que partiu, no

caso, hipótese diferente da abordada no presente trabalho, mas necessário trazer a baila

haja vista ser similar ao instituto ora analisado.

Contudo, nada se cogitou a respeito da possibilidade da pessoa que teve a presunção de

morte declarada, retornar. O novo casamento então contraído seria nulo ou anulável?

Várias são as dúvidas que podem surgir, mas trataremos neste artigo científico, apenas

dos efeitos matrimoniais do retorno do cônjuge que teve a morte presumida declarada,

referente aos casos elencados no artigo 7º do Novo Código Civil.

2. Fim da personalidade jurídica: A morte

Como é cediço, a morte completa o ciclo vital da pessoa humana. É o fim da existência.

A personalidade é um atributo do ser humano e o acompanha por toda a sua vida. Como a

existência da pessoa natural termina com a morte, somente com esta cessa a sua

personalidade.

Cessa a personalidade jurídica da pessoa natural com a morte, que é o desaparecimento

das funções vitais e cerebrais do organismo, em que pese haver dificuldade científica para

determinar o exato momento em que ocorre.

Como nos ensina Rita Maria Paulina dos Santos2:

Inicialmente morre a célula, depois o tecido e a seguir o órgão; trata-se de

um fenômeno em cascata. Estabelecido o processo, ele pode atingir os

órgãos dos quais depende a vida do indivíduo, os chamados órgãos vitais.

Dessa forma, desencadeia-se a parada da respiração, do coração, da

circulação e do cérebro.

Com o evento morte, não ocorre apenas a cessação das atividades dos órgãos internos

e externos do corpo humano, mas termina também a existência da personalidade jurídica,

não mais podendo o defunto considerar-se sujeito de direitos e obrigações. Protege a lei o

2 Dos Transplantes de Órgãos à Clonagem. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 34.

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corpo ou seus restos mortais, a memória do falecido, a sua imagem, os bens deixados, mas

não remanesce a sua personalidade. É o que se extrai do parágrafo único do artigo 12 do

Código Civil, assegurando o direito de indenização em favor do cônjuge sobrevivente e de

certos parentes, se verificada a lesão ao nome do morto. As obrigações, porém, criam-se até

o momento do óbito. As que posteriormente vierem criadas por causa da pessoa do morto

são assumidas pela herança, ou por aquele que as firmou. Com a morte não mais persistem

valores patrimoniais, culturais, morais de propriedade do morto. Tudo transmite-se aos

herdeiros, que ocupam a posição de sujeitos ativos, e que podem exercitar ações ligadas à

pessoa do morto desde que neles repercutam moral ou economicamente.

Como acima narrado, o término da pessoa natural e conseqüente fim de sua

personalidade jurídica ocorre com a morte, tratando primeiramente o Código Civil Brasileiro

da morte natural, verificada à luz do cadáver humano. Tal morte é constatada, segundo a

medicina, e nos termos da Lei n ° 9.434/973, com a morte encefálica constatada e registrada

por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante.

Na Lei n° 9.434/97, há preocupação com a necessidade de salvar vidas e recuperar

sentidos em falta, pois que se formam longas filas de candidatos nos hospitais

especializados, chegou a tornar obrigatória a retirada, desde que não existisse proibição

expressa da pessoa quanto ao futuro de seu corpo.

A matéria, todavia, não poderia ser decidida de maneira tão simplista. Há que se

respeitar a personalidade das pessoas. Cada um tem direito a dispor sobre o destino de seu

corpo.

Neste sentido, a Lei acima mencionada, foi alterada pela Lei n° 10.211/2001, que

determinou caber aos familiares tomar a decisão adequada.

Saliente-se não se admitir no sistema pátrio e na maioria das legislações modernas, a

morte civil (ficta mors) dos condenados a penas perpétuas ou de religiosos que realizavam

votos solenes de pobreza, obediência e castidade. Tratava-se de verdadeiro banimento do

mundo civil, repugnando o Estado Democrático de Direito.

A extinção da personalidade jurídica é o principal efeito da morte, sem embargo de

outros. Como nos ensina a Professora Maria Helena Diniz4, a morte física ao cessar a

personalidade jurídica da pessoa natural, faz com que esta deixe de ser sujeito de direitos e

obrigações, acarretando:

a. dissolução do vínculo conjugal e do regime matrimonial ,

3Dispõe sobre a remoção dos órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e

tratamento e dá outras providências. 4 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

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b. extinção do poder familiar, dos contratos personalíssimos, como

prestação de serviço e mandato;

c. cessação da obrigação de alimentos com o falecimento do credor, do

pacto de preempção; da obrigação oriunda de ingratidão de donatário;

d. extinção de usufruto, da doação em forma de subvenção periódica; do

encargo da testamentária.

Sobre o tema dispõe o artigo 6º do Código Civil Brasileiro:

A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta,

quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de

sucessão definitiva.

O professor Arnaldo Rizzardo5, por sua vez, nos ensina que:

Extinguindo-se a personalidade natural, dissolve-se a sociedade conjugal

(art. 1.571, inc. I, do Código Civil e art. 2º, inc. I, da Lei 6.515/1977). De

acordo, ainda, com o Código Civil, entre outros efeitos, extingue-se o poder

familiar (art. 1.635, inc. I); cessamos contratos personalíssimos ou intuitu

personae, sendo exemplo o de locação de serviços (art. 607), de mandato

(art. 682, inc. II), de sociedade em relação a um sócio (art. 1.028), de

gestão de negócio (art. 865), de fiança no pertinente à responsabilidade do

fiador (art. 836); terminam as obrigações de prestar alimentos uma vez

esgotado o patrimônio do alimentante falecido (art. 1.700), de fazer quando

exigido o cumprimento pessoal (art.248); não mais prevalece o pacto de

preempção (art. 520); extingue-se o direito para propor a ação assegurada

ao doador por ingratidão do donatário (art. 560), o usufruto (art. 1.410, inc.

I), a doação na modalidade de subvenção periódica (art. 545), o encargo

testamentário (art. 1.985), os filhos menores são colocados sob tutela com

o falecimento dos pais (art. 1728, inc. I); caduca o fideicomisso se o

fideicomissário morrer antes do fiduciário, ou antes de realizar-se a

condição resolutória (art. 1.958); morrendo o locador ou o locatário,

transfere-se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado (art.

577); nos casos de morte, ausência ou interdição do tutor, as contas serão

prestadas por seus herdeiros ou representantes ( art. 1.759); cabe a

indenização no caso de morte de paciente causada no exercício de

atividade profissional, em que se apura a existência de negligência,

imprudência ou imperícia (art. 951).

A lei n ° 9.140/95 reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de

participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 02 de

setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

5 RIZZARDO, Arnaldo. Direito civil: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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No âmbito da Medicina, entende-se que a cessação da vida se dá com a morte cerebral

ou encefálica. Alguns cientistas chegam a admitir que, ocorrendo esta, será lícita a remoção

de órgãos para fins de transplante, ou outras finalidades científicas, com base na Resolução

CFM n ° 1.480/97.

A lei n º 9.434/97 que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo

humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências, prevê:

Artigo 3º - A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo

humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de

diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois

médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante

a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do

Conselho Federal de Medicina. (grifo nosso).

O Código Civil Brasileiro exige prova da morte no artigo 9°, a qual se verifica com a

apresentação da certidão de óbito.

Art. 9º - Serão registrados em registro público:

I - os nascimentos, casamentos e óbitos; (...)

A certidão de óbito é documento público que evidencia a morte de alguém a partir de

declaração feita por profissional da Medicina, atestando, à luz do cadáver, o momento, a

causa e o lugar do óbito, segundo dispõe a Lei 6.015/77:

Art. 80. O assento de óbito deverá conter:

a. a hora, se possível, dia, mês e ano do falecimento;

b. o lugar do falecimento, com indicação precisa;

c. o prenome, nome, sexo, idade, cor, estado civil, profissão, naturalidade,

domicílio e residência do morto;

d. se era casado, o nome do cônjuge sobrevivente, mesmo quando

desquitado, se viúvo, o do cônjuge pré-defunto; e o cartório de

casamento em ambos os casos (...).

A prova do falecimento cabe a quem alega. Assim, quem requer a abertura de um

inventário causa mortis, deve fazer a prova da morte alegada.

Pode ocorrer o sepultamento sem certidão, nas hipóteses tratadas pela Lei de Registros

Públicos, nos artigos 78,83 e 84.

Cumpre asseverar a possibilidade de retificação do assento de óbito, devendo-se para

tanto, seguir o rito previsto no artigo 109 e seguintes da Lei de Registros Públicos.

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O prof. Cristiano Chaves de Farias6, enumera algumas hipóteses de morte real

contempladas em dispositivos esparsos da nossa ordem jurídica. Vejamos:

a) é caso de morte real, produzindo os regulares efeitos jurídicos previstos

em lei, o óbito ocorrido nas circunstâncias previstas no art. 88 da Lei de

Registros Públicos. Dessa maneira, as pessoas de quem não mais se tem

notícias, desaparecidas em naufrágios, incêndios, inundações, maremotos,

terremotos, enfim, em grandes catástrofes, podem ser reputadas mortas

civilmente (morte real), por decisão judicial prolatada em procedimento

especial iniciado pelo interessado (que pode ser, exemplificativamente, o

cônjuge ou companheiro sobrevivente ou mesmo um parente próximo) e

que se submeterá ao rito procedimental dos arts. 861 a 866 do CPC. Vale

frisar que dois são os requisitos fundamentais para que se tenha a

declaração de morte nessas circunstâncias: prova de que a parte estava no

local em que ocorreu a catástrofe e de que, posteriormente, não mais há

notícias dela.

b) também a Lei n º 9.140/95 reconhece hipóteses de morte real, ao reputar

mortas, para todos os fins de direito, as pessoas desaparecidas em razão

de participação, ou simplesmente acusadas de participação, em atividades

políticas, no período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79 (época da

ditadura militar brasileira), inclusive fazendo jus os seus familiares a uma

indenização correspondente.

c)o Código Civil, por seu turno, no art. 7º também contempla hipóteses de

morte real, sob a infeliz e atécnica expressão “morte presumida, sem

decretação de ausência”. Trata-se de caso típico de morte real, ocorrida em

situações excepcionais, não englobadas no art. 88 da Lei de Registros

Públicos (que, como lei específica, continua em vigor), podendo ser

justificado judicialmente o óbito quando alguém, desaparecido em

campanha militar ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após

o fim da guerra.

Logo, a morte pode ser real como acima exposto, ou presumida, com ou sem decretação

de ausência.

A morte real e a morte presumida com decretação de ausência estão previstas

respectivamente no artigo 6º, primeira e segunda parte do Código Civil Brasileiro.

A morte presumida, sem decretação de ausência, objeto do presente trabalho, está

prevista no artigo 7º do Diploma ora em comento, que assim dispõe:

Artigo 7º - Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:

6 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito civil: teoria geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005.

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I. se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;

II. se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for

encontrado até dois anos após o término da guerra.

Por sua vez, o parágrafo único do citado artigo exige que:

A declaração de morte presumida, nesses casos, somente poderá ser

requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a

sentença fixar a data provável do falecimento.

Não há artigo correspondente no Código Civil anterior. O sistema estabelecido pelo

Código Civil de 1916, não se preocupava com situações de declaração de morte presumida,

em que pese poder surgir vários problemas com o reaparecimento do presumido morto,

acarretando situações que nem mesmo a melhor ficção pode imaginar. Com o atual sistema,

existe a possibilidade de declaração de morte presumida, sem decretação de ausência.

O reconhecimento de morte presumida reclama que antes se proceda e se esgote todas

as averiguações. Apenas após tais procedimentos está o interessado apto a pedir a

declaração em juízo. Cabe a quem pedir a declaração provar que esgotou as buscas e

averiguações. Na sentença virá fixada a data provável do falecimento.

O prof. Marco Aurélio S. Viana 7, sustenta não haver incompatibilidade entre o que está

previsto na lei n.° 6.015/77, artigo 88, a qual admite a justificação para o assento de óbito e

indica quando isso é possível, e o Novo Código Civil, artigo 7º. Para o mestre, é por meio da

justificação que se obtém a declaração de morte presumida.

Dissertando sobre o tema o ilustre Professor Gustavo Tepedino 8 nos ensina que:

A declaração de morte presumida que prescinde da decretação de

ausência, nos moldes do artigo em análise, prevista em alguns sistemas

jurídicos, já nasce polêmica, apesar da saudável intenção de conferir

segurança jurídica a situações em que a probabilidade de sobrevivência é

quase desprezível, oferecendo uma maior celeridade na abertura da

sucessão definitiva.

Admite-se declaração judicial de morte presumida sem decretação de ausência em

casos excepcionais, para viabilizar o registro do óbito, resolver problemas jurídicos gerados

com o desaparecimento e regular a sucessão causa mortis, apenas depois de esgotadas

todas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do óbito.

O óbito deverá ser justificado judicialmente, diante da presunção legal da ocorrência do

evento morte. E a data provável do óbito, fixada em sentença, demarcará o dies a quo em

7 VIANA, Marco Aurélio da Silva. Direito civil: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 8 TEPEDINO, Gustavo et al. Código civil interpretado conforme a Constituição da República:

parte geral e obrigações: arts 1º ao 420. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2004. v. i.

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que a declaração judicial da morte presumida irradiará efeitos jurídicos e determinará a lei

que irá reger sua sucessão (Código Civil, artigo 2041). Tal sentença, na lição de Mário Luiz

Delgado9, apesar de produzir efeitos erga omnes, não faz coisa julgada material, podendo

ser revista a qualquer tempo, desde que surjam novas provas, se tenha notícia da

localização do desaparecido ou se dê o seu retorno. O declarado morto, com o seu regresso,

volta ao status quo ante e a sentença declaratória judicial do seu falecimento deixará de ter

existência ex tunc.

A título de enriquecimento, devemos mencionar o procedimento a ser adotado. Vejamos:

A declaração de morte presumida busca-se através de declaração judicial.

Ingressa a pessoa - parente em linha reta ou colateral, em grau próximo,

ou um terceiro, sempre justificando o interesse - com a ação, na qual

apresenta os fatos que justificam a presunção de morte. Requer a sua

declaração, com a determinação do respectivo registro. Procede-se a

citação da própria pessoa tida como morta, e do cônjuge ou de um parente

mais próximo. Embora haja omissão de regras processuais a respeito, têm-

se como exigências mínimas estabelecer o contraditório, mesmo que

simples, de modo a formar-se um juízo de convencimento, devendo

participar obrigatoriamente o Ministério Público, conforme nos ensina prof.

Arnaldo Rizzardo 10.

3. A morte presumida sem decretação de ausência e os efeitos jurídicos

matrimoniais com o retorno do cônjuge

Dissertando sobre o tema supramencionado, o Prof. Caio Mário11 nos ensina que o Novo

Código Civil revelou-se incompleto, deixando de esclarecer os efeitos da declaração de

morte. Neste sentido fora mais preciso o Projeto de Código Civil de 1965 (comissão revisora

composta por Orosimbo Nonato, Orlando Gomes, Caio Mário) que levantava o impedimento

matrimonial, mas previa a nulidade do segundo casamento se reaparecesse o morto.

Não obstante inexistir norma regulamentadora, alguns doutrinadores vislumbram teses

para hipótese de morte presumida com decretação de ausência, que são análogos aos de

morte presumida sem decretação de ausência, objeto da presente pesquisa. Logo, devemos

considerar tais teses na tentativa de buscar soluções, deixadas de lado pelo legislador

pátrio.

Conforme informa o artigo 1.571, do Código Civil Brasileiro:

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

9 DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 138. 10 RIZZARDO, Arnaldo. Direito civil: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 11 Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. i.

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§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou

pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto

aos ausentes.

Nesse diapasão, cumpre trazer a baila o ensinamento da profª Maria Beatriz P. F.

Câmara 12, comentando sobre artigo supramencionado afirma que:

Com relação à parte final do parágrafo primeiro, deve esta ser suprimida,

uma vez que totalmente inócua. No texto primitivo do anteprojeto do novo

Código Civil figurava um inciso V, que introduzia a admissibilidade da

declaração de ausência como uma das causas de dissolução da sociedade

conjugal. Tal inciso acabou sendo suprimido seguindo sugestão do

Desembargador Yussef Said Cahali, do Tribunal de Justiça de São Paulo,

que ponderou e alertou sobre sua inutilidade prática, uma vez que

obviamente haveria preferência pela possibilidade de adotar-se o simples

decurso do prazo parta obtenção do divórcio direto.

Face à ausência de norma regulamentadora no ordenamento jurídico pátrio, a solução

mais adequada seria que o cônjuge supérstite ingressasse em juízo com a ação de divórcio

direto, citando o réu por edital, após o decurso do prazo de dois anos de separação de fato,

nos moldes do artigo 226, § 6°, da Constituição Cidadã de 1988 c/c artigo 1580 do Código

Civil Brasileiro.

Entretanto, devemos ter em mente que, no caso do cônjuge não proceder da forma

acima mencionada, ou seja, caso não ingresse com a ação de divórcio direto, devemos, com

o fito de não causar insegurança jurídica, aplicar o que dispõe brilhantemente o Código

Alemão, ou seja, o novo casamento dissolve o antigo.

Ora, outra não poderia ser a solução apresentada. Não podemos imaginar que o

cônjuge que permaneceu entre os seus, e que queira reestruturar sua vida dignamente,

também no aspecto sentimental, constituindo nova família, contraindo novas núpcias, tenha

seu segundo casamento declarado nulo, pelo fato de que com o retorno do cônjuge, a morte

até então presumida desaparece, bem como os efeitos daí decorrentes, deixando o cônjuge

abandonado de ser viúvo e devendo ser considerado nulo o segundo casamento, como nos

quer convencer o mestre Silvio Rodrigues13.

Cumpre ressaltar que a importância do tema surge no seio constitucional, uma vez que a

família é constitucionalmente protegida:

Art. 226. A família, base da sociedade tem especial proteção do Estado.

12 AMIM, Andréa Rodrigues et al. O novo código civil: livro IV: do direito de família. Rio de Janeiro:

Freitas Bastos, 2004. 13 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. Ver. e atual. por Francisco José Cahali

de acordo com o novo Código Civil . São Paulo: Saraiva, 2004. v. vi, p. 431.

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Quando o cônjuge deixa o lar, seja para ir à guerra ou para lugar que posteriormente

faça com que corra risco de vida, causa tamanha preocupação para a família, principalmente

quando deixa filhos, sendo certo que tal fato desestrutura a família, que fica à mercê do

retorno do cônjuge, sem saber que rumo tomar.

Cremos que a intenção do legislador objetivou dar maior tranqüilidade a essa família, que

teve seu ente, muitas vezes querido, desaparecido e enquadrado nas hipóteses elencadas

no artigo 7° do Código Civil.

Entretanto, deixou o legislador de prever o procedimento a ser adotado pelo cônjuge

supérstite. Como proceder no caso de querer constituir legalmente outra união? Qual

casamento seria válido no caso do cônjuge que partiu, retornar? Será que o legislador

fechou os olhos para essas hipóteses, ou acredita que essa pessoa queira e possa viver no

regime de União Estável para o resto de sua vida?

No que tange ao entendimento esposado pela doutrina estrangeira, cumpre trazer a baila

o ensinamento do Prof. Silvio de Salvo Venosa 14:

Na doutrina estrangeira que adota esse sistema, o regresso do morto que

encontra seu cônjuge casado com terceiro deu margem a inúmeras

interpretações. A melhor solução, presente no direito argentino, é entender

como válido o segundo matrimônio e desfeito o primeiro.

Parece mais adequado e razoável, concluir que os novos vínculos e afetos devem ser

referidos aos pretéritos; tanto mais quanto é possível que o novo matrimônio haja gerado

filhos, que, de plano, ver-se-ão em dolorosa situação de ver destruído seu lar, sendo este o

entendimento do jurista Guillermo Borda15.

Torna-se relevante tratar no presente trabalho, principalmente sobre o efeito jurídico dos

casamentos contraídos perante a sociedade e o que deveria o cônjuge “supérstite” fazer

para se precaver de eventual retorno do cônjuge com morte presumida declarada, uma vez

que tal fato acarreta total insegurança jurídica.

Não se pode olvidar que a falta de regulamentação dos efeitos matrimoniais do retorno

do cônjuge que partiu, fere a dignidade da pessoa humana, insculpida no artigo 1°, inciso III

da Constituição Cidadã de 1988, do cônjuge abandonado, que fica a mercê do acaso.

Ressalte-se que a dignidade da pessoa humana, é um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil, como ressalta Moraes16:

14 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Direito de família. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. i. 15 BORDA, Guillermo A. Tratado de derecho civil: parte general. 10. ed. Buenos Aires: Perrot, 1991.

v. i e ii. 16 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.50.

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é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta

singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria

vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais

pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico

deve assegurar [...].

Solução apresentada pelo mestre Silvio Rodrigues17, ao tratar do tema morte presumida,

mas com declaração de ausência, é que retornando o ausente, sua morte presumida

desaparece, e também os efeitos daí decorrentes. Deixa o cônjuge abandonado de ser

viúvo, e deve ser considerado nulo o segundo casamento, pela verificação de impedimento

matrimonial (art. 1.548, II, c/c art. 1.521, VI), embora podendo emprestar-lhe os efeitos da

putatividade.

4 Conclusão

Como já salientado, há escassa produção doutrinária, jurisprudencial e principalmente

legislativa, sobre o tema escolhido no presente artigo científico, em que pese a necessidade

do estudo aprofundado, visando sanar as diversas dúvidas que podem surgir.

Logo, objetivando analisar mais a questão suscitada, cremos que estimularemos a

discussão e esta ganhará a importância que merece, encontrando soluções para os

questionamentos apresentados e evitando assim que tenhamos insegurança jurídica no

ordenamento pátrio.

Não se pode olvidar que o presente trabalho visa também tranqüilizar a sociedade, as

pessoas envolvidas em casos análogos e que até agora não encontram solução legislativa

para a questão apresentada, ou seja, no caso de retorno do cônjuge que teve a morte

presumida declarada, regressar, qual a união que prevalecerá? O casamento anterior ou o

posterior contraído?

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17 RODRIGUES, op. cit., p. 433.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 88, p.01-13, dez./2007 a jan./2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica

12

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Rio de Janeiro, 12 de Dezembro de 2006.

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