Movimentos Sociais Latino-Americanos: “A ch´ama dos movimentos ...

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Elizardo Scarpati Costa Movimentos Sociais Latino-Americanos: “A ch´ama dos movimentos campesino-indígenas bolivianos” Dissertação de Mestrado em Sociologia, sob orientação do Professor Doutor Hermes Augusto Costa apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Coimbra, 2009

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  • Elizardo Scarpati Costa

    Movimentos Sociais Latino-Americanos: A chama dos

    movimentos campesino-indgenas bolivianos

    Dissertao de Mestrado em Sociologia, sob orientao do Professor Doutor Hermes Augusto Costa

    apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    Coimbra, 2009

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    Elizardo Scarpati Costa

    Movimentos Sociais latino-americanos: A chama dos

    movimentos campesino-indgenas bolivianos

    Dissertao de Mestrado em Sociologia, sob orientao do Professor Doutor Hermes Augusto Costa

    apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

    Coimbra, 2009

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    memria de Catarina Scarpati

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    Agradecimentos

    Agradeo a minha famlia, especialmente a minha me e a minha av, as quais

    sempre foram, e sempre sero, a minha principal motivao na vida. Mulheres

    guerreiras, simples, queridas, lutadoras e vencedoras. Me incentivaram e me cobraram

    em todos os momentos, tenho certeza, com o melhor que podiam e com todo amor

    do mundo, eu simplesmente no existiria sem elas. Agradeo a minha companheira

    Eme, que surgiu na minha vida com o propsito de ser aquilo que faltava, minha

    interlocutora, minha amiga, minha companheira e minha mulher. Contribuiu de forma

    decisiva para a realizao desta tese, sua participao sem precedentes, possibilitou

    que aqueles pequenos detalhes aos quais por vezes nos foge, a correo dos mesmos.

    Obrigado Eme, a sua orientao e ajuda, foram fulcrais e nos meus momentos de mais

    dvidas e incertezas, mesmo onde havia certeza, a essa devo tudo. Agradeo a Surreal

    Solar Repblica dos Kapangas (Z Miguel, Antnio, Rogrio, Flor neves, dentre

    outros), casa histrica que me acolheu, me orientou na minha nova realidade social ao

    chegar em Portugal. Sem esta casa e todos os seus membros, no teria chegado at

    aqui. Agradeo a alguns amigos portugueses Joo Reis, Manel Afonso, Ivo, e aos

    brasileiros que esto por aqui, como Rodrigo Nery, Mrio, Leandro, Bruno dentre

    outros, que me ofereceram sua amizade e seu incentivo ao meu desenvolvimento.

    Agradeo aos colegas dos mestrados da FEUC e do CES, Daniel, Hector, Denise. Aos

    meus caros amigos no Brasil, agradeo a Felipe Sellin, Filipe Skiter, Marcelo Martins,

    Amilcar Cardoso, Ana Paula, minha prima Fernanda e tantos outros que sempre

    acreditaram no meu trabalho e na minha capacidade de buscar por alguma coisa, esses

    so velhos amigos e bons camaradas que me aturaram na graduao e no movimento

    estudantil e sindical e na vida. Agradeo aos companheiros da Bolvia ao qual me deram

    a base material de insero social, para realizar a pesquisa de campo, especialmente ao

    Joalan e a Nery, e a todos os entrevistados. Agradeo ao meu orientador cientfico,

    Dr. Hermes Costa, a sua orientao eficiente, inteligente e participativa, me permitiu

    nos momentos cruciais, em cada reunio, em cada conversa de corredor, em cada

    proposta de modificao terica e emprica, em cada email trocado, ter uma

    orientao excelente, tranquila, e faz com que eu me sentisse seguro de estar

    caminhando em uma boa direo no decorrer da construo desta tese. Ele foi um dos

    principais incentivadores para pesquisa de campo no exterior, e me aceitou de braos

    abertos como seu orientando. Assim, destaco aqui, a sua simplicidade, o seu rigor com

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    inteligncia, a sua perspiccia, e a sua sensibilidade, que so misturadas com seu amplo

    olhar sociolgico, o que o torna sem dvidas, um grande profissional das Cincias

    Sociais e um excelente socilogo. Para mim uma grande honra ser seu orientando.

    Agradeo tambm aos outros professores do mestrado, em especial ao Dr. Elsio

    Estanque por ter dado os toques iniciais sobre o projeto de pesquisa a ser

    desenvolvido. Por fim, agradeo ao corpo tcnico bibliotecrio do Centro de Estudos

    Sociais (CES), Accio, Ana e Maria Jos, pela pacincia nas frequentes pesquisas

    bibliogrficas e pela eficincia ao qual me dedicaram parte do seu tempo e a secretria

    da faculdade de economia o Z e o Pedro, por sempre resolverem meus problemas

    com os papis.

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    ndice

    Introduo.....17

    I Parte - Enquadramento Terico e Metodologia

    Capitulo 1 - Os movimentos sociais, as relaes entre o Estado a sociedade

    civil e a globalizao como epicentro da modernidade latino-americana

    1.1. Perspectivas tericas sobre os movimentos sociais......................................................21

    1.1.1. Teorias e conceitos paradigmticos da Sociologia dos movimentos

    sociais: da abordagem clssica americana abordagem europeia................21

    1.1.2. A abordagem contempornea sobre a teoria da aco colectiva e dos

    movimentos sociais...........................................................................................................25

    1.1.3. A construo do quasi paradigma latino-americano.............................31

    1.2. As relaes entre o Estado e a sociedade civil: As configuraes histricas do

    Estado nao na Amrica Latina e na Bolvia............................................................. .............37

    1.2.1. O Estado laissez faire, o Welfare State e o Estado neoliberal: As

    suas configuraes em contexto latino-americano......37

    1.2.2. A formao do Estado boliviano.........................................................................39

    1.2.3. Etnicidade, classes sociais e Estado-nao como fenmenos stricto

    sensu.....................................................................................................................................42

    1.3. Globalizao, Estado e sociedades latino-americanas.....................................................48

    1.3.1. A globalizao como fenmeno sine qua non...................................................48

    1.3.2. Alguns impactos da globalizao sobre a Amrica Latina e a Bolvia.........50

    1.3.3. Os movimentos indgenas bolivianos em tempos de globalizao.....51

    Captulo 2 - Hipteses de trabalho e orientao metodolgica

    2.1. Hipteses de trabalho............................................................................................................55

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    2.1.1. Hipteses gerais......................................................................................................55

    2.1.2. Hipteses especficas.............................................................................................55

    2.2. Orientao metodolgica......................................................................................................56

    2.2.1. Literatura cientfica................................................................................................56

    2.2.2. O mtodo do caso alargado................................................................................56

    2.2.3. As tcnicas de recolha utilizadas.........................................................................57

    II PARTE Passado, presente e perspectivas Futuras: Democracia, lutas

    sociais, e o sindicalismo dos movimentos indgenas na bolivia

    Capitulo 3 - Estado, poder, terra e coca: o que querem os movimentos

    indgenas?

    3.1. A luta pela nacionalizao e preservao dos recursos naturais: uma questo

    fulcral dos povos indgenas...........................................................................................................59

    3.1.1. A terra como valor inalienvel para os povos indgenas..............................60

    3.1.2. A planta mitolgica: a folha de coca como valor cultural transcendental

    dos povos indgenas..........................................................................................................63

    3.2. Educao bilingue, para que te quero?...............................................................................66

    Capitulo 4 - Atores em jogo na construo de um novo Estado

    democrtico, multicultural e plurinacional na Bolvia: olhares presentes e

    perspectivas futuras sob a gide dos movimentos sociais e campesino-

    indgenas

    4.1. O socialismo do sculo XXI na Bolvia: O cenrio sociopoltico a crise do

    modelo neoliberal...........................................................................................................................69

    4.1.1. Dois casos de luta: a guerra da gua e do gs, os movimentos sociais

    e indgenas em seu repertrio de aes coletivas.....................................................69

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    4.1.2. A vitria eleitoral de Evo Morales: os MIBs e os movimentos sociais no

    poder de agora em diante?..............................................................................................75

    4.1.3. O cenrio socioeconmico boliviano................................................................78

    4.2. Correntes e tendncias dos movimentos indgenas bolivianos....................................79

    4.2.1. As relaes dos movimentos indgenas bolivianos (MIBs) com a Central

    Operaria Boliviana (COB)...............................................................................................82

    4.2.2. Para uma formulao de tipologias sobre os movimentos indgenas

    bolivianos..84

    4.3. O Estado plurinacional constitucional: a face do capitalismo andino-amaznico

    no perodo ps-neoliberal?...........................................................................................................87

    4.4. O movimento indgena na encruzilhada: entre o Estado e a comunidade

    indgena..............................................................................................................................................94

    Concluso......................................................................................................................................99

    Referncias bibliogrficas....................................................................................................105

    Anexos..........................................................................................................................................113

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    SIGLAS:

    ADN : Accion Democratica Nacionalista

    MIBs : Movimentos Indigenas Bolivianos

    CEPAL : Comisso Econmica Para o Desenvolvimento da Amrica Latina

    CDAEP: Comit de Defesa da gua e da Economia Popular

    CIDOB: Confederacin de los Pueblos Indgenas de Bolvia

    CIPOAP: Central Indgena de Povos Originrios Amaznicos de Pando

    CLACSO: Conselho Latino Americano de Cincias Sociais

    CNTCB: Confederao Nacional de Trabalhadores Campesinos de Bolvia

    CSCIB: Confederacin Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia

    COB: Central Obrera Boliviana

    CONAMAQ: Conselho Nacional de Ayllus y Markas do Qullasuyu

    COFECAY: Federacin de Pesqueros

    CONAIE: Confederacin de Nacionalidades Indgenas del Equador

    CPIB: Central de Povos Indgenas de Beni

    CICA: Consejo Indgena de Centro America

    CSUTCB : Confederao Sindical nica dos Trabalhadores Campesinos da Bolvia

    FMI: Fundo Monetrio Internacional

    Lei INRA: Ley del Servicio Nacional de Reforma Agraria

    LPP: Lei de Participao Popular

    MAS: Movimento ao Socialismo

    MIK: Movimento Indgena Boliviano

    MNR: Movimento Nacionalista Revolucionrio

    MRTK: Movimento Revolucionrio Tupaq Katari

    MSLA : Movimentos Sociais Latino-Americanos

    NMSs : Novos Movimentos Sociais

    OSAL: Observatrio da Amrica Latina

    PIR: Partido da Esquerda Revolucionaria de vertente estalinista

    PMC: Pacto militar-campons

    PNUD: Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PODEMOS: Poder Democrtico Social

    POR: Partido Obrero Revolucionrio

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    TCR: Terras Comunitrias de Origem

    Teoria da MR : Teoria da Mobilizaao de Recursos

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    Resumo

    A questo central desta pesquisa : a anlise sociolgica dos movimentos

    indgenas bolivianos (MIBs) no perodo do seu surgimento e ressurgimento aps a

    revoluo boliviana de 1952 e at hoje. Procuramos demonstrar atravs dos MIBs a

    aplicao de parte da teoria social dos movimentos sociais, visando descobrir as suas

    principais caractersticas, potencialidades e seus desdobramentos no presente, bem

    como, as suas possibilidades futuras no sentido de sua ao coletiva. Para tal, levamos

    em considerao que o objeto emprico a ser estudado encontra-se em um continente

    que tem uma complexidade impar no cenrio global devido as suas condies

    histricas, polticas, culturais e sociais conflituais - a Amrica Latina. Portanto,

    utilizamos alm do arcabouo terico que baseado no paradigma dos novos

    movimentos sociais (NMSs) europeu, e nas teorias latino-americanas, a observao

    direta e participante no nosso estudo de caso, tentando romper com uma anlise

    estritamente descritiva dos fatos. Assim, dentre as vrias concluses as quais chegamos

    com a aplicao das nossas hipteses de trabalho, destacamos as seguintes: a

    reorientao da ao coletiva dos MIBs que manifestada no plano discursivo, com um

    forte discurso tnico em detrimento de um discurso de classes sociais, a mudana

    qualitativa e constante da ao coletiva dos MIBs ao longo da sua histria procurando

    localizar-se em uma posio estratgica privilegiada, a luta dos MIBs pela redistribuio

    da riqueza, pelo direito a autogoverna-se com os pressupostos no direito

    consuetudinrio, que por fim, visam uma democracia mais inclusiva e participativa com

    respeito a plurinacionalidade e de cunho descolonial das trinta e seis naes

    originrias na Bolvia. Portanto, o auge da nossa anlise, d-se no surgimento das

    grandes ondas de manifestaes na Bolvia entre 2000 e 2005 a guerra da gua e a

    guerra do gs - onde os MIBs foram os protagonistas da ao coletiva quase

    insurrecionais na Bolvia neste incio do sculo XXI. Estas manifestaes, levaram Evo

    Morales a ser o primeiro presidente indgena da histria republicana da Bolivia. Por

    outro lado, ocorreu uma espcie de estabilizao da interveno poltica dos MIBs,

    principalmente aps a aprovao da Nova Constituio de Estado em janeiro de 2009.

    Palavras-chave: Movimentos indgenas bolivianos, ao coletiva, indgena, CSUTCB,

    Estado-nao.

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    Abstract

    The fulcral question in this research is the sociologic analysis of Indian social movements (MIBs) in the period of its appearances and reemergences, between the Bolivian revolution of 1952 and today. We aim at demonstrate through the MIBs, the application of a part of the social theory of social movements, discover its principal, aiming at discover its principals characteristics, potentialities and its splitting in the present, and also its future possibilites in the sense of collective action. The empirical object studied is in a continent which has a strong complexity in the global scene due to historical, political, cultural and social conflicting conditions Latin America. For this we used, besides the theoretical framework based in the European paradigm of the New Social Movements (NMSs), and latin-american theories, a direct and participative observation in the case study. Among the many conclusions we took through the application of our work hypothesis, we discerne these one : the reorientation of collective action of the MIBs manifested in the speech/discourse plan, with a strong ethnic discourse at the expense of a social classes discoure, the qualitative and constant modification of the collective action of the MIBs along of its history, aiming at localized itself in a strategic position, the fight of the MIBs for the redistribution of wealth, for the right to rule themselves with presupposition in the consuetdinario right, with the purpose to create a more inclusive and participative democracy, respecting plurinationality, with a anti-colonial dimension in the 36 native nations of Bolivia. Thus, the top of our analysis is in the ressurgence of demonstrations in Bolivia, between 2000 and 2005 war and gas War where the MIBs has been the main protagonists of collective action almost insurectionary, in the beginning of the XXIth Century. These demonstrations get Evo Morales to the Presidency of the Bolivian Republic. In the other side, a stabilization of political intervention of the MIBs occured, principally after the approval of the New Constitution (2009).

    Key-words : Indian bolivian movements, collective action, indian, CSUTCB, State-nation.

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    Rsum

    La question centrale de cette recherche repose sur lanalyse sociologique des

    mouvements indiens boliviens (MIBs) au moment apparition et rapparition, du

    lendemain de la rvolution bolivienne de 1952, jusqu aujourdhui. Nous tentons de

    dmontrer travers les MIBs lapplication dune partie de la thorie sociale des

    mouvements sociaux, en cherchant dcouvrir ses principales caractristiques,

    potentiels et ses ddoublements prsents, tout comme les possibilits futures dans le

    sens de son action collective. Pour ce faire, nous avons considr que lobjet empirique

    tudi sencadre dans un continent qui a une complxit sans pareil sur la scne

    globale, lie aux conditions historiques, politiques, culturelles et sociales conflictuelles

    lAmrique latine. Ainsi, nous avons utilis, en plus du fondement thorique bas sur

    le paradigme des Nouveaux Mouvements Sociaux (NMSs) europen, les thories

    latino-amricaines, lobservation de terrain et participative lors de ltude de cas, afin

    de rompre avec lanalyse strictement descriptive des faits. Ainsi, parmi les diverses

    conclusions auxquelles nous sommes arrivs avec lapplication de nos hypothses de

    travail, nous distinguons les suivantes : la rorientation de laction collective des MIBs,

    manifeste sur le plan du discours, avec un fort discours ethnique au dtriment dun

    discours de classes sociales, le changement qualitatif et constant de laction collective

    des MIBs au long de leur histoire, en cherchant se localiser dans une position

    stratgique privilgie, la lutte des MIBs pour la redistribution de la richesse, pour le

    droit s autogouverner avec des prsuppositions dans le droit consuetadinrio,

    qui, enfin, vise une dmocratie plus inclusive et participative, dans le respect de la

    plurinationalit et de dimension anticoloniale des 36 nations originaires de Bolivie.

    Ainsi, le point culminant de notre analyse seffectue dans lapparition des grandes

    vagues de manifestations en Bolivie, entre 2000 et 2005 la Guerre de leau et du gaz

    o les MIBs ont t les acteurs principaux de laction collective quasi

    insurrectionnelle du dbut du XXI me sicle. Si dun ct ces manifestations ont

    amen Evo Morales tre le premier Prsident indien de lhistoire rpublicaine de

    Bolivie, dun autre ct sest mise en oeuvre la stabilisation de lintervention politique

    des MIBs.

    Mots-cls : Mouvements indiens boliviens, action collective, indien, CSUTCB, Etat-

    nation.

  • 16

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    Introduo

    A Amrica Latina no dealbar do sculo XXI apresenta um cenrio poltico,

    social e cultural conflitual. Desde a revoluo mexicana e cubana no sculo XX,

    passando por toda Amrica central e do sul com a revoluo boliviana de 1952, os

    levantamentos sociais estiveram presentes nas sociedades latino-americanas. As

    manifestaes destas rebelies, davam-se atravs do surgimento do sindicalismo

    clssico no primeiro momento, alavancadas pelo movimento operrio. Depois pelo

    guerillherismo guevarista, e por ltimo, pelos movimentos sociais que a partir de

    meados do sculo passado surgem no cenrio de guerra-fria, mas so pacificados por

    regimes militares em todo continente. Assim, a continuidade dos conflitos sociais no

    sculo XXI reflexo direto a este passado histrico mal resolvido, ou seja, os velhos

    conflitos sociais vm-se misturando a novos conflitos que resultaram numa situao

    muito peculiar, como aconteceu na Bolvia, caso que estudaremos nesta tese.

    Em diversos pases do sub-continente, o conflito social se faz presente em

    seus contornos totalizadores que giram em torno de mais e melhores incluses sociais

    - aprofundamento da Democracia e da redistribuio da riqueza em oposio crise

    do neoliberalismo. A Bolvia um dos pases do subcontinente, onde foram

    impulsionados os grandes conflitos quase insurreccionais no incio deste sculo.

    Porm, as bases tradicionais do Estado mantiveram-se com a Democracia

    representativa no plano poltico, e a propriedade privada no plano econmico, mas,

    veremos que estas bases no so mais as mesmas aps as rebelies. Em larga medida,

    estas revoltas esto ligadas aos impactos da globalizao neoliberal em sua face

    modernizadora que promoveu o aumento das excluses sociais (poltica, econmica,

    cultural, cognitiva). No caso boliviano, existe um incremento substancialmente

    qualitativo a este processo - a questo tnica e da (re) emergncia dos movimentos

    indgenas bolivianos (MIBs) como protagonistas da sua Histria assistimos

    crescente ascenso dos MIBs a partir da ltima dcada do sculo XX. Esta dinmica

    imprimida pelos indgenas, tem chamado a ateno no s de intelectuais latino-

    americanos, mas tambm do resto do mundo por sua particularidade e pelo seu

    carcter sui generis.

    Contudo, a histria dos indgenas bolivianos nos remete ao seu passado

    colonial/republicano: a homogeneizao e incorporao dos indgenas na sociedade de

    classes no representam somente a destruio do modo de produo comunal, mas

  • 18

    igualmente a esteriotipao e submisso da cultural milenar indgena. Portanto, a

    trajetria dos MIBs tem razes no seu passado de servido e excluso tnica, que

    resultado da acumulao das opresses e das frustraes sofridas durante todos os

    sculos passados.

    Neste incio de sculo XXI, a trajetria protagonizada pelos MIBs para

    conseguir uma real incluso poltica, econmica, social e cultural, significa o

    redirecionamento do Estado-nao e da sociedade civil boliviana a caminho do

    reflorescimento da noo de indgena. Por um lado, os MIBs representam um conjunto

    de acontecimentos histricos que urge compreender analisando a sua complexidade

    interna e externa; por outro lado, os MIBs protagonizaram a criao de formas

    inovadoras de interveno na realidade social da Bolvia.

    Assim, propomos nesta tese discutir os MIBs procurando entender o seu papel

    na configurao do Estado-nao, na criao de identidades, as suas caractersticas e as

    suas perspectivas para o futuro, em consonncia com a teoria sociolgica na busca de

    um enquadramento adequado sua composio e organizao.

    Neste sentido, sabemos que a discusso acerca da sociologia dos movimentos

    sociais uma das mais complexas da sociologia geral. Hoje em dia, apesar de se ter

    mais de um sculo de produo cientfica sobre a temtica, ainda estamos

    confrontados a uma grande indefinio sobre os movimentos sociais, como afirma

    Sidney Tarrow (Melucci, 1996: 12). A prpria discusso terica e epistemolgica sobre

    os MIBs talvez carea ainda de uma melhor sistematizao, de modo que se possa

    compreender qual a magnitude de sua fora, da sua identidade e da suas perspectivas.

    Tal fato, deve-se principalmente anlise e profunda observao descritiva dos

    agentes sociais em luta, ficando reduzida ao momento histrico em que

    desencadeada a ao coletiva, ou seja, restringindo a anlise sociolgica aos processos

    polticos em curso, e no se verificando uma teorizao decorrente de um estudo

    aprofundado da natureza identitria e das caractersticas distintivas desses novos

    movimentos sociais (NMSs).

    Assim, em traos largos, abordaremos no primeiro captulo, as principais

    perspectivas tericas da sociologia dos movimentos sociais, desde o paradigma clssico

    europeu, o paradigma clssico norte-americano at o quasi paradigma latino-

    americano. Bem como se discutir a noo de indgena e do Estado nao na Bolvia.

    No segundo captulo, mostraremos o mtodo e as tcnicas de pesquisa empregadas

  • 19

    nesse estudo. No terceiro captulo, aprofundar-se- o debate sobre questes gerais

    relativas ao porqu, causa da existncia dos MIBs e aos seus respectivos objetivos

    como movimento social. E por fim, no quarto captulo, debatemos mais as relaes da

    ao coletiva em momentos especficos de ascenso e de estabilizao na relao

    conflitual entre os MIBs e o Estado boliviano no sculo XXI.

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    I PARTE Enquadramento Terico e Metodologia Captulo 1: Os movimentos sociais, as relaes entre Estado e sociedade civil e a globalizao como epicentro da modernidade latino americana.

    1. 1. Perspectivas Tericas sobre os Movimentos Sociais 1.1.1. Teorias e conceitos paradigmticos da Sociologia dos movimentos sociais: A abordagem clssica americana e europeia.

    Os clssicos da sociologia Karl Marx, mile Durkheim e Max Weber no

    apresentaram em suas obras o tema dos movimentos sociais de forma directa (Gohn,

    2002). No entanto, estes autores deram incio no flanco de uma Sociologia mais

    orgnica, discusso que iria constituir a sociologia dos movimentos sociais. Estas

    contribuies so visualizadas em suas observaes sobre os indivduos e os grupos

    sociais em sociedade, por exemplo, as classes sociais, os antagonismos, o conflito

    social, a transformao social so temticas essenciais da sociologia poltica, e

    analisadas atravs das lutas sociais analisadas por Marx.

    Assim, estes conceitos servem como base para um indicativo do ponto de vista

    objectivo e subjectivo para a organizao de um determinado movimento social, neste

    caso o movimento operrio clssico atravs da praxis social (Marx, 2003). Para Marx

    impossvel separar a teoria da prtica revolucionria de classes sociais: a teoria e a

    prtica so indissociveis sendo a praxis social o produto da interveno coletiva e da

    ruptura da realidade social. Como sabido, a proposta de Marx incide sobretudo na

    anlise do conflito entre classes sociais dirigentes e subalternas. Ou seja, dentro da

    matriz terica marxista as classes sociais so imprescindveis para se entender todas as

    aes polticas e a tomada do poder por uma classe social. Ora, no mbito da presente

    investigao caberia perguntar-se, tendo em conta o quadro de referncia marxista, o

    seguinte: at que ponto os indgenas bolivianos organizados atravs dos MIBs se

    reivindicam como uma classe social? No sentido que Marx conceituou como sendo a

    conscincia de classe para si e no somente classe em si. Segundo, existir na

    Bolvia um conflito mais tnico que econmico de acordo com o repertrio discursivo

    reivindicativo dos levantes sociais no incio de sculo XXI? Ou os dois processos

    conflituais (tnico e econmico) so pares entre si, ou seja, esto em consonncia sem

    hierarquizao de importncia e de valor?

    Portanto, necessrio fazer uma anlise social, poltica e econmica da Bolvia,

    para focarmos os MIBs em uma perspectiva marxista, tendo em conta que os seguintes

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    aspectos: a questo da identidade indgena, dos atores em jogo, os papis das

    lideranas indgenas, o Estado boliviano, a crise do neoliberalismo nos finais do sculo

    XX e incios do XXI, a postura ideolgica de alguns partidos polticos bolivianos, para

    assim, entendermos como a viabilidade da perspectiva marxista pode ser verificada

    atravs dos MIBs como potenciais agentes protagonistas da revoluo social - como

    meios mais eficientes para alcanar a distribuio radical dos bens (Alexander, 1998:5)

    bem como compreender, qual a posio do marxismo1 no cenrio conflitual

    boliviano.

    Por outro lado, a corrente que foi consagrada como paradigma dominante ao lado

    da matriz marxista at a dcada de 602 foi a Escola de Chicago e os interacionistas

    simblicos. Dentro desta perspectiva americana de estudo dos movimentos sociais,

    temos a abordagem de Herbert Blumer (1978) que tem forte inspirao e influncia de

    Robert Park, autor que cunhou o termo multido para caracterizar aes que, apesar

    de serem coletivas, so dispersas e individuais. Sua obra fortemente marcada pela

    psicologia individualista dos membros em um determinado colectivo (Park apud

    Estanque, 1999: 85). Blumer foi talvez o mais influente autor da Escola de Chicago,

    criador do conceito de interacionismo simblico em 1937 para analisar os

    comportamentos colectivos - ele descrevia os significados simblicos, manifestados

    pelos movimentos sociais - como o conjunto de relaes sociais de interao entre os

    membros do grupo que eram movidos principalmente pelos smbolos com uma nfase

    ao microsociolgico, enquanto os movimentos sociais eram vistos por Blumer como

    pequenas sociedades (Alexander, 1998: 4). No perodo do ps-guerra, a

    comunicao de massas atravs da propaganda, criava alguns smbolos atravs da

    opinio pblica, que eram absorvidos por alguns indivduos e influenciava a mudana do

    pensamento com relao ao coletivo. Os indivduos passavam a ter uma perspectiva

    egosta da ao coletiva. Alm disso, a linguagem um dos aspectos principais de

    1 Segundo Gohn (2002) Em geral, dentro do pensamento sociolgico latino-americano, o trabalho de Marx influenciou duas vertentes de pensamento: uma a que ficou conhecida como o marxismo ortodoxo, hegemnico at dcada de 60, que priorizava em suas anlises os fatores econmicos e estruturais da sociedade capitalista para a criao das demandas polticas dos movimentos sociais tendo frente Lenin e Trotsky. A segunda perspectiva, seria o marxismo baseado nas obras filosficas e polticas de Marx, que d nfase filosofia e desvincula a teoria de Marx ao movimento operrio, ligando-o somente ao trabalho acadmico, os principais autores desta perspectiva so Rosa Luxemburgo, Gramsci e Lukcs. 2 Aqui afirmamos que a matriz terica americana liderada por Blumer foi dominante no s nos Estados Unidos, mas tambm em contexto latino-americano at a dcada de 60. Exclusse aqui a Europa da nossa observao.

  • 23

    comunicao simblica dos grupos. Visto assim, as manifestaes pblicas so

    construdas por essas narrativas fomentadas pela comunicao social e absorvidas

    pelos movimentos sociais (Blumer, 1978).

    Na sequncia, temos o contributo do paradigma clssico da sociedade de

    massas para a constituio da sociologia dos movimentos sociais, com Eric Fromm,

    Hoffer e Kornhauser como principais representantes desta Escola (Gohn, 2002:35;

    Machado, 2007). As concepes deste paradigma tm forte inspirao na anlise de

    Gustave Le Bon (Le Bon, 1995) que no incio do sc. XX, constatava a perda da

    racionalidade dos homens quando organizados em grupos e uma tendncia ao mal-

    estar para as sociedades da poca, principalmente na Frana.

    O alto grau de generalizao invocado por Kornhauser em sua obra The politics

    Mass Society dificulta o uso de sua concepo terica para o enquadramento necessrio

    dos MIBs (Chazel, 1999: 309-310). Assim, a transposio do pensamento de Le Bon

    comportamento irracional das massas - adotado pelo paradigma da sociedade de massas

    para o estudo dos movimentos sociais (comportamento coletivo das massas) foi

    aplicado em um contexto de totalitarismo na Europa (a teoria de Le Bon inspirou

    totalitrios como Staline e Hitler). Assim, os movimentos sociais estudados por esta

    escola no-democrtica (Gohn, 2002: 36) eram produtos direto dos regimes totalitrios

    europeus. Contemporaneamente, alguns socilogos como Alain Touraine atribuem a

    tais movimentos sociais organizados na sociedade civil, um cunho estritamente

    ideolgico-poltico - baseados na propaganda fascista - a nomenclatura de anti-

    movimentos sociais (Touraine, 1998).

    Em meados do sculo XX no contexto de mundo bipolar (Guerra-fria), os

    autores S. Lipset e R. Heberle trouxeram de volta para a anlise dos movimentos

    sociais algumas clivagens tericas da sociologia poltica clssica. Como por exemplo, a

    luta de classes inspirada em Marx, deixa de ser uma luta revolucionria voltada para a

    destruio do Estado burgus, e passa a ser travada no mbito da institucionalidade.

    Lipset classificou este processo como o senso de comunidade, que era decidido dentro

    da concorrncia eleitoral da vida poltica, sendo manifestada atravs do voto que

    media a vontade comum (Gohn, 2002: 38). Lipset focou parte de sua anlise sobre a

    Amrica latina, ele observava que os movimentos sociais e as mudanas estruturais das

    sociedades latino-americanas eram particulares e diferentes com relao a Europa

    Ocidental e os Estados Unidos. Assim, Heberle apontava para o crescimento e

  • 24

    fortalecimento dos movimentos sociais (organizados, e por vezes dispersos) neste

    contexto bipolar visualizava que uma manifestao de rua iniciada a princpios sem

    pretenses revolucionrias, poderia transformar-se em uma revoluo poltica como

    estratgia (Chavel, 1999; Tarrow, 1994). Curiosamente, as anlises desta escola no

    espao e no tempo no caso de Lipset, e no tempo no caso de Heberle, coincidem com

    o ano de 1952 em que se iniciou um dos maiores processos revolucionrios na Bolvia,

    aps a revoluo russa de 1917.

    Em suma, para Heberle o conceito de senso de comunidade fundamental para

    o estabelecimento de uma ordem social. O que determina os tipos de aes coletivas,

    as relaes polticas, jurdicas criadas na sociedade civil e no Estado no podem ser

    mantidas sem haver um mnimo de senso de comunidade entre seus membros (Heberle,

    1951; Lyman, 1995:57 Apud Gohn, 2002: 38).

    Por outro lado, Talcott Parsons atravs da sua teoria do sistema social onde a

    anlise da estrutura, da moral, das leis e da integrao (desintegrao) dos indivduos

    na sociedade (Cordova, 2007) influncia na emergncia de mais ou de menos

    movimentos sociais em um determinado pas, trazendo as suas concepes para o

    campo da ao social protagonizadas pelos movimentos sociais. Sua nfase a

    estrutura social como responsvel pelas contradies da sociedade, como o conjunto

    dos atores polticos aparece em consoante ao surgimento do conflito social (visto de

    modo individual). Ou seja, a estrutura social em movimento (para Parsons a mudana

    sistmica era quase esttica, principalmente nos pases centrais) tem origem na prpria

    estrutura social - As perturbaes, incertezas, frustraes e a ausncia de boa vida so

    fatores importantes segundo Parsons para a compreenso dos movimentos sociais. Por

    outro lado, Parsons no dava importncia s origens histricas e polticas dos

    movimentos sociais, e muito menos, ao carter das suas aes coletivas (os

    movimentos sociais eram vistos como naturais e limitados pela estrutura social). Ele via

    os movimentos sociais de forma totalizadora como - as necessidades individuais

    (comportamentos individuais) - como fator central para formao dos movimentos

    sociais como subproduto da anomia social passageira da estrutura global de uma

    sociedade (Gohn, 2002).

    Em oposio a Parsons, defendemos que a relao do Estado-nao com a

    sociedade civil - os atores sociais em jogo (classes sociais, identidade indgena, partidos

    polticos, movimentos sindicais e sociais) clarificada atravs das suas posies

  • 25

    antagnicas de projeto societal - a impacificao social fruto dos interesses opostos em

    suas divergncias de opinies, de organizao social jurdica, poltica e as aspiraes

    para a materializao dos anseios da busca da boa vida o que dita o ordenamento

    social e estatal.

    1.1.2 A abordagem contempornea sobre a teoria da aco colectiva e dos movimentos sociais

    O surgimento de uma das perspectivas contemporneas sobre a teoria da ao

    coletiva foi o paradigma dos novos movimentos sociais (NMSs) na Europa. A anlise

    das manifestaes e reivindicaes do movimento estudantil na Frana com o

    despertar do Maio de 1968, e os movimentos sociais de direitos civis e polticos nos

    Estados Unidos, representou uma mudana reflexiva destes NMSs do ponto de vista

    sociolgico (Gohn, 2002). O aumento das reivindicaes contra o Estado e o mercado,

    com manifestaes explosivas oriundas - das classes mdias na Europa, e das

    minorias tnicas nos Estados Unidos aclamando por mais direitos civis e polticos -

    levaram diversos autores a fundarem novas formas de abordagens interpretativas dos

    movimentos sociais. Assim como o paradigma dos NMSs, a teoria da mobilizao de

    recursos (MR) de Olson, Zald e McCarthy diferenciou-se de forma clara das teorias

    sociolgicas clssicas anteriores, que davam grande nfase aos aspectos psicosociais

    ligando-os s condies de existncia material dos indivduos e s suas reaes em

    forma de manifestao ou contestao social. Ou seja, a psicologia social que se

    baseava nos comportamentos coletivos condicionamento individual de certa forma

    foi abandonada tanto pelo paradigma dos NMSs, quanto pelo paradigma da MR (Gohn,

    2002;49).

    Olson (1999) trabalha com a concepo segundo a qual no seio dos

    movimentos sociais, que possuem estruturas organizativas formais e de grandes

    dimenses (por exemplo, grandes associaes norte-americanas), aparecem os

    chamados grupos de interesses. Em sua obra A lgica da ao coletiva Olson utiliza uma

    lgica universalizante da teoria da ao coletiva com um destaque para a ao do

    indivduo coletivo em busca da sua construo identitria. Se por um lado, ele afirma a

    existncia de um pice da participao poltica dos membros de um movimento social -

    aes de interveno poltica - por outro lado, vincula a ao individual a um grau de

    longevidade da ao coletiva. Ou seja, a participao coletiva dos membros passa a dar

    lugar a um clculo utilitarista e individualista dos membros de um grupo, que passam a

  • 26

    tomar determinadas decises quanto a sua participao em aes polticas e sindicais

    (Tejerina, 2005: 78;79). Hipoteticamente, se Olson fosse analisar a Confederao

    Sindical nica dos Trabalhadores Campesinos da Bolvia (CSUTCB)3, iria abordar e

    selecionar os grupos de interesses para explicar o fenmeno da ao coletiva desta

    central campesina. Segundo ele, o mundo funciona de acordo com os interesses

    (concorrncia, meritocracia e hierarquizao dos espaos sociais) portanto,

    acreditamos que em sua anlise de cunho bastante ideolgico, o autor vislumbra uma

    espcie de lei da sobrevivncia que transportada para dentro dos movimentos

    sociais - incluindo os sindicatos, onde Olson v na hierarquia e na disciplina s quais os

    membros so submetidos atravs das lideranas, como um conjunto de aes

    coercitivas que visam em ltima instncia o bem comum do organismo (Olson,

    1999). Na sua viso marcadamente utilitarista, ele via uma liberdade de atuao dos

    indivduos: [] Assim como pode se supor que os indivduos que pertencem a uma

    organizao ou grupo tm um interesse comum, eles tambm tm interesses

    puramente individuais, diferentes dos interesses dos outros membros do mesmo

    grupo ou organizao [] (Olson, 1999:20) .

    Portanto, os seguidores da corrente terica inaugurada por Olson, Zald e

    McCarthy aplicaram o mesmo modelo terico de Olson para analisar as dinmicas dos

    movimentos sociais os grupos de interesses inerentes ao coletiva. Os

    movimentos sociais de grande estrutura eram organizados como empresas e os grupos

    de interesses encerravam-se na competio com outros grupos internos do

    movimento, e viam a chance de agarriar benefcios e status atravs dos ganhos que

    poderiam obter na participao ou no da ao coletiva. Os lderes eram gerentes e

    administradores dos sindicatos e das associaes econmicas (Aguilar, 2001).

    Entretanto, concordamos com a posio de Chazel (1999) em sua anlise sobre

    a teoria Olsiana, quando este reitera a crtica de Olson s perspectivas clssicas e

    concepo do marxismo vulgar quanto mobilizao quase natural das classes

    sociais dentro de um movimento social que de acordo com esse tipo de marxismo,

    os indivduos se engajam na luta social por terem interesses comuns pelo fato de

    pertencerem mesma classe social.

    3 A CSUTCB a principal organizao indgena da Bolvia e que ser central na nossa observao sobre os MIBs.

  • 27

    Neste sentido, Charles Tilly includo por muitos autores dentro da vertente

    terica do MR, e para outros autores como membro efetivo do paradigma dos NMSs

    (Gohn, 2002), traz em sua obra From Mobilization to Revolution de 1978 um debate

    importante sobre a teoria marxista, dando nfase histrica ao coletiva e ao

    aprofundamento do papel da ideologia e das crenas sociais nas construes decisivas

    de organizao do movimento social na preparao das aes coletivas. Assim, o

    trabalho histrico sobre as aes coletivas consiste em descobrir quais conjuntos de

    pessoas, recursos, fins e as formas de compromisso esto envolvidos em diferentes

    lugares e tempos (Gohn, 2002: 66). Tilly (2004) no descarta a questo da

    racionalidade na ao coletiva, ligando as responsabilidades na montagem desta

    racionalidade s estratgias adotadas pelos atores da ao coletiva. Para Chavel (1999),

    Tilly ainda segue a perspectiva da MR, sendo sua ltima vertente nas cincias sociais,

    manifestada pela teoria do conflito poltico onde os atores em jogo so visualizados

    dentro da politia (Chazel, 1999).

    Neste sentido, o crescimento qualitativo da perspectiva terica de Tilly, teve o

    seu apogeu na formao da chamada (TMT) Tilly, McAdam e Tarrow (Flacks, 2005),

    onde estes autores organizaram uma coletnea indita de trabalhos acadmicos sobre

    movimentos sociais com o nome geral de contentions politics que pode ser verificada na

    obra deles: The Dynamics of Contention (2001). A TMT centra o peso da sociologia dos

    movimentos sociais na relao entre os constentadores e os governantes ao longo dos

    conflitos localizados em um perodo histrico ciclos de aes coletivas4. O dilogo dos

    movimentos sociais com os governos seria chamado de repertrio5 das aes coletivas ao

    longo da histria de um movimento de contestao repertrio de confrontao -

    conceitos utilizados por Tilly para caracterizar os interesses partilhados de um grupo

    (Tilly, 2004).

    Se por um lado, a tese hegemnica do paradigma americano da racionalidade e

    do utilitarismo de Olson ainda estava em pleno vapor e tinha grande espao no meio

    acadmico, por outro lado, a teoria marxista ainda gozava de grande prestgio na

    4 Na perspectiva de Tarrow (1994) ciclos de aes coletivas surgem em momentos histricos especficos, quando a ao colectiva no plano poltico tem um carcter de mudana estrutural. As aes coletivas que apresentam inovaes na interveno poltica geram uma fuso entre diversos sectores da sociedade civil. Uma combinao de poderes, que antes estava dispersa na sociedade grupos que estavam organizados em sindicatos e movimentos sociais e os que no estavam organizados em associao. 5 Tarrow (1994) afirma que o repertrio a fuso entre os aspectos estruturais e culturais dos movimentos sociais. A preparao do movimento social para a confrontao contra outros adversrios.

  • 28

    dcada de 60. Alm disso, a ruptura do NMSs foi o no-alinhamento, primeiro

    perspectiva racionalista do individualismo metodolgico de Olson e suas vertentes, e

    segundo, ao ortodoxismo de classes sociais que marcava as contribuies do

    marxismo a centralidade da classe operria utilizada de forma redutora. Ou seja, ao

    invs da homogeneidade na ao coletiva, defendiam que havia uma heterogeneidade.

    Assim, as classes mdias passaram a ter lugar relevante para a explicao da ao

    coletiva, tanto do ponto de vista econmico, como poltico e cultural em suas

    intervenes coletivas (Eder, 2001).

    Portanto, a perda de flego do marximo ortodoxo, humanista e da MR

    representou a ascenso do paradigma dos NMSs no mbito acadmico, principalmente

    no ps-queda do Muro de Berlim. Porm, a categoria de classes sociais continua em

    algumas teorias do paradigma dos NMSs a ter uma importncia relativa de acordo com

    o movimento social analisado. O que consensual neste paradigma que a vertente

    cultural dos movimentos sociais passa a ter mais importncia que nos paradigmas

    anteriores. Apostam no trabalho conjunto da questo ideolgica com a cultural do

    grupo social, mas a ideologia deixa de ser somente a falsa representao da realidade

    social e passa a ser incorporada como sinnimo de identidade na formao dos

    movimentos sociais (Gohn, 2002).

    Em suma, os NMSs representam esforos coletivos com objetivos de atingir um

    ou vrios pontos das estruturas sociais (Estado e sociedade civil) mudana nas

    normas, nas leis e na incluso poltica, econmica, cultural e social envolvidos em

    novos conflitos polticos e culturais nas sociedades civis ocidentais. Buscam obter

    vitrias sobre novas demandas que surgem do social e que so protagonistas das suas

    aces colectivas, que se do de forma consciente. Fundamentalmente, os NMSs so

    abordados por mtodos distintos da sociologia dos movimentos sociais

    contemporneos dentro deste paradigma desde a reviso da teoria parsiana da ao

    social, passando pela Escola de Frankfurt at o neomarxismo vo florescer dentro

    deste grande paradigma.

    Neste sentido, o debate terico acerca dos movimentos sociais latino-

    americanos (MSLA) teve na sociologia europeia, um importante lugar nas abordagens

    propostas por Alain Touraine sobre a modernidade, os sujeitos sociais e o Estado no

  • 29

    sub-continente (Scherer-Warren, 2005). A sua teoria do acionismo6 ganhou grande

    espao nas universidades e nos grupos de pesquisa sobre os estudos dos movimentos

    sociais. Sob a gide do sujeito histrico como protagonista da ao coletiva, Touraine faz

    a seguinte classificao para a sua interveno na realidade social um movimento

    social ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural, pois visa sempre a

    realizao de valores culturais, ao mesmo tempo que a vitria sobre um adversrio

    social (Touraine, 1997a: 254). A sustentao da teoria do acionismo de Touraine d-

    se pela seguinte caracterizao:

    O movimento social apresenta-se na abordagem acionista como a ao de um grupo, um ator coletivo. Para tal necessrio que ele se defina por sua situao nas relaes de produo, isto , que situe suas reivindicaes e sua oposio a um grupo adversrio no interior dos problemas da sociedade industrial (Gohn, 2002: 143). A composio para a consolidao e identificao dos movimentos sociais para

    Touraine, tm que levar em considerao trs aspectos da realidade: classe, nao e

    modernizao7. Ele acredita que o conflito central das sociedades ps-industriais o que

    conduz os sujeitos histricos na luta contra a tecnocracia e o mercado, igualando a

    esfera do conflito econmico ao conflito cultural na modernidade (Touraine, 1998).

    Assim, o movimento social muito mais que um grupo de interesses ou instrumento

    de presso poltica; ele pe em causa o modo de utilizao social de recursos e de

    modelos culturais (Touraine, 1998: 128).

    Os chamados conflitos culturais na atual modernidade ocidental como afirma

    Touraine, esto inseridos no novo marco terico das sociedades globais e dos

    movimentos sociais que visam uma incluso identitria (Touraine, 2006). A difuso das

    idias e da ao do sujeito histrico nos pases centrais e perifricos so distintas. Por

    isso mesmo, Touraine busca uma teoria especfica para o continente latino. Por

    exemplo, os movimentos sociais oriundos dos pases centrais hoje erguem bandeiras

    ligadas liberdade e igualdade de direitos, ou seja, so muito mais morais que

    propriamente econmicos ou polticos (Touraine, 1998). Assim, a anlise da

    6 Por Touraine (1989) a ao coletiva um campo histrico dividido em trs variveis: o conhecimento, o modelo cultural e acumulatvo. O conflito social gerado pela dominao do campo histrico da sociedade, os sistemas polticos hierarquizados, e na confrontao de oposio dos poderes observam-se os movimentos sociais em trs nveis analticos: a historicidade, as instituies e as organizaes. 7 Para Chazel (1999) Touraine fez um enquadramento terico sobre os movimentos sociais rgidos com essa trplice coloo: 1-ao conflitual, 2 conduzida por um ator de classe, 3 que se ope a seu adversrio de classe com vistas ao controle do sistema de ao histrico (Chazel, 1999:285).

  • 30

    Democracia, da modernizao, da industrializao e da etnicidade so necessrias

    dentro da perspectiva de Touraine para se analisar os MIBs.

    Touraine (1977b) utiliza em consonncia com sua teoria, a teoria da

    modernizao dualizao produtiva que marca os pases perifricos e a teoria da

    dependncia para observar como os movimentos sociais surgem no contexto latino-

    americano. Assim, ele observou uma certa similaridade da sua anlise sobre os

    movimentos sociais latino-americanos, e os NMSs europeu fragmentao da

    conscincia de classe, a substituio do movimento operrio clssico (da centralidade

    das classes sociais) para a hegemonia dos NMSs (diversificados, no-lineares,

    reivindicaes especficas, histricas e reformistas) - baseado na sua teoria tripartida:

    classe, nao e modernizao.

    Assim, a proposta de Touraine a construo de uma teoria multidimensional

    para ao coletiva na Amrica latina: Todo movimento social , ao mesmo tempo,

    movimento de classe, movimento anticapitalista, oposto dominao estrangeira, e

    movimento voltado para a integrao e modernizao nacional. (Touraine, 1977b).

    Ainda segundo o autor falta aos movimentos unidade nas aes; eles so frgeis,

    heterogneos, dilacerados internamente e tendem fragmentao (Gohn, 2002, p.

    144) em contexto latino-americano.

    Neste sentido, Alberto Melucci deu destaque questo de identidade coletiva

    (Melucci, 1996: 68-71). A construo analtica que utiliza para observar um NMSs

    dotada de uma complexidade sociolgica que visa a busca da essncia da ao coletiva

    em seu processo de produo retrica (semntica, falada e escrita) sendo composta

    por vrios graus do sujeito coletivo: poltico, econmico e cultural. Para Melucci, nem

    todo o ato de protesto manifestaes sociais e conflitos na sociedade civil

    envolvendo um agrupamento de pessoas pode ser uma ao dos movimentos sociais:

    o desdobramento das aes coletivas multifacetado em um processo criado pelas

    relaes dos atores onde criada a identidade coletiva.

    Assim, as conexes de redes so as maiores demonstraes do grau de coeso

    e de identidade coletiva emanadas dos NMSs, criando a solidariedade coletiva na retrica

    discursiva. Os NMSs tm uma forte tendncia a ser menos hierarquizados e mais

    horizontais, o que Melucci chama de redes submessas (Melucci, 1996). Apesar disso, a

    produo dos objectivos, das tticas e estratgias da ao coletiva, bem como a

    fomentao da participao dos membros do grupo motivada pelos lderes que

  • 31

    possuem um papel central para a criao do esprito de mobilizao (Melucci, 1996).

    Repara-se que a identidade coletiva para Melucci no dada pela identidade de classe

    social ou pela prpria adeso de indivduos aos movimentos sociais, mas sim, criada

    pelo prprio conjunto de interaes, negociaes, manuteno, adaptaes, decises e

    conflitos entre os atores pertencentes a um movimento social (Melucci, 1996:04).

    Em definitivo, os movimentos sociais contemporneos so redes de solidariedade

    (Melucci, 1996) com grande enfoque nas questes ligadas a ordens afetivas, subjetivas e

    culturais. Os NMSs so em suma os profetas do presente e formadores de novos lderes

    (Melucci, 2001). Portanto, acreditamos que a conceituao proposta por Boaventura

    de Sousa Santos substantiva sobre os NMSs: a novidade mais grande dos NMSs

    reside em que constituem tanto uma crtica regulao social capitalista, como uma

    crtica emancipao social socialista tal como foi definida pelo marxismo (Santos,

    2001b).

    1.1.3. A construo do quasi paradigma latino-americano

    Neste sentido, compreendemos que para analisar a aco dos movimentos

    sociais e populares latino-americanos, os paradigmas no geral at agora apresentados

    mostram-se insuficientes para a compreenso dessa realidade continental. Ou seja,

    com uma aplicabilidade limitada para se entender os movimentos sociais dos pases do

    sul sociolgico, no caso especfico da Bolvia.

    Neste sentido, apesar do nmero de publicaes sobre movimentos sociais na

    Amrica Latina ser considerado grande, principalmente a partir da dcada de 70

    (Gohn, 2002: 211)8as contribuies que se destacaram foram as teorias da

    modernizao, da dependncia por Cardoso e Falleto (1979) e da marginalidade por

    Kowarick (1985). Estas teorias ganharam uma relativa repercusso naquele momento e

    ao longo das dcadas de 80 e 90. Partindo de seus pressupostos, a Comisso

    Econmica para o Desenvolvimento da Amrica Latina (CEPAL)9 continuou

    8 Gohn (2002) faz uma reviso bibliogrfica de inmeros trabalhos sobre movimentos sociais a partir da dcada de 70, comeando pela teoria da modernizao, da marginalidade e dependncia na Amrica Latina. 9 Ainda hoje a CEPAL encontra-se em funcionamento, sendo uma das sesses da ONU que analisa questes ligadas ao desenvolvimento econmico, social e poltico da regio. Seu trabalho basicamente voltado para sistematizao de dados demogrficos, socioeconmicos de medidores da realidade quantitativa do continente. Ainda que alguns socilogos faam produes sobre os movimentos sociais latino-americanos.

  • 32

    produzindo peridicos e artigos com relao peculiaridade e ao desenvolvimento

    cultural, poltico e econmico do subcontinente.

    Neste sentido, uma das justificativas para a perpetuao da dependncia das

    escolas latino-americanas em relao s perspectivas sociolgicas americana e europeia

    foi a instaurao das ditaduras militares em quase todos os pases da regio, o que

    dificultou os prosseguimentos dos trabalhos Domingues e Maneiro (2006). Assim, com

    a redemocratizao dos pases do continente as pesquisas sobre os movimentos

    sociais ganharam novo impulso. Mesmo assim, observa-se a hegemonia do paradigma

    americano e europeu, principalmente dos NMSs - mantendo-se a perpetuao da baixa

    intensidade de produo terica sobre os movimentos sociais neste incio de sculo

    XXI (Gohn, 2002; Domingues, 2007; Scherer-Warren, 1998). O Conselho Latino

    Americano de Cincias Sociais CLACSO10 ao longo dos anos tem produzido atravs de

    seus pesquisadores alguns trabalhos acerca dos movimentos sociais latino-americanos,

    principalmente atravs do OSAL (Observatrio da Amrica Latina), a temtica voltou a

    ganhar destaque devido ao crescimento dos conflitos na Amrica Latina como

    podemos visualizar no quadro 1:

    Quadro 1

    Fonte: Elaborao do Observatrio Social da Amrica Latina (OSAL)

    Em uma breve consulta no site da CLACSO sobre a temtica dos movimentos

    sociais, aparecem disponveis em linha, mais de 2400 publicaes. Parte significativa das

    abordagens segue a linha de pensamento e reflexo sobre as lutas dos diversos

    movimentos sociais do continente com uma perspectiva matriz terica crtica. Repare-

    10 uma organizao no-governamental internacional, fundada em 1967 e mantm relaes consultivas formais com a UNESCO. Actualmente, totaliza 254 ncleos de investigao e ensino de graduao e ps-graduao nas cincias sociais com base em 25 pases na Amrica Latina e no Caribe, Estados Unidos e na Europa, para ver acesso: http://www.clacso.org.ar/

  • 33

    se que crtica no necessariamente quer dizer de matriz terica marxista, mas em

    oposio perspectiva neoliberal. Ou seja, nas publicaes que encontramos na

    CLACSO existe uma variedade terica diversificada analisadas por autores como

    (Mirza, 2006; Linera, 2006, 2007, 2008; Balderrama, 2001; Sader 2006; Zibechi, 2006)

    entre outros.

    Em quase uma dcada, percebemos que o debate sobre os movimentos sociais

    comea novamente a ganhar centralidade aps a estagnao do incio da ltima dcada

    na sociologia global e tambm latino-americana. Sader (2006) faz uma anlise resumida

    do cenrio poltico e econmico da Amrica Latina no sculo XX e em particular seu

    breve desenrolar a nvel de Estado, partidos e da Democracia no incio da dcada de

    90. O autor mostra como as pretenses neoliberais tornaram o novo milnio

    indefinido a nvel das sociedades latino-americanas. A sua anlise engloba os

    movimentos sociais do subcontinente, mas com um olhar pessimista da realidade

    social. Por outro lado, Seoane et al. (2006) do grande nfase ao atual estgio conflitual

    no mbito latino-americano, desvendando a forma como a emergncia dos

    movimentos tnicos teve seu pice com as reivindicaes que vo desde o

    reconhecimento da identidade indgena pelo Estado at a sua construo a nvel de

    sociedade civil. Seoane et al. baseiam-se nas transformaes das plataformas de lutas

    por direitos coletivos histricos dos movimentos sociais, que ocorreram no Mxico

    com o zapatismo e na Bolvia com a interveno dos movimentos sociais e populares

    no incio do sculo XXI. Aderindo esta mesma viso Zibechi ressalta a centralidade

    dos MSLA no atual contexto (Zibechi, 2006).

    Alm disso, em uma ptica crtica de democracia, governos, movimentos

    sociais e partidos polticos latino-americanos, Atlio Boron (Boron, 2005) segue a linha

    da contestao da doutrina neoliberal no contexto latino-americano. A sua indagao

    que o mercado tem transformado a pouca democracia no subcontinente em uma

    verso mais dbil e ineficaz abrindo espao para interveno dos movimentos sociais

    como atores ativos neste contexto. Ou seja, os novos atores influenciam diretamente

    a democracia representativa, dando lugar a novos governos de esquerda em vrios

    pases da regio, dentre estes a Bolvia e a Venezuela.

    Assim, ele observa o fracasso do projeto neoliberal no continente,

    concomitante ao processo de ascenso dos MSLA neste novo milnio. Em uma

    perspectiva semelhante mas voltada para a cincia poltica, Alvarez et all (2005)

  • 34

    trabalham com a perspectiva de que o cultural e o poltico operam dentro dos MSLA

    gerando novas formas de atuaes nas aes coletivas na esfera da cultura poltica11.

    Delimitando a anlise para o nosso objeto emprico, Alvaro Garcia Linera

    (2008) faz um debate e busca a particularidade dos movimentos sociais bolivianos em

    oposio perspectiva do marxismo. A sua grande questo que o marxismo deixa de

    lado a temtica indgena em suas anlises sobre os movimentos sociais. E que tal fato,

    deve-se pela complexidade das sociedades andinas porque combinam cariz tradicional

    e moderno em sua formao, tanto pelo ponto de vista econmico, quanto pelo

    cultural. Portanto, segundo o autor, qualquer teoria que pretenda estudar os

    movimentos sociais bolivianos, devem adotar pressupostos desta diferena, e ter uma

    clareza sobre os aspectos do capitalismo que se desenvolveu ao longo das dcadas nos

    pases de maioria de povos indgenas como o caso da Bolvia.

    Neste sentido, outros autores contriburam para o debate terico sobre os

    movimentos sociais contemporneos latino-americanos. Dentre eles Garreton (2002)

    discute como a autenticidade terica de Touraine, apresentada mais acima, encontra-

    se presente no surgimento dos novos atores coletivos. Efetivamente, os potenciais

    destes atores coletivos tm originado novas formas de aes coletivas no contexto

    democrtico latino-americano.

    As questes das novas identidades coletivas, da globalizao, das novas formas

    de incluso e excluso coletivas, bem como a consolidao dos movimentos de

    carcter alterglobalista como o Frum Social Mundial12 impactaram os suportes

    elementares dos paradigmas clssicos da Sociologia dos movimentos sociais. A

    centralidade no esta mais somente nas classes sociais (luta de classes) e muito menos

    no utilitarismo racionalista de Olson, mas sim na anttese da luta social no campo da

    cultura poltica13, das inovaes tecnolgicas de comunicao e informao (Castells,

    1999) e na defesa do nacional em contraposio a muitas caractersticas da

    modernizao. Retornando para a discusso sobre o quasi paradigma latino-americano,

    podemos proferir que no subsiste realmente um paradigma no continente, mas que o

    actual contexto da Amrica Latina neste incio de novo milnio apresenta todas as

    11 Se entende cultura poltica como os sujeitos coletivos modificando a estrutura social atravs da poltica, e no como uma poltica pblica feita pelos governos com vista a promover um aspecto cultural local como geralmente associa-se o conceito (Alvarez et al. 2005). 12 Ver Boaventura de Sousa Santos (2005b). 13 Ver mais em Alvarez e all (2005).

  • 35

    circunstncias para proporcionar aos pesquisadores as ferramentas necessrias para

    construir uma perspectiva autnoma e independente dos paradigmas europeu e

    estadunidense. Pensamos que as condies so as seguintes: 1) As universidades, os

    centros de pesquisa, as associaes e os institutos de pesquisa esto mais consolidados

    hoje. J existe uma tradio de estudos sobre os movimentos sociais (Gohn, 2002;

    Domingues, 2006); 2) As teorias latino-americanas devem descodificar as aces

    sociais protagonizadas pelos movimentos sociais, principalmente nos seus momentos

    de ascenso o que o caso no actual momento; 3) Essas teorias devem ser

    ponderadas pela historicidade dos pases aos quais os movimentos surgem e ressurgem

    no cenrio conflitual. Ou seja, para o nosso caso especfico devem ser levadas em

    conta - a Histria dos povos originrios, o passado colonial, a industrializao

    tardia/parcial de alguns pases do continente; 5) A particularidade dos sistemas

    polticos, principalmente evidenciados no perodo ps-colonial republicano; 6) Os

    impactos da globalizao nas sociedades latino-americanas.

    Neste sentido, o questionamento central desta tese o seguinte: qual o lugar

    dos MIBs dentro da sociologia dos movimentos sociais? Qual o seu papel, a sua

    identidade, as principais caractersticas e perspectivas dentro da sociedade boliviana

    contempornea? Para tais questes levantadas, parece intransponvel a utilizao da

    perspectiva multidimensional Utilizaremos as teorias sociolgicas que contemplem

    nossa caracterizao e nosso objecto de estudo: una de las caractersticas propias de

    Amrica Latina es que no hay movimientos sociales puros o claramente definidos,

    dadas la multidimensionalidad, no solamente de las relaciones sociales sino tambin de

    los propios sentidos de la accin colectiva (Ponte apud Santos, 2001b).

    Portanto, a transdisciplinaridade quando for o caso, os conhecimentos ditos

    no-cientficos (o senso comum) devem ser tomados em conta para analisar os

    MSLA. Assim, vamos utilizar as teorias j discutidas sobre os movimentos sociais ao

    longo do texto, juntando-as teorizao da noo de indgena que iremos tratar nos

    prximos tpicos, em consoante com o trabalho de campo realizado na Bolvia.

    Dentro deste contexto mister que hoje exista vrias formas histricas de aces

    colectivas (Aguilar, 2001). Iremos tipific-la para o contexto boliviano no (quarto

    captulo), assim como, buscando sempre visualizar a proposta de estudo dos MIBs,

    dentro das seguintes categorias: 1) A historicidade do continente como particular em

    relao a outras partes do globo. Analisar os MIBs dentro de uma perspectiva ps-

  • 36

    colonial; 2) A heterogeneidade dos MIBs e sua classificao temporal emergncia

    do NMSs na Europa e nos Estados Unidos condizem com o surgimento dos MIBs no

    contexto boliviano; 3) As mudanas do capitalismo levaram complexificao da

    estrutura de classes sociais e ao florescimento da identidade tnica; 3) As redes

    internas e externas so estabelecidas intergrupo e entre os movimentos sociais

    nacionais e internacionais baseados na solidariedade (cf. Anexo1), ex: Frum social

    mundial; 4) Globalizao avano das tecnologias de informao e de comunicao,

    mudanas nas relaes de trabalho e avano da ideologia neoliberal baseada na

    Democracia representativa e com pouca nfase na Democracia participativa; 5)

    Identidade coletiva ideologias, propostas, tipo de lideranas, projetos e estatutos; 7)

    Composio social; 8) Ambientes que esto inseridos; 9) Longevidade; 10) Tipos de

    aes coletivas. Assim, sem essas categorias enumeradas acima, os MIBs torna-se-a

    impalpveis sociologicamente para sua compreenso como movimentos sociais.

    Logo, partindo do pressuposto das categorias esboadas anteriormente

    aplicando-as Bolvia, temos que levar em considerao que no existem movimentos

    sociais puros ou claramente definidos no subcontinente, e isso um fato que torno

    nosso objeto mais complexo, na medida em que existe uma multidimensionalidade

    social no s das relaes sociais, mas tambm nos prprios sentidos da ao coletiva;

    por exemplo, um movimento de orientao classista pode incorporar aspectos tnicos

    ou de gnero o que distingue sua atuao frente a um movimento especfico como os

    de orientao culturalista com contedos classistas.

    Em sntese, partiremos de uma definio geral sobre NMSs que considere

    tambm os MIBs. Assim acreditamos ser correta e sistemtica a caracterizao de

    Chazel (1999) sobre o que um movimento social: um empreendimento coletivo de

    protesto e de contestao que visa impor mudanas, de importncia varivel, na

    estrutura social e/ou poltica atravs do recurso frequente, mas no necessariamente

    exclusivo, a meios no-institucionalizados (Chazel, 1999: 285). Interessante

    formulao que ao nosso ver contempla os MIBs, e os movimentos sociais em geral no

    sentido restrito do que so NMSs. Contudo, para Castells, outro autor que tambm

    tem analisado as mudanas das aes coletivas no subcontinente, faz a seguinte

    conceituao:

    Aces colectivas com um determinado propsito cujo resultado tanto em caso de sucesso como de fracasso, transforma os valores e instituies da sociedade. (...) No existem movimentos sociais bons ou maus, progressistas ou retrgradas. So reflexos do que somos, caminhos de nossa transformao (Castells, 2000).

  • 37

    1.2. As relaes entre o Estado e a sociedade civil: As configuraes histricas do Estado nao na Amrica Latina e na Bolvia. 1.2.1. O Estado laissez faire, o Welfare State e o Estado neoliberal: as suas configuraes em contexto latino-americano. Com a revoluo industrial e francesa a burguesia consolida seu projeto de

    poder. Neste primeiro momento, o capital tem no mercado o seu principal centro

    dinmico e as principais bases para a criao das polticas econmicas e sociais que so

    orientadas pelas instituies jurdicas que do sustentao ao regime de acumulao

    global do capital. O Estado deveria somente garantir a ordem e aplicar as leis que

    permitissem o funcionamento da livre concorrncia. Este sistema baseado no laissez

    faire vigente durante o sculo XIX e incio do sculo XX. Tal processo histrico de

    desenvolvimento capitalista nestes moldes foi construdo somente na Europa ocidental

    e nos Estados Unidos onde nos finais do sculo XIX passa a incrementar ao

    capitalismo liberal - a produo de mercadorias nos moldes do taylorismo / fordismo

    com uma grande participao do mercado financeiro e o fortalecimento dos

    banqueiros a nvel internacional. Em contrapartida, na Amrica Latina a organizao

    social tinha como modelo central o capitalismo engendrado pelas oligarquias

    latifundirias. Assim, aps os processos de independncias14 em todo o continente, as

    oligarquias crioulas assumiram o poder poltico, econmico, jurdico e social. A base

    econmica que dava sustentculo para a dominao era a produo de produtos

    primrios para a exportao aos centros de poder dos pases do norte (Sader, 2006;

    Domingues, 2007).

    Com a crise de 1929, o Estado adquiriu muito mais centralidade, dando incio a

    uma nova fase do capitalismo. O mercado passou a ter o Estado como seu principal

    regulador, o que proporcionou o surgimento do chamado Welfare State nos pases

    centrais do sistema global. O modelo de produo fordista complementava o sistema,

    impulsionava uma grande produo de mercadorias, o que deu origem a uma nova

    classe operria. Em contrapartida, na Amrica Latina surge o Estado

    14 importante ressaltar que mesmo aps a independncia, os pases latino-americanos continuaram sofrendo os efeitos da dominao colonial - a modernizao ocidental baseada na cincia e no Estado-nao Alguns autores trabalham com a concepo conhecida como a colonialidade do poder (Quijano, 2000). Segundo Anibal Quijano, a elite criolla que comandou o processo de independncia dos pases latino-americanos no passava de algo em torno de 7% a 10% do conjunto da populao variando esse nmero de acordo com os pases. Isso significa que, desde o incio, um determinado padro de poder se conformou em benefcio de uma minoria branca, que se afirmou contra as outras populaes existentes em suas territorialidades (indgenas, camponeses e negras) (Quijano, 2000).

  • 38

    desenvolvimentista15 que era uma tentativa distorcida de copiar o estado keynesiano

    e o Estado de bem-estar que vigorou no ocidente europeu e americano at a dcada

    de 80. Ao contrrio do que se esperava, este modelo originou um Estado de mal-estar

    social representado na massificao do desemprego e da deteriorao das condies

    de trabalho.

    Contudo, nos pases centrais foi criando-se uma nova e grande classe mdia. Na

    Amrica Latina ocorreu uma proletarizao e campesinao acelerada. No incio da

    dcada dos anos 50 inicia-se a transferncia e a globalizao de algumas multinacionais

    para os pases latino americanos, principalmente a indstria automobilstica. Porm,

    muitos pases ainda continuam sendo predominantemente agrrios, como o caso da

    Bolvia. Neste sentido, a dependncia das burguesias nacionais dos pases latino-

    americanos era subserviente aos interesses dos pases centrais ou imperialistas, os

    governos nacionais do subcontinente baseados nos anseios de progresso,

    incorporavam em suas polticas a estratgia populista para manter a ordem. A essa

    incorporao correspondia a represso dos sectores populares que rejeitassem a

    tutela estatal, ou seja a independncia de organizao sindical.

    Por outro lado, a configurao dos Estados nacionais na Amrica Latina, foi

    produto de intensas lutas sociais entre a classe operria e camponesa, e a burguesia

    tosca e totalmente dependente do capital internacional. Neste contexto, a revoluo

    boliviana de 1952 representa um marco desses conflitos sociais.

    Na dcada de 60, no auge da Guerra fria para conter as crescentes rebelies

    em contexto latino-americano, influenciadas pelos movimentos de direitos civis

    americanos, e estudantis e operrios na Frana, os Estados Unidos articulam

    juntamente com as elites nacionais dos pases latino-americanos os golpes militares,

    sendo iniciado na Bolvia e Brasil em 1964. Consecutivamente, para outros pases

    latinos em nome da segurana continental. Os anos de chumbo do perodo do

    Estado governado pelos militares foram marcados por um intenso ataque s

    organizaes sindicais e aos movimentos sociais. Neste momento o que muitos

    15 Como afirma Domingues (2007) o Estado era baseado na industrializao e urbanizao tardia e acelerada, que aps a crise de dominao oligrquica, predominou na Argentina, Mxico, Chile e Brasil a partir da dcada de 30. Assim, este novo modelo de Estado, Ficou marcado pelo surgimento de algumas leis trabalhitas, com um regime baseado em forte inspirao fascista, um de seus eixos para os movimentos sociais era a cooptao dos sindicatos que se fortaleciam naquele momento (Ianni, 1975). A Bolvia mistura mais uma verso de desenvolvimentismo com um forte apego ao passado oligrquico, tendo ambas as configuraes polticas, econmicas e sociais.

  • 39

    chamam de milagre econmico dos anos 70 era na verdade uma combinao de

    industrializao e urbanizao aceleradas e completamente atreladas aos interesses

    internacionais. Somava-se a esse "milagre" o arrocho salarial dos trabalhadores

    urbanos e a constante modernizao do campo que completavam o modelo. A

    emergncia do neoliberalismo com suas primeiras experincias no Chile e na Bolvia

    em nome da modernizao econmica vem como resposta crise. Porm, de forma

    contraditria foi tambm neste momento que aos finais dos anos 1970, comeou a

    ocorrer a transio para a democracia representativa (Sader, 2006; Domingues, 2007).

    1.2.2. A formao do Estado boliviano

    A submisso dos povos indgenas originrios foi a maior expresso da

    primeira modernizao ocidental de dominao social - na hierarquizao de culturas e

    na dicotomia do moderno e do atrasado onde os indgenas eram classificados como

    selvagens. O modelo de produo mercantil baseava-se no modo de produo

    escravista e tinha na monocultura a sua base de produo econmica. A

    complementao da dominao dava-se no constante disciplinamento dos povos

    indgenas, com a inculcao dos valores, da cultura e das normas sociais europeias e da

    igreja catlica. No perodo republicano, a inovao da dominao social foi constituda

    pela retrica da criao do Estado-nao mantendo-se a elite crioula na direo da

    conduo dos interesses nacionais.

    Porm, em 1929 a crise atingiu o pas em cheio provocando um verdadeiro

    colapso na base econmica, afetando diretamente o regime oligrquico estatal na sua

    relao com os bares do estanho que mantinham o funcionamento das instituies

    estatais de acordo com seus interesses politico-econmicos, baseados no modelo

    poltico do clientelismo16 (Andrade, 2007).

    Assim, como consequncia direta da crise estrutural interna oriunda dos

    problemas econmicos e de legitimao do Estado, a oligarquia boliviana, atravs do

    governo, inicia uma ofensiva militar contra o Paraguai - episdio que ficou conhecido

    como a Guerra do Chaco de 1932-35. O final da guerra teve um cenrio desastroso:

    dezenas de milhares de indgenas bolivianos em sua maioria morreram no conflito.

    Alm disso, ocorreu o aumento da dvida externa do pas, e a perda definitiva da

    16 A forma de fazer polticas das oligarquias oriundas do perodo colonial. Com a proclamao da repblica ela reformulada em os novos empresrios do estanho.

  • 40

    regio para o Paraguai. Os efeitos esperados pelo regime viraram-se contra ele, uma

    crescente onda de manifestaes dos setores sociais foi desencadeada contra o poder

    do Estado oligrquico. Por outro lado, a emergncia do sindicalismo mineiro, do

    movimento campons e dos militares nacionalistas o chamado socialismo militar

    liderado pelo oficial German Busch, articularam um golpe de Estado, e ento

    assumiram o controle do governo em 1936 (Rivera, 2003, Andrade, 2007).

    No perodo ps-guerra, o Estado passa a ter um papel de maior interveno na

    economia, gerando um enfraquecimento das relaes histricas com os empresrios

    do estanho. Por outro lado, a plataforma poltica dos militares - o populismo era

    utilizada para conter as constantes manifestaes dos setores sociais (sindicais e

    camponeses). Mas, foi neste momento que ocorreu a primeira nacionalizao (no incio

    sem indenizao) da histria dos hidrocarbonetos bolivianos, a nacionalizao da

    empresa Standart Oil acusada de ser aliada dos paraguaios na guerra. Alm disso, no

    decorrer dos anos 30 e 40 surgiram no cenrio poltico boliviano, alguns partidos que

    tiveram um papel importante na vida poltica do pas por muitos anos. Alguns

    permanecem com peso poltico at hoje, so eles o Partido Obrero Revolucionrio

    (POR) de origem ideolgica trotskista, o Partido da Esquerda Revolucionaria de

    vertente estalinista (PIR), e o Movimento Nacionalista Revolucionario (MNR), partido

    este que ter importante papel na vida poltica do pas, e tem na sua composio alguns

    dirigentes e membros deserdados da antiga classe dominante (Zavaleta apud Rivera,

    2003). Os seus principais lderes so Vctor Paz Estenssoro e Hernn Siles Zuazo.

    Assim, o fortalecimento do MNR perante o movimento sindical e campons, tem

    como base ideolgica o nacionalismo progressista, tem como base o nacionalismo

    progressista, contudo aliado a uma posio anticomunista. O MNR ganha as eleies

    de 1951, porm a vitria eleitoral no reconhecida pela oposio da oligarquia,

    estabelecendo-se uma junta militar na Bolvia.

    Em 1952 explode a revoluo boliviana, considerada por muitos intelectuais e

    militantes de esquerda, a principal revoluo operria-camponesa do perodo ps-

    Segunda Guerra mundial. Uma das consequncias diretas da revoluo foi a

    universalizao do voto (incorporao do campesinato democracia representativa,

    tendo em vista que os indgenas no tinham direito ao voto e a circular nos locais

    pblicos, como nas praas de La Paz), a nacionalizao das minas de estanho e o incio

    da reforma agrria que teve participao ativa do movimento campons. Alm disso,

  • 41

    aconteceu uma sindicalizao em larga escala, tanto dos operrios quanto dos

    camponeses. A destruio do exrcito convencional que foi substitudo pelas chamadas

    milcias armadas operrias e camponesas, organizadas atravs da Central Obrera

    Boliviana (COB). A crise do Estado, estava basicamente na sua diviso de poder com a

    COB - o duplo poder aps a revoluo entre o Estado e a COB ou em um co-governo

    entre MNR-COB (Andrade, 2007; Rivera, 2003).

    Assim, o MNR via com maus olhos a relativa autonomia que a COB e o

    movimento campons tinham ganhado no perodo ps-revoluo. As divergncias

    entre a COB que passava a ter mais influncia do POR, inaugurava as novas formas de

    conflitos de poder, que ficaram mais abertas quando Paz Estenssoro Presidente, do

    MNR, cria a chamada estabilizao monetria com o Fundo Monetrio Internacional

    (FMI). Esta posio do governo gerou grande oposio da COB, assim, aps 15 anos

    de controle estatal do petrleo, o governo cria um novo cdigo de explorao do

    petrleo boliviano e abre novamente a explorao para as empresas internacionais.

    Para conter a oposio da COB ao governo, o MNR tinha em seu quadro, um

    dos principais dirigentes sindicais da histria da Bolvia Juan Claudio Lechn. Isto

    proporcionava uma relativa estabilidade governamental para Estenssoro. O governo do

    MNR terminou com o golpe militar de 1964, que foi liderado pelo general Barrientos,

    e apoiado pelos Estados Unidos. Neste momento, inicia-se uma grande represso aos

    sindicatos mineiros de sustentao da COB. Em contrapartida, Barrientos procurava

    uma aproximao com o movimento campons, instaurando-se assim, o famoso Pacto

    Militar-Campons (PMC) (Rivera, 2003). Mas, aps a morte sbita de Barrientos em

    1969, abria-se um perodo de instabilidade entre os militares e em 1970 assume o

    poder o general Juan Jos Torres que procurou uma reaproximao do governo com a

    COB e a ex-URSS. Alm disso, nacionalizou a Gulf Oil Company, uma empresa de

    explorao petroleira americana. Porm, como resposta, os Estados Unidos

    articularam atravs de Santa Cruz um novo golpe de Estado, tendo o General Hugo

    Banzer a frente. Aps a instalao da ditadura de Banzer, que governou o pas com

    mo de ferro e aproveitando-se do grande fluxo de capital internacional para manter

    alguns setores sobre seu domnio, manteve-se por um perodo longo no poder. Na

    tentativa de sufocar as oposies perseguiu o movimento sindical e popular boliviano.

    Neste perodo, abria-se espao para as reflexes sobre as novas prticas de lutas

  • 42

    sociais inspiradas no indigenismo radical, em detrimento do movimento sindical

    clssico (Andrade, 2007).

    Em suma, a luta pela redemocratizao do pas, concebeu no centro da

    resistncia popular boliviana novos sujeitos sociais (Touraine, 1997b) que so reaes

    sociais do perodo ps-revoluo de 52 e ps-ditadura de 1982. A Bolvia, assim como

    os outros pases da Amrica Latina, viveram uma grave crise econmica e poltica. A

    indstria de minerao esteve em colapso total, e o pas teve uma das inflaes mais

    altas do mundo. Por outro lado, a COB exigiu aumentos de salrios sem ter respostas

    do governo, o que levou o governo a antecipar as eleies para 1985 (Zucco, 2008;

    Andrade, 2007). Em 1985 foi finalmente instituida na Bolivia uma Democracia de

    pactos sociais, que era baseada na cooperao entre os partidos polticos,

    movimentos sociais e o governo (Camacho, 2001; Domingues, 2007).

    1.2.3 Etnicidade, classes sociais e Estado-nao como fenmenos stricto sensu

    No perodo colonial boliviano a postura dos colonizadores espanhis tinha

    como nico objectivo colonizar, dominar, subordinar, submeter todo o modo de

    existncia social dos povos originrios. A dicotomia encerrava-se entre os europeus

    civilizados e os ndios como incivilizados. O eurocentrismo presente nas relaes

    coloniais, era ditado pelas formas de domnio colonial na poltica, na economia, na

    cultura e no imaginrio dos indgenas (Quijano, 2005). No sculo XVIII a criao do

    Estado como nova forma de controlo social coletivo veio substituir a velha estrutura

    colonial, mas ainda, mantendo longe das estruturas de poder as populaes originrias

    que eram consideradas inferiores e incapacitadas (Quijano, 2005).

    Desse modo, com a independncia e a instaurao da repblica pelas elites

    crioulas (brancos de origem espanhola ou mestia) ou os mestizo-criollos, instaurou-se

    um perodo marcado pela questo da forma de posicionamento e de assimilao dos

    indgenas ao novo Estado-nao.

    El asimilacionismo cultural es la poltica que se ha procurado sostener desde el Estado, por medio del sistema institucionalizado de educacin pblica. La estrategia, por lo tanto, ha consistido y consiste en una asimilacin de los indios en la cultura de los dominadores, que suele ser tambin mentada como la cultura nacional, mediante la educacin escolar formal, sobre todo, pero tambin por el trabajo de instituciones religiosas y militares (Quijano, 2005)

    Em contrapartida, a aculturao e a europeizao j vinha sendo

    estabelecida desde os primrdios coloniais. A breve soluo encontrada foi a

  • 43

    incorporao linear das culturas indgenas na concepo da modernizao capitalista -

    os costumes milenares indgenas, a linguagem, a cosmoviso foram abafados

    baseados numa ideologia de Estado que reivindicava a constante mestiagem como

    soluo para a problemtica do Estado-nao.

    A crise oligrquica teve seu apogeu no populismo dos anos 30, que tentava dar

    uma nova roupagem figura do Estado-nao boliviano: trata-se de uma resposta a

    crise de dominao oligrquica instituda na Bolvia. Assim, no perodo populista o

    Estado passa a fazer mais intervenes na justia, e nos assuntos sociais. Por outro

    lado, a discusso tnica totalmente esvaziada tanto pela classe dominante quanto

    pelo jovem movimento sindical e tambm campons. Ou seja, se por um lado a

    burguesia boliviana era dbil, entreguista e esquizofrnica, por outro lado, a classe

    operria ainda encontrava-se em fase de amadurecimento onde no se observava a

    passagem da classe em si classe para si (Marx, 2003), fenmeno que ocorreu

    tambm com o movimento campesino. Apesar disso, os camponeses desde o incio do

    perodo republicano, acumularam maiores experincias na resistncia colonial lutas

    contra os mtodos de dominao oligrquica que permitiu maior elaborao

    interventiva na revoluo de 1952, mas com uma aliana de classes com o operariado.

    Neste sentido, a discusso sobre a plurinacionalidade na Bolvia oposta

    concepo de Estado-nao: o Estado era o principal arquiteto da prtica da

    homogeneizao cultural (Regalsky, 2005). Portanto, mesmo com a revoluo de 52 a

    discusso da questo tnica relegada aos povos indgenas, e a plurinacionalidade na

    Bolvia negada e no prioritria, inclusive para o novo Estado-nao que se

    configurou com o apoio do movimento sindical e campons. Neste sentido, do ponto

    de vista cultural e tnico, no houve avanos significativos em relao ao passado

    oligrquico e racista herdado do perodo colonial - a questo da opresso dos

    indgenas.

    Segundo Alb (2002) a problemtica tnica parecia ser negativa do ponto de

    vista tico, tanto pelos partidos de esquerda, quanto pelos partidos de direita. Estes

    partidos recusavam-se a utilizar o termo indgenas para os povos originrios,

    atribuindo-lhes a palavra camponeses. Ou seja, seguiam a concepo segundo a qual

    o apelativo de indgena era somente para os camponeses da selva buscando a todo

    momento aniquilar do imaginrio campons e indgena o seu passado tnico originrio.

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    Em definitiva, a funo do conceito de campons tem um carcter de classe

    social ligado posio econmica dos indgenas nos moldes de produo do sistema

    capitalista. Esta agregao valorativa foi construda no perodo anterior revoluo de

    52 pelo movimento operrio (Rivera, 2003; Paco, 2007) e reafirmada pelo Estado que

    via na palavra indgena um tab para o vocabulrio oficial, pois considerava-o um

    termo discriminador, vigorando assim a concepo de que a Bolvia um Estado

    mestio (Alb, 2008).

    Assim, a noo de indgena formada por um contexto de dominao colonial,

    perpetuada negativamente pelos revolucionrios, que no se preocupavam em

    realmente buscar as origens histricas para discriminar negativamente.

    Para mi es ser discriminado. El indio es el colonizado. Y en este sentido todos somos indios. Todos somos indios porque todos estamos sometidos a unas jerarquas coloniales que comezaron en Europa. Nadie es europeo, todos somos indios. Porque somos discriminados, porque somos disminuidos, empequeecidos. Para m el indio es el colonizado y es el oprimido, entonces, esa es la definicin que tengo del indio. Por lo tanto debria praticame