Mov Atingidos Por Barragem

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Revista NERA Presidente Prudente Ano 12, nº. 15 pp. 34-65 Jul-dez./2009 O Movimento dos Atingidos por Barragem na Amazônia: um movimento popular nascente de “vidas inundadas” Sérgio Roberto Moraes Corrêa Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS-UFCG) Professor do Departº. de Educação Especializada da Universidade do Estado do Pará Endereço Profissional: Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Departamento de Educação Especializada, Rua do Una,s/nº, Djalma Dultra, Bairro do Telegrafo, BELÉM, Pará, Brasil Telefone: (91) 4009-9516 Endereço eletrônico: [email protected] Resumo Esse artigo constitui, de forma resumida, o capítulo I de minha pesquisa de mestrado, intitulada: “Educação Popular do Campo e Desenvolvimento Territorial Rural na Amazônia: uma leitura a partir da Pedagogia do Movimento dos Atingidos por Barragem”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (PPGE- UFPB), defendida em julho de 2007. Nesse texto, teço e entrelaço alguns fios acerca da origem do MAB, para demarcar um divisor de águas na história da sociedade brasileira, identificando novos sujeitos, novas demandas e temas, que passam a impulsionar a reconfiguração de novas contradições e conflitos na dinâmica socioespacial deste país e da Amazônia, particularmente, em torno do desenvolvimento e da educação do campo. Para tanto, delimito esse breve percurso e navegar histórico no município de Tucuruí, no Estado do Pará, a partir da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT). Palavras-chave: MAB, Amazônia, Desenvolvimento, Educação e Campo. Resumen El Movimiento de los Afectados por Represas em la Amazônia: um movimiento popular nacente de “vidas inundadas” Ese artículo se constituye, de forma resumida, en el capítulo de mi investigación del curso de Máster cuyo título es Educación Popular del Campo y Desarrollo Territorial Rural en la Amazonia: una lectura a partir de la Pedagogía del Movimiento de los Afectados por la Represa, realizada en el Programa de Post grado en Educación de la Universidad Federal de Paraíba (PPGE-UFPB), defendida en julio de 2007. En ese texto, he entrelazado algunos hilos sobre el origen del MAB, para limitar un divisor de aguas en la historia de la sociedad brasileña, identificando nuevos sujetos, nuevas demandas y temas, que pasan a promover la reconfiguración de nuevas contradicciones y conflictos en la dinámica socio espacial de este país y la Amazonia, particularmente en torno al desarrollo y la educación del campo. Para ello, delimito ese breve recorrido y navegar histórico en el municipio de Tucuruí, en el Estado de Pará, a partir de la construcción de la Planta Hidroeléctrica de Tucuruí (UHT). Palabras Clave: MAB – Amazônia – Desarrollo – Educación y Campo. Summary The Movement of the Affected by Dams in the Amazonia: a nascent popular movement of “flooded lives” This article is constituted, of summarized form, the chapter I of my master research, titled: “Popular education of the field and rural territorial development in the Amazonia: a reading from the pedagogy of the movement of the affected by dams”, realized in the program of

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  • Revista NERA Presidente Prudente Ano 12, n. 15 pp. 34-65 Jul-dez./2009

    O Movimento dos Atingidos por Barragem na Amaznia: um movimento popular nascente de vidas inundadas

    Srgio Roberto Moraes Corra

    Doutorando em Cincias Sociais pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS-UFCG)

    Professor do Depart. de Educao Especializada da Universidade do Estado do Par Endereo Profissional: Universidade do Estado do Par, Centro de Cincias Sociais e

    Educao, Departamento de Educao Especializada, Rua do Una,s/n, Djalma Dultra, Bairro do Telegrafo, BELM, Par, Brasil

    Telefone: (91) 4009-9516 Endereo eletrnico: [email protected]

    Resumo

    Esse artigo constitui, de forma resumida, o captulo I de minha pesquisa de mestrado, intitulada: Educao Popular do Campo e Desenvolvimento Territorial Rural na Amaznia: uma leitura a partir da Pedagogia do Movimento dos Atingidos por Barragem, realizada no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal da Paraba (PPGE-UFPB), defendida em julho de 2007. Nesse texto, teo e entrelao alguns fios acerca da origem do MAB, para demarcar um divisor de guas na histria da sociedade brasileira, identificando novos sujeitos, novas demandas e temas, que passam a impulsionar a reconfigurao de novas contradies e conflitos na dinmica socioespacial deste pas e da Amaznia, particularmente, em torno do desenvolvimento e da educao do campo. Para tanto, delimito esse breve percurso e navegar histrico no municpio de Tucuru, no Estado do Par, a partir da construo da Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT). Palavras-chave: MAB, Amaznia, Desenvolvimento, Educao e Campo.

    Resumen

    El Movimiento de los Afectados por Represas em la Amaznia: um movimiento popular nacente de vidas inundadas

    Ese artculo se constituye, de forma resumida, en el captulo de mi investigacin del curso de Mster cuyo ttulo es Educacin Popular del Campo y Desarrollo Territorial Rural en la Amazonia: una lectura a partir de la Pedagoga del Movimiento de los Afectados por la Represa, realizada en el Programa de Post grado en Educacin de la Universidad Federal de Paraba (PPGE-UFPB), defendida en julio de 2007. En ese texto, he entrelazado algunos hilos sobre el origen del MAB, para limitar un divisor de aguas en la historia de la sociedad brasilea, identificando nuevos sujetos, nuevas demandas y temas, que pasan a promover la reconfiguracin de nuevas contradicciones y conflictos en la dinmica socio espacial de este pas y la Amazonia, particularmente en torno al desarrollo y la educacin del campo. Para ello, delimito ese breve recorrido y navegar histrico en el municipio de Tucuru, en el Estado de Par, a partir de la construccin de la Planta Hidroelctrica de Tucuru (UHT). Palabras Clave: MAB Amaznia Desarrollo Educacin y Campo.

    Summary

    The Movement of the Affected by Dams in the Amazonia: a nascent popular

    movement of flooded lives This article is constituted, of summarized form, the chapter I of my master research, titled: Popular education of the field and rural territorial development in the Amazonia: a reading from the pedagogy of the movement of the affected by dams, realized in the program of

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    postgraduation in education of the federal university from Paraba (PPGE-UFPB), It was defended in 2007 July. In this text, I weave and I intertwine some threads about the origin of the MAB, in order to demarcate a divisor of waters in the history of the Brazilian society, identifying new subjects, new demands and themes, that pass to stimulate the reconfiguration of new contradictions and conflicts in the social and spatial dynamic of this country and the Amazonia, in particular around the development and of the education of the field. For this, I delimit this short journey and historical sail in the town of Tucuru , in the State of Par , from the construction of the Hydroelectric Power Station of Tucuru (UHT). Keywords: MAB; Amazonia; Development; Education and Field.

    (...) A lembrana que eu tenho, hoje, s tristeza e mgoa, a saudade do passado, sei que o tempo no apaga, porque o que eu mais gostava hoje est de baixo dgua, vou lutar por minha terra, que furnas danificou, junto com meus companheiros, irei seja aonde for, quero outra terra igual a que ela nos tirou, queremos toda justia no processo que parou (...).

    (Antnio Jos - MAB) Introduo

    Sem a pretenciosidade de querer dar conta da histria do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) nesse texto, at porque essa pesquisa no teve tal propsito, teo e entrelao alguns fios acerca da origem desse Movimento para demarcar um divisor de guas, a partir da emergncia do MAB na sociedade brasileira, identificando novos sujeitos, novas demandas e temas, que passam a impulsionar a reconfigurao de novas contradies e conflitos na dinmica socioespacial deste pas e da Amaznia, particularmente em torno do desenvolvimento e da educao do campo. Para tanto, delimito esse breve percurso e navegar histrico no municpio de Tucuru, no Estado do Par, a partir da construo da Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT), que assume como Grande Projeto, um carter fundamentalmente contraditrio dentro da poltica desenvolvimentista do regime militar, que inclua a excluso e empobrecimento de certos setores da sociedade e o uso degradante dos recursos naturais, para gerar crescimento econmico, progresso e modernidade para a sociedade e para a regio amaznica, especificamente. , no entanto, como conseqncia e resultante dessas contradies, que emerge, de vidas inundadas, o movimento popular dos atingidos por barragem, de baixo, de peixes pequenos, para resistir e r-existir lgica predadora dos grandes tubares. A poltica de modernizao conservadora do regime autoritrio: um desenvolvimento s avessas social e ambientalmente

    Em meados dos anos 70, o mundo, ainda, se encontrava efervescido no calor da guerra fria, na qual os blocos capitalista e socialista disputavam fronteiras dos continentes e das naes para expandir seus projetos de sociedade. A Amrica Latina, ao mesmo tempo em que vivia a experincia de revolues de corte socialista em alguns pases, passava, predominantemente a ser varrida por uma onda de golpes militares, que implantavam regimes ditatoriais de direita.

    Parece, todavia, que esse contencioso e belicoso teatro latino-americano, em parte, no seguiu a tese enunciada pelo breve sculo de Eric Hobsbawm (1995), uma vez que parecia, para ns, um retorno a outros pesadelos de nossa trgica e forte histria de autoritarismo. Foi uma Era dos Extremos com requintes de retorno ao trgico tempo histrico de barbrie que no acabou.

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    Nesse enredo contraditrio e conflituoso, a sociedade brasileira vivia e experenciava a trama de um dos momentos mais sombrios e tenebrosos de sua histria: a ditadura militar (1964-1985) (CHIAVENATO, 1994). Censura, perseguies, torturas e mortes conflitavam e contradiziam com o discurso do regime militar da modernidade e do progresso, isto , do Brasil Grande ou Potncia (Gonalves, 2005), que, no af de se integrar (ou melhor, se subjugar) economia mundial sob a gide do capitalismo urbano-industrial nascente e da modernizao agrcola via revoluo verde, no levou em considerao as possveis conseqncias perversas de tal empreendimento geopoltico-econmico, cultural, cientfico-tecnolgico desenvolvimentista.

    A teoria clssica desenvolvimentista, assentada na racionalidade moderna, que promete e faz emergir, a partir da razo humana, a fora de toda e qualquer felicidade do homem, com base no crescimento econmico e no domnio da natureza, a mesma que o fragmenta, coloca-o em crise, assim como, a crise social, moral, ambiental e terica (BRITO e RIBEIRO, 2002).

    Desta feita, bem melhor enveredar pela anlise de que, para esse regime autoritrio, os fins justificavam os meios na sua forma mais perversa e cruel, que exclua a tica na e da poltica, da coisa pblica, da economia, da cincia e da tecnologia, alijando do processo grande parte da sociedade e sufocando brutamente os que resistiam ao seu projeto medernizante hegemnico, instaurando, assim, o terror e o medo na sociedade (ESPINOSA apud CHAUI, 1982).

    Isso, com vista, a impor seu atroz modelo de governar e de desenvolvimento para a sociedade, concentrando e conservando nas mos e na cabea de uma minoria o poder de dar continuidade a uma lgica colonialista de crescer e desenvolver para poucos internamente, mas, sobretudo, voltado para atender os interesses de fora, externos, desenhando e ordenando, por conseguinte, um quadro territorial scio-ambiental brasileiro de ampliao e de intensificao da excluso, da desigualdade social e da degradao dos recursos naturais.

    Aqui, digna de citao a critica que a filsofa Marilena Chau faz a essa idia de progresso tecnolgico e modernidade conservadora mercantil.

    Vivemos num mundo dominado por aquilo que a ideologia dominante convencionou designar como progresso tecnolgico. Resultado da explorao fsica e psquica de milhes de homens, mulheres e crianas, da domesticao de seus corpos e espritos por um processo de trabalho fragmentado e desprovido de sentido, da reduo de sujeitos condio de objetos scio-econmicos, manipulveis politicamente pelas estruturas da organizao burocrtico-administrativa, o progresso seqestra a identidade pessoal, a responsabilidade social, a direo poltica e o direito produo da cultura por todos os no-dominantes. (CHAU, 1982, p. 56).

    E Otvio Paz (apud CHAU 1982, p. 57) arremata, argindo: o progresso povoou a histria com as maravilhas e os monstros da tcnica, mas desabitou a vida dos homens. Deu-lhes mais coisas, mas no lhes deu mais ser.

    Sob esse discurso do elogio e do ufanismo da modernidade e do progresso, luz da racionalidade urbano-industrial capitalista, o governo militar ancorava-se num modelo de desenvolvimento que avanava e reforava esse iderio do Brasil Grande, por meio da Integrao Nacional, sustentado e justificado pela ideologia da Segurana Nacional, haja vista a expanso do bloco socialista para o continente Latino-Americano, que representava tanto para os gestores territoriais militares e civis, mas, sobretudo, para os Estados Unidos, financiadores desses regimes ditatoriais, ameaa ao territrio brasileiro, s suas fronteiras territoriais e ao modelo capitalista nascente.

    Nesse rearranjo, com base nesse iderio, os Grandes Projetos se estendem pelo territrio nacional, constituindo-se num conjunto articulado, articulador e estratgico, para dar corpo no que veio a se materializar como um modelo de desenvolvimento de modernizao conservadora, que passava a reconfigurar a organizao socioespacial das

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    relaes sociais de produo e simblico-culturais no pas, particularmente na Amaznia, gestando novas formas de apropriao, domnio, controle e significao do territrio (GONALVES, 2005; BECKER, 1998).

    Aqui apresento, sinteticamente, algumas caractersticas desse modelo de desenvolvimento de modernizao conservadora, que marcou essa poca e de onde emerge, contraditoriamente, o que viria a ser o MAB.

    Esse modelo de desenvolvimento de modernizao conservadora estruturou-se e organizou-se com base num macro-planejamento poltico, que expressou a estratgia geopoltica econmica, cultural e ambiental da elite brasileira e internacional para integrao da sociedade brasileira, particularmente da Amaznia, ao modelo de modernizao e progresso do grande capital.

    Esse macro-planejamento poltico foi formulado, definido e implementado, de forma autoritria, unilateral e seletiva, por gestores territoriais militares e civis, com a participao estratgica financeira e intelectual de organismos internacionais multilaterais, ligados ao grande capital. Nesse projeto, definiram-se as diretrizes poltico-econmicas, que esboaram os grandes projetos a serem engendrados pelo Estado brasileiro via plos de crescimento, que propiciassem a interligao entre os circuitos nacionais e internacionais e, assim, o fluxo financeiro e de mercadorias (BECKER, 1999).

    Esse macro-planejamento poltico do regime militar-civil atendeu, principal e exclusivamente, os interesses do projeto urbano-industrial do setor do grande capital nacional e inter/trans/multinacional e do projeto de modernizao da agropecuria brasileira, que promoveu a expanso da fronteira agropecuria para Amaznia sob o regime de grandes propriedades fundirias, levando intensificao e expanso da concentrao fundiria, dos conflitos agrrios, da destruio ambiental e da precarizao do trabalho (desemprego e trabalho escravo) e das condies de vida das populaes locais e migrantes pobres (FERNANDES, 2001). Essa modernizao da agricultura inicia-se e situa-se no bojo da revoluo verde (1950-1960), que explicita o modelo de desenvolvimento rural desse perodo e pelo modelo de desenvolvimento rural integrado (1970-1980), que procura corrigir as distores criadas pela Revoluo Verde. Contudo, no se trata de nenhuma mudana substancial, mas de estender a Revoluo Verde para os pequenos proprietrios (MONTENEGRO GOMES, 2006, p. 04).

    Esse modelo desenvolvimentista, pela sua natureza exclusivista, hierrquica e classista, para implantao de grandes empreendimentos (estradas, rodovias, ferrovias, barragens, extrao e produo mineral, madeireira, agrcola e pecuarista, etc.), no levou em conta as demandas e necessidades locais do campo e da cidade, seus modos de existir, seus saberes, suas identidades culturais, a bio-sociocultural diversidade que traam a paisagem de mltiplos territrios da sociedade brasileira e amaznica. Esse modelo, ainda que se apresentasse, ideologicamente, como universal, na sua essncia, ele era fundamentalmente particular e excludente, um contradesenvolvimento social (MARTINS, 2002).

    Se a hegemonia desse projeto de desenvolvimento era construda e legitimada, sobretudo, pela fora, coero, no se pode, contudo, desconsiderar, tambm, o vigor da sua geopoltica cultural colonialista para construir um consenso em torno de tal projeto. O movimento poltico cultural anti-comunista se espacializava na busca de territorializar as fronteiras do capitalismo imperialista. Os grandes meios de comunicao que compunham o bloco dominante assumem papel preponderante para legitimar esse regime autoritrio (CHIAVENATO, 1994). Aqui, importante destacar o papel de sua poltica educacional, que ajudou, decisivamente na conformao de uma nova subjetividade, um padro de valores, de regras e normas, para conduzir e enraizar o pensar, o agir e o sentir na sociedade. Isso implicava tanto respaldar e fortalecer tal modelo e expanso imperialista, como controlar social e

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    politicamente os movimentos resistentes, asfixiando-os e esvaziando-os, para evitar qualquer movimento de subverso ou desordem1. Esse movimento poltico-cultural de convencimento manifestou-se, tambm, por meio

    do impressionismo simblico-cultural que os grandes empreendimentos carregavam consigo, representando o suposto novo eldorado, progresso, crescimento, modernidade e civilizao da nao brasileira. Por exemplo, um desses grandes projetos foi a Usina Hidreltrica de Tucuru, da qual tratarei mais frente de maneira detalhada.

    Esse mega-projeto no ocupou somente um territrio do ponto de vista fsico, material para potencializar e fomentar novas relaes de produo na regio amaznica. Ele produziu e ocupou um territrio do ponto de vista, tambm, simblico-cultural, a fim de espacializar e territorializar o capitalismo nascente e vigente. Ele carregou consigo a idia fabricada de progresso e de desenvolvimento para a regio, para o Par e, particularmente, para Tucuru, com objetivo de justificar, concomitantemente, esse padro e lgica de produo, ajudando, por conseguinte, a fabricar e a moldar o indivduo, a sua subjetividade e a sua identidade de acordo com o padro dominante de sociedade. No foi por acaso que Tucuru foi cunhada com a denominao, como retrata o Caboclo, integrante do MAB, de Cidade das Luzes, que descrita no somente pela luz no seu sentido literal, mas, sobretudo, simblico, representando progresso e desenvolvimento, no entanto, com as populaes rurais, adverte ele, na margem do lago da barragem sem energia, sem luz, margem e vitimizadas pelo progresso de um desenvolvimento que no desenvolve.

    Esse modelo provocou a desestruturao dos modos de vida e trabalho das populaes do campo, comunidades indgenas, quilombolas, ribeirinhas, pequenos (as) trabalhadores (as) familiares rurais, extrativistas etc., combinando e confluindo, com isso, para a precarizao do territrio e desenrazamento cultural dessas populaes (GONALVES, 2005).

    Esse modelo acelerou vertiginosamente a expanso urbana no pas, principalmente na regio amaznica, incentivando e forando migrao, ao xodo rural, ao mesmo tempo em que provocou uma ocupao desordenada do espao urbano, gerando inmeros problemas scio-ambientais, gestando favelas, com isso, apartheids socioespaciais. Para levar acabo seu af de progresso, crescimento econmico e modernidade, esse modelo causou impactos ecolgicos grandiosos, produzindo uma autntica saga ecolgica (BOFF, 2004). Esse modelo de desenvolvimento conservador primou, exclusivamente, pelo crescimento econmico em detrimento do desenvolvimento scio-ambiental. Isso implicava a justificativa e o reforo da dualidade e do hiato do paradigma desenvolvimentista hegemnico entre econmico versus social e versus ambiental. Se de um lado esse discurso hegemnico sustentava a tese de que tinha que fazer o bolo crescer, para depois dividir, do outro, imprimia no imaginrio social da sociedade que a floresta era um obstculo ao progresso, reforando, portanto, a lgica do domnio pelo homem da natureza como pressuposto fundante da razo instrumental (GONALVES, 2005). Como explica o ilustre Celso Furtado,

    (...) a idia de desenvolvimento econmico um simples mito. Graas a ela tem sido possvel desviar as atenes da tarefa bsica de identificao das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem os avanos da cincia, para concentr-las em objetivos abstratos como so os investimentos, as exportaes e o crescimento. (FURTADO, 1974, p. 75).

    1 Na reforma educacional implementada pelo governo militar, so inseridas no currculo escolar as disciplinas de Educao Moral e Cvica e Organizao Social e Poltica do Brasil, que tinham como objetivo ideolgico legitimar e justificar o status quo vigente (CHAU, 1982). O MOBRAL se insere ai.

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    Esse modelo gerou um crescimento econmico concentrado e desigual, aumentando a concentrao de riqueza e da renda nas mos de uma minoria nacional e global, expandindo, por conseguinte, a geografia da excluso e das desigualdades sociais e culturais, polticas e econmicas na sociedade brasileira, alm dos grandes impactos ambientais. Talvez, como explica Josu de Castro (2006), um dos maiores equvocos da teoria clssica desenvolvimentista tenha sido associar diretamente crescimento ao desenvolvimento e dissociar desenvolvimento da qualidade de vida, do social, do cultural, do poltico, do tico e do ecolgico.

    Esse modelo , portanto, a marca da modernizao s avessas (LOREIRO, 2001). Ele gera e produz uma ampla e complexa rede de infra-estrutura, transporte, comunicao, informao, urbanizao para usufruto e benefcio de poucos, especialmente para os de fora, imprimindo ao rural, sobretudo a suas populaes marginais, a imagem do atraso, do primitivismo, do tradicional em oposio ao moderno (urbano), presas corrente do desencanto weberiano (2004). A histrica promiscuidade entre pblico e privado se perpetua, ao passo que, grande parcela da sociedade, padece da falta e da ineficincia das polticas pblicas que assegurem os direitos elementares e bsicos ao ser humano e sociedade. importante considerar, entretanto, que esse modelo de desenvolvimento no se

    deu sem resistncia. Movimentos sociais e organizaes populares do campo e da cidade lutaram e resistiram contra o regime militar ditatorial e sua poltica desenvolvimentista, demarcando, assim, um campo contra-hegemnico de r-existncia que emergia dos de baixo, como foi o caso do MAB, que apresento e problematizo a seguir. As grandes hidreltricas e as razes organizativas populares do MAB no Brasil

    Um desses mega-projetos reside na construo de grandes barragens, Usinas Hidreltricas, que vo se constituir na matriz do modelo energtico brasileiro, para atender aos interesses, principalmente das empresas eletrointensivas2 do grande capital nacional e, principalmente, inter e transnacional, que passavam a inscrever novas formas de uso e significao do territrio nacional e dos recursos naturais, no caso em questo, sobretudo, da gua, por meio do potencial energtico dos rios, a fim de levar a cabo esse projeto desenvolvimentista conservador.

    O modelo energtico baseado na produo de energia hdrica significa 20% de toda energia produzida no mundo. Esta forma de produo de energia j expulsou de suas terras de 40 a 80 milhes de pessoas no mundo. No Brasil 92% da energia produzida vm da fonte hdrica, j tendo expulsado mais de um milho de pessoas de suas terras. (MAB).

    Para construo dessas barragens, nesse perodo, por exemplo, conforme Documento da CPI das Barragens, foram inundados milhes e milhes de hectares de terras e florestas, sacrificando e precarizando muitos povos e grupos sociais histricos do campo (Indgenas, Afrodescendentes - comunidades remanescentes de quilombos - meeiros, trabalhadores (as) rurais, ribeirinhos, camponeses etc.) que foram remanejados para outras reas, na realidade, expulsos e expropriados de suas terras, colocando em cheque seus modos de vida, suas atividades prprias e seculares de produzir sua existncia individual e coletiva, material e simblica.

    Alm da desestruturao e do aumento da excluso dessas populaes, esse modelo energtico e de desenvolvimento provocou e vem provocando srios impactos

    2 Essa a chamada indstria pesada: Indstrias de Cimento, Siderrgica (Ao), Metalurgia (Ferro-ligas, Alumnio), Qumica, Papel e Celulose. Ela se constitui na maior consumidora de energia, 48,4%. Estas indstrias tm como caractersticas serem grandes consumidoras de energia.

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    ambientais, sacrificando, reduzindo e colocando em risco toda uma rica diversidade biolgica entre fauna e flora e, por conseguinte, a sustentabilidade dos ecossistemas.

    Com o efeito da intensificao da falta de condies bsicas de produo e reproduo de vida e trabalho dessas populaes remanejadas, ocorre um aumento explosivo populacional, principalmente em cidades adjacentes a esses projetos, em busca de melhores condies de trabalho e de vida. Todavia, essas populaes, j excludas do campo, frustram-se com a falta de oportunidades e de condies de vida e trabalho nos centros urbanos dessas cidades, passando a aumentar, ento, o grosso dos excludos e das excludas.

    Essa situao se desdobra, ento, na ocupao desordenada dessas cidades, levando-as ao processo de favelizao, de aumento da misria, da violncia etc, o que vai requerer maior investimento do Estado em polticas sociais, coisa que, quando acontece, reduz-se a poltica assistencialista, contingencial e populista, ocasionando, por conseguinte, maior excluso e desigualdade social, ampliando, nesses centros urbanos, a existncia de bolses de misria e de segregao social (apartheid).

    Isso parte do resultado desse modelo de desenvolvimento do Estado brasileiro autoritrio, do qual essa matriz energtica parte integrante, que segue uma lgica tanto exgena (atender, principalmente, os interesses econmicos do capital internacional) (GONALVES, 2005; CASTRO, 1999), quanto urbanocntrica, representada pela modernizao conservadora da poca, que exclui o campo de suas populaes sem poder poltico-econmico e cultural. Isso quer dizer que no qualquer territrio do campo que excludo, como o dos grandes proprietrios de gros, de fazendas, das madeireiras, que passaram somente a estender e ampliar seus domnios territoriais tutelados e beneficiados por esse Estado autoritrio, mas, sim, o territrio do campo dos grupos e classe sociais excludos.

    na trama desse enredo, mais precisamente no incio dos anos 70 do sculo XX, que se encontram as razes histricas do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragem (MAB), que emerge a partir de focos locais de resistncia e mobilizao contra a construo das barragens (MAB, 2005, p. 09). Trs foram, segundo registros da histria do MAB, os focos principais de resistncia, organizao e luta que podem ser considerados como o bero do que viria a ser o Movimento mais tarde:

    Primeiro na regio Nordeste, no final dos anos 70, a construo da UHE de Sobradinho no Rio So Francisco, onde mais de 70.000 pessoas foram deslocadas, e mais tarde com a UHE de Itaparica foi palco de muita luta e de mobilizao popular. Segundo no Sul, quase que simultaneamente, em 1978, ocorre o incio da construo da UHE de Itaipu na bacia do Rio Paran, e anunciada a construo das Usinas de Machadinho e It na bacia do Rio Uruguai, que criou um grande processo de mobilizaes e organizao nesta regio. Terceiro na regio Norte, no mesmo perodo, o povo se organizou para garantir seus direitos frente construo da UHE de Tucuru (2002, p. 06).

    Na regio Nordeste, nos anos 70, no Vale do Rio So Francisco, mais conhecido, cantado e poetizado como Velho Chico, as barragens de Moxot e Sobradinho foram, segundo registros da histria de luta e de organizao do MAB (PARTE I), feitas sem qualquer considerao para os problemas sociais. Entre Pernambuco e Bahia, no final dos anos 70, no mdio do Velho Chico, com a construo da barragem de Itaparica, foi inundada uma rea de 834 km e foram expulsas e expropriadas 40.000 pessoas. Nesse perodo, lideranas de sindicatos rurais comearam a promover reunies nos municpios, invocando a trgica situao dos atingidos. Essa organizao e mobilizao nascente dos atingidos e atingidas, nessa regio, por essas barragens concentrou suas reivindicaes nas seguintes questes: terra por terra na margem do lago, gua nas casas e nos lotes, indenizaes justas das benfeitorias. Essa organizao e mobilizao passou a se estruturar e se tornar mais forte com a constituio de uma coalizo sindical, sob o nome

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    de Plo Sindical de Trabalhadores Rurais do Sub-mdio So Francisco, que se deu, em 1979, a partir de uma primeira concentrao de trabalhadores rurais em Petrolndia, Pernambuco. Em 1980, tambm em Petrolndia-PE, ocorre a segunda concentrao, reunindo mais de 5.000 pessoas (MAB, PARTE I). Numa demonstrao de avano e maior capacidade organizativa, esses sindicatos, em 1984, conforme registra esse Documento, com apoio de tcnicos, elaboram um documento Diretrizes Bsicas para o Reassentamento no qual reforam as reivindicaes anteriores e introduzem novas questes: lotes de 25 hectares dos quais 6 irrigados, irrigao por asperso, administrao de projetos pelos trabalhadores, melhor escolha das terras, estradas. No entanto, como a CHESF s conversava, no dando respostas concretas s reivindicaes dos sindicatos e no cumprindo os prazos acordados, o movimento nascente dessa regio se ampliou e radicalizou, promovendo ocupaes com apoio de vrios setores da sociedade civil e do poder pblico. Na regio Sul, na Bacia do Rio Uruguai, o projeto energtico, via Plano 2010 da Eletrobrs, projetava a construo de 23 barragens, que expulsariam 200.000 pessoas nos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Nessa regio, reside uma questo particular: pela primeira vez as populaes ameaadas de deslocamento comearam a se mobilizar e organizar antes do inicio da obra (MAB, PARTE I).

    A organizao e luta de resistncia no Alto Uruguai, de um lado, seguiram um caminho parecido com o de Itaipu: ao de religiosos e militantes da CPT na mobilizao, presena dos sindicatos de trabalhadores rurais, importncia fundamental da informao, organizao dos atingidos nas comunidades e municpios. (MAB, PARTE I) .

    Em Santa Catarina, mais precisamente em Concrdia, 350 agricultores criaram, em 1979, a Comisso Regional de Barragens, cujo objetivo era obter junto a ELETROSUL maiores informaes sobre o projeto e divulg-las amplamente, advertindo os atingidos acerca da ameaa que pairava sobre suas vidas (MAB, PARTE I). Com a criao dessa Comisso, pod-se, aos poucos, promover aes de organizao e mobilizao com vista a cobrir a rea projetada da regio para construo de novas barragens, o que implicava uma maior resistncia. No decorrer dessa caminhada, em fevereiro de 1983, em Carlos Gomes, considerado o distrito mais vigoroso no combate s barragens de Machadinho, 20 mil pessoas se juntaram e mobilizaram para participar da Romaria da Terra, que tinha como tema central guas para vida, no para morte. Esse um dos temas geradores do MAB, que se transformou em palavra-de-ordem do movimento, inclusive, em nvel mundial na luta contra as barragens. Em 1985, realizado um abaixo-assinado, que traz como questo de fundo No s Barragens. Atravs da Comisso Regional de Barragens, esse documento consegue um milho de assinaturas, que foi entregue ao poder pblico federal na representao do Ministro Extraordinrio de Assuntos Fundirios. Num primeiro momento, essa Comisso centrou suas reivindicaes em indenizaes justas e terra por terra, mas a partir dessas organizaes e manifestaes mais ampliadas consciente e politicamente, a luta se deu contra a construo das barragens: Terras Sim, Barragens No, palavra-de-ordem que passa a dar fora e identidade ao que viria ser o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB, PARTE I). A Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT) como mais um Cavalo de Tria na Amaznia: a saga dos povos e da natureza

    Ao chegar ao contexto da regio amaznica, importante considerar, mesmo que

    resumidamente, o papel estratgico que essa regio assume para a implantao e

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    conduo desse modelo de desenvolvimento de modernizao conservadora e a trama que ela assume nesse cenrio geopoltico, cultural e econmico mundial.

    Primeiro vale lembrar que, nessa regio, durante o governo de Getlio Vargas (ALVES FILHO, 1999) e, posteriormente o governo de JK, ambos j ensaiavam a integrao da Amaznia ao eixo central de desenvolvimento do Brasil (o Sudeste) com o objetivo de realizar a desigual e predatria poltica de integrao nacional, que reforava a condio de colnia dessa regio como mero espao de explorao e expropriao das populaes locais, da explorao e exportao das suas riquezas naturais e de fornecimento de matria prima para abastecer e desenvolver aquele centro urbano-indstrial nascente, smbolo da entrada no progresso e na modernidade do capitalismo, alm da sua insero na poltica internacional. 3

    O governo militar, assentado no discurso ideolgico tanto da modernizao e desenvolvimento da nao brasileira, quanto da segurana nacional, cria o caminho justificvel para avanar na poltica de integrao nacional sobre a Amaznia em meados da dcada de 60. Ele a insere como espao geopoltico e econmico estratgico, para levar avante esse modelo de desenvolvimento autoritrio, com base no grande capital, e salvaguardar o territrio nacional do risco separatista, haja vista o avano do bloco socialista no continente e as foras sociais de resistncia de esquerda no pas, no campo e na cidade (ALVES FILHO, 1999).4

    Como estratagema, so elaboradas frases de efeito nacionalistas cuja finalidade era construir um imaginrio consensual entorno desse projeto desenvolvimentista e legitimar o regime vigente. Frases como: Integrar para no entregar; Homens sem terra para terra sem homens. Reconstrua-se e fortalecia-se o conjunto de mitos no imaginrio social da sociedade, j criados sobre a regio, como: Vazio demogrfico; Pulmo do Mundo (FILHO, 1999; GONALVES, 2005).

    Em face dessas condies, de forma burocratizada, autoritria e articulada com o grande capital, gesta-se em gabinetes e escritrios multinacionais o conjunto de Grandes Projetos ou os Projetos Faranicos que foram impostos sobre a regio amaznica (FILHO, 1999; GONALVES, 2005). Dentre estes, amplia-se e intensifica-se a criao de redes e eixos rodo-ferrovirios, rasgando imensas florestas, tendo em vista promover tal integrao, facilitar a explorao das suas riquezas naturais e a exportao das matrias primas, para abastecer os centros internos do desenvolvimento e o mercado externo.

    Com efeito disso, reconfigura-se a organizao do espao amaznico. O padro de organizao do espao rio-varzea-floresta substitudo pelo padro estrada-terra-firme-subsolo, os quais, conforme explica Carlos Gonalves (2005, p. 79), so contraditrios entre si, e que esto subjacentes s diferentes paisagens atuais da regio. Para esse autor,

    At a dcada de 60 foi entorno dos rios que se organizou a vida das populaes amaznicas. A partir de ento, e por decises tomadas fora da regio, os interesses se deslocaram para o subsolo, para suas riquezas minerais, por uma deciso poltica de integrar regio ao resto do pas, protagonizado pelos gestores territoriais civis e militares. O regime ditatorial se encarregou de criar as condies para atrair os grandes capitais para essa misso geopoltica. (GONALVES, 2005, p. 79).

    Nesse enredo, a bacia amaznica era tomada, perversa e desastrosamente por esse modelo, como bero da gerao de energia para os mega-projetos, como, principalmente de minerao, que viriam se ancorar nesse porto seguro, chamado

    3 Nesse governo, construiu-se a Rodovia Bernardo Sayo, a Belm-Braslia objetivando implementar a poltica de integrao nacional, como parte desse modelo desenvolvimentista, que gerou profundas transformaes na organizao espacial da regio amaznica (GONALVES, 2005, p. 12). 4 Segundo Armando Filho (1999), nesse contexto, o processo de ocupao da Amaznia pelos grandes empreendimentos apoiados pelo Estado ocorreu em trs perodos: 1 Perodo de 1966 a 1970; 2 Perodo de 1970 a 1974; e o 3 Perodo de 1974 a 1978.

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    Amaznia, reconvertida pela razo do Estado e do grande capital nova colnia, agora, interna e externamente.

    A poltica de integrao preconizada pelos militares criou uma relao colonial interna, na qual a regio sudeste, residncia do grande capital, tornou-se metrpole de outras regies do pas, ai includa a Amaznia. Os interesses locais e regionais so sobrepujados pelas novas diretrizes fixadas em instncias centralizadas. [...] inaugurao de uma poltica de integrao nacional elaborada em centros e gabinetes distantes, em escritrios de empresas multinacionais e com prioridades ao grande capital nacional e estrangeiro. Essa poltica dos projetos megalomanacos ou faranicos no levou em conta os interesses da populao amaznica, nem tampouco a vocao geogrfica dessa regio. Sua funo essencial era a de captar divisas. (FILHO, 1999, p. 34).

    Nesse sentido, redefini-se o papel de colnia dessa regio, assegurando ao Brasil,

    no contexto internacional da diviso do trabalho, sua condio de terceiro-mundo e internamente desenhando um quadro de um Brasil com vrios brasis, mais para justificar suas disparidades regionais e espaciais do que para assegurar e valorar sua ampla e vistosa diversidade socioespacial e ambiental.

    No Sudeste do Estado do Par, no municpio de Tucuru, construda a Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT) no Rio Tocantins (ver foto abaixo). Conforme Documentos do Movimento dos Atingidos por Barragem, em 1978, sem quaisquer informaes acerca do projeto, as famlias a serem ATINGIDAS comearam a ser cadastradas para fins de indenizao pela Eletronorte, empresa responsvel pela obra (MAB, PARTE I, p. 02). 5

    Localizao da UHT e do Reservatrio de Tucuru

    Fonte: Plano Diretor do Municpio de Tucuru Hidreltrica de Tucuru-PA

    Na conversa com uma das lideranas do MAB, ele explica e reafirma que, alm da

    no informao dada pela empresa responsvel s populaes locais sobre a oba, impediu-se, tambm, a populao da rea a ser atingida de dar continuidade s suas atividades produtivas e/ou criarem novas atividades.

    Logo que a Eletronorte comeou a fazer os estudos para construo da barragem da hidreltrica de Tucuru, em 1974, ela j comeou fazendo o levantamento das famlias atingidas e impedindo que essas famlias fossem trabalhar, plantando, fazendo novas atividades, porque idia que fosse feito da terra dessas pessoas objeto de indenizao. Parou-se tudo isso ai (CABOCLO).

    5 Conforme o transcurso histrico traado pela Eletronorte, no ano de 1974, baixa-se o decreto autorizando a construo da UHT. Em 1975, tm incio as obras. Em 1984, realizado enchimento do reservatrio (lago artificial). Neste mesmo ano, entra em operao a 1 unidade da UHT.

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    Pornga filha de pescador, residente atualmente na cidade de Tucuru, nasceu margem do Rio Tocantins, em Ipixuna, um dos municpios inundados pela barragem (dentre as cidades inundadas, a CPI das Barragens cita: Jacund e Ipixuna). Ela, ao tomar a experincia de sua famlia, relata que a mesma foi induzida e enganada para vender suas terras pelo oportunismo dos poderosos, interessados na barragem. Aproveitaram-se, diz ela, das pssimas condies socioeconmicas das populaes locais, da sua condio de analfabetos e de seu desejo em ir para cidade em busca de vida melhor, para convenc-las a vender as suas terras.

    Na poca prometeram tanta coisa! Para quem no tinha nada de dinheiro e quem queria ir para cidade, pensando em uma vida melhor, no pensou duas vezes em vender suas terras. Venderam! Mas, quando foram pegar o prometido, cad? A terra que prometeram no estava nem marcada muito menos roada, como fizeram na propaganda. E o dinheiro? Esse foi uma iluso. Alm de muitos no receberem a indenizao, os que receberam, receberam um valor que nunca paga por aquela terra. Foi uma enganao, porque se aproveitaram da condio de analfabeto, das condies de pobreza e do apoio que tinham dos grandes poderosos (PORNGA).

    A CPI das Barragens (1991, p. 05), nas suas investigaes sobre a barragem de

    Tucuru, assinala:

    A construo da Usina Hidreltrica de Tucuru se constituiu num abuso de poder do Governo Federal que a projetou e a construiu sem ouvir sua populao, alm de realizar estudos precrios sobre o Impacto Ambiental na rea de influncia da barragem.

    Essa barragem, conforme esse mesmo documento do Movimento, inundou uma

    rea de 2.830 km e remanejou mais de 25.000 pessoas, atingido sete municpios montante6 da barragem e mais outros jusante dela. A despeito disso, Caboclo relata que, conforme dados oficiais, foram atingidas 5.700 famlias, mas acredita que esse nmero seja bem maior. Ademais, adverte para a importncia do reconhecimento das populaes jusante da barragem serem reconhecidas como atingidas.

    A barragem de Tucuru atingiu 5.700 famlias! Esse o nmero dado pela empresa. A gente acredita que muito maior o nmero de famlias atingidas. A minha famlia uma delas no reconhecida. So 2.800 quilmetros de lago. Foram sete municpios atingidos diretamente: Tucuru, Breu Branco, Goiansia, Jacund, Novo Repartimento, Ipixuna e Camet. (...) importante considerar, ainda, os municpios que esto localizados na jusante da barragem, que foram atingidos, tambm, como: Mocajuba, Baio, Igarap Miri, que foram reconhecidos no governo atual [federal] como atingidos. (CABOCLO).

    Em relao a essas populaes da jusante atingidas, Jac, integrante do Movimento

    em Tucuru, relata:

    Eu no fui atingido diretamente, mas indiretamente fui atingido, porque na poca eu no morava aqui [em Tucuru], eu morava na jusante. Ai o que acontece? No ano passado, foi feita uma pesquisa aqui e ns estamos com 38 espcies de peixe que no existem mais pra jusante pelo fato de ter fechado aqui [em Tucuru, montante]. O que ficou pro lado de baixo [ jusante] subiram. Ai fica nesse pedao ai. Quando a gua seca, o povo est sem comer, sem jeito pra sobreviver, pega o peixe, acaba. Hoje, 38

    6 Montante fica a cima da barragem da UHT, onde se localiza o grande lago artificial, criado com, a construo da barragem. A jusante fica abaixo da barragem, parte que ficou mais seca a partir da construo dessa barragem.

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    espcies de peixe no existem mais pra jusante. Quer dizer, foi atingido! No diretamente, porque eu no perdi o que foi pro fundo, mas ficou no seco. Ai o prejuzo aumentou. Porque, a gente tinha nossa lavoura pra l [jusante], meu pai tinha muita lavoura, no momento em que foi fechado aqui, a gua no cresceu mais pra l como era, ai comeou a falhar o peixe, os grandes aaizal que tinham, que faziam parte do rio, das baixadas [vrzea], foram morrendo, foi ficando pra cima da terra. Banana que era muito plantio, que tinha na beira dagua foi ficando no seco, acabando tudo. E da por diante. Se for pensar o que deu de prejuzo, pra c, pra jusante no caso, eu fui atingido indiretamente pela barragem.

    Dentre as populaes atingidas, estavam (esto, ainda), como registra Negra,

    integrante do MAB na regio,

    As comunidades quilombolas, que s vieram a ser reconhecidas como atingidas h pouco tempo. Era o pessoal da jusante, abaixo do rio, abaixo da hidreltrica. Foram ainda atingidas comunidades indgenas, camponesas, ribeirinhas, pescadores.

    Para Negra, essas populaes foram arrancadas de suas terras, expulsas e

    seduzidas com a promessa de emprego e melhor qualidade de vida para onde iam ser deslocadas. Seu Xavante, pescador da regio, explica que os tcnicos e as autoridades chegavam s comunidades para conversar com a populao local, prometiam que a barragem viria trazer desenvolvimento, trabalho, renda e melhor condio de vida para as populaes. Diziam que para onde elas iriam ser remanejadas chegaria energia. Ele diz que foi tudo iluso e tristeza! A gente vivia bem melhor antes, onde a gente tava, na nossa terra, beira do nosso rio, pescando, comendo, vivendo:

    Os tcnicos e as autoridades, que chegavam na nossa comunidade pra conversar com a gente. Eles diziam e prometiam que a barragem ia trazer desenvolvimento, trabalho, renda e melhor condio de vida pra gente. Dizia que pra onde a gente ia ser remanejado ia chegar energia. Tudo iluso e tristeza! A gente vivia bem melhor antes, onde a gente tava, na nossa terra, beira do nosso rio, pescando, comendo, vivendo (XAVANTE).

    Para Negra, isso representou o rompimento da vida de todo esse povo que perdeu

    sua terra, sua sobrevivncia, suas razes, suas culturas, suas histrias de vida. Tinha tudo isso por l, agora eles no tm mais nada disso. 70% da populao no receberam indenizao.

    No tocante a essa problemtica, seu Lavrador, originrio e morador da regio, explica que muitas pessoas foram foradas a deixar as suas terras sob ameaa. Ele explica e afirma que essas pessoas foram expulsas, expropriadas tanto de suas terras, quanto de suas origens.

    (...) quantas pessoas no foram foradas a deixar suas terras? Muitas pessoas que estavam resistindo foram ameaadas. Por isso, que a gente diz que elas foram expulsas e expropriadas das suas terras, das suas origens, onde seus pais, avs e outros antepassados nasceram, cresceram e morreram.

    importante considerar, como alerta e ensina Negra e seu Lavrador, que a expulso

    e expropriao das populaes de suas terras esto diretamente vinculadas, tambm, as suas origens, o que implica um desenraizamento histrico-cultural, visto que desses povos, no so somente saqueados e depredados indevida e brutalmente seus bens matrias, a terra em si e por si, mas o jeito de est sendo dessas populaes na sua relao com e na terra, com esses diversos ecossistemas, seus rituais, seus valores, seus conhecimentos, o

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    seu modo de produzir-e-existir e cuidar (BOFF, 2004). Por isso, falar da desestruturao dos modos de vida dessas populaes atingidas, que tm todo o direito de lutar pela sua terra, a fim de que possam resgatar o seu sentido de existir, rememorando sua histria, rompendo, como adverte Hobsbawm (1998), com o presentesmo, que rouba a histria, as razes, a memria.

    Aqui reside a compreenso do processo de desterritorializao, isto , de excluso e de perda do territrio dessas populaes atingidas mais diretamente pela barragem, que foram expulsas e expropriadas de suas terras. A perda de seus territrios, primeiro, no pode deixar de ser concebida dentro de um processo contraditrio e conflituoso de interesses no seio da sociedade (FERNANDES, 2004, 2006). Segundo, essa excluso e perda do territrio ou expulso e perda da terra precisa ser entendida na unidade indissocivel e dialtica entre o material e o simblico-cultural, posto que a terra, a gua, a floresta de onde e onde se produzem os produtos e bens de consumo e comrcio para sua reproduo social e humana de existncia, tambm, produzem-se e reproduzem saberes, culturas, identidades; transmitem-se tradies, valores e costumes que conformam a sua organizao histrico-social e cultural como povos, grupos sociais.

    Por isso, essa excluso ou perda e expulso da terra dessas populaes precisa se compreendida de forma mais alargada e complexa, para alm da terra ou territrio em seu sentido fsico, natural ou material mecanicista. Como explica Negra, isso representou o rompimento da vida de todo esse povo que perdeu sua terra, sua sobrevivncia, suas razes, suas culturas, suas histrias de vida.

    No tocante a essas populaes atingidas pela barragem da UHT, a CPI das Barragens (CPI, 1991, p. 11) aponta que

    (...) a populao atingida vivia de atividades agroextrativistas. Combinavam agricultura de subsistncia com o extrativismo pesqueiro e florestal. Os critrios no levaram em conta essa relao. Apenas a rea de terra a ser entregue a cada famlia parece ter sido critrio que os dirigentes dos rgos governamentais e da Eletronorte levaram em conta nesse remanejamento.

    Essa constatao da CPI das Barragens sugere e refora a tese de que o espao

    rural, dentro dessa lgica desenvolvimentista, foi reduzido agricultura ou agropecuria, desconsiderando as multiculturas produtivas desenvolvidas no espao rural brasileiro e, particularmente amaznico pelas suas populaes rurais locais, o que caracteriza a complexidade e diversidade desse espao e o desafio para as polticas pblicas de desenvolvimento rural superarem esse reducionismo agrcola e setorial (ABRAMOVAY, 2000; VEIGA, 2004). Antnio C. Diegues (1999, p. 55), em seu estudo sobre o impacto dessa barragem, afirma e defende:

    A instalao desse projeto alterou profundamente o modo de vida dos habitantes dessa rea, principalmente por terem includo em seu cotidiano outras formas de relacionamento com os novos atores que chegavam regio: as grandes empresas, particularmente a Eletronorte.

    A minha defesa de que esse modelo e poltica energtica, fundado nessa

    racionalidade e lgica produtivista capitalista, gera e produz a desestruturao dos modos de vida e de trabalho dessas populaes, que, alm de inundar sua memria, seus saberes, suas atividades prprias e seculares de produzir o territrio, produzindo-se, nele e com ele, sua existncia individual e coletiva, material e simblico-cultural, inunda, tambm, uma economia invisvel, que se faz, historicamente, na contramo da economia de mercado dominante, isto , ela colaborativa, coletiva, solidria, familiar, comunitria, respeita a natureza e dela indissocivel. Essa economia invisvel, que emerge de um abismo-oprimido, de baixo, e inundada por e pelos de cima, tem seus limites que so grandes , mas apresenta possibilidades para se reinventar novas territorialidades, lgicas

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    de desenvolvimento e formas de sociabilidades alternativas hegemnica. Isso foi e est sendo destrudo pela e para imposio dessa lgica de mercado, que vem intensificando a excluso dessas populaes do campo na regio amaznica, expressa em territrios cada vez mais precarizados para a sobrevivncia e convivncia humana e social.

    luz da perspectiva que desenha uma geografia material e simblica da contradio e do conflito scio-espacial, a desterritorializao, segundo Rogrio Haesbaert (2004), resume-se, de fato, na territorializao precria, que expressa a excluso de um conjunto de pessoas e grupos sociais produzida e recriada por essa sociedade perversa capitalista.7

    Essa desterritorializao ou precarizao do territrio ou, ainda, a excluso dessas populaes atingidas se expressa de forma mais explicita e trgica ao se tomar como base as condies de vida e trabalho a que foram subordinadas e relegadas essas populaes nos locais para onde foram assentadas.

    Caboclo relata:

    Onde eles botaram [o governo, a empresa Eletronorte] o pessoal, as famlias que eles tiraram, pra fazer novo assentamento de Parakan, ningum demorou l um ms. Pra se jantar ou pra se almoar, era um batendo e o outro comendo. Era uma fila, um atrs do outro, e a murioca (mosquito) ferruando. A proliferao de mosquito foi absurda. Est l, ainda, na rea [Parakan]. s conversar com os moradores, porque depois de muito tempo voltaram, porque no tinham outra alternativa, que eles vo dizer qual a proliferao de mosquito.

    Pornga explica que essas pessoas atingidas, alm de serem enganadas, ficaram

    mais empobrecidas, haja vista que antes da construo da barragem, mesmo com grandes dificuldades, as terras dessas populaes produziam muito: plantavam, pescavam em abundncia. Com a barragem, parte grandiosa dos recursos naturais destruda, desestruturando os modos de vida dessas populaes atingidas, forando-as a migrar para cidade, onde passavam a mendigar.

    Foi s prejuzo, porque as pessoas pobres que venderam suas terras, ficaram mais pobres, passaram a mendigar nas cidades; e a destruio da natureza. Essas pessoas viviam dela: da pesca, da plantao, da fruta. Ai elas foram sentir o quanto elas tinham perdido. Antes da construo dessa hidreltrica, essas terras produziam muito, era uma enormidade de frutas, as pessoas pescavam em abundncia nesse riozo do Tocantins. Elas tinham outras necessidades, como at hoje a gente tem, mas comida? Comida a gente tinha a vontade, e vendia o que sobrava, para comprar o que a gente precisava. Essas terras no sei nem se tinham algum valor, que pudessem comprar!

    Nos estudos de Edna Castro e Rosa Acevedo (1989 apud DIEGUES, 1999, p. 57)

    destaca-se a seguinte narrativa, cujo contedo exprime as condies de vida e de trabalho antes e depois da construo da barragem.

    L era o seguinte: ns vivia no nosso terreno, l no Breu Branco. Ns tinha casa no centro, tinha casa na rua, tinha stio no centro e tinha rua. L pra ns o peixe era farto, a caa era fcil, a vida era outra. A terra l dava do feijo melancia. Maxixe e tudo que a gente precisasse. Mas aqui a gente planta feijo, a banana, seja o que for, a e dum jeito num d... pra gente comer aqui tem que comprar um quilo de feijo, um quilo de peixe e na cidade. (Moj, Gleba 6, Lote 5, na PA-263).

    7 Costa (2004), ao analisar o conceito de desterritorializao, identifica vrias noes de territrio. Essas abordagens so: poltico-ideolgica; materialista; idealista; e filosfica. Ele aponta duas possibilidades de compreender a desterritorialidade: uma hegemnica; e outra dos subordinados.

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    Essas autoras relatam que

    Longe das facilidades proporcionadas pela cultura do rio, quando supria a dieta alimentar com a pesca, frutas e plantaes da roa, a primeira parcela de famlias relocadas, no loteamento do Moj (PA-263), enfrentou terrenos de solos infrteis e secos. Isso significou, nos primeiros anos, o suprimento de sua necessidade alimentar pela compra de bens antes acessveis como farinha, peixe e frutas; o abandono de tradies no uso de plantas medicinais, anteriormente de fcil acesso, enfim, investir tempo e energia para criar um novo habitat de vida e trabalho. (CASTRO et al, 1989 apud DIEGUES, 1999, p. 56).

    Isso se constitui numa espcie de aglomerados de excluso. No que tange isso,

    Costa (2004, p. 313) explica que essa expresso traduz:

    A dimenso geogrfica ou espacial dos processos mais extremos de excluso social porque ela parece expressar bem a condio de desterritorializao ou de territorializao precria a que estamos nos referindo. [...] O termo aglomerado serve assim tanto para definir conjuntos, agrupamentos em geral traos de onde provm concepes como as de aglomerao humanas ou urbanas [deve-se acrescentar rural grifos do autor], quanto para significar amontoamento, um tipo de agrupamento em que os elementos esto ajuntados confusamente. Esta , aproximadamente, a noo aqui proposta para aglomerados de excluso, espcie de amontoados humanos, instveis, inseguros e geralmente imprevisveis na sua dinmica de excluso (COSTA, 2004, p. 148).

    relevante, contudo, reconhecer nos depoimentos acima uma releitura,

    redescoberta e valor do lugar anterior, que mostra e evidencia um sentimento de pertena e reconhecimento de seus territrios o rio, os igaraps, a mata, o quintal, as lendas , e que se expressam como lembrana do lugar, assumindo o trabalho carter e papel fundamental nesse processo (DIEGUES, 1999, p. 58). Em relao a isso, Diegues assinala:

    A memria alimenta as continuidades e religa o passado a esse presente que est sendo reconstrudo. A relao mais estreita com a natureza, com as particularidades da mata, certamente inspira as lendas, como a dos botos, da matinta pereira ou outras formas pelas quais a magia que a floresta encerra se manifesta. Essa continuidade encontrada no simblico dessas populaes se expressa, sobretudo, na criao e na recriao do grupo pelo trabalho, ao contrrio da exterioridade encontrada no trabalho assalariado e tem um carter intimamente relacionado com o conjunto da vida (1999, p. 58).

    No que versa sobre a degradao ecolgica causada por essa barragem, a CPI das

    Barragens evidencia a negligncia e o desprezo pelos estudos desses impactos pela Eletronorte Centrais Eltricas do Norte o descumprimento das frgeis leis ambientais do pas.

    Ressalta-se tambm que a Eletronorte (Centrais Eltricas do Norte), empresa pblica, concessionria da explorao da energia, descumpriu quase que na totalidade o Cdigo de guas (Decreto n. 24.643/34), que regulamenta o uso de gua no Brasil e, em particular, a energia hidrulica, determinando medidas que garantam seu aproveitamento racional (RELATRIO CPI, 1991, p. 05).

    Como j mencionado anteriormente, essa barragem inundou uma rea de 2.830

    km, atingindo municpios montante e jusante da barragem. Criou um dos maiores lagos artificiais do mundo, onde esto submersas vidas e vidas. Flora e fauna, com uma riqueza

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    de diversidade biolgica, foram afogadas. Alm disso, o solo e clima foram alterados. Toda uma diversa, ampla, rica e complexa rede ecolgica, com mltiplos ecossistemas, foi alterada e comprometida.

    Numa de minhas viagens pelo lago de Tucuru, descrevo:

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    Em uma embarcao (uma pequena lancha) do MAB, iniciamos nosso percurso pelo grande lago artificial. uma imensido! Nele, numas reas mais, outras menos, aparecem quantidades e quantidades de florestas inundadas, rvores de lei (como a castanheira) no meio do lago. Umas pessoas chamam para

    essas reas de paliteiro (observar foto ao lado). O piloto da embarcao segue atento, com olhos, permanentemente, atinados para os troncos existentes no lago. Uma das pessoas do MAB, acompanhante da viagem, me diz que tem que ter conhecimento dessa regio pra navegar, que pra no bater, provocar um acidente, principalmente naquelas reas

    onde a floresta inundada no aparece. Outra pessoa refora, explicando: depende da vazante e da enchente do lago. Nesse perodo, tempo de enchente. Vai subir muito essa gua ainda (ela aponta para uma imensa ponte, que fica sobre o lago, que d acesso para outros municpios prximos, como Novo Repartimento e Pacaj, e diz que vai chegar at a marca que aparece no extremo superior da ponte), vai beirar uns 20 a 30 metros (abre um sorriso). Dou-me conta de que com essas experincias existenciais dramticas vividas por esses sujeitos, eles vo reconstruindo seus saberes e prticas como forma de reproduzir suas vidas. Vou observando, tambm, margem desse grande lago, as ilhas, que esto sendo rapidamente desmatadas pelas madeireiras e, tambm, para pastagem. So grandes fazendas, com poucas cabeas de gado. Outras ilhas transformadas em Fundao, como a do treinador de futebol Carlos Luxemburgo. Essas ilhas, diz-me uma pessoa, esto sendo apropriadas por pessoas de grande influncia poltica e poder econmico, o que caracteriza a privatizao de territrios. Nessas mesmas ilhas, vemos as pessoas mais pobres trabalharem de caseiro ou zeladora da propriedade, assim, como em outras ilhas observo famlias proprietrias nas piores condies de vida, ainda sem energia. O linho de Tucuru passa por cima, mas no atende essas pessoas. Seguimos para ver de perto a UHT e chegar ao Rio Tocantins. J era tardinha, cinco horas mais ou menos. Nesse percurso, pude ver e sentir mais de perto as reas de paliteiros. O piloto pra o motor, temos que ir empurrando a embarcao, apoiados nessas rvores-mortas, a fim de podermos nos deslocar nessa rea. Para mim, um encontro com o trgico. Meus olhos rasos dgua e voz emudecida inscrevem-me o sentimento de tristeza e indignao. Florestas e florestas inundadas, rvores secas desfolhadas formam a paisagem desse grande cemitrio, cuja cruz simbolizada pelas prprias rvores, que somem e aparecem no movimento de vazante e enchente do lago. Penetro meu olhar no lago, observo troncos e troncos, galhos e mais galhos imersos. Pssaros pousam nos restos mortais das rvores. Os mosquitos rodam o local. Continuamos no caminho at chegar a UHT. Segurana e seguranas nessa rea. As placas sinalizam o limite de aproximao. uma imensa, grandiosa obra, uma grande cortina de concreto. Ainda mais agora com a sua duplicao. Ao seu lado, a grande Eclusa de Tucuru (observar foto ao lado), por onde vai ser escoada, diz-me um dos acompanhante da viagem, a riqueza das grandes empresas de minerao e de soja, mas eles dizem [empresrios e governo] que uma obra pras populaes ribeirinhas!. Bem prximo da UHT,

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    tambm, uma empresa mineradora Camargo Corra, que abastecida pela Usina e, tambm, bem prximo, vrias comunidades de pessoas com nenhum ou de baixo poder socioeconmico sem energia, conformando uma cartografia (multi)territorial de grandes contradies.

    8 Diegues informa e desenha um quadro trgico de destruio e irresponsabilidade

    causado pela UHT:

    No reservatrio com 212.000 ha foi submergido ainda 2.500.000 m de madeiras nobres motivo de intensas crticas por parte da sociedade regional e nacional ao empreendimento. Para que se possa avaliar melhor, a prpria SUDAM, em 1977, analisou a possibilidade de aproveitamento do potencial madeireiro que seria inundado e concluiu pela irracionalidade na administrao nesse projeto. Da rea de 161.000 ha que esse estudo recobria a SUDAM encontrou um potencial comercializvel na ordem de 29.156.396 m. A projeo para o montante de 212.000 ha identifica 42.264.320 m de madeira aproveitvel, mais de 8 vezes o volume de madeiras consumidas anualmente pelas indstrias madeireiras no estado do Par, segundo o IBDF.

    A despeito dessa saga ecolgica, o Documento do MAB explica:

    A produo de energia de fonte hidreltrica era tida como limpa e barata. Mas, alm de toda a destruio social e econmica que causam, as barragens provocam muitos problemas ambientais. Por exemplo, as rvores que permanecem no lago formado pela barragem se decompem. O apodrecimento do material orgnico forma os paliteiros e emite grande quantidade de gases, como o gs metano e gs carbnico, causadores do efeito estufa (aquecimento global da atmosfera). Foi o que aconteceu nos reservatrios das hidreltricas j construdas na regio amaznica, como Tucuru (PA), Balbina (AM) e Samuel (RO) (MAB, 2006, p. 01).

    Vale retomar o relato de Jac, segundo o qual:

    No ano passado, foi feita uma pesquisa aqui e ns estamos com 38 espcies de peixe que no existem mais pra jusante pelo fato de ter fechado aqui [em Tucuru, montante]. O que ficou pro lado de baixo [ jusante] subiram. Ai fica nesse pedao ai. Quando a gua seca, o povo est sem comer, sem jeito pra sobreviver, pega o peixe, acaba. Hoje, 38 espcies de peixe no existem mais pra jusante.

    Caboclo relata que at agente laranja foi colocado pra matar as rvores, porque a

    empresa contratada pra fazer o desmatamento se envolveu num bolo de corrupo. Vale considerar, ainda, que esse mega projeto atraiu trabalhadores de vrios lugares do pas, principalmente da regio Nordeste. Alm das condies precrias de vida e de trabalho a que essas pessoas foram subjugadas e vitimadas, provocaram-se vrios problemas socioespaciais no municpio de ocupao desordenada, favelizao, violncia, drogadio, prostituio, gerando de forma mais evidente grandes aglomerados de excluso e espaos de concentrao de riqueza, configurando, assim, uma geografia das contradies, da segregao, do apartheid.

    No tocante a isso, seu Lavrador relata que:

    E a quantidade de gente que essa obra atraiu? As pessoas desempregadas de vrios cantos do Brasil se danaram para c, pra

    8 A Cartografia, numa abordagem territorial relacional e integradora, articula, dialeticamente, as dimenses (social, poltica, econmica, simblico-cultural, ambiental, subjetiva e objetiva, material e simblica) e as escalas (local, regional, nacional e global) possibilitando apreender a totalidade.

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    conseguir um trabalho. Esse lugar reuniu um monte de gente, assim como ficou em Marab (outro municpio do Estado do Par), durante a extrao de ouro na ser pelada. Essa cidade, rapaz, ficou amontoada de gente. Eles (pies-trabalhadores) ficavam amontoados em barracas em condies ruins de trabalho, mais ruim mesmo! Essa obra, rapaz, trouxe muito problema pra cidade: violncia, prostituio, droga. Um com riqueza da energia e outro mais pobre.

    Com base nessas consideraes, possvel constatar a grandiosidade do impacto

    produzido por esse mega empreendimento da UHT. Impactos de ordem social, cultural, econmica, poltica e ambiental. Essa compreenso de impacto transpe aquela que visualiza somente a questo ambiental ou social. Houve e h, ainda, certo discurso do e pelo progresso e da e pela modernidade para minimizar e eufemizar tal saga humana e ecolgica.

    No que se refere a isso, Caboclo adverte que,

    O estudo tem que ser bem amplo. Os problemas ambientais, sociais e culturais que vo ser causados. O problema cultural quase no se leva em conta. As pessoas tm uma relao de vizinhana muito forte e no se v isso como importante. Eles deslocam as pessoas atingidas: uma vai pro um lado, outra vai pro outro. Eles no consideram os impactos sociais, ambientais, culturais e econmicos!!! Eles (atingidos) perdem o meio de vida deles, muitas vezes a pesca, a agricultura familiar.

    Ao perguntar o que representa a Barragem de Tucuru para algumas pessoas do Movimento e da localidade, buscando apreender seu significado para elas, exprimem-se as seguintes representaes. Para Floresbela, moradora, hoje, da cidade de Tucuru, mas nascida margem do Rio Tocantins, numa comunidade ribeirinha, a UHT representa um monstro engolidor de gente. Essa denominao cunhada simbolicamente para explicar que muitas pessoas, trabalhadoras, morreram no perodo de construo dessa barragem. Alm da morte dessas pessoas, com a inundao de vasta extenso de terras e florestas, atravs da criao do imenso lago artificial de Tucuru, animais e plantas morreram, desenhando uma grande paisagem na forma de um cemitrio de vidas inundadas. Ela explica que, atualmente, muitas pessoas continuam adoecendo e morrendo depois da concluso dessa obra. A malria um grande exemplo, que se perpetua forte na regio, principalmente nas localidades prximas desse lago.

    Um amigo meu chama para hidreltrica de mostro engolidor de gente, porque, durante o perodo de sua construo, morreram muitas pessoas. Alm dela ter engolido gente, ela engoliu outras vidas: dos animais, das plantas. Esse lago ele um cemitrio de vidas inundadas. E depois dela pronta, quantas pessoas e outros seres no continuam adoecendo, definhando, morrendo? A malria continua matando, principalmente nessas localidades prximas do lago! (FLORESBELA).

    importante associar esse relato ao do seu Lavrador, segundo o qual, houve

    (...) a morte de muita gente durante a construo dessa hidreltrica. Quantas pessoas no morreram na construo dessa Tucuru? (UHT). Muitos morreram soterrados, mas ningum das autoridades responsvel informava, dava s como desaparecido (que no foi mais trabalhar). A gente sabia, quando a piaozada (trabalhadores da obra) se reunia para beber.

    Negra, ao se referir ao significado da barragem, assinala que

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    A usina s representa milhes para os construtores, para rede celpa que vende energia, pra prpria Eletronorte. Um significado muito grande pra eles, pros tubares, pra esse pessoal que vive desse acumulo de energia que vendida, inclusive, pra fora do Estado do Par. Construir as coisas pra eles. No tem nada de vantagem pro povo. Essas ilhas do entorno do lago, dentro praticamente da barragem, ningum tem energia, ningum tem acesso energia. Quer dizer eles constroem uma barragem para vender energia pros outros estados e o povo que foi atingido no tem acesso a ela. Ela s representa a extrao das nossas riquezas daqui. A energia de Tucuru, a Vale do Rio Doce usa isso pra extrair e exportar os minrios daqui, pra levar a riqueza da Amaznia. Ento, pra tirar o que a gente tem ela tem uma representatividade muito grande. Agora, pra ajudar os atingidos? Ajudar a populao? No ajuda em nada!

    A UHT compreendida tendo um carter, marcadamente produtivista e mercadolgico, posto que est vinculada diretamente aos interesses do grande capital, o que Negra denomina como os grandes, os tubares. Isso explicitado pela geopoltica econmica estratgica que esse empreendimento assumiu e assume na regio de fornecedora de energia para as grandes empresas nacionais e trans/multinacionais extratoras, produtoras e exportadoras de minrio. Isso, entretanto, em detrimento da populao local, principalmente daquelas que foram atingidas diretamente. Ademais, existem as comunidades vtimas e marginais nas ilhas que permanecem sem energia, excludas e vitimadas por esse projeto.

    Seu Nestor explica que o comercial foi feito, dizendo que a energia era pra todos, mas a gente, que est aqui, sabe pra que foi, pra quem, como foi e quais esto sendo os prejuzos sociais e ambientais pra gente e outras pessoas. Assim, a energia oriunda da Hidreltrica de Tucuru passa sobre vrias comunidades, mas no atende essas populaes. Conforme dados do MAB, somente 2% de propriedades na regio Norte possuem energia.9

    Ao perguntar para Caboclo o que representa para ele a UHT, ele sorri e responde, dizendo: O pessoal fala que a Usina de Tucuru nossa [sorri...]. No nossa usina! Nunca foi e nunca vai ser! Ela representa todo mal possvel que a gente pode retratar de forma mais completa, e diz que essa barragem representa a destruio da Amaznia.

    O mal que essa barragem fez a 5.700 famlias, que esse o nmero dado pela empresa, ao expulsar essas famlias e no dar as condies, grandioso! A gente acredita que muito maior o nmero de famlias atingidas. A minha famlia uma delas no reconhecida. So 2.800 quilmetros de lago. Foram sete municpios atingidos. Onde eles botaram [o governo, a empresa Eletronorte] o pessoal, as famlias que eles tiraram, pra fazer novo assentamento de Parakan, ningum demorou l um ms. Vai beira do lago s seis horas da tarde ou na hora do almoo, deita numa rede, que voc vai ver um negcio que se chama de cabo-verde, um tipo de mutuca, vai ver! Isso agora amenizou muito. Se a gente olhar concretamente a coisa, a riqueza gerada pela ALBRS-ALUNORTE, est servindo a quem? A riqueza gerada pela Vale do Rio Doce, est servindo a quem? 5.700 famlias!!! Essas empresas tm responsabilidade por isso. Receberam 20 anos de energia de graa dessa barragem! E ai ns se volta pra isso, pra essas 5.700 famlias que foram largadas! Ento, a barragem de Tucuru representa, pra ns, a destruio da Amaznia!

    A prpria poro territorial que esse projeto ocupa possibilita identificar essa estratgia geopoltica e econmica, para atender aos demais Grandes Projetos (BECKER, 1998), principalmente os complexos mnero-metalrgicos, como da Vale do Rio Doce e da

    9 Conforme IBGE (2006, p.144), na regio norte, 99,1% de domiclios particulares permanentes urbanos possuem iluminao. No Par, esse percentual de 98,9%. Isso, contudo, restringe-se ao espao urbano dessa regio e dessa unidade da federao, no apontando o percentual do espao rural.

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    ALBRAS-ALUNORTE, nos municpios de Serra dos Carajs e Barcarena, no Par, respectivamente autnticos enclaves no seio da Amaznia (ver figura abaixo). Na realidade, esse mega-projeto faz, portanto, parte de uma rede complexa e ampla dentro do setor produtivo brasileiro, assumindo papel relevante tanto para produo de energia para esses grandes projetos instalados na regio, quanto para exportar energia para outras regies, atendendo aos interesses do grande capital, prioritariamente estrangeiro.10

    Fonte: Becker (1998).

    Conforme explica Bertha Becker (1998, p. 70):

    Os gastos de 5.000.000.000 de dlares, obtidos com financiamentos externos, foram justificados por sua importncia para autonomia energtica nacional, mas na realidade a funo da usina suprir em energia o complexo metalrgico, garantindo com tarifas subsidiadas a produo de alumnio nos grandes projetos.

    Ao falar da importncia da energia para o desenvolvimento da regio amaznica, o socilogo e jornalista Lcio Flvio Pinto faz crtica a sua implantao e sua forma de uso, que atende, alienadamente, interesses de fora, desenvolve para fora, sendo um enclave na regio, reafirmando a condio de colnia da Amaznia. Para ele (1994, p. 116):

    evidente que a tecnologia humana no permite transferir a tecnologia de Tucuru por 23.000 km sobre o mar para o Japo. Se pudesse, o Japo hoje o faria, no o fez porque muito mais inteligente, factvel, transportar essa energia em forma de lingote de metal.

    Ao fazer, ainda, meno sobre a corrupo que escondia essa obra faranica, Pinto (1994, p. 115) explica que:

    Ns temos em Tucuru uma fabrica de silcio metlico, da construtora Camargo Corra, que foi a responsvel pela construo da obra. Essa obra, hidreltrica de Tucuru, como vocs sabem, foi construda em nove anos e durante os nove anos ela custou 5,4 bilhes de dlares. Pelos clculos iniciais de nossos engenheiros, que so peritos em barragens, ela deveria ter custado 2,1 bilhes de dlares. Custou apenas uma vez e meia mais, mas um erro de clculo que ns podemos admitir no Brasil. Bom, desses 5,4 bilhes de dlares, 500 milhes de dlares lquidos, tirando todos os

    10 A Eletronorte (Centrais Eltricas do Norte do Brasil S/A), que gerencia a UHT, atua num territrio cuja extenso percentual da ordem de 58% do territrio nacional, incluindo as regies Norte, Nordeste e Centro Oeste. A UHT abastece e exporta energia para fora da regio Norte.

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    lucros deles, foram para o bolso do Dr. Sebastio Camargo, dono da Camargo Corra. E se vocs forem ler a coleo de Forbes e Furtune, durante o perodo de construo de Tucuru, vocs vo ver que a partir da concluso da hidreltrica de Tucuru o Dr. Sebastio Camargo tornou-se um dos trs nicos brasileiros com fortuna pessoal acima de 1 bilho de dlares. Ento essa foi nossa grande contribuio ao ranking internacional dos muito ricos: o Dr. Sebastio Camargo ficou muito rico neste perodo.11

    Vale fazer meno a musica, potica Toca Tocantins que faz uma crtica

    construo da Usina de Tucuru, apontando o impacto danoso sobre o Rio Tocantins e s vidas pertencentes a essas guas com a criao do grande lago artificial, que tinha e tem como fim gerar energia, principalmente para essas grandes indstrias mineralgicas, a fim de gerar autos lucros no importando os meios para isso.

    Toca Tocantins/Tuas guas para o mar/Os meios no so o fim/ Porque vo te matar/Quiseram te afogar em guas assassinas/ E nelas afogar a vida. (CHAVES e DAMOUS, 1991).

    Isso revela a marca perversa, excludente e predadora desse modelo de desenvolvimento que se impunha sobre a regio amaznica: uma modernizao s avessas, como defende Violeta Loureiro (2001, p. 47), e como adverte Carlos Gonalves (2005, p. 13) mais uma vez o destino da Amaznia era decidido revelia de seus habitantes, como se fora uma regio colonial, vazia de gente (de gente inferior, como pensam os colonialistas) e somente portadora de recursos naturais, repleta de mitos.

    Isso figura na representao do Cavalo de Tria que foi essa Usina Hidreltrica de Tucuru na regio, assim como, tambm, os demais que se instalaram e que se perpetuam na Amaznia enquanto presente de grego, recolocando-a na rota do (ne) colonialismo vigente de mercado. Para Diegues (1999, p. 52), como em outros lugares da Amaznia, tambm nos municpios de Tucuru, Jacund, a busca pelo desenvolvimento inclua a excluso e o empobrecimento de certos setores da sociedade, assim como, a saga ecolgica e social de sua gente. A gua e a energia, portanto, passam a ser transformadas mais intensamente, conforme essa lgica de desenvolvimento de modernizao conservadora, em fetiches, ou seja, nada mais do que mercadorias. Num de seus Cadernos de Formao, o MAB, contando um pouco de sua histria, traz como tema central a Ditadura contra as populaes atingidas por barragem, denunciando para a sociedade a transformao da gua em mero negcio de mercado pelos grandes grupos econmicos e pelo Estado, por isso, a expresso cunhada de hidronegcio, j evidenciando essa barbaridade intensificada pelo neoliberalismo, conforme, agora, a ditadura do mercado (MAB, maio, 2004), o que Milton Santos (2001) denomina de globalitarismo. relevante, contudo, considerar que, se de um lado, as Barragens existentes no pas, advindas desse modelo de desenvolvimento territorial autoritrio, provocaram esse conjunto de impactos, de outro, preciso dar-lhes um novo sentido, humano e ecolgico, assim como caminhar na direo de outro modelo energtico e de desenvolvimento. As razes do MAB na Amaznia: a resistncia e a r-existncia dos/as de baixo

    Em face do quadro socioespacial, poltico, econmico, cultural e ecolgico anteriormente descrito, os condicionantes so criados para mobilizao, organizao e

    11 Conforme dados da Eletronorte, o concreto utilizado na 1 etapa [da UHT] daria para construir 1067 edifcios de 12 andares ou 93 estdios do Maracan. O ao utilizado na construo da UHE daria para construir 19 torres Eiffel ou se as peas fossem emendadas, daria 4 vezes a volta na terra.

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    insurgncia de segmentos sociais populares, principalmente do campo, para iniciar uma resistncia e luta em favor das populaes atingidas pela barragem da UHT.

    Antnio Diegues em seu estudo sobre o Movimento assinala que:

    As tenses afloradas pelo processo de desalojamento de seus stios, em boa parte herdados pela linhagem familiar, estiveram na base do incio da resistncia contra o processo expropriatrio. Os pequenos produtores se organizaram politicamente, com o intuito de garantir seus direitos ameaados (DIEGUES, 1999, p. 56).

    Ao conversar com uma das lideranas do Movimento na regio acerca do surgimento do MAB, ele explica que:

    (...) s depois de iniciada a construo e barrado o rio, que se comeou o movimento dos expropriados pela indenizao, lote por lote, casa por casa, que isso terminou no sendo conquistado por eles [pelo movimento]. A luta continua at hoje. Ento, naquele momento se criaram comisses no Brasil inteiro onde tinha que se enfrentar a construo de barragem. Aqui, se criou a CATHU, que foi a Comisso dos Atingidos pela Barragem de Tucuru. Ela era conduzida pelo sindicato dos trabalhadores rurais e, tambm, pela CPT. Atravs dessas comisses, que foi surgindo, culminando com a criao do MAB no Brasil e na regio (CABOCLO).

    Mais uma vez o papel dos sindicatos dos trabalhadores rurais e da Comisso Pastoral da Terra (CPT) colocado na condio de vanguarda para realizar a mobilizao e organizao dessas populaes atingidas em busca da luta pelos seus direitos mnimos e individualizados no momento.

    O fato, todavia, de se ter iniciado a mobilizao e organizao popular aps a construo e barragem do Rio Tocantins diferencia sua histria da regio Sul do pas, onde a mobilizao e organizao popular de resistncia construo das barragens iniciaram-se antes. Isso pode ajudar a explicar a fora que o MAB tem nessa ltima regio de uma forma mais consolidado.

    Segundo documento do MAB (PARTE I, p. 02), em 1981, com apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais locais, constituiu-se o Movimento dos Expropriados pela Barragem de Tucuru, que encaminhou a empresa ELETRONORTE e a outras autoridades governamentais suas denncias e reivindicaes. A partir da, as mobilizaes e presses passam a ser mais fortes, posto que a organizao das populaes atingidas ganhava corpo e voz.

    Exemplo disso, foram os dois acampamentos que o Movimento fez. Um, em 1982, que, durante trs dias, ficaram em frente ao escritrio da ELETRONORTE, na cidade de Tucuru, onde se reuniram 400 pessoas. Nesse momento, o movimento apresentava as seguintes reivindicaes: terra por terra (lotes de 21 alqueires), vila por vila, casa por casa, indenizaes justas e ressarcimento pelos prejuzos (Idem).

    O outro foi em abril de 1983, no qual conseguiram mobilizar e reunir 2000 pessoas e quando conseguiram reabrir as negociaes com a empresa. Nesse momento, uma Comisso Representativa dos Expropriados de Tucuru foi conversar com a presidncia da empresa em Braslia. Enquanto essa Comisso estava em Braslia, o acampamento foi mantido at que se tivesse um acordo, que levasse em considerao as reivindicaes do movimento nascente. Nesse sentido, como afirma o documento do Movimento, A luta pelo cumprimento do acordo passou a ser o objetivo geral do movimento (Idem).

    No obstante as presses ganhassem vigor, Diegues (1999, p. 56) afirma que:

    (...) as medidas tomadas pela empresa para assentar essas famlias em outras reas, definidas pelos rgos que se ocupavam de terras (INCRA e Iterpa), foram arbitrrias e, por isso, recusadas na maioria pelos agricultores. Como desdobramento, foi constituindo-se um srio campo de

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    conflitos. As indenizaes, por exemplo, consideradas irrisrias e corrodas pela inflao foram rejeitadas por muitos. Tendo de forma abrupta seus projetos de vida interrompidos, essas famlias experimentaram longos momentos de insegurana devido, sobretudo, a impossibilidade de trabalhar e produzir, dado a instabilidade que envolve um processo de mudana de uma rea para outra, agravado pela desigualdade de interesses das partes.

    Cabe considerar que a efervescncia desse conflito e o vigor do movimento vo-se dando num arrolamento de definhamento do regime ditatorial na sociedade e ascenso e efervescncia dos movimentos sociais e organizaes populares do campo e da cidade na sociedade brasileira.

    A expressividade do movimento viria a se fortalecer com a emergncia de novos problemas sofridos pelos atingidos remanejados. Em funo de toda m gesto e da negligncia da Eletronorte, as conseqncias dos impactos scio-ambientais advindos da barragem passavam a se evidenciar com mais fora.

    [...] 600 famlias j reassentadas tiveram suas terras tomadas pelo lago: a ELETRONORTE se equivocou na demarcao das reas a serem inundadas! Em outra trgica demonstrao de irresponsabilidade, a margem esquerda do reservatrio, onde havia sido assentada a maioria dos expropriados, foi infestada por uma praga de mosquito at ento desconhecida na regio (MAB, PARTE I, p. 2,3).

    Em 1989, o movimento parece demonstrar ganhar mais fora, quando passa a reunir os expropriados de montante e os atingidos de jusante da barragem, criando a Comisso dos Atingidos pela Hidreltrica de Tucuru (CAHTU), para lutar pelos seus direitos, haja vista as problemticas decorrentes da m qualidade da gua, que atingiram a sade das populaes, suas atividades pesqueiras, precarizando ainda mais suas condies de vida e trabalho.

    O movimento ganhou amplitude, articulando-se a outros setores organizados da sociedade na luta pelos direitos de cidadania, em que se inclui o respeito s relaes tradicionais de uso mantida com a floresta e com o rio. Fizeram, nessa caminhada, aliana com grupos indgenas atingidos pela barragem de Tucuru. (DIEGUES, 1999, p. 60).

    Essa composio de foras, assumindo os sindicatos de trabalhadores rurais locais

    fora de vanguarda, ampliou a ao do movimento, sua expressividade diante da sociedade e fortalecimento na regio, a fim de construir uma fora poltica e social de resistncia para reafirmar a luta pelos direitos dos atingidos.

    importante perceber que num primeiro momento esse movimento, assim como os das demais regies estavam se centrando em reivindicaes que se limitavam a requerer terra por terra, vila por vila, indenizao, ressarcimento dos prejuzos causados pelas barragens em nvel local, sem uma articulao maior, sem uma contestao matriz poltica energtica e ao modelo de sociedade.

    Mas, no curso dessa caminhada, a partir da articulao das comisses em nvel nacional, as reivindicaes passaram a ser ampliadas para uma contestao ao modelo energtico e de sociedade, demonstrando o alargamento da fora e da conscincia social e poltica desse sujeito coletivo que vinha emergindo.

    Como relata Antenor, a corrente do movimento ia se atrelando e se estendendo, ganhando mais fora, embora persistissem as situaes limitantes para essa ampliao.

    O nosso sofrimento era muito grande. Ai a gente foi se juntando, foi se juntando, fazendo uma grande unio, para lutar por nossos direitos. Ai a gente foi ficando mais forte. Ai o pessoal foi vendo que a gente estava reivindicando e conquistando nossos direitos, comearam a se unir. Mas foi difcil. Ainda difcil de unir as pessoas para lutar.

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    Essas comisses enquanto organizaes locais comeam a se articular em nvel

    nacional, para construir um projeto nacional, que estaria, tambm, articulado com um movimento internacional de luta contra as barragens no mundo, defendendo e empunhando como palavra-de-ordem: guas para Vida, no para morte!

    Todas as obras acima citadas apresentam dois fatos marcantes: a existncia ainda hoje, de organizao popular, e como aspecto negativo, todas tm ainda problemas sociais e ambientais pendentes de soluo devido construo das barragens. Nestas obras e nas demais regies do Brasil, a luta das populaes atingidas por barragens que no incio era pela garantia de indenizaes justas e reassentamentos, logo evolui para o prprio questionamento da construo da barragem. Assim, os atingidos passam a perceber que alm da luta isolada na sua barragem, deveriam se confrontar com um modelo energtico nacional e internacional. Para isso, seria necessrio uma organizao maior que articulasse a luta em todo o Brasil. (MAB, 2002, p. 07).

    Com efeito disso, amplia-se a resistncia e a insurgncia ao modelo de

    desenvolvimento hegemnico, o que ajudava vislumbrar uma contra-hegemonia e fortalecer em nvel nacional, regional e local a idealizao e construo de novos caminhos, alternativos ao modelo dominante. Parece que, nesse caminhar do Movimento dos povos atingidos, ele passa a fincar as balizas de um caminhar profundamente poltico-pedaggico, colocando e pondo novos sujeitos, problemas e temas na cena e na trama dos conflitos na sociedade.

    Ao fazer referncia ao surgimento do Movimento dos Atingidos por Barragem na sociedade brasileira, Carlos Gonalves (2005, p. 159) explica:

    A emergncia de um forte movimento da sociedade civil no Brasil, e com ele a constituio de mltiplos protagonistas, a partir dos anos setenta e em claro confronto com o regime ditatorial, colocou, para alm da questo da redemocratizao, uma pluralidade de demandas de diferentes sujeitos sociais que surpreendeu os analistas das cincias sociais.

    medida que o Movimento ampliava suas aes, capacidade de organizao,

    mobilizao e luta por seus direitos, expressava, por conseguinte, mais conscincia de suas condies de expropriados e atingidos e maior organicidade poltica, para lutar contra as formas de degradao de suas condies de vida e trabalho, contra a degradao da natureza.

    Isso traz a idia de uma identidade e dimenso educativa, que o Movimento vai tecendo e fazendo no movimento de resistncia e de luta, nas suas organizaes e mobilizaes, demonstrando para sociedade outra maneira de agir e de olhar para os Cavalos de Tria, que davam de presente presente de colonizador regio amaznica12 e ao Brasil, sob o vu-imaginrio do desenvolvimento, da modernizao, do progresso capitalista e da racionalidade eurocntrica.

    Nesse caminhar, o Movimento Nacional dos Atingidos por Barragem (MAB) nasce concebido como um:

    [...] movimento popular, de massa, que visa organizar e mobilizar toda a populao atingida ou ameaada para lutar contra a construo de barragens e pela garantia dos direitos sociais, colaborando com isto para a construo de um novo modelo energtico (MAB, 2002, p. 05).

    12 Na regio amaznica, foram construdas outras barragens nesse perodo. Uma delas foi a Hidreltrica de Balbina, em Manaus, que mais causou impacto ambiental e social. Atualmente, a luta vem se dando contra a construo da Hidreltrica de Belo Monte, no Rio Xingu.

  • REVISTA NERA ANO 12, N. 15 JULHO/DEZEMBRO DE 2009 ISSN: 1806-6755

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    Gonalves defende que o MAB conseguiu demarcar um territrio contraditrio ao conceber e colocar, de um lado, os povos como atingidos pela poltica de desenvolvimento do Estado, de outro, como sujeito, protagonista de outras propostas e aes. Para esse autor, o Movimento:

    Indica a contradio diretamente posta pela ao do Estado como protagonista. As populaes se colocam aqui claramente como atingidas, ou seja, como aqueles que no foram os destinatrios da ao do Estado, ao contrrio, foram atingidos pela ao deste. No entanto, ao se constiturem como movimento dos atingidos por barragem colocam-se como sujeitos que, por sua prpria ao, desejam ser protagonistas de suas vidas (2005, p. 159).

    No tocante a essa contradio que a terminologia atingido encerra, as narrativas a

    seguir evidenciam bem essa premissa, que carregam junto a representao da identidade desses sujeitos como excludos e excludas desse modelo energtico e de desenvolvimento, que atinge direta e indiretamente. Ai est expresso, tambm, um saber crtico da sua condio de atingido e de excludo por esse modelo de desenvolvimento, mas, tambm, de protagonista scio-