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    UUUUU ma incu r s o pe l a e s t t i ca da rma incu r s o pe l a e s t t i ca da rma incu r s o pe l a e s t t i ca da rma incu r s o pe l a e s t t i ca da rma incu r s o pe l a e s t t i ca da re c e p oe c e p oe c e p oe c e p oe c e p o

    EEEEE dlcio Mostao

    Edcilo Mostao professor do Centro de Artes e do Programa de Ps-Graduao em Teatro da Uni-versidade do Estado de Santa Catarina.

    Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, in-terromper com freqncia a leitura, no

    por desinteresse, mas, ao contrrio, porafluxo de idias, excitaes, associaes?(Roland Barthes, O rumor da lngua).

    uito comentada, pouco conhecida, a es-ttica da recepo ainda no expandiu to-das suas possibilidades entre ns. At opresente foram poucas suas obras can-

    nicas traduzidas no Brasil, e a principalreferncia continua sendo a coletnea organiza-da por Lus Costa Lima, da apresentao da cor-rente, em 1979, vinte anos aps seu surgimentoem Constana, Alemanha (cf. Lima, 1979).Tendo como expoentes mais notrios HansRobert Jauss e Wolfgang Iser (assim comoKarlheinz Stierle e Hans Ulrich Gumbrecht), aesttica da recepo constituiu-se num tourningpointem relao aos estudos literrios e porextenso aos demais formatos artsticos e cul-turais que giram em torno damimesis, da narra-tivae das imagens como materiais expressivos.

    A recepo no uma dimenso indivi-

    dual, mas um fenmeno coletivo, resultante dasmanifestaes advindas das interpretaes sin-

    gulares ou grupais, dimensionada atravs dasprticas de leitura e agenciamentos histricosefetuados sobre textos e autores. Em seus pri-mrdios fixou quatro eixos de investigao: a) aobra de arte possui uma natureza singularmen-te histrica, ou seja, vive e revive atravs das su-cessivas leituras que engendra ao longo dostempos; leituras que tem o poder de atualiz-lae/ou nela inscrever a percepo contempornea;b) h um horizonte de expectativas em tornoda obra/artista e um dado efeito que produzem

    em seu tempo; sendo considerados inovadoresaqueles que, de algum modo, desestabilizam talrelao; c) esse percurso pode ser objetivadotemporalmente, rastreando-se as reaes juntoao pblico e o juzo produzido pela crtica, evi-denciando as tenses scio-ideolgicas que oatravessam, os valores confrontados e os abalosquanto aos sistemas de cdigos institudos; d)para o estabelecimento do horizonte de expec-tativas sobre a obra, tanto no passado quantono presente, a hermenutica o percurso inter-pretativo privilegiado para a tarefa.

    Tais eixos envolvem diversos procedimen-tos internos, responsveis pela criao de um

    mtodo investigativo. A partir de trs ngulosprivilegiados apoiesis, aaisthesise akatharsis

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    percorrendo o processo dialgico que envolve oartista e o espectador, fica claro que, mesmo dis-pensando nfase estrutura de significados einteraes comunicativas advindas com a obra,a esttica da recepo uma operao compro-metida com o processo artstico.

    No campo teatral, foram franceses e ita-lianos que se responsabilizaram por sintonizarmais detalhadamente os pressupostos da recep-o: Marco de Marinis, Anne bersfeld e PatricePavis,1 dedicando ensaios diversos multipli-cidade de aspectos por ela abarcados. Transitan-do pela semitica, privilegiaram os aspectosinterpretativos por ela ensejados, atravs de umcruzamento de preocupaes voltadas decifra-o e composio quer do texto quanto do es-petculo, deixando em segundo plano a miradahistrica que as dimensiona em seu meio.

    Uma viradaUma viradaUma viradaUma viradaUma virada

    Ao emergir, em sua fase herica, a esttica darecepo provocou vrios abalos, especialmentepor deslocar o eixo da discusso cultural, dei-

    xando de privilegiar o autor e seu universo pararessaltar o processo interativo que se estabeleceentre a obra, o leitor e o fundo social circun-dante. Ou seja, as questes relativas aos senti-dos provocados pela obra dependem sempre deum contexto e eles so mutveis, em funo das

    circunstncias de leitura. Embora essa mesmaperspectiva j animasse as preocupaes deBakhtin (e, na seqncia, a Escola de Tartu emtorno da semiosfera), as teorias russas demora-ram muito tempo para ser divulgadas no Oci-dente, mas Jauss soube incorporar o dialogismobakhtiniano s suas preocupaes, como evi-dencia o segundo tomo desthetische Erfahrungund literarische Hermeneutik, lanado em 1982.2

    Ao estabelecer tal deslocamento, a recep-o aproveitou o que de melhor o new criticismhavia produzido enquanto anlise imanente daobra, reavaliando os aspectos sociolgicos ehistricos do contexto, rebatendo no apenasmarxistas (Lkacs, Szondi e Adorno) como tam-bm socilogos da arte (Hauser, Duvignaud,Lucien Goldmann). Ao recuperar o percursofenomenolgico e hermenutico inauguradopor Husserl e Schleiermacher, Jauss voltou-separa Heiddeger, Sartre e Gadamer, promoven-do interaes entre eles que associavam investi-gaes profundas sobre a natureza e as particu-laridades da obra de arte e a constituio dossujeitos autores, acima do psicologismo e dosdeterminismos que nada avanavam em relao

    s constituintes especficas do ato de leitura eseus processos.

    Se atentarmos ao ambiente poltico dosanos de 1960 e 1970, com a Guerra do Vietnsinalizando o tnus de inmeros outros confli-tos mundiais e os vrios abalos provocados pe-

    1 De Marco de Marinis ver Semitica del teatro. Lanalisi testuale dello spettacolo, Milano, Bompiani: 1980;Capire il teatro. Lineamenti di una nuova teatrologia. Firenze: La Casa Usher, 1993; En busca del actor ydel espectador. Buenos Aires: Galerna, 2005. De Anne Ubersfeld ver: Lire le thtre, I, II e III,notadamente Lecle du spectateur. Paris: Belin, 1996. De Patrice Pavis ver Voix et images de la scne. Versune semiologie de la rception. Lille: Presses Universitaire, 1985; Marivaux lepreuve de la scne. Paris:Sorbonne, 1986;A anlise dos espetculos. So Paulo: Perspectiva, 2003; alm de ensaios que integram

    O teatro no cruzamento das culturase Dicionrio do teatro, editados pela Perspectiva. No Brasil a corren-te foi pouco contemplada, destacando-se: DEGRANGES, Flvio.A pedagogia do espectador. So Paulo:Hucitec, 2003; ZILBERMANN, Regina. Esttica da Recepo e Histria da Literatura. So Paulo: tica,1989; e MASSA, Clvis. Esttica teatral e teoria da recepo, in 1 Concurso Nacional de Monografias Prmio Gerd Borheim, v. III. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2007.

    2 Ensaios constantes das duas obras foram parcialmente editados em ingls, francs e italiano. Ver JAUSS,Hans Robert. Question and Answer.

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    los movimentos de contestao nos EUA e naEuropa, teremos o quadro tenso das discussestravadas, onde a questo do engajamento inte-lectual cintilava como prioritria. Isso ajuda aentender, ao menos em parte, a lentido quan-to ao alastramento das teses ligadas receponos pases culturalmente hegemnicos e, sobre-tudo, nos perifricos, onde em muitos deles seinstalaram, nessas dcadas, regimes ditatoriaisou autocrticos de efeitos corrosivos em relaoao exerccio do pensamento.

    Nesse ambiente, O prazer do texto, lana-do por Roland Barthes em 1973, configurou-secomo um escndalo. Naquele indefectvel esti-lo de scripture que marca o autor, o que ali foiposto em evidncia nada mais era que a instn-cia dakatharsis um dos ngulos estruturais daesttica da recepo , destilada em versoparisiense e afrontando milnios de uma con-cepo da arte baseada na platnica teoria doreflexo. Esse tpico virou um cavalo de batalhana poca.

    J apontado por Jauss anteriormente, oprazer enfatizava a materialidade sensvel doprocesso artstico, as constituintes intrnsecas

    arte que, irredutveis quando da experincia es-ttica, reverberam sobre o corpo do leitor/espec-tador. Ignor-las fazer-se de cego (ou surdo oumudo) s percepes e sensaes originrias daobra, razo de ser de sua produo e fruio.

    O ps-estruturalismo, o desconstrucio-nismo, as novas plataformas analticas que to-maram conta do ambiente intelectual mundialforam encorajadas, a partir dos anos de 1980,pela esttica da recepo, infundindo cores eacentos diversos visada analtica, consonantescom sua natureza mltipla e pluralista. Ondeela serviu de referncia para incurses que lan-aram novos olhares sobre o presente e o passa-do cultural.

    Polmicas e aprPolmicas e aprPolmicas e aprPolmicas e aprPolmicas e aproximaesoximaesoximaesoximaesoximaes

    Na provocativa conferncia Pequeno elogio daexperincia esttica, de 1972, Jauss enfeixou

    abreviadamente os diversos alvos contra os quaisa esttica da recepo insurgiu-se. Inicialmente,a morte da arte, anunciada por Hegel econsolidada na primeira metade do sculo pordiversas vozes, dentre elas a vitoriana e asspti-ca de Theodor Adorno, com suas caudatriasproposies platnicas em torno da teoria doreflexo, repudiando o prazer como imoral, pr-prio ao patamar culinrio ou pornogrfico,querendo apagar da conscincia suas compo-nentes sensoriais.

    Aps associar o cultivo do gozo, do pra-zer e das emoes ao desenvolvimento explora-trio como promovido pela indstria cultural,e da necessidade de seu exorcismo por inter-mdio da negatividade, Adorno se pergunta:Se for extirpado o ltimo vestgio de prazer,causa perplexidade a pergunta sobre a razo deexistir das obras de arte (Adorno, 1996, p. 31).Sem resposta para essa fatal pergunta, o filsofofrankfurtiano est evocando o mesmo parado-xo j fixado por Marx frente s formaes sociaise suas respectivas produes artsticas, nas tesessobre a interdependncia entre infra e superes-trutura: A dificuldade no est em compreen-

    der que a arte grega e a epopia esto ligadas acertas formas de desenvolvimento social. A di-ficuldade reside no fato de nos proporcionaremainda um prazer esttico ede terem para ns, emcertos aspectos, o valor de normas e de mode-los inacessveis (Marx, 1973, p. 131; grifosmeus). Ou seja, ele reconhece que a obra arts-tica detm qualidades autnomas intrnsecas emobiliza fenmenos de percepo, em modotrans-histrico, que a isolam e projetam em re-lao ao determinismo materialista, em funodos agenciamentos desencadeados quando dofenmeno da fruio, fato por ele reiterado aodiscorrer sobre a constituio do sujeito: Oobjeto de arte, tal como qualquer outro pro-duto, cria um pblico capaz de compreender aarte e de apreciar a beleza. Portanto, a produ-o no cria somente um objeto para o sujeito,mas tambm um sujeito para o objeto (Marx,1973, p. 116). Fica assim salientado o carterdialgico intrnseco a essas interaes, no cap-

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    tado pelos raciocnios burocrticos e/ou econo-micistas lio que Adorno no alcanou e aque, portanto, no sabe dar resposta, seno ex-primir perplexidade.

    Retornando conferncia de Jauss, tam-bm Pleknov e Lkacs, subsidirios da teoriado reflexo e cujos limites de cdigo no avan-am alm do realismo burgus, entram na linhade tiro. Ele indica que tal teoria deriva da pos-tura platnica frente arte (e mais particular-mente o teatro) como exposta nA Repblica,onde acusada de ser uma iluso que se afastada Verdade. Em maiscula ou minscula, essapretensa verdade tornou-se a pedra de toque dametafsica ocidental, inspirando um sem nme-ro de retomadas. Santo Agostinho e Tertuliano,nos alvores da cristandade, invectivaram a seufavor, atacando a iluso presente nos espetcu-los; num vis posteriormente reiterado quer porjansenistas quer por jesutas, cujas proposiespermearam as famosas polmicas que atraves-sam o classicismo francs; e cujo formato maisacabado est em Rousseau e suaCarta a dAlem-bert Sobre os Espetculos, onde pela vez primeiraessa questo da iluso teatral associada ma-

    nipulao de classe.Mas Kant vai operar uma ciso na meta-

    fsica, ao opor a razo pura prtica, liberandoos impulsos estticos de se ajustarem ao crivoda verdade. Abriu-se assim a vereda instituir-sea esttica como campo de conhecimento e, pos-teriormente, estmulo fenomenolgico, livran-do a arte de ser tomada como um reflexo frente verdade ou o real, a no ser para neo-hegelia-nos e marxistas.

    Expostos os alvos, passemos aos enlaces.Entre outros procedimentos, Jauss recu-

    perou a aristotlicakatharsisenquanto dimensocomunicativa subjacente obra artstica, salien-tada como a esfera onde os fenmenos de iden-tificao e empatia vo produzir-se. Estabele-cendo vrios graus e modalidades de empatia,ele distingue, por exemplo, a atilada postura deBrecht, salientando como o dramaturgo alemosoube manipular um reconhecimento do efeitoe da recepo da obra literria, ainda que orien-

    tando sua produo para a educao do espec-tador ao invs do prazer esttico, transforman-do a empatia numa atitude reflexiva e crtica.

    Alm da fenomenologia de Husserl e dahermenutica proposta por Gadamer, Jauss re-cuperou a teoria de Paul Valry, exposta numestudo sobre Leonardo da Vinci, onde uma es-tticaprodutiva, apoiada na funo cognitiva daconstruo do sentido, distingue entre o conhe-cimento conceptual (ver pelo intelecto) daque-le propiciado pela arte (ver pelos olhos), abrin-do-se para o campo da experincia.

    Experincia essa que est na base da ope-rao imaginria, como pensada por Sartre, aoenfatizar a distncia e a formalizao decorren-tes da conscincia representacional (Sartre,1967, p. 8). E, finalmente, a interlocuo comoutro frankfurtiano, Herbert Marcuse, que in-vestigou as implicaes decorrentes da disso-ciao entre o til e o necessrio, o belo e oprazeroso, apontando a esfera cultural na eraps-industrial como um campo minado; cujaredeno est na arte e na utopia de um mundopor ela renovado, como exps em Sobre o car-ter afirmativo da cultura.

    Arte como fazer e rArte como fazer e rArte como fazer e rArte como fazer e rArte como fazer e receberecebereceberecebereceber

    A esttica da recepo parte do pressuposto deque a arte um fazer, uma construo e, comotal, infunde uma dada relao com o leitor/es-pectador. Tal perspectiva pode ser verificada en-tre as fontes referidas por Jauss e Iser em seustrabalhos, onde se destacam, inicialmente, asproposies oriundas do formalismo russo, atra-vs de V. Chklovski e B. Tomachevski (e, numafase posterior, Iri Ltman) e tcheco, com aspesquisas levadas a efeito por R. Jakobson,P. Bogatyrev e, sobretudo, Jan Mukarovsky.Alguns conceitos formulados por tais autoresso especialmente invocados, como o da artecomo construo, como procedimento, comoestranhamento, pardia (enquanto desautoma-o), uma vez que implicam na relao estabe-lecida com o leitor/espectador.

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    Roman Ingarden, ao discorrer sobre a fe-nomenologia da obra literria, prover o con-ceito de concretizao a cota de participaodo leitor ao conferir significados s indeter-minaes da escritura , destacando que a mes-ma articula uma estrutura de apelo em direoao leitor. Esse aspecto ser especialmente desen-volvido por Iser que, redimensionando a pro-posio, afirmar ser ela essencial na instnciacomunicativa engendrada pela obra. Da suaacepo de leitor implcito e as posteriores pes-quisas em torno do fictcio, privilegiando aesttica do efeito, o que o afastou de Jauss e oaproximou do grupo norte americano ligadoao response-criticism.

    Elementos colhidos junto sociologia daliteratura (obras de Sartre, Arnold Hauser,Lucien Goldmann, Ian Watt) ajudaram o gru-po de Constana a fechar o contorno de seuuniverso conceptual e metodolgico, especial-mente L. L. Schcking, que efetivou amplopanorama sobre questes de gosto literrio, per-cebendo como ele influi no somente na recep-o como, igualmente, na produo dos even-tos artsticos.

    Ao deslocarem o eixo analtico da produ-o para a recepo, os tericos de Constanagrifaram a funo da leitura sob dois aspectos: ade horizonte de expectativa (que soma os cdi-gos, preceitos, experincias sociais diversas ecomportamento institudo pelos hbitos) e o deemancipao (a finalidade e o efeito propostospela arte, liberando a fruio e articulando umnovo universo sensorial). Ou seja, circunscre-vem a pluralidade de instncias subjacentes spoiesis, aisthesise katharsis, trs fases concomi-tantes da experincia esttica que levam apre-enso da obra. Mesmo propostas estticas quealmejam o distanciamento, o estranhamento, aironia (como o dadasmo, o surrealismo ouBrecht) necessitam partir, no plano da expe-rincia, de uma identificao inicial.

    Na acepo grega de fazer (poien), apoiesisimplica no prazer que sentimos como realiza-dores da obra (ou de sua leitura), enquanto ins-tncia de instalao e apropriao do mundo

    exterior (sentir-se em casa, nas palavras deHegel), atravs da qual se alcana um conheci-mento diverso daquele infundido pela cincia emais amplo que aquele dirigido finalidadeprodutiva, caso do artesanato. A aisthesis, porsua vez, implica na dimenso de perceporeconhecedora ou de reconhecimento percep-tivo, j apontado como pura visibilidade, vi-so intensificada e sem conceito, da densida-de do ser, pregnncia perceptiva complexa,segundo alguns autores que tentaram capt-la.Para evoc-la em modo mais palpvel, recorro aMikel Dufrenne: experimentar (goter) en-trar em certa relao com o sensvel, fazer-lhejustia, tom-lo deixando-se possuir. Ora, o sen-svel que entra em comunho com o sentimen-to, no somente o da obra de arte; tambmo que Merleau-Ponty chama de a carne domundo. Toda carne do mundo pode ser expe-rimentada como objeto esttico, at mesmo oporta-garrafa de Duchamp, embora algumascoisas sejam mais que outras, pois o gosto noestetiza soberanamente ou arbitrariamente; eleresponde a uma solicitao do objeto: a guano chama o gosto como o vinho nem o porta-

    garrafa como uma esttua. [...] aderir a umacomunho carnal com todas as zonas ergenasdo sensvel (Dufrenne, 1976, p. 16).

    E akatharsis, conceito colhido em Arist-teles e Grgias, atravs do qual nos deixamoslevar pelo engano ou artifcio, partcipes de umjogo capaz de infundir quer uma liberao dapsique quer uma mediao de apreenso que ali-via o sujeito das normas de ao e julgamentos,acima dos interesses imediatos e implicaesadvindas do senso-comum.

    Atuando concomitantemente e podendoreverberar ao longo do tempo, as trs instnciasda experincia esttica so subjetivas e inter-subjetivas, no obedecendo a uma hierarquia decamadas ou importncia e implicando numarelao de autonomia uma em relao s de-mais, apresentando-se seqenciais ou no. Elasdizem respeito quer ao criador quanto ao desti-natrio, variando os ngulos de suas apreensesem funo desse posicionamento. Jauss destaca

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    algo importante: a funo comunicativa da ex-perincia esttica no necessariamente media-da pela funo catrtica. Tambm pode decor-rer da aisthesis, quando o observador, no atocontemplativo renovante de sua percepo,compreende o percebido como uma informa-o acerca do mundo do outro ou quando, apartir do juzo esttico, se apropria de uma nor-ma de ao. A prpria atividade daaisthesis, con-tudo, pode se converter em poiesis (Jauss apudLima, 1979, p. 82).

    AprAp rAprAp rAp reender ou interpreender ou interpreender ou interpreender ou interpreender ou interpretar?etar?etar?etar?etar?

    No bojo desse intenso movimento de revisodas relaes entre obra e leitor/espectador,avolumaram-se as preocupaes em torno dadecifrao, da interpretao, da contextuali-zao de informaes delas emanadas. Ficou cla-ro que a tarefa era complexa e que o entrelaa-mento de vrias operaes era indispensvelpara dimensionar o problema, na busca de su-perar o velho e insuficiente esquema propostopela comunicao.

    Obras de Foucault (As Palavras e as Coi-sas, A arqueologia do saber, A ordem do discurso),Deleuze (Lgica do sentido, Diferena e repetio,o Anti-dipo), Derrida (Gramatologia, A escritu-ra e a diferena) entre outros autores, investiramsobre aspectos problemticos oriundos da deco-dificao. No campo da semitica Umberto Eco(Lector in fabula, Os limites da interpretao, In-terpretao e superinterpretao) e Iri Ltman(A semiosfera) enveredaram sobre situaes decontexto inerentes comunicao cultural; en-quanto J. A. Greimas (O Sentido, Semitica daspaixes) buscava novos ngulos para enquadraras componentes emotivas ali presentes, ao ladodos aspectos intencionais que marcam os enun-ciados, como enfatizados pela anlise do discur-so e pela pragmtica.

    Esse movimento frentico no plano dasociosemitica correspondeu igual movimen-tao no universo das cincias biolgicas e suasramificaes, interessadas nos fenmenos da

    cognio. Antonio Damsio (O mistrio da cons-cincia, O erro de Descartes) e Francisco Varela(Linscription corporelle de lesprit, sciences cogni-tives et exprience humanine) desnudaram ospadres mentais vinculados apreenso domundo externo e interno, verificando as fundasinteraes visuais e imagticas presentes nos atosde cognio. A antropologia, a sociologia, a filo-sofia surgiram redimensionadas aps tais con-quistas, incorporando dados at ento despreza-dos ou no suficientemente explorados em suascogitaes. Os Estudos Culturais foram grande-mente fortalecidos quanto anlise do real.

    Mesmo assim, continuamos tateando noque diz respeito natureza e complexidade dalinguagem cnica e ao conjunto de fenmenosdesencadeados junto ao espectador quando daexperincia esttica no plano espetacular, nosentido de fixar como funciona a competnciaespecfica do saber teatral(pois se trata de umadecodificao oscilante, todo o tempo, entre ofalso e o verdadeiro).

    Patrice Pavis em A anlise dos espetculosregistra tais desnveis, apelando para expedien-tes nem sempre convincentes enquanto expli-

    cao para vrios graus das interaes produzi-das; mesmas limitaes reconhecidas por Marcode Marinis, o que o levou a concluir: precisoassinalar que esse tipo de saber constitui-se deconhecimentos e competncias vinculadas a essepressuposto fundamental, do qual provm oprazer teatraldo espectador, em todas as formase variedades possveis, inclusive aquelas produ-zidas pela suspenso (epoch) voluntria dessesaber (como ocorre, por exemplo, na clebresuspension of disbeliefde Coleridge ou mais ge-ralmente em toda recepo de identificaoemptica). Essa fronteira cognitiva, saber-falso/crer-verdade, que marca a separao entre o in-terior e o exterior do teatro, [...] a mesma queestabelece a diferena intrnseca e substancialentre as emoes estticas reais e a emoes tea-trais. As ltimas so emoes estticas, cuja in-tensidade e qualidade so determinadas, poruma parte, pelos bem conhecidos fatores prag-mticos (ou contextuais) da relao teatral, e por

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    outra parte, pelos aspectos materiais-expres-sivos-estilsticos do texto espetacular (DeMarinis, 2005, p. 100).

    Se tais impasses ainda permanecem quan-to decodificao plena da linguagem cnica,avanos foram registrados quanto a seus desdo-bramentos, na esteira desses novos aportes deinvestigao. Entre eles, o incremento dos cha-mados estudos da performance, implantadospor Richard Schechner, abarcando questescomo a teatralidade, a performatividade, oenvironmental, estreitando laos com a antropo-

    logia e a etnologia e fornecendo visadas maissensveis para dimensionar os ritos, as atuaescotidianas e as inter-faces existentes entre osprocedimentos que possibilitam estruturar asvrias dramaturgias.

    De modo que a recepo, na atualidade,diz respeito a um sem nmero de agenciamen-tos no vasto territrio da cena, apresentandosubsdios quer para a pedagogia quer para a his-tria, quer para a sciosemitica quer para aanlise dos discursos, fomentando plataformasque esto alargando os estudos teatrais.

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    RESUMO: a esttica da recepo ainda no desenvolveu todas suas potencialidades entre ns. Apsuma breve exposio do desenvolvimento da tendncia e seus principais objetivos e estratgias, otexto enfoca as caractersticas dapoiesis, daaisthesise dakatharsis. O contexto de leitura do teatro abordado em seguida, sendo tambm consideradas as condies relativas formao do espectador.PALAVRAS CHAVE: esttica da recepo, leitura, pblico, obra de arte, contexto cultural.

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