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Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro” ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013 GT 5. Lutas sociais urbanas 122 GT 5. Lutas sociais urbanas Movimento hip-hop no interior dos movimentos sociais contemporâneos Weber Lopes Góes Resumo: O objetivo deste artigo é abordar a natureza dos movimentos sociais tendo como referencial Marx e Engels. Tecemos o histórico do movimento hip-hop a partir dos anos de 1970 nos Estados Unidos e no Brasil início de 1980 preservando sua peculiaridade e momento histórico. Em seguida exibimos a função do Estado brasileiro – com enfoque na autocracia burguesa – na criminalização aos movimentos sociais. A fim de tratar dos desafios dos movimentos sociais em nossa atualidade constatamos que para superar a ordem vigente se faz necessário combater as orientações teóricos/filosóficas do irracionalismo pós-moderno os quais influenciam grande parte dos movimentos sociais tidos como “novos atores”, “novos personagens” etc. Palavra chave: Movimentos Sociais; Autocracia Burguesa; Trabalho e Emancipação. Considerações sobre o movimento social A discussão dos movimentos sociais hoje é uma tarefa desafiadora, pois de início há que se preocupar em não cair nas armadilhas do irracionalismo que se consolidaram a partir de meados dos anos 1950 e ganharam vulto nas décadas de 60 e 70 do século passado, amplificadas pela queda do muro de Berlin e que perduram até os dias atuais. As preocupações que poderíamos ressaltar têm a ver com teses defendidas e difundidas no seio dos movimentos sociais, dos partidos políticos, do sindicalismo e da academia: teses como as que pregam o “fim do trabalho” (e a consequente emergência de “novos atores sociais”) ou as que pregam até mesmo o “fim da história”, bem como as pós-modernistas que se seguiram, e coexistem, com as teorias calcadas no neopositivismo e na fenomenologia. Mestrando no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais na UNESP/Marilia. Bacharel em História Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) e Especialista em Ciências Sociais pela mesma Instituição. Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil. E-mail: [email protected]

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Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”

ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013

GT 5. Lutas sociais urbanas 122

GT 5. Lutas sociais urbanas

Movimento hip-hop no interior dos movimentos sociais contemporâneos

Weber Lopes Góes

Resumo: O objetivo deste artigo é abordar a natureza dos movimentos sociais tendo como referencial Marx e Engels. Tecemos o histórico do movimento hip-hop a partir dos anos de 1970 nos Estados Unidos e no Brasil início de 1980 preservando sua peculiaridade e momento histórico. Em seguida exibimos a função do Estado brasileiro – com enfoque na autocracia burguesa – na criminalização aos movimentos sociais. A fim de tratar dos desafios dos movimentos sociais em nossa atualidade constatamos que para superar a ordem vigente se faz necessário combater as orientações teóricos/filosóficas do irracionalismo pós-moderno os quais influenciam grande parte dos movimentos sociais tidos como “novos atores”, “novos personagens” etc. Palavra chave: Movimentos Sociais; Autocracia Burguesa; Trabalho e Emancipação.

Considerações sobre o movimento social

A discussão dos movimentos sociais hoje é uma tarefa desafiadora, pois de início há

que se preocupar em não cair nas armadilhas do irracionalismo que se consolidaram a partir

de meados dos anos 1950 e ganharam vulto nas décadas de 60 e 70 do século passado,

amplificadas pela queda do muro de Berlin e que perduram até os dias atuais. As

preocupações que poderíamos ressaltar têm a ver com teses defendidas e difundidas no seio

dos movimentos sociais, dos partidos políticos, do sindicalismo e da academia: teses como as

que pregam o “fim do trabalho” (e a consequente emergência de “novos atores sociais”) ou

as que pregam até mesmo o “fim da história”, bem como as pós-modernistas que se

seguiram, e coexistem, com as teorias calcadas no neopositivismo e na fenomenologia.

Mestrando no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais na UNESP/Marilia. Bacharel em História –

Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) e Especialista em Ciências Sociais pela mesma

Instituição. Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil. E-mail:

[email protected]

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Tais teses, que encontram eco nos segmentos acima citados– movimentos sociais,

partidos políticos, sindicalismo e academia – são hostis às concepções da sociedade e de

mudança social marxiana, e têm supostamente buscado outros caminhos, outros cortes

teóricos/filosóficos para combater o capital. Marx e Engels tinham por finalidade a superação

do capital e a emancipação do trabalho; os chamados segmentos sociais contemporâneos, para

não dizer já a partir dos meados do século passado, abandonaram as mais importantes teses de

Marx ou guinaram para o campo do ecletismo (LESSA, 2007), daí a importância do

arcabouço teórico marxiano para questionar a prática recente dos chamados “movimentos

sociais” que, supostamente, os superaram. Nesta direção, gostaríamos de colocar, a princípio,

em tela o caráter e a natureza dos movimentos sociais que Marx e Engels tinham em mente, e

com os quais trabalhamos aqui.

Movimentos sociais, em Marx e Engels, são expressões de contradições de classe, do

antagonismo entre capital e trabalho; advêm do fato da origem da acumulação capitalista ser a

apropriação privada de mais trabalho alheio o que, em consequência, limita o atendimento de

algumas demandas em algumas épocas, às imposições da reprodução capitalista.

Marx presencia uma quantidade significativa de movimentos reivindicatórios: a

eclosão na Silésia em 1844 da revolta organizada pelos trabalhadores de tecelagem contra as

precárias condições de trabalho e baixos salários (revolta que lhe possibilitou a crítica

negativa da política); o nosso autor também vivenciou os movimentos dos trabalhadores pela

redução da jornada de trabalho na Inglaterra, para não mencionar a Comuna de Paris em 1871,

entre outros movimentos encabeçados pela classe trabalhadora.

Ainda assim, se faz necessário destacar que Marx (1995) no artigo intitulado “Glosas

Criticas Marginais ao artigo O rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano” faz

uma diferenciação entre revolução política e revolução social. Para ele a revolução política

não passa de uma perfectilização do Estado, isto é, na qual ela classifica como revolução

burguesa e que esta já havia sido realizada em 1789, período esse que a burguesia conquista o

poder político superando o modo de produção feudal; em contraposição a revolução social é,

para Marx, a emancipação do trabalho diante as amarras do capital; a emancipação do

trabalho significa a ação política cujo fito é a superação do Estado e da política.

Tendo as demandas como base a reprodução da sociedade de classes, e na medida que

os movimentos verificam que o Estado não pode realizar essas demandas, os movimentos

sociais buscam suprimi-lo, superar a sociabilidade em que estão envolvidos. Os movimentos

captam a incapacidade do Estado, devido a sua própria natureza; o foco se amplia

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concatenando as lutas cujo cerne é suprir as necessidades em mira por meio da emancipação

humana.

Embora o nosso objetivo não seja fazer uma abordagem dos diversos movimentos

sociais existes na nossa história, a título de exemplo, basta mencionar que nos Estados Unidos

da América está registrada a história dos Panteras Negras o seu caráter de movimento social,

segmento este que partir da simples reivindicação de um farol de trânsito para evitar

atropelamentos no bairro construíram um movimento que foi brutalmente reprimido e

destruído por uma associação entre o FBI (repressão) e a máfia (disseminação de drogas); a

repressão e o incentivo governamental à disseminação de drogas via máfia só se abatem com

mais força quando o movimento começa a se conectar mais estreitamente com as lutas de

outros setores e países latino-americanos. Para pegarmos exemplos no Brasil, temos alguns

movimentos com formação a partir de demandas não consolidadas, desde os Quilombos (luta

pela liberdade e contra a escravidão) até o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(luta pela propriedade da terra e pela reforma agrária) e o Movimento dos Trabalhadores Sem

Teto (luta para garantir habitação aos que não possuem). Esta é a natureza dos movimentos

sociais, explicitada por Marx e Engels.

Todavia, de acordo com Wood (1996),

“Hoje, novamente, enquanto alguns à direita proclamam o “fim da história” ou o triunfo final do

capitalismo, certos intelectuais de esquerda nos dizem que uma época terminou, que vivemos numa era

“pós-moderna”: o “projeto do Iluminismo” está morto, todas as antigas verdades e ideologias perderam

sua relevância, os velhos princípios de racionalidade não valem mais, e assim por diante” (WOOD, p.

120).

Assim, a partir de meados do século XX, aparecem projetos societários impregnados

das teses apontadas acima – fim das classes sociais, da história e da centralidade do trabalho;

os movimentos se fecham em si mesmos e não compreendem as ligações entre suas demandas

e as da classe trabalhadora em sua totalidade: ao priorizarem suas demandas específicas,

limitam-se, e limitam a própria possibilidade de solução satisfatória e não reformista de suas

demandas, culminando na ausência de uma consciência de classe revolucionária.

Como resultado verificado, os movimentos impregnam-se de um intenso localismo, e

um não menor particularismo, aceitando o isolamento do conjunto dos trabalhadores,

autoconfinando-se em verdadeiros guetos; lutas particulares sobrepõem-se às universais,

impossibilitando a solidificação de um projeto societário que aponte para a superação da

ordem vigente. Tal propositura, e perspectiva (ou ausência de perspectiva) estão presentes na

agenda do que se chama contemporaneamente movimento social.

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O movimento Hip-Hop no seio dos movimentos sociais

Nascido na década de 1970 da junção dos elementos Rap, Break, Grafite e Dj1 o

movimento hip-hop consolidou-se na Jamaica e evoluiu nos Estados Unidos da América; seu

objetivo era solucionar conflitos existentes nos guetos daquele país entre jovens membros de

gang´s que disputavam territórios nas ruas e bairros. Com a consolidação do hip-hop os

jovens passaram a disputar os espaços por meio da dança, destacando-se dois elementos

fundamentais: a música rap e o break.

O rap ganhou repercussão denunciando a discriminação racial. Dadas as

peculiaridades do racismo americano, as relações raciais segregavam negros e brancos

constitucionalmente: não era permitida a convivência entre diferentes etnias no mesmo bairro.

A música rap combatia e denunciava o racismo, as desigualdades sociais e raciais e,

sobretudo, a violência policial e as organizações racistas (paramilitar como a Ku Kux Klan)

pautadas na eugenia importada da Europa que vingou e floresceu em solo norte-americano,

fortalecendo-se a partir da abolição da escravatura.

O segundo elemento que ganhou notoriedade foi o break, forma de manifestação

corporal cuja verdadeira história é pouco conhecida: foi uma manifestação contra a invasão

norte-americana no Vietnã. Os movimentos das danças dos b-boys e das b-girls simulam

pessoas metralhadas por soldados norte-americanos, movimentos de helicópteros chegando ao

Vietnã (país vencedor da guerra). O break buscava denunciar essa guerra, apontando não ser

uma luta dos negros, ao contrário, havia a lucidez de que aquela empreitada ligava-se a

interesses imperialistas, daí o repudio à guerra e sua denuncia.

O hip-hop expressava, utilizando elementos da cultura africana, questões vivenciadas

por pessoas agredidas pelo Estado; era um estilo de manifestação que buscava conscientizar,

politizar os que viviam em uma condição de desigualdade social, evidenciando a necessidade

de combater o poder vigente estabelecido pelas elites nos Estados Unidos da América.

No Brasil o movimento hip-hop consolida-se a partir dos meados dos anos 1980, tendo

como pioneiros integrantes de um estilo de música bastante conhecido também nos Estados

Unidos da América, o Soull Músic. Em nosso país o hip-hop solidificou-se na Grande Região

Metropolitana de São Paulo, na conhecida Praça Roosevelt – no Metrô São Bento. Contam os

1 O movimento hip-hop é composto da música Rap (ritmo e poesia), do Break (dança de rua), do Grafite (arte

plástica) e do Dj (discotecário, responsável por tocar a música nos bailes). Para maior entendimento de seu

histórico ver: (FELIX, 2005) e (HERSCHMANN, 2000).

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pioneiros do movimento que eram constantemente surpreendidos e expulsos pela polícia

local, em virtude de se reunirem naqueles espaços, tidos como públicos2.

Diferente dos Estados Unidos, o elemento que mais se destacou foi o rap: através do

rap os jovens da grande periferia de São Paulo passaram a conhecer a história de seus

ancestrais e as personalidades da luta contra o escravismo. A música rap deu às populações

negras de São Paulo e em seguida às de todo o Brasil, a possibilidade de conhecer sua

verdadeira história em contraposição à tradicional contada pela historiografia positivista; o

hip-hop possibilitou aos descendentes de africanos escravizados o contato com a realidade na

qual eles estão inseridos; colocou no cenário o debate sobre a questão do racismo no Brasil,

até então restrita aos espaços acadêmicos, questão pouco abordada no movimento operário

devido a orientações da III internacional.

Houve em nosso país um caloroso debate acerca da democracia racial; houve

discussão no seio da academia referente ao que seria um “racismo cordial”, a uma “escravidão

doce e passiva”; em última instância propagava-se a idéia que haveria no Brasil um modelo

de harmonia étnico/racial entre negros e brancos. Esta polêmica era travada nos espaços

restritos das universidades, conforme apontamos acima: coube a Edson Carneiro, Oracy

Nogueira, Florestan Fernandes, Clovis Moura, Otávio Ianni, Emilia Viotti da Costa, Abdias

do Nascimento, entre outros, colocar em xeque essa ideologia de “democracia racial” e

evidenciar as desigualdades sociais e raciais.

O rap tirou o debate do campo restrito em que ocorria e levou-o para as ruas, através

de músicas elaboradas por diversos grupos; denunciou a desigualdade social e racial pelo

canto falado; denunciou a violência policial, o extermínio praticado pelo Estado autoritário e

outras práticas então, e ainda existentes.

Para melhor situar o nosso leitor, elencamos um trecho da música de rap do grupo

Racionais Mc´s intitulada “Racistas otários”:

“./.../. Os sociólogos preferem ser imparciais

E dizem ser financeiro o nosso dilema

Mas se analizarmos bem mais você descobre

Que negro e branco pobre se parecem

Mas não são iguais

Crianças vão nascendo

Em condições bem precárias

Se desenvolvendo sem a paz necessária

São Filhos de pais sofridos

E por esse mesmo motivo

Nivel de informação é um tanto reduzido./.../.

2 Ver documentário: História do Hip-hop no Brasil in: http://www.youtube.com/watch?v=i6HYb9Nk5f0, acesso:

dia 09/05/2013.

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Os poderosos são covardes desleais

Espancam negros nas ruas por motivos banais

E nossos ancestrais

Por igualdade litaram

Se rebelaram morreram

E hoje o que fazemos?

Assistimos a tudo de braços cruzados

Até parece que nem somos nós os prejudicados

Enquanto você sossegado foge da questão

Eles circulam na rua com uma descrição

Que é parecida com a sua

Cabelo cor e feição

Será que eles vêem em nós um marginal padrão?

50 anos agora se completam

Da lei antirracismo na constituição

Infalível na teoria

Inútil no dia a dia

Então que fodam-se eles com a sua demagogia

No meu país o preconceito é eficaz

Te cumprimento na frente

E te dão um tiro por trás

“o Brasil é um país de clima tropical

Onde as raças se misturam naturalmente

E não há preconceito racial. Ha, Há...”

Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos

O preconceito e o desprezo ainda são iguais

Nós somos negros também temos nossos ideiais

Racistas otários nos deixem em paz.” (RACIONAIS MC´S, 1990).

Nesta música podemos verificar o conteúdo político e ideológico ao colocar em

questão a visão de democracia racial propagada na sociedade brasileira e, ainda, a não

existência do racismo e do preconceito em relação aos descendentes de africanos

escravizados; a perseguição praticadas pelos policiais que buscavam reproduzir os

estereótipos discriminatórios dos quais os negros das periferias metropolitanas são alvos.

Logo, a música questiona as razões das desigualdades étnico-raciais no Brasil e a objetivação

do racismo enquanto manifestação e fruto de uma sociedade escravocrata.

Além das manifestações contidas no hip-hop há que destacar as posses3, que tinham

por fundamento organizar os diversos integrantes do movimento hip-hop a fim de divulgar

esta manifestação, atrair mais integrantes e promover atividades nos bairros; ações tais como

palestras nas escolas e eventos nas ruas, agregando pessoas e denunciando a discriminação

racial e o pauperismo existente nos bairros distantes das regiões mais assistidas pelo Estado.

Podemos, pois, afirmar que o hip-hop teve uma função significativa na organização

das populações, pertencentes à classe trabalhadora, que viviam numa situação de extrema

pobreza, realizando aquilo que partidos políticos não faziam (devido sua estrutura

3 Quando o movimento hip-hop ganha fôlego nos Estados Unidos, consolidam-se organizações de bairro a fim de

combater a violência, as drogas e reivindicar melhorias sociais.

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burocratizada), isto é, estar perto da população que teria de entender e intervir na realidade em

que estavam inseridas. O movimento hip-hop fez o que outras manifestações culturais não

fizeram: denunciar as desigualdades raciais e sociais, contrapondo-se aos padrões

estabelecidos por uma sociedade que tinha a Europa por modelo não apenas de sociabilidade,

mas também cultural, religioso e político.

Estado Brasileiro e a criminalização dos movimentos sociais

Como marcamos no início, movimentos sociais em sentido mais amplo são expressões

de contradições fundadas no antagonismo entre capital e trabalho; são expressões dos limites

ao atendimento de demandas específicas em épocas específicas, limites definidos pelas

imposições da reprodução capitalista, limites definidos também pelas particularidades da

objetivação do capital em cada país. É da natureza do Estado a gestão do processo de trabalho

humano convertido em processo de produção capitalista: na medida em que as elites se

percebem ameaçadas acionam o Estado para colocar movimentos sociais na ilegalidade e

legitimar a repressão que se faça necessária para a garantia da continuação da expropriação

que sustenta a acumulação de capital. Tais períodos de criminalização e repressão estão bem

registrados na história de todas as chamadas grandes democracias capitalistas modernas: da

França ao Japão, da Inglaterra aos E.U.A.

Atentando para a particularidade brasileira de capitalismo hiper-tardio, temos uma

burguesia incapaz, ou impossibilitada de desenvolver um projeto societário burguês nacional

autônomo; forja-se aqui uma burguesia interna atrelada ao capital externo do qual necessita

estruturalmente para existir e prosseguir sua hegemonia.

Conforme afirma o sociólogo Cesar Sanson:

“Não é de hoje que o movimento social brasileiro é tratado como caso de polícia. A célebre afirmação

de que “a questão social é uma questão de polícia” atribuída ao ex-presidente da República Velha,

Washington Luis, permanece mais viva do que nunca. A direito brasileira demoniza os movimentos

sociais. Acusa-os de violento, de baderneiro, de fora da lei. Pretende com isso assustar a sociedade,

principalmente os setores da classe média, e ganhar os meios de comunicação procura criminalizar os

movimentos sociais e jogá-los contra a sociedade”. (SANSON, 2008, p. 02).

De acordo com a citação acima, de fato, os movimentos sociais nunca tiveram as suas

demandas objetivadas de forma plena, a não ser a repressão como fora de resposta a eles. Ou

seja, o Estado, sempre buscou reprimir, tratar, na linha do autor acima, como caso de polícia

no sentido de silenciar as suas atuações e suas proposituras colocando os na ilegalidade.

Sendo assim, os movimentos sociais são, tratados como inimigos do Estado, enquanto um

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problema na sociedade e que atrapalham a ordem vigente, logo, devem ser extinguidos através

da força estatal. Em última instância, qualquer movimento social que ultrapasse o gueto e o

localismo, buscando levar suas propostas ao conjunto da sociedade é criminalizado; tanto os

movimentos de maior fôlego, quanto os de menos porte são infalivelmente combatidos.

Nesta seara o movimento hip-hop também deve ser colocado na constelação dos

movimentos sociais, em particular, no período do seu apogeu no qual podemos datar nos idos

dos anos de 1990 até o início dos anos 2000. Pois, podemos destacar a sua forma de atuação

junto aos outros movimentos sociais tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, visto que houve inúmeras ações e

diálogos entre esses seguimentos sociais.

Não é a toa que nos eventos de hip-hop realizados nas ruas metropolitanas sempre

foram obstaculizados, reprimidos pelas forças do Estado, em razão da qualidade das letras

compostas pelos grupos de rap que buscavam denunciar a desigualdade racial e social e a ação

do Estado frente as periferias do Brasil4.

Assim, na perspectiva do capital é prática normal desarticular, comprar e/ou extinguir

movimentos sociais que coloquem em questão os pressupostos das formas de sociabilidade

burguesas, a criminalização e violência contra movimentos sociais é da natureza constante do

Estado brasileiro. Neste diapasão, em nosso país solidificou-se uma tradição de Estado

autocrático, antidemocrático e paternalista; pertencemos a um país que tem, historicamente,

uma autocracia institucionalizada e especializada em colocar os movimentos sociais na

ilegalidade. Temos registros em nossa história das constantes ditaduras estabelecidas;

inúmeras repressões contra a classe trabalhadora e movimentos sociais como um todo. Em

nossa atualidade, a ofensiva contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é

exemplar, para não citar tantos outros.

Conclusão: o grande desafio - articulação para a superação do capital

Após as denuncias dos crimes stalinistas, a queda do muro de Berlin e a assim

chamada derrocada do socialismo real muitos trataram de superar, ou melhor, seria dizer

4 Na edição de maio de 2007 da Virada Cultural, atividade cultural que concentra apresentações de shows e

espetáculos gratuitos em vários pontos da cidade, após o grupo de rap Racionais Mc´s entrar no palco, houve

interrupção da apresentação por policiais. Essa maneira de tratar a música rap, expressão do movimento hip-hop,

explicita como se dá a culpabilização, a criminalização dos movimentos sociais e a forma de como o Estado

tratou o movimento durante muito tempo.

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sepultar Marx; essas tentativas de superação vêm na esteira de teóricos como Michael

Foucault, Robert Kurz, Jacques Lacan, Jürgen Habermas, Axel Honeth para citar apenas

alguns de uma lista gigantesca; esses e outros teóricos “constatam” uma radical mudança de

paradigmas que indicaria, segundo eles, que Marx está morto.

As categorias do ser social por ele – Marx – sintetizadas em suas análises estariam

superadas por esses “novos paradigmas” – no limite, duvida-se que algum dia essas categorias

tenham sequer existido. Fazem parte dessa lista a luta de classes, o mais valor extraído do

trabalho como fonte da acumulação do capital, a centralidade do trabalho, entre outras.

Militantes – intelectuais frustrados e incapazes de entender o que ocorreu com a

derrocada do “socialismo real” – se aproximaram de partidos políticos e ajudaram a

domesticar os trabalhadores, criando teses acadêmicas opostas a Marx, redefinindo

“movimentos sociais” e delineando idealmente o que são e o que não são; institucionalizados,

é comum que esses movimentos virem grifes.

“Confundidos” pelas transformações no processo produtivo impostas pelo capital para

a manutenção de suas margens de lucro e para brecar, desarticular e destroçar a organização

do trabalho, combatendo a proposta societária de emancipação humana, teóricos do

irracionalismo são unanimes em pregar com certeza apodítica que o trabalho “desapareceu”,

tornou-se “imaterial”; pregam ainda não haver mais expropriação de “mais trabalho”(se é que

algum dia houve, dizem alguns).

Para os teóricos dos “novos paradigmas”, em seu incansável combate às propostas

colocadas pela teoria marxiana de superação da ordem societária vigente, somos

contemporâneos de um momento histórico no qual novas formas de lutas se impõem, lutas

que não apontam para a superação dos limites impostos pela sociabilidade pelo mercado

capitalista, sociabilidade essa que se torna virtualmente eterna e capaz de conter em seu seio e

resolver satisfatoriamente qualquer tipo de problemas, num jogo de ganha-ganha entre as

classes: dissemos classe?

Desculpe, utilizamos um jargão matizado pelos velhos paradigmas: o que temos

contemporaneamente não é uma sociedade de classes, mas um grande e complexo conjunto de

cidadãos no qual, eventualmente, alguns grupos com demandas específicas em comum podem

formar, temporariamente, “novos movimentos sociais”; não existem classes de cidadãos. O

trabalho que reúne esses cidadãos passa a ser apenas mais uma das diversas formas pelas

quais os homens organizam a produção e distribuição da riqueza social.

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Combater esse irracionalismo pós-moderno é importante para os que não estão

convictos de que a sociabilidade capitalista seja a melhor possível, nem mesmo a melhor das

piores; contrapor ao irracionalismo pós-moderno é importante para os que acreditam na

possibilidade de superação da ordem vigente.

Impugnar-se a essas teorias irracionalistas não é opor-se a lutas específicas, é

concatená-las tendo o trabalho enquanto centralidade, ou seja, devemos colocar essas

demandas como meio de combater e superar o capital, sem cairmos no praticismo

revolucionário (LESSA, 1995). Na busca de repor os indivíduos enquanto seres auto-

producentes, é de suma importância partir da base produtiva visando pavimentar a revolução

social como centro e não apenas a revolução política.

Assim sendo, é necessário aglutinar as lutas específicas tais como a luta antirracista,

de gênero e outras mais tendo como perspectiva o fim das classes sociais, na busca da

eliminação do Estado e da política, conforme aponta Evangelista (1992), sem que a

singularidade não se sobreponha ao geral5.

Alguns dos “novos movimentos sociais” impregnados da cultura da política acreditam

que o problema não é o Estado e sim quem o governa, ou seja, o problema não é o Estado em

sua concretude, como um ente que garante a reprodução dos privilégios de classe dos que tem

em seu poder o aparato jurídico e os meios de produção centralizados; para esses “novos

movimentos sociais”, é mera questão de gestão, basta gestionar, administrar o Estado de uma

forma competente e pautada na ética política, que os problemas serão sanados.

Em outros “novos movimentos sociais”, vigoram as teses do micro-poder; dos novos

personagens, teses da “indignidade de falar pelos outros”, mesmo porque como não se pode

“pegar” no Estado burguês, as lutas a serem encaminhadas são as contra os micro poderes

visíveis, concretos, específicos de cada “novo movimento social”. Lutar contra o Estado

burgues? Nem pensar, isso é desmobilizador e inútil. Pensar a unidade do real, pensar a

totalidade do ser social? Nem pensar, isso é totalitarismo, é próprio do poder essa mania de

totalização: a totalidade - categoria do real, é associada ao totalitarismo – forma política de

gestão do Estado.

Assim, cada “novo movimento social” leva em frente suas demandas específicas sem

vê-las dentro da totalidade das relações sociais estabelecidas. Combates contra o racismo de

5 “./.../.são justamente essas lutas cotidianas, travadas, na maioria das vezes, de forma subterrânea no mundo da

fábrica, que transformam no espaço original para a constituição dos trabalhadores como classe social ou como

integrantes de uma classe nacional com vocação hegemônica./.../.” (EVANGELISTA, 1992, p. 101).

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diversos matizes, contra discriminações sexuais e outros tipos de demandas específicas, são

travados e tem como aspiração máxima o empoderamento que é, diga-se de passagem, um

termo do inglês para denominar a criação de leis expressando direitos civis de minorias; os

“novos movimentos sociais” tupiniquins, ao lerem empowerment nos textos que vêm da

matriz que os financiam, traduzem para empoderamento como aumento do poder dos

cidadãos participantes desses movimentos: o que corre é apenas um atrelamento ao poder do

Estado, que, esse sim, ganha mais poder a cada movimento social “empoderado”.

Não é aqui o lugar, nem é essa a hora de polemizar com os intelectuais que vieram na

esteira de Foulcault, pensador francês que teorizou boa parte dos princípios que viraram

mantras nos “novos movimentos sociais”, por mais que seus integrantes achem que pertencem

ao século XXI. Porém, mesmo não sendo nossa intenção polemizar aqui e agora, já temos

algumas décadas de “novos movimentos sociais” com orientação dentro dos “novos

paradigmas” e assim, talvez já tenhamos uma quantidade de dados empíricos suficiente para

uma avaliação crítica.

A incapacidade dos “novos movimentos sociais” em romper o isolamento – tanto entre

si quanto com o conjunto da sociedade e a presa fácil que cada um se torna devido a esse

isolamento, o gueto e os becos sem saída que cada um dos “novos movimentos sociais”

contemporâneos acaba entrando talvez sejam indícios que a estratégia teorizada pelos gurus

do movimento seja falha, incompleta, errada e insatisfatória, talvez sejam indícios que Marx

tenha sido “aposentado” um pouco cedo demais; talvez sejam indícios que as categorias

marxianas ainda estejam presentes, ou nunca tenham deixado de estar.

Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”

ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013

GT 5. Lutas sociais urbanas 133

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