MOURA_Sobre Produção de Marialva Barbosa

13
Anuário Unesco/Metodista de Comunicação Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010 MARIALVA BARBOSA, ENTRE A HISTÓRIA E O JORNALISMO Ranielle Leal Moura* * Jornalista (bacharel em Comunicação social) pela Universidade Federal do Piauí e mes- tranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Possui MBA Executivo em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV -Rio de Janeiro). rani.leal@ uol.com.br INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo apresentar as realizações científicas e mapear a herança intelectual que Marialva Carlos Barbosa está legando à comunidade de comunicólogos do Brasil. Desta forma, o estudo aqui apresentado se debruça sobre a vida de uma comunicóloga que se dedicou especialmente à história da comunicação. Marialva Barbosa é uma das principais pesquisadoras deste campo no Brasil. Professora titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Univer- sidade Federal Fluminense, ela se dedica, há mais de trinta anos, à pesquisa e ao ensino da história da comunicação no País. Já publicou inúmeros trabalhos sobre o tema, entre eles os livros: Os donos do Rio: imprensa, poder e público (2000) e História cultural da imprensa: Brasil (1900-2000) (2007). HISTÓRIA DE VIDA: SUPERAÇÃO DE LIMITES No tempo da vida há todo um percurso a ser lentamente trilhado. Não há possibilidade de saltar tempos, encurtar etapas. Nossa vida se configura como uma espécie de tempo calendário particular, no qual o acontecimento fundador marca, pelo nascimento, um momento axial a partir do qual a nossa trajetória será datada. Tudo o que ocorreu antes é o passado e caminhamos sempre do passado para o presente e do presente para o passado ou para o futuro. Há invariavelmente um agora, que é o ponto mais inflexivo de um momento considerado, através do qual se olha em direção a um tempo pre- térito ou a um tempo futuro. (BARBOSA, 2009, p. 288).

description

Artigo que descreve a trajetória da pesquisadora.

Transcript of MOURA_Sobre Produção de Marialva Barbosa

  • Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    MARIALVA BARBOSA, ENTRE A HISTRIA E O JORNALISMO

    Ranielle Leal Moura*

    * Jornalista (bacharel em Comunicao social) pela Universidade Federal do Piau e mes-tranda em Comunicao Social pela Universidade Metodista de So Paulo. Possui MBA Executivo em Marketing pela Fundao Getlio Vargas (FGV -Rio de Janeiro). [email protected]

    INTROduOEste artigo tem como objetivo apresentar as realizaes cientficas e

    mapear a herana intelectual que Marialva Carlos Barbosa est legando comunidade de comuniclogos do Brasil.

    Desta forma, o estudo aqui apresentado se debrua sobre a vida de uma comunicloga que se dedicou especialmente histria da comunicao. Marialva Barbosa uma das principais pesquisadoras deste campo no Brasil. Professora titular do Departamento de Estudos Culturais e Mdia da Univer-sidade Federal Fluminense, ela se dedica, h mais de trinta anos, pesquisa e ao ensino da histria da comunicao no Pas. J publicou inmeros trabalhos sobre o tema, entre eles os livros: Os donos do Rio: imprensa, poder e pblico (2000) e Histria cultural da imprensa: Brasil (1900-2000) (2007).

    HISTRIA dE VIdA: SupERAO dE LIMITESNo tempo da vida h todo um percurso a ser lentamente trilhado. No

    h possibilidade de saltar tempos, encurtar etapas. Nossa vida se configura como uma espcie de tempo calendrio particular, no qual o acontecimento fundador marca, pelo nascimento, um momento axial a partir do qual a nossa trajetria ser datada. Tudo o que ocorreu antes o passado e caminhamos sempre do passado para o presente e do presente para o passado ou para o futuro. H invariavelmente um agora, que o ponto mais inflexivo de um momento considerado, atravs do qual se olha em direo a um tempo pre-trito ou a um tempo futuro. (BARBOSA, 2009, p. 288).

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14144

    Marialva Barbosa uma mulher moderna que luta continuamente pela vida e suas realizaes. Desde menina trilhou um caminho de dificuldades, mas conseguiu vencer, pois, como ela mesma diz, saiu do mundo da oralida-de para o do letramento, do mundo do analfabetismo para o reino das letras, do mundo da fome para o reino da fartura (BARBOSA, 2009, p. 285).

    Seu passado cheio de marcas significativas, que fazem parte de sua histria de vida. A jornalista filha de me nordestina, analfabeta, e de pai operrio-trabalhador do cais.

    De origem humilde, desde menina sabia que as dificuldades cotidianas s poderiam ser ultrapassadas pelo esforo individual. Muito cedo queria ler e escrever. Enxergou, ento, nas letras uma sada para conseguir entrar em outros mundos. E foi justamente este mundo de letras, completamente des-conhecido daqueles que a cercavam, que, segundo Marialva, foi sua tbua de salvao1.

    Quando criana residiu e no bairro da Piedade2 e estudou em uma escola pblica no bairro Encantado, ambos no subrbio carioca. A escola chamava-se III-XIV Gois.

    Posteriormente estudou por um breve perodo na Escola Piedade (no tempo em que foi criada a Faculdade, hoje Universidade, Gama Filho).

    De Piedade veio a residir no Jardim Amrica, um bairro carioca da zona da Leopoldina, de classe mdia baixa. Cursou o antigo ginsio na escola Jos do Patrocnio, em Inhama, tambm na zona da Leopoldina. De l foi para a Escola Normal Carmela Dutra, em Madureira, e, no ano de 1973, com 17 anos de idade, entrou para o curso de Comunicao Social, com habilitao em Jornalismo, na Universidade Federal Fluminense (UFF), que concluiu em 1976.

    Esta primeira vitria foi resultado de uma longa trajetria de vida, construda por meio das leituras e dos livros livros que fizeram parte de sua vida em formao, indicando mundos desconhecidos, sabedorias diversas, possibilidades de outras vidas. O chamado das letras, como conta Marialva (2009, p. 287), a levou quase que naturalmente a escolher ser jornalista.

    Enquanto estudante de graduao, foi aluna de grandes personalidades, como Muniz Sodr, Nilson Lages, Antonio Teodoro de Barros, Carlos Hen-rique de Escobar, Marco Aurlio Luz, dentre outros.

    1 Marialva Barbosa, em entrevista concedida a esta pesquisa, por e-mail, em novembro de 2009.2 Este bairro de classe mdia e mdia-baixa da Zona Norte do Rio de Janeiro entrou para a

    histria por ter sido o local onde Dilermando (amante de Ana DAssis, esposa de Euclides da Cunha) assassinou o autor da obra-prima Os sertes, conforme relata Marialva Barbosa em entrevista concedida em novembro de 2009. E porque l tambm morou o grande escritor Lima Barreto.

  • 145

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    Marialva Barbosa, neste perodo de formao, ficou amiga do ento professor Antonio Srgio de Lima Mendona, diretor do Instituto, que a alertou sobre uma vaga que havia para colaborador3 para preencher as va-gas dos professores Muniz Sodr e Rosenthal Calmon Alves, que tinham se afastado o primeiro para fazer ps-doutorado em Paris e o segundo para ser correspondente do JB em Buenos Aires.

    Barbosa resolveu participar da seleo, e passou. Ento, aps trs anos de graduada, comeou a dar aulas, em maro de 1979, na Universidade Fede-ral Fluminense (UFF). Ela descreve a experincia da seguinte maneira: Co-mecei a dar aulas: o frio na barriga no primeiro dia (eu era mais nova do que a maioria da turma) foi substitudo pelo encantamento. Os alunos tambm gostaram. Descobri a vocao. A comeou minha trajetria acadmica4.

    No mesmo perodo, Marialva chegou a trabalhar nas empresas de co-municao: TV Tupi, Rdio Tupi, Jornal ltima Hora, Tribuna de Niteri. Depois trabalhou em empresas de outros setores, como Sul Amrica Seguros, Esso Brasileira de Petrleo e Telerj, sempre no setor de comunicao.

    Marialva Barbosa mantinha uma rotina que lhe permitia trabalhar du-rante o dia e dar aulas no perodo da noite.

    No ano de 1989, resolveu fazer mestrado em Histria, talvez para suprir um desejo antigo, pois na poca do vestibular, quando decidiu fazer Jorna-lismo, sua segunda opo foi Histria. Mas, tambm, porque achava que os conceitos e as teorias da histria eram, naquele momento, mais elaborados, mais bem desenvolvidos, mais consistentes.

    Ao expressar de forma explcita sua opo, Barbosa declara que: Hoje, a comunicao um campo de conhecimento com teoria, metodologia, con-ceitos prprios, mas ento no era assim. Alm disso, eu gostava (e ainda gosto) muito de histria. Queria estudar a histria da imprensa. Juntaria a o meu conhecimento prtico com a teoria. Alm disso, no falamos nunca nada alm de nossa prpria vida. Da a dissertao: quem sabe, aqueles operrios, com liderana, uma cultura prpria, um estilo de vida, no era a busca pelo entendimento de minhas origens? At que ponto meu pai no era tambm um operrio do pensamento? uma linda dissertao: penso um dia atualiz-la e public-la. Fala das vises de mundo dos operrios do incio do sculo. No de todos os operrios, mas daqueles que tinham contato com a palavra impressa e que assim formavam uma cultura com influncia do mundo letrado e do mundo oral5.

    3 Correspondente ao atual professor substituto4 Marialva Barbosa, em entrevista concedida a esta pesquisadora por e-mail em novembro

    de 2009.5 Marialva Barbosa, em entrevista concedida a esta pesquisadora por e-mail, em novembro

    de 2009.

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14146

    Para realizao deste trabalho, teve contato com a principal literatura de histria cultural da poca: os trabalhos pioneiros de E. P. Thompson, o materialismo dialtico de Hobsbawm, a histria cultural de Natalie Da-vis, os escritos sobre livro e leitura de Roger Chartier, entre uma enorme variedade de autores.

    Na poca, o conceito do curso de mestrado em histria da Universidade Federal Fluminese era A + no CNPq, o que equivalia ao grau 76.

    Concluiu o mestrado em 1992, com a dissertao: Operrios do pensamento: vises de mundo dos tipgrafos do Rio de Janeiro (1880-1920).

    No mesmo ano, em 1992, prosseguiu os investimentos na carreira acadmica, comeando ento seu doutorado em Histria (Conceito Capes 6), tambm na Universidade Federal Fluminense, UFF, Brasil. Foi no doutorado que realmente fiz a pesquisa que sempre almejei fazer: estudar o circuito da comunicao dos principais jornais do Rio de Janeiro no incio do sculo. um trabalho do qual me orgulho muito. O ltimo captulo sobre a leitura do pblico desses jornais realmente muito bom. Tenho orgulho dessa tese e guardo lembranas maravilhosas dessa experincia. Foi uma pesquisa exaustiva: vi mais de 80 mil fotogramas de pginas de jornais na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Pesquisei em muitos documentos (em histria assim, temos certo dever de olhar documentos) e construir um texto do qual tenho orgulho at hoje7.

    No ano de 1996, concluiu o doutorado com a tese Imprensa, poder e pblico: os dirios do Rio de Janeiro (1880-1920), e ganhou o prmio de melhor tese de doutorado no Brasil (Jornalismo). Esta tese resultou no livro Os donos do Rio: imprensa, poder e pblico (2000), um trabalho que leva o leitor a ter uma compreenso da importncia histrico-social das mdias na histria social do processo comunicacional brasileiro.

    Ao mesmo tempo em que fazia o doutorado, Marialva prestou concurso, em 1994, para ser professora titular na Universidade Federal Fluminense (UFF- Brasil). Passou em primeiro lugar e, desde ento, titular dessa universidade.

    Desde ento, iniciou um trabalho de natureza administrativa, por considerar-se em dvida de gratido para com a UFF e achando que deveria de alguma maneira pagar aos que considera, at hoje, os responsveis por sua existncia intelectual. Tornou-se chefe do Departamento de Comunica-o Social e, nessa condio, no ano de 1996, no apenas incentivou, como

    6 Marialva teve como colega de turma Anita Prestes (filha do militar e poltico brasileiro, Lus Carlos Prestes). Tinha aulas com Ciro Flamarion Cardoso, Angela Castro Gomes, Margarida de Sousa Neves, Falcon, Rachel Soihet e tantos outros.

    7 Marialva Barbosa, em entrevista concedida a esta pesquisadora por e-mail, em novembro de 2009.

  • 147

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    tambm elaborou e implantou o mestrado em Comunicao, que de incio chamava-se Comunicao, Imagem e Informao da UFF. E, no ano de 1997, o mestrado comeou a funcionar.

    Dando continuidade sua formao no universo da histria da imprensa, Barbosa resolveu fazer o ps-doutorado no ano de 1999, em Paris (Frana, Europa), no Centre National des Recherches Scientifiques, no Laboratrio

    de Antropologia das Instituies e Organizaes Sociais (Laios), chefiado,

    na poca, por Marc Ables. O tema de sua pesquisa foi Meios de comuni-cao, memria e tempo: a construo da redescoberta do Brasil. uma reflexo sobre a relao memorvel e temporal dos meios de comunicao,

    tomando como objeto de anlise emprica as comemoraes dos 500 anos de descobrimento do Brasil.

    Retornando ao Brasil, em 2001, implementou o projeto de doutorado na Universidade Fluminense (UFF-RJ). Era ento coordenadora da ps-graduao. Em 2002, o projeto foi encaminhado Capes, aprovado e a primeira turma teve incio em 2003. Marialva permaneceu na coordenao do Programa de 2001 at 2006. Em maro de 2006 saiu da coordenao e permaneceu como vice-coordenadora.

    No ano de 2007, afastou-se definitivamente da administrao, ficando

    apenas como docente. Neste mesmo ano, lanou dois grandes livros: percurso do olhar: comunicao, narrativa e memria (Niteri: Eduff, 2007) e Histria cultural da imprensa: Brasil (1900-2000) (Rio de Janeiro: Mauad X, 2007). Este ltimo ganhou a Medalha Carlos Eduardo Lins e Silva, outorgada pela Intercom, em 2007, s mais representativas publicaes lanadas nesse ano.

    No ano de 2008 venceu o prmio Luiz Beltro de Cincias da Comu-nicao, categoria Maturidade Acadmica.

    Em 2009, no primeiro semestre, atuou como professora visitante na UFRJ.

    Marialva, atualmente, tambm exerce as funes de diretora cientfica da

    Intercom e presidente da Associao Brasileira de Pesquisadores de Histria da Mdia (Alcar).

    As exigncias do mundo fazem com que o trabalho se torne cada vez mais completo. Administrar a responsabilidade de repassar conhecimento, ensinar valores e orientar no so tarefas fceis, porm Marialva Barbosa conseguiu realiz-las com xito, formando centenas de alunos do decorrer de sua carreira.

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14148

    Uma pessoa que tem desempenhado importante papel na trajetria da personagem aqui estudada Nlio Rodrigues, seu esposo, que ao longo de mais de vinte anos tem incentivado e presenciado as realizaes de Marialva.

    As competncias e habilidades conquistadas por Marialva Carlos Bar-bosa so qualidades conquistadas pela superao de limites, um contnuo aprendizado e dedicao.

    Aps 31 anos de trabalho e dedicao Universidade Federal Fluminen-se do Rio de Janeiro, jornalista, professora e historiadora e est em um novo projeto, uma nova etapa em sua vida, que o Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Linguagens da Universidade Tuiuti, do Paran.

    pOR uMA HISTRIA dA IMpRENSAEm virtude de sua formao, que inclui comunicao na graduao e

    mestrado e doutorado na rea de Histria, Marialva Barbosa, procurou sempre ver os saberes acima dos campos especficos de estudo. Assim, no que diz respeito s chamadas correntes tericas, no se ateve muito aos pensadores da comunicao. Procurou, sempre, dialogar com todas as reas, trabalhando na interdisciplinaridade, formataes especficas e nichos de conhecimento.

    Naturalmente que para o fortalecimento de uma rea preciso o dilo-go com seus pares. Neste sentido, Barbosa mantm-se constantemente em dilogo com todos aqueles que se interessam pelos aspectos histricos da comunicao. Cita o professor Jos Marques de Melo, que possui trabalhos pioneiros no campo da histria da imprensa, destaca a importncia da tese de doutorado deste pesquisador, que procurava explicar as razes do surgi-mento de uma imprensa tardia no Brasil, intitulada Fatores que retardaram a implantao da imprensa no Brasil.

    Marialva, porm, no somente trabalha utilizando os predecessores Jos Marques de Melo e Muniz Sodr, que foi seu professor mas tambm alguns sucessores. Dentre os sucessores trabalha com os estudos da Dra. Ana Paula Goulart Ribeiro, que tambm se dedica h alguns anos a tecer consideraes e anlises em torno da relao comunicao e histria.

    Procura sempre dialogar com pesquisadores de outros campos. Nesse sentido, as teorias da histria e alguns tericos da literatura (alm de filsofos fundamentais) tm sido fontes de inspirao conceitual.

    CONCEITOS ASSIMILAdOS/REFERIdOSPor meio de seus trabalhos, percebe-se que para Marialva a histria do

    jornalismo passa por uma histria dos sistemas de comunicao, considerando todo um processo que vai do produto ao leitor, passando pelas formas de apropriao das mensagens.

  • 149

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    Nesse sentido, pode-se afirmar que os conceitos com os quais Barbosa trabalha e que so fundamentais para uma compreenso do processo histrico como temporalidade, espacialidade, conjuntura e grupos sociais, permitem um olhar sobre a histria que transcende a narrativa cronolgica de fatos e permite, por exemplo, ver o mundo como narrativa e a ao comunica-cional como o sentido fundamental da vida do homem naquele momento que denomina presente. Assim, em sua concepo, a questo da relao tempo e narrativa tambm fundamental para o estudo de uma histria da Comunicao e destaca a influncia dessa relao em seus estudos a partir da obra de Paul Ricoeur (1994, 1995 e 1996). Os conceitos que ele anuncia (imaginao regrada, identidade narrativa, mimesis I, II e III, representncia, dentre tantos outros conceitos) foram por ela assimilados e utilizados nas questes comunicacionais.

    Outro autor que participou fundamentalmente de sua formao e cujos conceitos so sempre referenciados em seus trabalhos Pierre Bourdieu: campo, habitus, nomeao, distino, poder simblico, posio e condio de classe.

    bom tambm ressaltar os historiadores com os quais a autora aqui estudada trava constantes dilogos. De um lado, os nacionais, como Marco Morel, ngela Castro Gomes, Alzira Abreu, Nelson Werneck Sodr, Ciro Flamarion Cardoso, Ana Maria Mauad, dentre outros. De outro, os estrangei-ros, como Robert Darnton, que muito a influenciou, sobretudo, na percepo sobre a existncia de um sistema de comunicao complexo8.

    Percebe-se tambm a presena, em seus trabalhos, de Carlo Ginzburg e Agnes Heller, com a complexa teoria da histria. E muitos outros: desde os tericos e filsofos mais fundamentais da histria, como Marc Bloch, Lucien Febvre, Collingwood, Gadamer, at outros tambm historiadores, mas cujos textos foram mais divulgados entre ns, a saber: Roger Chartier e Michel De Certeau, por exemplo.

    TESES ENdOSSAdAS/REFuTAdASEm seus estudos, Marialva Carlos Barbosa endossa integralmente as teses

    de Paul Ricoeur, Roger Chartier, Robert Darnton e Michel de Certeau. Sobre refutamento de teses, Marialva declara: Acho complicado falar

    em refutamento de teses, na medida em que ao considerar o conhecimento cumulativo, sempre h algo que algum disse em algum momento e que serviu de fonte de inspirao para os nossos trabalhos. Mesmo quando no concordamos com um autor, estamos colocando-o em referncia9.

    8 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. So Paulo: Cia. das Letras, 1990. 9 Marialva Barbosa, em entrevista concedida, por e-mail, em novembro de 2009.

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14150

    Entretanto, nota-se em suas obras, as questes com as quais no concor-da. Por exemplo, no concorda com uma viso de histria linear e orientada e, sobretudo, com aquela que tem a pretenso de trazer o verdadeiro passado para o presente. Tambm no concorda com uma histria de efemrides.

    AuTORES CITAdOSSem dvida o autor mais citado por Barbosa nos ltimos tempos tem

    sido Paul Ricoeur. Tambm cita muito Robert Darnton e Roger Chartier. Nos ltimos tempos, Barbosa mostra interesse na questo dos rastros

    e vestgios e incorporou s suas teorias citaes e leituras fundamentais das obras de Agnes Heller e Carlo Ginzburg.

    E como seu projeto mais recente escrever sobre a leitura dos escravos do sculo XIX, vem cercando-se das reflexes sobre a questo da oralidade: Havelock, Ong, dentre outros. Cita tambm Haraldo Weinrich.

    CONHECENdO A OBRA dE MARIALVA CARLOS BARBOSA

    Os donos do Rio: imprensa, poder e pblico. Rio de Janeiro: Vcio de Leitura, 2000. Neste livro, Marialva realiza uma anlise das mudanas que se proces-saram nos principais jornais dirios do Rio de Janeiro no perodo que vai de 1880 at 1920, destacando o novo papel que esses peridicos passaram a ter na sociedade.

    Ela trabalha com a inter-relao de dois conceitos imprensa e poder analisando cinco dos dirios mais importantes no perodo: o Jornal do Brasil, Correio da Manh, Jornal do Commercio, O paiz e a Gazeta de Notcias; sob a tica de uma histria dos sistemas de comunicao, procurando ver no apenas o processo de produo desses peridicos, mas quem escrevia para essas publicaes, o que se escrevia, com que objetivo e, para quem se escrevia.

    O pblico, em sua obra, tambm objeto de destaque, pois o livro mostra as descobertas no apenas sobre quem era o leitor preferencial desses dirios, mas a forma como era feita essa leitura, percebendo-se, ao mesmo tempo, as apropriaes diferenciadas dos textos por esses leitores.

    A autora tambm aborda as mudanas editoriais pelas quais passaram esses jornais, que objetivavam no apenas novos leitores, mas a introduo de uma nova leitura que atendesse s expectativas culturais de um pblico mais amplo, para quem at ento os dirios no eram familiares.

    Esse livro traa uma radiografia desses peridicos, recuperando tambm os processos de produo, que no perodo analisado passaram por uma das mais profundas reformulaes j sofridas pela imprensa.

  • 151

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    percurso do Olhar : comunicao, narrativa e memria. Niteri: Eduff, 2007. Com o objetivo de desvendar conceitos de filsofos renomados, como Pierre Bourdier e Paul Ricoeur, Marialva Carlos Barbosa descreve neste livro uma trajetria de 28 anos em sala de aula, em que se prope a tornar mais aces-sveis alguns paradigmas conceituais e tericos fundamentais para os estudos na rea de comunicao.

    Sem dvida nenhuma, esta uma obra que serve de referencial didtico para estudantes do curso de comunicao social, pois discorre, em linguagem acessvel, sobre as idias de Paul Ricur e de Pierre Bourdieu, tericos con-siderados difceis para grande parte dos leitores iniciantes em suas obras.

    O primeiro texto do livro trata logo de esclarecer sobre o pensamento do filsofo do sentido, Ricur, que, para Marialva Barbosa, mesmo no pensando diretamente a questo da comunicao, ao desenvolver um aporte terico em relao questo da narrativa, oferece uma contribuio mpar para se pensar a comunicao como processo complexo.

    Em seguida, discorre sobre Pierre Bourdieu, debruando-se nos conceitos fundamentais deste autor para o estudo da comunicao, princi-palmente destacando as questes sobre as relaes de comunicao como relaes de poder.

    Nos outros captulos, Marialva discute a memria, levando o leitor a uma reflexo em torno dos meios de comunicao social, alm de destacar as estratgias de atualizao da memria. Discorre tambm sobre o mundo tecnolgico, abordando o significado histrico da palavra revoluo e indica as razes de natureza poltica que levam adoo do conceito.

    Neste estudo, destaca ainda as questes sobre a narrativa da televiso, mostrando que ela articula sua narrativa temporalmente, colocando passado, presente e futuro em regimes de compreenso prprios (2007).

    O livro fala tambm sobre o acontecimento contemporneo, a gnese do conceito de pblico e destaca questes sobre o jornalismo sensacionalista.

    percursos do olhar , portanto, um livro que promove uma reflexo pro-funda sobre a conexo Histria-Jornalismo, destacando a importncia da aproximao das reas na construo da notcia.

    Histria cultural da imprensa: Brasil (1900-2000). Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. A histria da imprensa no Brasil tem sido estudada e analisada por historiadores e jornalistas.

    O mais famoso livro utilizado na academia e referncia de leitura para alunos de jornalismo e curiosos em geral Histria da imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodr, no qual o autor faz uma anlise sob a perspectiva marxista das relaes existentes entre o jornalismo, a imprensa e o sistema

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14152

    econmico. O livro de Sodr faz uma excelente reconstituio histrica, sempre sob o ponto de vista de um historiador.

    Outros acadmicos brasileiros, at mesmo jornalistas, tambm publi-caram seus estudos nessa rea, com grande acuidade cientfica e histrica. Faltava, no entanto, que um jornalista, com linguagem jornalstica clara e concisa, escrevesse sobre a histria do jornalismo a seus pares, sem abrir mo de uma exaustiva pesquisa acadmica sobre o assunto, com preocu-pao epistemolgica e com a multicausalidade dos fatos para formar esta reconstituio histrica.

    Embora tenha como foco o jornalismo impresso, at pela importncia e espao que ele ocupa nas origens do que o jornalismo no Brasil e no mundo, a autora no deixa de citar e exemplificar o poder comunicativo nos meios eletrnicos da televiso e rdio.

    Este livro facilita a compreenso em torno das relaes do jornalismo com o poder. A autora trabalha com a insero da produo de uma histria da imprensa dentro de um campo claramente configurado e que se denomina histria cultural.

    Marialva Barbosa trabalha com a histria cultural, segundo a viso de Robert Darnton (1990), que prope a realizao de uma histria social e cultural da comunicao impressa.

    A chave metodolgica de seu trabalho caracterizada tambm pela viso de Roger Chartier no que diz respeito histria das prticas de leitura, onde no apenas trabalha com a recepo do texto pelo leitor, mas com o intervalo existente entre a produo do autor e sua recepo pelo leitor.

    Seguindo o modelo proposto por Robert Darnton para a construo de uma histria social e cultural da comunicao impressa, Marialva realiza um trabalho que desvenda uma histria da imprensa, relatando quem escrevia para esses jornais, como procuravam se popularizar ou seja, que estratgias, apelos e valores esses veculos invocavam em seu discurso , como funcio-navam essas empresas e de que forma esses textos chegavam ao pblico.

    Histria da cultura da imprensa, explica todo o processo da histria da imprensa do Rio de Janeiro, que vai desde o perodo da virada do sculo XIX para o sculo XX at os primeiros anos do sculo XXI, mostrando sua influncia perante as demais localidades brasileiras. So abordadas questes como as inovaes tecnolgicas e estilsticas da imprensa, assim como as mutaes sociais, culturais e polticas tanto do Rio de Janeiro at 1960 a capital da Repblica quanto do Pas. Tambm abordado em seu traba-lho o papel preponderante do jornalismo ante a sociedade, como elemento tradutor das muitas vozes urbanas e representante dos anseios e aspiraes que se apresentam em todas as localidades do Pas.

  • 153

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    O livro cumpre o importante papel de transitar sem sobressaltos por perodos distintos dessa histria cultural impressa, na qual tanto a cidade do Rio de Janeiro quanto os prprios jornalistas so personagens indissociveis. Afinal, alimentam-se uns dos outros, criando vnculos sociais o jornalista como mediador dessa sociedade culturais e polticos, em seus sentidos mais amplos.

    Nesta obra, Marialva trabalha a datao de forma separada, didaticamen-te, por dcadas. Para cada dcada a autora foi capaz de encontrar um par-metro de diferenciao especfico da evoluo e caracterstica da imprensa.

    Porm, mesmo com essa diversidade de fontes, a pesquisadora utilizou prioritariamente o material veiculado pelos jornais cariocas. Para cada fase tomou como referencial as propostas, os projetos e as ideias de alguns jor-nais de destaque, no perodo estudado, como: Gazeta de Notcias, Correio da Manh, Jornal do Comrcio, O pas, A Manh, A Crtica, Jornal do Brasil, O Jornal, O Globo, ltima Hora, dentre outros.

    Para um melhor entendimento, destacou tambm a viso de alguns tericos que ajudam na compreenso do momento, entre eles, destaca: Paul Ricoeur e Tzvetan Todorov a Roland Barthes, Michel De Certeau, Maurice Halbwachs, Antonio Gramsci, Karl Manheim, Cliford Geertz, Michel Foucault, Gustave Le Bon, Lynn Hunt, Mikhail Bakhtin, Hayden White e outros.

    A autora destaca em seu livro fatos importantes, como a compreenso dos perodos estudados e a efervescncia cultural e noticiosa que viu nascer aquilo que seria o primeiro grande imprio das comunicaes no Brasil, quando Francisco de Assis Chateaubriand deu incio ao seu conglomerado de comunicao, os Dirios Associados, que teve incio com a compra de O Jornal, em 1925, seguida da criao da revista O Cruzeiro, em 1928, e da TV Tupi, em 1950, dentre outros feitos.

    Para Marialva Barbosa, Chateaubriand estava construindo o caminho para o surgimento como aponta de outros grandes empresrios da cena miditica carioca e nacional, como Samuel Wainer com seu ltima Hora sombra do getulismo repaginado dos anos 1950 e, principalmente, Roberto Marinho, que viria a criar o maior imprio de comunicao do Brasil, a partir da fundao da TV Globo, em 1965.

    Desta maneira, Barbosa procurou construir uma histria cultural da imprensa carioca, por ela concebida como um processo complexo em que podem ser engendradas relaes sociais, culturais, falas e no ditos. A autora procurou evitar possveis generalizaes tendo como base alguns ca-sos particulares ou, como registrou, no se pode generalizar as concluses para todos os contextos, j que cada espao social possui uma conformidade histrica, uma trajetria particular (2007, p.15).

  • Anurio unesco/MetodistA de coMunicAo regionAl 14154

    O livro em questo, alm de destacar esses aspectos essenciais para o entendimento da histria do jornalismo no Brasil, tambm mostra outros temas que decerto ajudam na compreenso do papel exercido pela imprensa ao longo de dcadas de lutas libertrias, aes sociais e, tambm, vnculos e relaes nem sempre plausveis com o poder estabelecido.

    A Histria cultural da imprensa, em seu captulo final, traz ao conheci-mento do leitor uma viso diferenciada, pois a autora parte de pesquisas que ela orientou no Programa de Ps-Graduao em que atua, na Universidade Federal Fluminense (UFF- RJ), que destacam trs perspectivas: a introduo das tecnologias de informtica e a importncia do jornalismo econmico, a ecloso do chamado jornalismo investigativo e o surgimento crescente de um clima de medo da violncia urbana.

    Histria cultural da imprensa: Brasil 1900-2000 , assim, um livro que se aprofunda nas questes fundamentais para a compreenso do fazer jornals-tico no ltimo sculo e para um melhor entendimento da prpria fundao da sociedade brasileira de uma forma mais ampla.

    CONCLuSO Arrojada, determinada, corajosa, pioneira. Assim Marialva Carlos

    Barbosa, uma mulher que venceu os limites de uma infncia e adolescncia pobre e humilde, encarou o mercado de trabalho sem medo e construiu, ao longo de 31 anos, uma brilhante carreira acadmica, na qual exerceu diversas atividades, dentre elas: chefe do Departamento de Comunicao; chefe do Departamento de Estudos Culturais e Mdia; coordenadora da Ps-Graduao em Comunicao; vice-coordenadora do PPGCOM; coordenadora de rea Pesquisa PROPP; Comit de Biblioteca de Cincias Humanas; presidente da Banca de Progresso do Professor Associado, e outras.

    A contribuio dos trabalhos de Marialva na imprensa foi decisiva para que ela aproveitasse esse espao no mundo das letras para se fazer ouvir e expor uma nova maneira de pensar.

    A atuao de Barbosa evidencia sua contribuio historiografia da imprensa brasileira, particularmente a histria cultural da imprensa do Rio de Janeiro.

    Ao apresentar a contribuio dessa escritora para a construo do que pode vir a ser denominado um pensamento comunicacional genuinamente brasileiro, estamos colaborando, no apenas para a visibilidade de uma au-tora, mas para o despertar do interesse por sua obra, e com isso esperamos contribuir para que se visualize um novo olhar sobre a histria do jornalismo no Brasil.

  • 155

    Anurio Unesco/Metodista de Comunicao Regional, Ano 14 n.14, p. 143-155 jan/dez. 2010

    Marialva BarBosa, entre a histria e o jornalisMo

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARBOSA, M. C. Os donos do Rio: imprensa, poder e pblico. 1. ed. Rio de Janeiro: Vcio de Leitura, 2000. v. 1. 220 p.

    _____. Histria cultural da imprensa: Brasil (1900-2000). 1. ed. Rio de Janeiro: Mauadx, 2007. v.1. 262 p.

    _____. Percursos do olhar: comunicao, narrativa e memria. 1. ed. Niteri: Eduff, 2007. v .1. 174 p.

    _____. O reino dos predecessores e dos sucessores. Intercom Revista Brasileira de Ci-ncias da Comunicao 284, So Paulo, v. 32, n. 1, p. 285-292, jan.-jun. 2009.

    BOURDIEU, P. O poder simblico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 1989.

    CHARTIER, R. A histria cultural: entre prticas e representaes. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel,1990.

    DARNTON, R. O beijo de Lamourette: mdia, cultura e revoluo. So Paulo: Cia. das Letras, 1990.

    Entrevista com Marialva Carlos Barbosa, concedida a Ranielle Leal Moura, no dia 05 de novembro de 2009.

    Por uma histria dos sistemas miditicos. Entrevista de Marialva Barbosa concedida Revista ECO-PS, v. 8, n. 2, pp.140-147, ago.-dez. 2005.

    RICOEUR, P. O passado tinha um futuro. In: MORIN, E. A religao dos saberes: o desafio do sculo XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

    _____. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v. I.

    _____. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1995. v. II.

    _____. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1996. v. III.