Movimentos Sociais Latino-Americanos: “A ch´ama dos movimentos ...
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Elizardo Scarpati Costa
Movimentos Sociais Latino-Americanos: A chama dos
movimentos campesino-indgenas bolivianos
Dissertao de Mestrado em Sociologia, sob orientao do Professor Doutor Hermes Augusto Costa
apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra, 2009
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Elizardo Scarpati Costa
Movimentos Sociais latino-americanos: A chama dos
movimentos campesino-indgenas bolivianos
Dissertao de Mestrado em Sociologia, sob orientao do Professor Doutor Hermes Augusto Costa
apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra, 2009
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memria de Catarina Scarpati
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Agradecimentos
Agradeo a minha famlia, especialmente a minha me e a minha av, as quais
sempre foram, e sempre sero, a minha principal motivao na vida. Mulheres
guerreiras, simples, queridas, lutadoras e vencedoras. Me incentivaram e me cobraram
em todos os momentos, tenho certeza, com o melhor que podiam e com todo amor
do mundo, eu simplesmente no existiria sem elas. Agradeo a minha companheira
Eme, que surgiu na minha vida com o propsito de ser aquilo que faltava, minha
interlocutora, minha amiga, minha companheira e minha mulher. Contribuiu de forma
decisiva para a realizao desta tese, sua participao sem precedentes, possibilitou
que aqueles pequenos detalhes aos quais por vezes nos foge, a correo dos mesmos.
Obrigado Eme, a sua orientao e ajuda, foram fulcrais e nos meus momentos de mais
dvidas e incertezas, mesmo onde havia certeza, a essa devo tudo. Agradeo a Surreal
Solar Repblica dos Kapangas (Z Miguel, Antnio, Rogrio, Flor neves, dentre
outros), casa histrica que me acolheu, me orientou na minha nova realidade social ao
chegar em Portugal. Sem esta casa e todos os seus membros, no teria chegado at
aqui. Agradeo a alguns amigos portugueses Joo Reis, Manel Afonso, Ivo, e aos
brasileiros que esto por aqui, como Rodrigo Nery, Mrio, Leandro, Bruno dentre
outros, que me ofereceram sua amizade e seu incentivo ao meu desenvolvimento.
Agradeo aos colegas dos mestrados da FEUC e do CES, Daniel, Hector, Denise. Aos
meus caros amigos no Brasil, agradeo a Felipe Sellin, Filipe Skiter, Marcelo Martins,
Amilcar Cardoso, Ana Paula, minha prima Fernanda e tantos outros que sempre
acreditaram no meu trabalho e na minha capacidade de buscar por alguma coisa, esses
so velhos amigos e bons camaradas que me aturaram na graduao e no movimento
estudantil e sindical e na vida. Agradeo aos companheiros da Bolvia ao qual me deram
a base material de insero social, para realizar a pesquisa de campo, especialmente ao
Joalan e a Nery, e a todos os entrevistados. Agradeo ao meu orientador cientfico,
Dr. Hermes Costa, a sua orientao eficiente, inteligente e participativa, me permitiu
nos momentos cruciais, em cada reunio, em cada conversa de corredor, em cada
proposta de modificao terica e emprica, em cada email trocado, ter uma
orientao excelente, tranquila, e faz com que eu me sentisse seguro de estar
caminhando em uma boa direo no decorrer da construo desta tese. Ele foi um dos
principais incentivadores para pesquisa de campo no exterior, e me aceitou de braos
abertos como seu orientando. Assim, destaco aqui, a sua simplicidade, o seu rigor com
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inteligncia, a sua perspiccia, e a sua sensibilidade, que so misturadas com seu amplo
olhar sociolgico, o que o torna sem dvidas, um grande profissional das Cincias
Sociais e um excelente socilogo. Para mim uma grande honra ser seu orientando.
Agradeo tambm aos outros professores do mestrado, em especial ao Dr. Elsio
Estanque por ter dado os toques iniciais sobre o projeto de pesquisa a ser
desenvolvido. Por fim, agradeo ao corpo tcnico bibliotecrio do Centro de Estudos
Sociais (CES), Accio, Ana e Maria Jos, pela pacincia nas frequentes pesquisas
bibliogrficas e pela eficincia ao qual me dedicaram parte do seu tempo e a secretria
da faculdade de economia o Z e o Pedro, por sempre resolverem meus problemas
com os papis.
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ndice
Introduo.....17
I Parte - Enquadramento Terico e Metodologia
Capitulo 1 - Os movimentos sociais, as relaes entre o Estado a sociedade
civil e a globalizao como epicentro da modernidade latino-americana
1.1. Perspectivas tericas sobre os movimentos sociais......................................................21
1.1.1. Teorias e conceitos paradigmticos da Sociologia dos movimentos
sociais: da abordagem clssica americana abordagem europeia................21
1.1.2. A abordagem contempornea sobre a teoria da aco colectiva e dos
movimentos sociais...........................................................................................................25
1.1.3. A construo do quasi paradigma latino-americano.............................31
1.2. As relaes entre o Estado e a sociedade civil: As configuraes histricas do
Estado nao na Amrica Latina e na Bolvia............................................................. .............37
1.2.1. O Estado laissez faire, o Welfare State e o Estado neoliberal: As
suas configuraes em contexto latino-americano......37
1.2.2. A formao do Estado boliviano.........................................................................39
1.2.3. Etnicidade, classes sociais e Estado-nao como fenmenos stricto
sensu.....................................................................................................................................42
1.3. Globalizao, Estado e sociedades latino-americanas.....................................................48
1.3.1. A globalizao como fenmeno sine qua non...................................................48
1.3.2. Alguns impactos da globalizao sobre a Amrica Latina e a Bolvia.........50
1.3.3. Os movimentos indgenas bolivianos em tempos de globalizao.....51
Captulo 2 - Hipteses de trabalho e orientao metodolgica
2.1. Hipteses de trabalho............................................................................................................55
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2.1.1. Hipteses gerais......................................................................................................55
2.1.2. Hipteses especficas.............................................................................................55
2.2. Orientao metodolgica......................................................................................................56
2.2.1. Literatura cientfica................................................................................................56
2.2.2. O mtodo do caso alargado................................................................................56
2.2.3. As tcnicas de recolha utilizadas.........................................................................57
II PARTE Passado, presente e perspectivas Futuras: Democracia, lutas
sociais, e o sindicalismo dos movimentos indgenas na bolivia
Capitulo 3 - Estado, poder, terra e coca: o que querem os movimentos
indgenas?
3.1. A luta pela nacionalizao e preservao dos recursos naturais: uma questo
fulcral dos povos indgenas...........................................................................................................59
3.1.1. A terra como valor inalienvel para os povos indgenas..............................60
3.1.2. A planta mitolgica: a folha de coca como valor cultural transcendental
dos povos indgenas..........................................................................................................63
3.2. Educao bilingue, para que te quero?...............................................................................66
Capitulo 4 - Atores em jogo na construo de um novo Estado
democrtico, multicultural e plurinacional na Bolvia: olhares presentes e
perspectivas futuras sob a gide dos movimentos sociais e campesino-
indgenas
4.1. O socialismo do sculo XXI na Bolvia: O cenrio sociopoltico a crise do
modelo neoliberal...........................................................................................................................69
4.1.1. Dois casos de luta: a guerra da gua e do gs, os movimentos sociais
e indgenas em seu repertrio de aes coletivas.....................................................69
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4.1.2. A vitria eleitoral de Evo Morales: os MIBs e os movimentos sociais no
poder de agora em diante?..............................................................................................75
4.1.3. O cenrio socioeconmico boliviano................................................................78
4.2. Correntes e tendncias dos movimentos indgenas bolivianos....................................79
4.2.1. As relaes dos movimentos indgenas bolivianos (MIBs) com a Central
Operaria Boliviana (COB)...............................................................................................82
4.2.2. Para uma formulao de tipologias sobre os movimentos indgenas
bolivianos..84
4.3. O Estado plurinacional constitucional: a face do capitalismo andino-amaznico
no perodo ps-neoliberal?...........................................................................................................87
4.4. O movimento indgena na encruzilhada: entre o Estado e a comunidade
indgena..............................................................................................................................................94
Concluso......................................................................................................................................99
Referncias bibliogrficas....................................................................................................105
Anexos..........................................................................................................................................113
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SIGLAS:
ADN : Accion Democratica Nacionalista
MIBs : Movimentos Indigenas Bolivianos
CEPAL : Comisso Econmica Para o Desenvolvimento da Amrica Latina
CDAEP: Comit de Defesa da gua e da Economia Popular
CIDOB: Confederacin de los Pueblos Indgenas de Bolvia
CIPOAP: Central Indgena de Povos Originrios Amaznicos de Pando
CLACSO: Conselho Latino Americano de Cincias Sociais
CNTCB: Confederao Nacional de Trabalhadores Campesinos de Bolvia
CSCIB: Confederacin Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia
COB: Central Obrera Boliviana
CONAMAQ: Conselho Nacional de Ayllus y Markas do Qullasuyu
COFECAY: Federacin de Pesqueros
CONAIE: Confederacin de Nacionalidades Indgenas del Equador
CPIB: Central de Povos Indgenas de Beni
CICA: Consejo Indgena de Centro America
CSUTCB : Confederao Sindical nica dos Trabalhadores Campesinos da Bolvia
FMI: Fundo Monetrio Internacional
Lei INRA: Ley del Servicio Nacional de Reforma Agraria
LPP: Lei de Participao Popular
MAS: Movimento ao Socialismo
MIK: Movimento Indgena Boliviano
MNR: Movimento Nacionalista Revolucionrio
MRTK: Movimento Revolucionrio Tupaq Katari
MSLA : Movimentos Sociais Latino-Americanos
NMSs : Novos Movimentos Sociais
OSAL: Observatrio da Amrica Latina
PIR: Partido da Esquerda Revolucionaria de vertente estalinista
PMC: Pacto militar-campons
PNUD: Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
PODEMOS: Poder Democrtico Social
POR: Partido Obrero Revolucionrio
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TCR: Terras Comunitrias de Origem
Teoria da MR : Teoria da Mobilizaao de Recursos
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Resumo
A questo central desta pesquisa : a anlise sociolgica dos movimentos
indgenas bolivianos (MIBs) no perodo do seu surgimento e ressurgimento aps a
revoluo boliviana de 1952 e at hoje. Procuramos demonstrar atravs dos MIBs a
aplicao de parte da teoria social dos movimentos sociais, visando descobrir as suas
principais caractersticas, potencialidades e seus desdobramentos no presente, bem
como, as suas possibilidades futuras no sentido de sua ao coletiva. Para tal, levamos
em considerao que o objeto emprico a ser estudado encontra-se em um continente
que tem uma complexidade impar no cenrio global devido as suas condies
histricas, polticas, culturais e sociais conflituais - a Amrica Latina. Portanto,
utilizamos alm do arcabouo terico que baseado no paradigma dos novos
movimentos sociais (NMSs) europeu, e nas teorias latino-americanas, a observao
direta e participante no nosso estudo de caso, tentando romper com uma anlise
estritamente descritiva dos fatos. Assim, dentre as vrias concluses as quais chegamos
com a aplicao das nossas hipteses de trabalho, destacamos as seguintes: a
reorientao da ao coletiva dos MIBs que manifestada no plano discursivo, com um
forte discurso tnico em detrimento de um discurso de classes sociais, a mudana
qualitativa e constante da ao coletiva dos MIBs ao longo da sua histria procurando
localizar-se em uma posio estratgica privilegiada, a luta dos MIBs pela redistribuio
da riqueza, pelo direito a autogoverna-se com os pressupostos no direito
consuetudinrio, que por fim, visam uma democracia mais inclusiva e participativa com
respeito a plurinacionalidade e de cunho descolonial das trinta e seis naes
originrias na Bolvia. Portanto, o auge da nossa anlise, d-se no surgimento das
grandes ondas de manifestaes na Bolvia entre 2000 e 2005 a guerra da gua e a
guerra do gs - onde os MIBs foram os protagonistas da ao coletiva quase
insurrecionais na Bolvia neste incio do sculo XXI. Estas manifestaes, levaram Evo
Morales a ser o primeiro presidente indgena da histria republicana da Bolivia. Por
outro lado, ocorreu uma espcie de estabilizao da interveno poltica dos MIBs,
principalmente aps a aprovao da Nova Constituio de Estado em janeiro de 2009.
Palavras-chave: Movimentos indgenas bolivianos, ao coletiva, indgena, CSUTCB,
Estado-nao.
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Abstract
The fulcral question in this research is the sociologic analysis of Indian social movements (MIBs) in the period of its appearances and reemergences, between the Bolivian revolution of 1952 and today. We aim at demonstrate through the MIBs, the application of a part of the social theory of social movements, discover its principal, aiming at discover its principals characteristics, potentialities and its splitting in the present, and also its future possibilites in the sense of collective action. The empirical object studied is in a continent which has a strong complexity in the global scene due to historical, political, cultural and social conflicting conditions Latin America. For this we used, besides the theoretical framework based in the European paradigm of the New Social Movements (NMSs), and latin-american theories, a direct and participative observation in the case study. Among the many conclusions we took through the application of our work hypothesis, we discerne these one : the reorientation of collective action of the MIBs manifested in the speech/discourse plan, with a strong ethnic discourse at the expense of a social classes discoure, the qualitative and constant modification of the collective action of the MIBs along of its history, aiming at localized itself in a strategic position, the fight of the MIBs for the redistribution of wealth, for the right to rule themselves with presupposition in the consuetdinario right, with the purpose to create a more inclusive and participative democracy, respecting plurinationality, with a anti-colonial dimension in the 36 native nations of Bolivia. Thus, the top of our analysis is in the ressurgence of demonstrations in Bolivia, between 2000 and 2005 war and gas War where the MIBs has been the main protagonists of collective action almost insurectionary, in the beginning of the XXIth Century. These demonstrations get Evo Morales to the Presidency of the Bolivian Republic. In the other side, a stabilization of political intervention of the MIBs occured, principally after the approval of the New Constitution (2009).
Key-words : Indian bolivian movements, collective action, indian, CSUTCB, State-nation.
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Rsum
La question centrale de cette recherche repose sur lanalyse sociologique des
mouvements indiens boliviens (MIBs) au moment apparition et rapparition, du
lendemain de la rvolution bolivienne de 1952, jusqu aujourdhui. Nous tentons de
dmontrer travers les MIBs lapplication dune partie de la thorie sociale des
mouvements sociaux, en cherchant dcouvrir ses principales caractristiques,
potentiels et ses ddoublements prsents, tout comme les possibilits futures dans le
sens de son action collective. Pour ce faire, nous avons considr que lobjet empirique
tudi sencadre dans un continent qui a une complxit sans pareil sur la scne
globale, lie aux conditions historiques, politiques, culturelles et sociales conflictuelles
lAmrique latine. Ainsi, nous avons utilis, en plus du fondement thorique bas sur
le paradigme des Nouveaux Mouvements Sociaux (NMSs) europen, les thories
latino-amricaines, lobservation de terrain et participative lors de ltude de cas, afin
de rompre avec lanalyse strictement descriptive des faits. Ainsi, parmi les diverses
conclusions auxquelles nous sommes arrivs avec lapplication de nos hypothses de
travail, nous distinguons les suivantes : la rorientation de laction collective des MIBs,
manifeste sur le plan du discours, avec un fort discours ethnique au dtriment dun
discours de classes sociales, le changement qualitatif et constant de laction collective
des MIBs au long de leur histoire, en cherchant se localiser dans une position
stratgique privilgie, la lutte des MIBs pour la redistribution de la richesse, pour le
droit s autogouverner avec des prsuppositions dans le droit consuetadinrio,
qui, enfin, vise une dmocratie plus inclusive et participative, dans le respect de la
plurinationalit et de dimension anticoloniale des 36 nations originaires de Bolivie.
Ainsi, le point culminant de notre analyse seffectue dans lapparition des grandes
vagues de manifestations en Bolivie, entre 2000 et 2005 la Guerre de leau et du gaz
o les MIBs ont t les acteurs principaux de laction collective quasi
insurrectionnelle du dbut du XXI me sicle. Si dun ct ces manifestations ont
amen Evo Morales tre le premier Prsident indien de lhistoire rpublicaine de
Bolivie, dun autre ct sest mise en oeuvre la stabilisation de lintervention politique
des MIBs.
Mots-cls : Mouvements indiens boliviens, action collective, indien, CSUTCB, Etat-
nation.
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Introduo
A Amrica Latina no dealbar do sculo XXI apresenta um cenrio poltico,
social e cultural conflitual. Desde a revoluo mexicana e cubana no sculo XX,
passando por toda Amrica central e do sul com a revoluo boliviana de 1952, os
levantamentos sociais estiveram presentes nas sociedades latino-americanas. As
manifestaes destas rebelies, davam-se atravs do surgimento do sindicalismo
clssico no primeiro momento, alavancadas pelo movimento operrio. Depois pelo
guerillherismo guevarista, e por ltimo, pelos movimentos sociais que a partir de
meados do sculo passado surgem no cenrio de guerra-fria, mas so pacificados por
regimes militares em todo continente. Assim, a continuidade dos conflitos sociais no
sculo XXI reflexo direto a este passado histrico mal resolvido, ou seja, os velhos
conflitos sociais vm-se misturando a novos conflitos que resultaram numa situao
muito peculiar, como aconteceu na Bolvia, caso que estudaremos nesta tese.
Em diversos pases do sub-continente, o conflito social se faz presente em
seus contornos totalizadores que giram em torno de mais e melhores incluses sociais
- aprofundamento da Democracia e da redistribuio da riqueza em oposio crise
do neoliberalismo. A Bolvia um dos pases do subcontinente, onde foram
impulsionados os grandes conflitos quase insurreccionais no incio deste sculo.
Porm, as bases tradicionais do Estado mantiveram-se com a Democracia
representativa no plano poltico, e a propriedade privada no plano econmico, mas,
veremos que estas bases no so mais as mesmas aps as rebelies. Em larga medida,
estas revoltas esto ligadas aos impactos da globalizao neoliberal em sua face
modernizadora que promoveu o aumento das excluses sociais (poltica, econmica,
cultural, cognitiva). No caso boliviano, existe um incremento substancialmente
qualitativo a este processo - a questo tnica e da (re) emergncia dos movimentos
indgenas bolivianos (MIBs) como protagonistas da sua Histria assistimos
crescente ascenso dos MIBs a partir da ltima dcada do sculo XX. Esta dinmica
imprimida pelos indgenas, tem chamado a ateno no s de intelectuais latino-
americanos, mas tambm do resto do mundo por sua particularidade e pelo seu
carcter sui generis.
Contudo, a histria dos indgenas bolivianos nos remete ao seu passado
colonial/republicano: a homogeneizao e incorporao dos indgenas na sociedade de
classes no representam somente a destruio do modo de produo comunal, mas
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igualmente a esteriotipao e submisso da cultural milenar indgena. Portanto, a
trajetria dos MIBs tem razes no seu passado de servido e excluso tnica, que
resultado da acumulao das opresses e das frustraes sofridas durante todos os
sculos passados.
Neste incio de sculo XXI, a trajetria protagonizada pelos MIBs para
conseguir uma real incluso poltica, econmica, social e cultural, significa o
redirecionamento do Estado-nao e da sociedade civil boliviana a caminho do
reflorescimento da noo de indgena. Por um lado, os MIBs representam um conjunto
de acontecimentos histricos que urge compreender analisando a sua complexidade
interna e externa; por outro lado, os MIBs protagonizaram a criao de formas
inovadoras de interveno na realidade social da Bolvia.
Assim, propomos nesta tese discutir os MIBs procurando entender o seu papel
na configurao do Estado-nao, na criao de identidades, as suas caractersticas e as
suas perspectivas para o futuro, em consonncia com a teoria sociolgica na busca de
um enquadramento adequado sua composio e organizao.
Neste sentido, sabemos que a discusso acerca da sociologia dos movimentos
sociais uma das mais complexas da sociologia geral. Hoje em dia, apesar de se ter
mais de um sculo de produo cientfica sobre a temtica, ainda estamos
confrontados a uma grande indefinio sobre os movimentos sociais, como afirma
Sidney Tarrow (Melucci, 1996: 12). A prpria discusso terica e epistemolgica sobre
os MIBs talvez carea ainda de uma melhor sistematizao, de modo que se possa
compreender qual a magnitude de sua fora, da sua identidade e da suas perspectivas.
Tal fato, deve-se principalmente anlise e profunda observao descritiva dos
agentes sociais em luta, ficando reduzida ao momento histrico em que
desencadeada a ao coletiva, ou seja, restringindo a anlise sociolgica aos processos
polticos em curso, e no se verificando uma teorizao decorrente de um estudo
aprofundado da natureza identitria e das caractersticas distintivas desses novos
movimentos sociais (NMSs).
Assim, em traos largos, abordaremos no primeiro captulo, as principais
perspectivas tericas da sociologia dos movimentos sociais, desde o paradigma clssico
europeu, o paradigma clssico norte-americano at o quasi paradigma latino-
americano. Bem como se discutir a noo de indgena e do Estado nao na Bolvia.
No segundo captulo, mostraremos o mtodo e as tcnicas de pesquisa empregadas
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nesse estudo. No terceiro captulo, aprofundar-se- o debate sobre questes gerais
relativas ao porqu, causa da existncia dos MIBs e aos seus respectivos objetivos
como movimento social. E por fim, no quarto captulo, debatemos mais as relaes da
ao coletiva em momentos especficos de ascenso e de estabilizao na relao
conflitual entre os MIBs e o Estado boliviano no sculo XXI.
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I PARTE Enquadramento Terico e Metodologia Captulo 1: Os movimentos sociais, as relaes entre Estado e sociedade civil e a globalizao como epicentro da modernidade latino americana.
1. 1. Perspectivas Tericas sobre os Movimentos Sociais 1.1.1. Teorias e conceitos paradigmticos da Sociologia dos movimentos sociais: A abordagem clssica americana e europeia.
Os clssicos da sociologia Karl Marx, mile Durkheim e Max Weber no
apresentaram em suas obras o tema dos movimentos sociais de forma directa (Gohn,
2002). No entanto, estes autores deram incio no flanco de uma Sociologia mais
orgnica, discusso que iria constituir a sociologia dos movimentos sociais. Estas
contribuies so visualizadas em suas observaes sobre os indivduos e os grupos
sociais em sociedade, por exemplo, as classes sociais, os antagonismos, o conflito
social, a transformao social so temticas essenciais da sociologia poltica, e
analisadas atravs das lutas sociais analisadas por Marx.
Assim, estes conceitos servem como base para um indicativo do ponto de vista
objectivo e subjectivo para a organizao de um determinado movimento social, neste
caso o movimento operrio clssico atravs da praxis social (Marx, 2003). Para Marx
impossvel separar a teoria da prtica revolucionria de classes sociais: a teoria e a
prtica so indissociveis sendo a praxis social o produto da interveno coletiva e da
ruptura da realidade social. Como sabido, a proposta de Marx incide sobretudo na
anlise do conflito entre classes sociais dirigentes e subalternas. Ou seja, dentro da
matriz terica marxista as classes sociais so imprescindveis para se entender todas as
aes polticas e a tomada do poder por uma classe social. Ora, no mbito da presente
investigao caberia perguntar-se, tendo em conta o quadro de referncia marxista, o
seguinte: at que ponto os indgenas bolivianos organizados atravs dos MIBs se
reivindicam como uma classe social? No sentido que Marx conceituou como sendo a
conscincia de classe para si e no somente classe em si. Segundo, existir na
Bolvia um conflito mais tnico que econmico de acordo com o repertrio discursivo
reivindicativo dos levantes sociais no incio de sculo XXI? Ou os dois processos
conflituais (tnico e econmico) so pares entre si, ou seja, esto em consonncia sem
hierarquizao de importncia e de valor?
Portanto, necessrio fazer uma anlise social, poltica e econmica da Bolvia,
para focarmos os MIBs em uma perspectiva marxista, tendo em conta que os seguintes
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aspectos: a questo da identidade indgena, dos atores em jogo, os papis das
lideranas indgenas, o Estado boliviano, a crise do neoliberalismo nos finais do sculo
XX e incios do XXI, a postura ideolgica de alguns partidos polticos bolivianos, para
assim, entendermos como a viabilidade da perspectiva marxista pode ser verificada
atravs dos MIBs como potenciais agentes protagonistas da revoluo social - como
meios mais eficientes para alcanar a distribuio radical dos bens (Alexander, 1998:5)
bem como compreender, qual a posio do marxismo1 no cenrio conflitual
boliviano.
Por outro lado, a corrente que foi consagrada como paradigma dominante ao lado
da matriz marxista at a dcada de 602 foi a Escola de Chicago e os interacionistas
simblicos. Dentro desta perspectiva americana de estudo dos movimentos sociais,
temos a abordagem de Herbert Blumer (1978) que tem forte inspirao e influncia de
Robert Park, autor que cunhou o termo multido para caracterizar aes que, apesar
de serem coletivas, so dispersas e individuais. Sua obra fortemente marcada pela
psicologia individualista dos membros em um determinado colectivo (Park apud
Estanque, 1999: 85). Blumer foi talvez o mais influente autor da Escola de Chicago,
criador do conceito de interacionismo simblico em 1937 para analisar os
comportamentos colectivos - ele descrevia os significados simblicos, manifestados
pelos movimentos sociais - como o conjunto de relaes sociais de interao entre os
membros do grupo que eram movidos principalmente pelos smbolos com uma nfase
ao microsociolgico, enquanto os movimentos sociais eram vistos por Blumer como
pequenas sociedades (Alexander, 1998: 4). No perodo do ps-guerra, a
comunicao de massas atravs da propaganda, criava alguns smbolos atravs da
opinio pblica, que eram absorvidos por alguns indivduos e influenciava a mudana do
pensamento com relao ao coletivo. Os indivduos passavam a ter uma perspectiva
egosta da ao coletiva. Alm disso, a linguagem um dos aspectos principais de
1 Segundo Gohn (2002) Em geral, dentro do pensamento sociolgico latino-americano, o trabalho de Marx influenciou duas vertentes de pensamento: uma a que ficou conhecida como o marxismo ortodoxo, hegemnico at dcada de 60, que priorizava em suas anlises os fatores econmicos e estruturais da sociedade capitalista para a criao das demandas polticas dos movimentos sociais tendo frente Lenin e Trotsky. A segunda perspectiva, seria o marxismo baseado nas obras filosficas e polticas de Marx, que d nfase filosofia e desvincula a teoria de Marx ao movimento operrio, ligando-o somente ao trabalho acadmico, os principais autores desta perspectiva so Rosa Luxemburgo, Gramsci e Lukcs. 2 Aqui afirmamos que a matriz terica americana liderada por Blumer foi dominante no s nos Estados Unidos, mas tambm em contexto latino-americano at a dcada de 60. Exclusse aqui a Europa da nossa observao.
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comunicao simblica dos grupos. Visto assim, as manifestaes pblicas so
construdas por essas narrativas fomentadas pela comunicao social e absorvidas
pelos movimentos sociais (Blumer, 1978).
Na sequncia, temos o contributo do paradigma clssico da sociedade de
massas para a constituio da sociologia dos movimentos sociais, com Eric Fromm,
Hoffer e Kornhauser como principais representantes desta Escola (Gohn, 2002:35;
Machado, 2007). As concepes deste paradigma tm forte inspirao na anlise de
Gustave Le Bon (Le Bon, 1995) que no incio do sc. XX, constatava a perda da
racionalidade dos homens quando organizados em grupos e uma tendncia ao mal-
estar para as sociedades da poca, principalmente na Frana.
O alto grau de generalizao invocado por Kornhauser em sua obra The politics
Mass Society dificulta o uso de sua concepo terica para o enquadramento necessrio
dos MIBs (Chazel, 1999: 309-310). Assim, a transposio do pensamento de Le Bon
comportamento irracional das massas - adotado pelo paradigma da sociedade de massas
para o estudo dos movimentos sociais (comportamento coletivo das massas) foi
aplicado em um contexto de totalitarismo na Europa (a teoria de Le Bon inspirou
totalitrios como Staline e Hitler). Assim, os movimentos sociais estudados por esta
escola no-democrtica (Gohn, 2002: 36) eram produtos direto dos regimes totalitrios
europeus. Contemporaneamente, alguns socilogos como Alain Touraine atribuem a
tais movimentos sociais organizados na sociedade civil, um cunho estritamente
ideolgico-poltico - baseados na propaganda fascista - a nomenclatura de anti-
movimentos sociais (Touraine, 1998).
Em meados do sculo XX no contexto de mundo bipolar (Guerra-fria), os
autores S. Lipset e R. Heberle trouxeram de volta para a anlise dos movimentos
sociais algumas clivagens tericas da sociologia poltica clssica. Como por exemplo, a
luta de classes inspirada em Marx, deixa de ser uma luta revolucionria voltada para a
destruio do Estado burgus, e passa a ser travada no mbito da institucionalidade.
Lipset classificou este processo como o senso de comunidade, que era decidido dentro
da concorrncia eleitoral da vida poltica, sendo manifestada atravs do voto que
media a vontade comum (Gohn, 2002: 38). Lipset focou parte de sua anlise sobre a
Amrica latina, ele observava que os movimentos sociais e as mudanas estruturais das
sociedades latino-americanas eram particulares e diferentes com relao a Europa
Ocidental e os Estados Unidos. Assim, Heberle apontava para o crescimento e
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fortalecimento dos movimentos sociais (organizados, e por vezes dispersos) neste
contexto bipolar visualizava que uma manifestao de rua iniciada a princpios sem
pretenses revolucionrias, poderia transformar-se em uma revoluo poltica como
estratgia (Chavel, 1999; Tarrow, 1994). Curiosamente, as anlises desta escola no
espao e no tempo no caso de Lipset, e no tempo no caso de Heberle, coincidem com
o ano de 1952 em que se iniciou um dos maiores processos revolucionrios na Bolvia,
aps a revoluo russa de 1917.
Em suma, para Heberle o conceito de senso de comunidade fundamental para
o estabelecimento de uma ordem social. O que determina os tipos de aes coletivas,
as relaes polticas, jurdicas criadas na sociedade civil e no Estado no podem ser
mantidas sem haver um mnimo de senso de comunidade entre seus membros (Heberle,
1951; Lyman, 1995:57 Apud Gohn, 2002: 38).
Por outro lado, Talcott Parsons atravs da sua teoria do sistema social onde a
anlise da estrutura, da moral, das leis e da integrao (desintegrao) dos indivduos
na sociedade (Cordova, 2007) influncia na emergncia de mais ou de menos
movimentos sociais em um determinado pas, trazendo as suas concepes para o
campo da ao social protagonizadas pelos movimentos sociais. Sua nfase a
estrutura social como responsvel pelas contradies da sociedade, como o conjunto
dos atores polticos aparece em consoante ao surgimento do conflito social (visto de
modo individual). Ou seja, a estrutura social em movimento (para Parsons a mudana
sistmica era quase esttica, principalmente nos pases centrais) tem origem na prpria
estrutura social - As perturbaes, incertezas, frustraes e a ausncia de boa vida so
fatores importantes segundo Parsons para a compreenso dos movimentos sociais. Por
outro lado, Parsons no dava importncia s origens histricas e polticas dos
movimentos sociais, e muito menos, ao carter das suas aes coletivas (os
movimentos sociais eram vistos como naturais e limitados pela estrutura social). Ele via
os movimentos sociais de forma totalizadora como - as necessidades individuais
(comportamentos individuais) - como fator central para formao dos movimentos
sociais como subproduto da anomia social passageira da estrutura global de uma
sociedade (Gohn, 2002).
Em oposio a Parsons, defendemos que a relao do Estado-nao com a
sociedade civil - os atores sociais em jogo (classes sociais, identidade indgena, partidos
polticos, movimentos sindicais e sociais) clarificada atravs das suas posies
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25
antagnicas de projeto societal - a impacificao social fruto dos interesses opostos em
suas divergncias de opinies, de organizao social jurdica, poltica e as aspiraes
para a materializao dos anseios da busca da boa vida o que dita o ordenamento
social e estatal.
1.1.2 A abordagem contempornea sobre a teoria da aco colectiva e dos movimentos sociais
O surgimento de uma das perspectivas contemporneas sobre a teoria da ao
coletiva foi o paradigma dos novos movimentos sociais (NMSs) na Europa. A anlise
das manifestaes e reivindicaes do movimento estudantil na Frana com o
despertar do Maio de 1968, e os movimentos sociais de direitos civis e polticos nos
Estados Unidos, representou uma mudana reflexiva destes NMSs do ponto de vista
sociolgico (Gohn, 2002). O aumento das reivindicaes contra o Estado e o mercado,
com manifestaes explosivas oriundas - das classes mdias na Europa, e das
minorias tnicas nos Estados Unidos aclamando por mais direitos civis e polticos -
levaram diversos autores a fundarem novas formas de abordagens interpretativas dos
movimentos sociais. Assim como o paradigma dos NMSs, a teoria da mobilizao de
recursos (MR) de Olson, Zald e McCarthy diferenciou-se de forma clara das teorias
sociolgicas clssicas anteriores, que davam grande nfase aos aspectos psicosociais
ligando-os s condies de existncia material dos indivduos e s suas reaes em
forma de manifestao ou contestao social. Ou seja, a psicologia social que se
baseava nos comportamentos coletivos condicionamento individual de certa forma
foi abandonada tanto pelo paradigma dos NMSs, quanto pelo paradigma da MR (Gohn,
2002;49).
Olson (1999) trabalha com a concepo segundo a qual no seio dos
movimentos sociais, que possuem estruturas organizativas formais e de grandes
dimenses (por exemplo, grandes associaes norte-americanas), aparecem os
chamados grupos de interesses. Em sua obra A lgica da ao coletiva Olson utiliza uma
lgica universalizante da teoria da ao coletiva com um destaque para a ao do
indivduo coletivo em busca da sua construo identitria. Se por um lado, ele afirma a
existncia de um pice da participao poltica dos membros de um movimento social -
aes de interveno poltica - por outro lado, vincula a ao individual a um grau de
longevidade da ao coletiva. Ou seja, a participao coletiva dos membros passa a dar
lugar a um clculo utilitarista e individualista dos membros de um grupo, que passam a
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26
tomar determinadas decises quanto a sua participao em aes polticas e sindicais
(Tejerina, 2005: 78;79). Hipoteticamente, se Olson fosse analisar a Confederao
Sindical nica dos Trabalhadores Campesinos da Bolvia (CSUTCB)3, iria abordar e
selecionar os grupos de interesses para explicar o fenmeno da ao coletiva desta
central campesina. Segundo ele, o mundo funciona de acordo com os interesses
(concorrncia, meritocracia e hierarquizao dos espaos sociais) portanto,
acreditamos que em sua anlise de cunho bastante ideolgico, o autor vislumbra uma
espcie de lei da sobrevivncia que transportada para dentro dos movimentos
sociais - incluindo os sindicatos, onde Olson v na hierarquia e na disciplina s quais os
membros so submetidos atravs das lideranas, como um conjunto de aes
coercitivas que visam em ltima instncia o bem comum do organismo (Olson,
1999). Na sua viso marcadamente utilitarista, ele via uma liberdade de atuao dos
indivduos: [] Assim como pode se supor que os indivduos que pertencem a uma
organizao ou grupo tm um interesse comum, eles tambm tm interesses
puramente individuais, diferentes dos interesses dos outros membros do mesmo
grupo ou organizao [] (Olson, 1999:20) .
Portanto, os seguidores da corrente terica inaugurada por Olson, Zald e
McCarthy aplicaram o mesmo modelo terico de Olson para analisar as dinmicas dos
movimentos sociais os grupos de interesses inerentes ao coletiva. Os
movimentos sociais de grande estrutura eram organizados como empresas e os grupos
de interesses encerravam-se na competio com outros grupos internos do
movimento, e viam a chance de agarriar benefcios e status atravs dos ganhos que
poderiam obter na participao ou no da ao coletiva. Os lderes eram gerentes e
administradores dos sindicatos e das associaes econmicas (Aguilar, 2001).
Entretanto, concordamos com a posio de Chazel (1999) em sua anlise sobre
a teoria Olsiana, quando este reitera a crtica de Olson s perspectivas clssicas e
concepo do marxismo vulgar quanto mobilizao quase natural das classes
sociais dentro de um movimento social que de acordo com esse tipo de marxismo,
os indivduos se engajam na luta social por terem interesses comuns pelo fato de
pertencerem mesma classe social.
3 A CSUTCB a principal organizao indgena da Bolvia e que ser central na nossa observao sobre os MIBs.
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27
Neste sentido, Charles Tilly includo por muitos autores dentro da vertente
terica do MR, e para outros autores como membro efetivo do paradigma dos NMSs
(Gohn, 2002), traz em sua obra From Mobilization to Revolution de 1978 um debate
importante sobre a teoria marxista, dando nfase histrica ao coletiva e ao
aprofundamento do papel da ideologia e das crenas sociais nas construes decisivas
de organizao do movimento social na preparao das aes coletivas. Assim, o
trabalho histrico sobre as aes coletivas consiste em descobrir quais conjuntos de
pessoas, recursos, fins e as formas de compromisso esto envolvidos em diferentes
lugares e tempos (Gohn, 2002: 66). Tilly (2004) no descarta a questo da
racionalidade na ao coletiva, ligando as responsabilidades na montagem desta
racionalidade s estratgias adotadas pelos atores da ao coletiva. Para Chavel (1999),
Tilly ainda segue a perspectiva da MR, sendo sua ltima vertente nas cincias sociais,
manifestada pela teoria do conflito poltico onde os atores em jogo so visualizados
dentro da politia (Chazel, 1999).
Neste sentido, o crescimento qualitativo da perspectiva terica de Tilly, teve o
seu apogeu na formao da chamada (TMT) Tilly, McAdam e Tarrow (Flacks, 2005),
onde estes autores organizaram uma coletnea indita de trabalhos acadmicos sobre
movimentos sociais com o nome geral de contentions politics que pode ser verificada na
obra deles: The Dynamics of Contention (2001). A TMT centra o peso da sociologia dos
movimentos sociais na relao entre os constentadores e os governantes ao longo dos
conflitos localizados em um perodo histrico ciclos de aes coletivas4. O dilogo dos
movimentos sociais com os governos seria chamado de repertrio5 das aes coletivas ao
longo da histria de um movimento de contestao repertrio de confrontao -
conceitos utilizados por Tilly para caracterizar os interesses partilhados de um grupo
(Tilly, 2004).
Se por um lado, a tese hegemnica do paradigma americano da racionalidade e
do utilitarismo de Olson ainda estava em pleno vapor e tinha grande espao no meio
acadmico, por outro lado, a teoria marxista ainda gozava de grande prestgio na
4 Na perspectiva de Tarrow (1994) ciclos de aes coletivas surgem em momentos histricos especficos, quando a ao colectiva no plano poltico tem um carcter de mudana estrutural. As aes coletivas que apresentam inovaes na interveno poltica geram uma fuso entre diversos sectores da sociedade civil. Uma combinao de poderes, que antes estava dispersa na sociedade grupos que estavam organizados em sindicatos e movimentos sociais e os que no estavam organizados em associao. 5 Tarrow (1994) afirma que o repertrio a fuso entre os aspectos estruturais e culturais dos movimentos sociais. A preparao do movimento social para a confrontao contra outros adversrios.
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dcada de 60. Alm disso, a ruptura do NMSs foi o no-alinhamento, primeiro
perspectiva racionalista do individualismo metodolgico de Olson e suas vertentes, e
segundo, ao ortodoxismo de classes sociais que marcava as contribuies do
marxismo a centralidade da classe operria utilizada de forma redutora. Ou seja, ao
invs da homogeneidade na ao coletiva, defendiam que havia uma heterogeneidade.
Assim, as classes mdias passaram a ter lugar relevante para a explicao da ao
coletiva, tanto do ponto de vista econmico, como poltico e cultural em suas
intervenes coletivas (Eder, 2001).
Portanto, a perda de flego do marximo ortodoxo, humanista e da MR
representou a ascenso do paradigma dos NMSs no mbito acadmico, principalmente
no ps-queda do Muro de Berlim. Porm, a categoria de classes sociais continua em
algumas teorias do paradigma dos NMSs a ter uma importncia relativa de acordo com
o movimento social analisado. O que consensual neste paradigma que a vertente
cultural dos movimentos sociais passa a ter mais importncia que nos paradigmas
anteriores. Apostam no trabalho conjunto da questo ideolgica com a cultural do
grupo social, mas a ideologia deixa de ser somente a falsa representao da realidade
social e passa a ser incorporada como sinnimo de identidade na formao dos
movimentos sociais (Gohn, 2002).
Em suma, os NMSs representam esforos coletivos com objetivos de atingir um
ou vrios pontos das estruturas sociais (Estado e sociedade civil) mudana nas
normas, nas leis e na incluso poltica, econmica, cultural e social envolvidos em
novos conflitos polticos e culturais nas sociedades civis ocidentais. Buscam obter
vitrias sobre novas demandas que surgem do social e que so protagonistas das suas
aces colectivas, que se do de forma consciente. Fundamentalmente, os NMSs so
abordados por mtodos distintos da sociologia dos movimentos sociais
contemporneos dentro deste paradigma desde a reviso da teoria parsiana da ao
social, passando pela Escola de Frankfurt at o neomarxismo vo florescer dentro
deste grande paradigma.
Neste sentido, o debate terico acerca dos movimentos sociais latino-
americanos (MSLA) teve na sociologia europeia, um importante lugar nas abordagens
propostas por Alain Touraine sobre a modernidade, os sujeitos sociais e o Estado no
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sub-continente (Scherer-Warren, 2005). A sua teoria do acionismo6 ganhou grande
espao nas universidades e nos grupos de pesquisa sobre os estudos dos movimentos
sociais. Sob a gide do sujeito histrico como protagonista da ao coletiva, Touraine faz
a seguinte classificao para a sua interveno na realidade social um movimento
social ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural, pois visa sempre a
realizao de valores culturais, ao mesmo tempo que a vitria sobre um adversrio
social (Touraine, 1997a: 254). A sustentao da teoria do acionismo de Touraine d-
se pela seguinte caracterizao:
O movimento social apresenta-se na abordagem acionista como a ao de um grupo, um ator coletivo. Para tal necessrio que ele se defina por sua situao nas relaes de produo, isto , que situe suas reivindicaes e sua oposio a um grupo adversrio no interior dos problemas da sociedade industrial (Gohn, 2002: 143). A composio para a consolidao e identificao dos movimentos sociais para
Touraine, tm que levar em considerao trs aspectos da realidade: classe, nao e
modernizao7. Ele acredita que o conflito central das sociedades ps-industriais o que
conduz os sujeitos histricos na luta contra a tecnocracia e o mercado, igualando a
esfera do conflito econmico ao conflito cultural na modernidade (Touraine, 1998).
Assim, o movimento social muito mais que um grupo de interesses ou instrumento
de presso poltica; ele pe em causa o modo de utilizao social de recursos e de
modelos culturais (Touraine, 1998: 128).
Os chamados conflitos culturais na atual modernidade ocidental como afirma
Touraine, esto inseridos no novo marco terico das sociedades globais e dos
movimentos sociais que visam uma incluso identitria (Touraine, 2006). A difuso das
idias e da ao do sujeito histrico nos pases centrais e perifricos so distintas. Por
isso mesmo, Touraine busca uma teoria especfica para o continente latino. Por
exemplo, os movimentos sociais oriundos dos pases centrais hoje erguem bandeiras
ligadas liberdade e igualdade de direitos, ou seja, so muito mais morais que
propriamente econmicos ou polticos (Touraine, 1998). Assim, a anlise da
6 Por Touraine (1989) a ao coletiva um campo histrico dividido em trs variveis: o conhecimento, o modelo cultural e acumulatvo. O conflito social gerado pela dominao do campo histrico da sociedade, os sistemas polticos hierarquizados, e na confrontao de oposio dos poderes observam-se os movimentos sociais em trs nveis analticos: a historicidade, as instituies e as organizaes. 7 Para Chazel (1999) Touraine fez um enquadramento terico sobre os movimentos sociais rgidos com essa trplice coloo: 1-ao conflitual, 2 conduzida por um ator de classe, 3 que se ope a seu adversrio de classe com vistas ao controle do sistema de ao histrico (Chazel, 1999:285).
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Democracia, da modernizao, da industrializao e da etnicidade so necessrias
dentro da perspectiva de Touraine para se analisar os MIBs.
Touraine (1977b) utiliza em consonncia com sua teoria, a teoria da
modernizao dualizao produtiva que marca os pases perifricos e a teoria da
dependncia para observar como os movimentos sociais surgem no contexto latino-
americano. Assim, ele observou uma certa similaridade da sua anlise sobre os
movimentos sociais latino-americanos, e os NMSs europeu fragmentao da
conscincia de classe, a substituio do movimento operrio clssico (da centralidade
das classes sociais) para a hegemonia dos NMSs (diversificados, no-lineares,
reivindicaes especficas, histricas e reformistas) - baseado na sua teoria tripartida:
classe, nao e modernizao.
Assim, a proposta de Touraine a construo de uma teoria multidimensional
para ao coletiva na Amrica latina: Todo movimento social , ao mesmo tempo,
movimento de classe, movimento anticapitalista, oposto dominao estrangeira, e
movimento voltado para a integrao e modernizao nacional. (Touraine, 1977b).
Ainda segundo o autor falta aos movimentos unidade nas aes; eles so frgeis,
heterogneos, dilacerados internamente e tendem fragmentao (Gohn, 2002, p.
144) em contexto latino-americano.
Neste sentido, Alberto Melucci deu destaque questo de identidade coletiva
(Melucci, 1996: 68-71). A construo analtica que utiliza para observar um NMSs
dotada de uma complexidade sociolgica que visa a busca da essncia da ao coletiva
em seu processo de produo retrica (semntica, falada e escrita) sendo composta
por vrios graus do sujeito coletivo: poltico, econmico e cultural. Para Melucci, nem
todo o ato de protesto manifestaes sociais e conflitos na sociedade civil
envolvendo um agrupamento de pessoas pode ser uma ao dos movimentos sociais:
o desdobramento das aes coletivas multifacetado em um processo criado pelas
relaes dos atores onde criada a identidade coletiva.
Assim, as conexes de redes so as maiores demonstraes do grau de coeso
e de identidade coletiva emanadas dos NMSs, criando a solidariedade coletiva na retrica
discursiva. Os NMSs tm uma forte tendncia a ser menos hierarquizados e mais
horizontais, o que Melucci chama de redes submessas (Melucci, 1996). Apesar disso, a
produo dos objectivos, das tticas e estratgias da ao coletiva, bem como a
fomentao da participao dos membros do grupo motivada pelos lderes que
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31
possuem um papel central para a criao do esprito de mobilizao (Melucci, 1996).
Repara-se que a identidade coletiva para Melucci no dada pela identidade de classe
social ou pela prpria adeso de indivduos aos movimentos sociais, mas sim, criada
pelo prprio conjunto de interaes, negociaes, manuteno, adaptaes, decises e
conflitos entre os atores pertencentes a um movimento social (Melucci, 1996:04).
Em definitivo, os movimentos sociais contemporneos so redes de solidariedade
(Melucci, 1996) com grande enfoque nas questes ligadas a ordens afetivas, subjetivas e
culturais. Os NMSs so em suma os profetas do presente e formadores de novos lderes
(Melucci, 2001). Portanto, acreditamos que a conceituao proposta por Boaventura
de Sousa Santos substantiva sobre os NMSs: a novidade mais grande dos NMSs
reside em que constituem tanto uma crtica regulao social capitalista, como uma
crtica emancipao social socialista tal como foi definida pelo marxismo (Santos,
2001b).
1.1.3. A construo do quasi paradigma latino-americano
Neste sentido, compreendemos que para analisar a aco dos movimentos
sociais e populares latino-americanos, os paradigmas no geral at agora apresentados
mostram-se insuficientes para a compreenso dessa realidade continental. Ou seja,
com uma aplicabilidade limitada para se entender os movimentos sociais dos pases do
sul sociolgico, no caso especfico da Bolvia.
Neste sentido, apesar do nmero de publicaes sobre movimentos sociais na
Amrica Latina ser considerado grande, principalmente a partir da dcada de 70
(Gohn, 2002: 211)8as contribuies que se destacaram foram as teorias da
modernizao, da dependncia por Cardoso e Falleto (1979) e da marginalidade por
Kowarick (1985). Estas teorias ganharam uma relativa repercusso naquele momento e
ao longo das dcadas de 80 e 90. Partindo de seus pressupostos, a Comisso
Econmica para o Desenvolvimento da Amrica Latina (CEPAL)9 continuou
8 Gohn (2002) faz uma reviso bibliogrfica de inmeros trabalhos sobre movimentos sociais a partir da dcada de 70, comeando pela teoria da modernizao, da marginalidade e dependncia na Amrica Latina. 9 Ainda hoje a CEPAL encontra-se em funcionamento, sendo uma das sesses da ONU que analisa questes ligadas ao desenvolvimento econmico, social e poltico da regio. Seu trabalho basicamente voltado para sistematizao de dados demogrficos, socioeconmicos de medidores da realidade quantitativa do continente. Ainda que alguns socilogos faam produes sobre os movimentos sociais latino-americanos.
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produzindo peridicos e artigos com relao peculiaridade e ao desenvolvimento
cultural, poltico e econmico do subcontinente.
Neste sentido, uma das justificativas para a perpetuao da dependncia das
escolas latino-americanas em relao s perspectivas sociolgicas americana e europeia
foi a instaurao das ditaduras militares em quase todos os pases da regio, o que
dificultou os prosseguimentos dos trabalhos Domingues e Maneiro (2006). Assim, com
a redemocratizao dos pases do continente as pesquisas sobre os movimentos
sociais ganharam novo impulso. Mesmo assim, observa-se a hegemonia do paradigma
americano e europeu, principalmente dos NMSs - mantendo-se a perpetuao da baixa
intensidade de produo terica sobre os movimentos sociais neste incio de sculo
XXI (Gohn, 2002; Domingues, 2007; Scherer-Warren, 1998). O Conselho Latino
Americano de Cincias Sociais CLACSO10 ao longo dos anos tem produzido atravs de
seus pesquisadores alguns trabalhos acerca dos movimentos sociais latino-americanos,
principalmente atravs do OSAL (Observatrio da Amrica Latina), a temtica voltou a
ganhar destaque devido ao crescimento dos conflitos na Amrica Latina como
podemos visualizar no quadro 1:
Quadro 1
Fonte: Elaborao do Observatrio Social da Amrica Latina (OSAL)
Em uma breve consulta no site da CLACSO sobre a temtica dos movimentos
sociais, aparecem disponveis em linha, mais de 2400 publicaes. Parte significativa das
abordagens segue a linha de pensamento e reflexo sobre as lutas dos diversos
movimentos sociais do continente com uma perspectiva matriz terica crtica. Repare-
10 uma organizao no-governamental internacional, fundada em 1967 e mantm relaes consultivas formais com a UNESCO. Actualmente, totaliza 254 ncleos de investigao e ensino de graduao e ps-graduao nas cincias sociais com base em 25 pases na Amrica Latina e no Caribe, Estados Unidos e na Europa, para ver acesso: http://www.clacso.org.ar/
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33
se que crtica no necessariamente quer dizer de matriz terica marxista, mas em
oposio perspectiva neoliberal. Ou seja, nas publicaes que encontramos na
CLACSO existe uma variedade terica diversificada analisadas por autores como
(Mirza, 2006; Linera, 2006, 2007, 2008; Balderrama, 2001; Sader 2006; Zibechi, 2006)
entre outros.
Em quase uma dcada, percebemos que o debate sobre os movimentos sociais
comea novamente a ganhar centralidade aps a estagnao do incio da ltima dcada
na sociologia global e tambm latino-americana. Sader (2006) faz uma anlise resumida
do cenrio poltico e econmico da Amrica Latina no sculo XX e em particular seu
breve desenrolar a nvel de Estado, partidos e da Democracia no incio da dcada de
90. O autor mostra como as pretenses neoliberais tornaram o novo milnio
indefinido a nvel das sociedades latino-americanas. A sua anlise engloba os
movimentos sociais do subcontinente, mas com um olhar pessimista da realidade
social. Por outro lado, Seoane et al. (2006) do grande nfase ao atual estgio conflitual
no mbito latino-americano, desvendando a forma como a emergncia dos
movimentos tnicos teve seu pice com as reivindicaes que vo desde o
reconhecimento da identidade indgena pelo Estado at a sua construo a nvel de
sociedade civil. Seoane et al. baseiam-se nas transformaes das plataformas de lutas
por direitos coletivos histricos dos movimentos sociais, que ocorreram no Mxico
com o zapatismo e na Bolvia com a interveno dos movimentos sociais e populares
no incio do sculo XXI. Aderindo esta mesma viso Zibechi ressalta a centralidade
dos MSLA no atual contexto (Zibechi, 2006).
Alm disso, em uma ptica crtica de democracia, governos, movimentos
sociais e partidos polticos latino-americanos, Atlio Boron (Boron, 2005) segue a linha
da contestao da doutrina neoliberal no contexto latino-americano. A sua indagao
que o mercado tem transformado a pouca democracia no subcontinente em uma
verso mais dbil e ineficaz abrindo espao para interveno dos movimentos sociais
como atores ativos neste contexto. Ou seja, os novos atores influenciam diretamente
a democracia representativa, dando lugar a novos governos de esquerda em vrios
pases da regio, dentre estes a Bolvia e a Venezuela.
Assim, ele observa o fracasso do projeto neoliberal no continente,
concomitante ao processo de ascenso dos MSLA neste novo milnio. Em uma
perspectiva semelhante mas voltada para a cincia poltica, Alvarez et all (2005)
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34
trabalham com a perspectiva de que o cultural e o poltico operam dentro dos MSLA
gerando novas formas de atuaes nas aes coletivas na esfera da cultura poltica11.
Delimitando a anlise para o nosso objeto emprico, Alvaro Garcia Linera
(2008) faz um debate e busca a particularidade dos movimentos sociais bolivianos em
oposio perspectiva do marxismo. A sua grande questo que o marxismo deixa de
lado a temtica indgena em suas anlises sobre os movimentos sociais. E que tal fato,
deve-se pela complexidade das sociedades andinas porque combinam cariz tradicional
e moderno em sua formao, tanto pelo ponto de vista econmico, quanto pelo
cultural. Portanto, segundo o autor, qualquer teoria que pretenda estudar os
movimentos sociais bolivianos, devem adotar pressupostos desta diferena, e ter uma
clareza sobre os aspectos do capitalismo que se desenvolveu ao longo das dcadas nos
pases de maioria de povos indgenas como o caso da Bolvia.
Neste sentido, outros autores contriburam para o debate terico sobre os
movimentos sociais contemporneos latino-americanos. Dentre eles Garreton (2002)
discute como a autenticidade terica de Touraine, apresentada mais acima, encontra-
se presente no surgimento dos novos atores coletivos. Efetivamente, os potenciais
destes atores coletivos tm originado novas formas de aes coletivas no contexto
democrtico latino-americano.
As questes das novas identidades coletivas, da globalizao, das novas formas
de incluso e excluso coletivas, bem como a consolidao dos movimentos de
carcter alterglobalista como o Frum Social Mundial12 impactaram os suportes
elementares dos paradigmas clssicos da Sociologia dos movimentos sociais. A
centralidade no esta mais somente nas classes sociais (luta de classes) e muito menos
no utilitarismo racionalista de Olson, mas sim na anttese da luta social no campo da
cultura poltica13, das inovaes tecnolgicas de comunicao e informao (Castells,
1999) e na defesa do nacional em contraposio a muitas caractersticas da
modernizao. Retornando para a discusso sobre o quasi paradigma latino-americano,
podemos proferir que no subsiste realmente um paradigma no continente, mas que o
actual contexto da Amrica Latina neste incio de novo milnio apresenta todas as
11 Se entende cultura poltica como os sujeitos coletivos modificando a estrutura social atravs da poltica, e no como uma poltica pblica feita pelos governos com vista a promover um aspecto cultural local como geralmente associa-se o conceito (Alvarez et al. 2005). 12 Ver Boaventura de Sousa Santos (2005b). 13 Ver mais em Alvarez e all (2005).
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35
circunstncias para proporcionar aos pesquisadores as ferramentas necessrias para
construir uma perspectiva autnoma e independente dos paradigmas europeu e
estadunidense. Pensamos que as condies so as seguintes: 1) As universidades, os
centros de pesquisa, as associaes e os institutos de pesquisa esto mais consolidados
hoje. J existe uma tradio de estudos sobre os movimentos sociais (Gohn, 2002;
Domingues, 2006); 2) As teorias latino-americanas devem descodificar as aces
sociais protagonizadas pelos movimentos sociais, principalmente nos seus momentos
de ascenso o que o caso no actual momento; 3) Essas teorias devem ser
ponderadas pela historicidade dos pases aos quais os movimentos surgem e ressurgem
no cenrio conflitual. Ou seja, para o nosso caso especfico devem ser levadas em
conta - a Histria dos povos originrios, o passado colonial, a industrializao
tardia/parcial de alguns pases do continente; 5) A particularidade dos sistemas
polticos, principalmente evidenciados no perodo ps-colonial republicano; 6) Os
impactos da globalizao nas sociedades latino-americanas.
Neste sentido, o questionamento central desta tese o seguinte: qual o lugar
dos MIBs dentro da sociologia dos movimentos sociais? Qual o seu papel, a sua
identidade, as principais caractersticas e perspectivas dentro da sociedade boliviana
contempornea? Para tais questes levantadas, parece intransponvel a utilizao da
perspectiva multidimensional Utilizaremos as teorias sociolgicas que contemplem
nossa caracterizao e nosso objecto de estudo: una de las caractersticas propias de
Amrica Latina es que no hay movimientos sociales puros o claramente definidos,
dadas la multidimensionalidad, no solamente de las relaciones sociales sino tambin de
los propios sentidos de la accin colectiva (Ponte apud Santos, 2001b).
Portanto, a transdisciplinaridade quando for o caso, os conhecimentos ditos
no-cientficos (o senso comum) devem ser tomados em conta para analisar os
MSLA. Assim, vamos utilizar as teorias j discutidas sobre os movimentos sociais ao
longo do texto, juntando-as teorizao da noo de indgena que iremos tratar nos
prximos tpicos, em consoante com o trabalho de campo realizado na Bolvia.
Dentro deste contexto mister que hoje exista vrias formas histricas de aces
colectivas (Aguilar, 2001). Iremos tipific-la para o contexto boliviano no (quarto
captulo), assim como, buscando sempre visualizar a proposta de estudo dos MIBs,
dentro das seguintes categorias: 1) A historicidade do continente como particular em
relao a outras partes do globo. Analisar os MIBs dentro de uma perspectiva ps-
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36
colonial; 2) A heterogeneidade dos MIBs e sua classificao temporal emergncia
do NMSs na Europa e nos Estados Unidos condizem com o surgimento dos MIBs no
contexto boliviano; 3) As mudanas do capitalismo levaram complexificao da
estrutura de classes sociais e ao florescimento da identidade tnica; 3) As redes
internas e externas so estabelecidas intergrupo e entre os movimentos sociais
nacionais e internacionais baseados na solidariedade (cf. Anexo1), ex: Frum social
mundial; 4) Globalizao avano das tecnologias de informao e de comunicao,
mudanas nas relaes de trabalho e avano da ideologia neoliberal baseada na
Democracia representativa e com pouca nfase na Democracia participativa; 5)
Identidade coletiva ideologias, propostas, tipo de lideranas, projetos e estatutos; 7)
Composio social; 8) Ambientes que esto inseridos; 9) Longevidade; 10) Tipos de
aes coletivas. Assim, sem essas categorias enumeradas acima, os MIBs torna-se-a
impalpveis sociologicamente para sua compreenso como movimentos sociais.
Logo, partindo do pressuposto das categorias esboadas anteriormente
aplicando-as Bolvia, temos que levar em considerao que no existem movimentos
sociais puros ou claramente definidos no subcontinente, e isso um fato que torno
nosso objeto mais complexo, na medida em que existe uma multidimensionalidade
social no s das relaes sociais, mas tambm nos prprios sentidos da ao coletiva;
por exemplo, um movimento de orientao classista pode incorporar aspectos tnicos
ou de gnero o que distingue sua atuao frente a um movimento especfico como os
de orientao culturalista com contedos classistas.
Em sntese, partiremos de uma definio geral sobre NMSs que considere
tambm os MIBs. Assim acreditamos ser correta e sistemtica a caracterizao de
Chazel (1999) sobre o que um movimento social: um empreendimento coletivo de
protesto e de contestao que visa impor mudanas, de importncia varivel, na
estrutura social e/ou poltica atravs do recurso frequente, mas no necessariamente
exclusivo, a meios no-institucionalizados (Chazel, 1999: 285). Interessante
formulao que ao nosso ver contempla os MIBs, e os movimentos sociais em geral no
sentido restrito do que so NMSs. Contudo, para Castells, outro autor que tambm
tem analisado as mudanas das aes coletivas no subcontinente, faz a seguinte
conceituao:
Aces colectivas com um determinado propsito cujo resultado tanto em caso de sucesso como de fracasso, transforma os valores e instituies da sociedade. (...) No existem movimentos sociais bons ou maus, progressistas ou retrgradas. So reflexos do que somos, caminhos de nossa transformao (Castells, 2000).
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1.2. As relaes entre o Estado e a sociedade civil: As configuraes histricas do Estado nao na Amrica Latina e na Bolvia. 1.2.1. O Estado laissez faire, o Welfare State e o Estado neoliberal: as suas configuraes em contexto latino-americano. Com a revoluo industrial e francesa a burguesia consolida seu projeto de
poder. Neste primeiro momento, o capital tem no mercado o seu principal centro
dinmico e as principais bases para a criao das polticas econmicas e sociais que so
orientadas pelas instituies jurdicas que do sustentao ao regime de acumulao
global do capital. O Estado deveria somente garantir a ordem e aplicar as leis que
permitissem o funcionamento da livre concorrncia. Este sistema baseado no laissez
faire vigente durante o sculo XIX e incio do sculo XX. Tal processo histrico de
desenvolvimento capitalista nestes moldes foi construdo somente na Europa ocidental
e nos Estados Unidos onde nos finais do sculo XIX passa a incrementar ao
capitalismo liberal - a produo de mercadorias nos moldes do taylorismo / fordismo
com uma grande participao do mercado financeiro e o fortalecimento dos
banqueiros a nvel internacional. Em contrapartida, na Amrica Latina a organizao
social tinha como modelo central o capitalismo engendrado pelas oligarquias
latifundirias. Assim, aps os processos de independncias14 em todo o continente, as
oligarquias crioulas assumiram o poder poltico, econmico, jurdico e social. A base
econmica que dava sustentculo para a dominao era a produo de produtos
primrios para a exportao aos centros de poder dos pases do norte (Sader, 2006;
Domingues, 2007).
Com a crise de 1929, o Estado adquiriu muito mais centralidade, dando incio a
uma nova fase do capitalismo. O mercado passou a ter o Estado como seu principal
regulador, o que proporcionou o surgimento do chamado Welfare State nos pases
centrais do sistema global. O modelo de produo fordista complementava o sistema,
impulsionava uma grande produo de mercadorias, o que deu origem a uma nova
classe operria. Em contrapartida, na Amrica Latina surge o Estado
14 importante ressaltar que mesmo aps a independncia, os pases latino-americanos continuaram sofrendo os efeitos da dominao colonial - a modernizao ocidental baseada na cincia e no Estado-nao Alguns autores trabalham com a concepo conhecida como a colonialidade do poder (Quijano, 2000). Segundo Anibal Quijano, a elite criolla que comandou o processo de independncia dos pases latino-americanos no passava de algo em torno de 7% a 10% do conjunto da populao variando esse nmero de acordo com os pases. Isso significa que, desde o incio, um determinado padro de poder se conformou em benefcio de uma minoria branca, que se afirmou contra as outras populaes existentes em suas territorialidades (indgenas, camponeses e negras) (Quijano, 2000).
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desenvolvimentista15 que era uma tentativa distorcida de copiar o estado keynesiano
e o Estado de bem-estar que vigorou no ocidente europeu e americano at a dcada
de 80. Ao contrrio do que se esperava, este modelo originou um Estado de mal-estar
social representado na massificao do desemprego e da deteriorao das condies
de trabalho.
Contudo, nos pases centrais foi criando-se uma nova e grande classe mdia. Na
Amrica Latina ocorreu uma proletarizao e campesinao acelerada. No incio da
dcada dos anos 50 inicia-se a transferncia e a globalizao de algumas multinacionais
para os pases latino americanos, principalmente a indstria automobilstica. Porm,
muitos pases ainda continuam sendo predominantemente agrrios, como o caso da
Bolvia. Neste sentido, a dependncia das burguesias nacionais dos pases latino-
americanos era subserviente aos interesses dos pases centrais ou imperialistas, os
governos nacionais do subcontinente baseados nos anseios de progresso,
incorporavam em suas polticas a estratgia populista para manter a ordem. A essa
incorporao correspondia a represso dos sectores populares que rejeitassem a
tutela estatal, ou seja a independncia de organizao sindical.
Por outro lado, a configurao dos Estados nacionais na Amrica Latina, foi
produto de intensas lutas sociais entre a classe operria e camponesa, e a burguesia
tosca e totalmente dependente do capital internacional. Neste contexto, a revoluo
boliviana de 1952 representa um marco desses conflitos sociais.
Na dcada de 60, no auge da Guerra fria para conter as crescentes rebelies
em contexto latino-americano, influenciadas pelos movimentos de direitos civis
americanos, e estudantis e operrios na Frana, os Estados Unidos articulam
juntamente com as elites nacionais dos pases latino-americanos os golpes militares,
sendo iniciado na Bolvia e Brasil em 1964. Consecutivamente, para outros pases
latinos em nome da segurana continental. Os anos de chumbo do perodo do
Estado governado pelos militares foram marcados por um intenso ataque s
organizaes sindicais e aos movimentos sociais. Neste momento o que muitos
15 Como afirma Domingues (2007) o Estado era baseado na industrializao e urbanizao tardia e acelerada, que aps a crise de dominao oligrquica, predominou na Argentina, Mxico, Chile e Brasil a partir da dcada de 30. Assim, este novo modelo de Estado, Ficou marcado pelo surgimento de algumas leis trabalhitas, com um regime baseado em forte inspirao fascista, um de seus eixos para os movimentos sociais era a cooptao dos sindicatos que se fortaleciam naquele momento (Ianni, 1975). A Bolvia mistura mais uma verso de desenvolvimentismo com um forte apego ao passado oligrquico, tendo ambas as configuraes polticas, econmicas e sociais.
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chamam de milagre econmico dos anos 70 era na verdade uma combinao de
industrializao e urbanizao aceleradas e completamente atreladas aos interesses
internacionais. Somava-se a esse "milagre" o arrocho salarial dos trabalhadores
urbanos e a constante modernizao do campo que completavam o modelo. A
emergncia do neoliberalismo com suas primeiras experincias no Chile e na Bolvia
em nome da modernizao econmica vem como resposta crise. Porm, de forma
contraditria foi tambm neste momento que aos finais dos anos 1970, comeou a
ocorrer a transio para a democracia representativa (Sader, 2006; Domingues, 2007).
1.2.2. A formao do Estado boliviano
A submisso dos povos indgenas originrios foi a maior expresso da
primeira modernizao ocidental de dominao social - na hierarquizao de culturas e
na dicotomia do moderno e do atrasado onde os indgenas eram classificados como
selvagens. O modelo de produo mercantil baseava-se no modo de produo
escravista e tinha na monocultura a sua base de produo econmica. A
complementao da dominao dava-se no constante disciplinamento dos povos
indgenas, com a inculcao dos valores, da cultura e das normas sociais europeias e da
igreja catlica. No perodo republicano, a inovao da dominao social foi constituda
pela retrica da criao do Estado-nao mantendo-se a elite crioula na direo da
conduo dos interesses nacionais.
Porm, em 1929 a crise atingiu o pas em cheio provocando um verdadeiro
colapso na base econmica, afetando diretamente o regime oligrquico estatal na sua
relao com os bares do estanho que mantinham o funcionamento das instituies
estatais de acordo com seus interesses politico-econmicos, baseados no modelo
poltico do clientelismo16 (Andrade, 2007).
Assim, como consequncia direta da crise estrutural interna oriunda dos
problemas econmicos e de legitimao do Estado, a oligarquia boliviana, atravs do
governo, inicia uma ofensiva militar contra o Paraguai - episdio que ficou conhecido
como a Guerra do Chaco de 1932-35. O final da guerra teve um cenrio desastroso:
dezenas de milhares de indgenas bolivianos em sua maioria morreram no conflito.
Alm disso, ocorreu o aumento da dvida externa do pas, e a perda definitiva da
16 A forma de fazer polticas das oligarquias oriundas do perodo colonial. Com a proclamao da repblica ela reformulada em os novos empresrios do estanho.
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regio para o Paraguai. Os efeitos esperados pelo regime viraram-se contra ele, uma
crescente onda de manifestaes dos setores sociais foi desencadeada contra o poder
do Estado oligrquico. Por outro lado, a emergncia do sindicalismo mineiro, do
movimento campons e dos militares nacionalistas o chamado socialismo militar
liderado pelo oficial German Busch, articularam um golpe de Estado, e ento
assumiram o controle do governo em 1936 (Rivera, 2003, Andrade, 2007).
No perodo ps-guerra, o Estado passa a ter um papel de maior interveno na
economia, gerando um enfraquecimento das relaes histricas com os empresrios
do estanho. Por outro lado, a plataforma poltica dos militares - o populismo era
utilizada para conter as constantes manifestaes dos setores sociais (sindicais e
camponeses). Mas, foi neste momento que ocorreu a primeira nacionalizao (no incio
sem indenizao) da histria dos hidrocarbonetos bolivianos, a nacionalizao da
empresa Standart Oil acusada de ser aliada dos paraguaios na guerra. Alm disso, no
decorrer dos anos 30 e 40 surgiram no cenrio poltico boliviano, alguns partidos que
tiveram um papel importante na vida poltica do pas por muitos anos. Alguns
permanecem com peso poltico at hoje, so eles o Partido Obrero Revolucionrio
(POR) de origem ideolgica trotskista, o Partido da Esquerda Revolucionaria de
vertente estalinista (PIR), e o Movimento Nacionalista Revolucionario (MNR), partido
este que ter importante papel na vida poltica do pas, e tem na sua composio alguns
dirigentes e membros deserdados da antiga classe dominante (Zavaleta apud Rivera,
2003). Os seus principais lderes so Vctor Paz Estenssoro e Hernn Siles Zuazo.
Assim, o fortalecimento do MNR perante o movimento sindical e campons, tem
como base ideolgica o nacionalismo progressista, tem como base o nacionalismo
progressista, contudo aliado a uma posio anticomunista. O MNR ganha as eleies
de 1951, porm a vitria eleitoral no reconhecida pela oposio da oligarquia,
estabelecendo-se uma junta militar na Bolvia.
Em 1952 explode a revoluo boliviana, considerada por muitos intelectuais e
militantes de esquerda, a principal revoluo operria-camponesa do perodo ps-
Segunda Guerra mundial. Uma das consequncias diretas da revoluo foi a
universalizao do voto (incorporao do campesinato democracia representativa,
tendo em vista que os indgenas no tinham direito ao voto e a circular nos locais
pblicos, como nas praas de La Paz), a nacionalizao das minas de estanho e o incio
da reforma agrria que teve participao ativa do movimento campons. Alm disso,
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aconteceu uma sindicalizao em larga escala, tanto dos operrios quanto dos
camponeses. A destruio do exrcito convencional que foi substitudo pelas chamadas
milcias armadas operrias e camponesas, organizadas atravs da Central Obrera
Boliviana (COB). A crise do Estado, estava basicamente na sua diviso de poder com a
COB - o duplo poder aps a revoluo entre o Estado e a COB ou em um co-governo
entre MNR-COB (Andrade, 2007; Rivera, 2003).
Assim, o MNR via com maus olhos a relativa autonomia que a COB e o
movimento campons tinham ganhado no perodo ps-revoluo. As divergncias
entre a COB que passava a ter mais influncia do POR, inaugurava as novas formas de
conflitos de poder, que ficaram mais abertas quando Paz Estenssoro Presidente, do
MNR, cria a chamada estabilizao monetria com o Fundo Monetrio Internacional
(FMI). Esta posio do governo gerou grande oposio da COB, assim, aps 15 anos
de controle estatal do petrleo, o governo cria um novo cdigo de explorao do
petrleo boliviano e abre novamente a explorao para as empresas internacionais.
Para conter a oposio da COB ao governo, o MNR tinha em seu quadro, um
dos principais dirigentes sindicais da histria da Bolvia Juan Claudio Lechn. Isto
proporcionava uma relativa estabilidade governamental para Estenssoro. O governo do
MNR terminou com o golpe militar de 1964, que foi liderado pelo general Barrientos,
e apoiado pelos Estados Unidos. Neste momento, inicia-se uma grande represso aos
sindicatos mineiros de sustentao da COB. Em contrapartida, Barrientos procurava
uma aproximao com o movimento campons, instaurando-se assim, o famoso Pacto
Militar-Campons (PMC) (Rivera, 2003). Mas, aps a morte sbita de Barrientos em
1969, abria-se um perodo de instabilidade entre os militares e em 1970 assume o
poder o general Juan Jos Torres que procurou uma reaproximao do governo com a
COB e a ex-URSS. Alm disso, nacionalizou a Gulf Oil Company, uma empresa de
explorao petroleira americana. Porm, como resposta, os Estados Unidos
articularam atravs de Santa Cruz um novo golpe de Estado, tendo o General Hugo
Banzer a frente. Aps a instalao da ditadura de Banzer, que governou o pas com
mo de ferro e aproveitando-se do grande fluxo de capital internacional para manter
alguns setores sobre seu domnio, manteve-se por um perodo longo no poder. Na
tentativa de sufocar as oposies perseguiu o movimento sindical e popular boliviano.
Neste perodo, abria-se espao para as reflexes sobre as novas prticas de lutas
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sociais inspiradas no indigenismo radical, em detrimento do movimento sindical
clssico (Andrade, 2007).
Em suma, a luta pela redemocratizao do pas, concebeu no centro da
resistncia popular boliviana novos sujeitos sociais (Touraine, 1997b) que so reaes
sociais do perodo ps-revoluo de 52 e ps-ditadura de 1982. A Bolvia, assim como
os outros pases da Amrica Latina, viveram uma grave crise econmica e poltica. A
indstria de minerao esteve em colapso total, e o pas teve uma das inflaes mais
altas do mundo. Por outro lado, a COB exigiu aumentos de salrios sem ter respostas
do governo, o que levou o governo a antecipar as eleies para 1985 (Zucco, 2008;
Andrade, 2007). Em 1985 foi finalmente instituida na Bolivia uma Democracia de
pactos sociais, que era baseada na cooperao entre os partidos polticos,
movimentos sociais e o governo (Camacho, 2001; Domingues, 2007).
1.2.3 Etnicidade, classes sociais e Estado-nao como fenmenos stricto sensu
No perodo colonial boliviano a postura dos colonizadores espanhis tinha
como nico objectivo colonizar, dominar, subordinar, submeter todo o modo de
existncia social dos povos originrios. A dicotomia encerrava-se entre os europeus
civilizados e os ndios como incivilizados. O eurocentrismo presente nas relaes
coloniais, era ditado pelas formas de domnio colonial na poltica, na economia, na
cultura e no imaginrio dos indgenas (Quijano, 2005). No sculo XVIII a criao do
Estado como nova forma de controlo social coletivo veio substituir a velha estrutura
colonial, mas ainda, mantendo longe das estruturas de poder as populaes originrias
que eram consideradas inferiores e incapacitadas (Quijano, 2005).
Desse modo, com a independncia e a instaurao da repblica pelas elites
crioulas (brancos de origem espanhola ou mestia) ou os mestizo-criollos, instaurou-se
um perodo marcado pela questo da forma de posicionamento e de assimilao dos
indgenas ao novo Estado-nao.
El asimilacionismo cultural es la poltica que se ha procurado sostener desde el Estado, por medio del sistema institucionalizado de educacin pblica. La estrategia, por lo tanto, ha consistido y consiste en una asimilacin de los indios en la cultura de los dominadores, que suele ser tambin mentada como la cultura nacional, mediante la educacin escolar formal, sobre todo, pero tambin por el trabajo de instituciones religiosas y militares (Quijano, 2005)
Em contrapartida, a aculturao e a europeizao j vinha sendo
estabelecida desde os primrdios coloniais. A breve soluo encontrada foi a
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incorporao linear das culturas indgenas na concepo da modernizao capitalista -
os costumes milenares indgenas, a linguagem, a cosmoviso foram abafados
baseados numa ideologia de Estado que reivindicava a constante mestiagem como
soluo para a problemtica do Estado-nao.
A crise oligrquica teve seu apogeu no populismo dos anos 30, que tentava dar
uma nova roupagem figura do Estado-nao boliviano: trata-se de uma resposta a
crise de dominao oligrquica instituda na Bolvia. Assim, no perodo populista o
Estado passa a fazer mais intervenes na justia, e nos assuntos sociais. Por outro
lado, a discusso tnica totalmente esvaziada tanto pela classe dominante quanto
pelo jovem movimento sindical e tambm campons. Ou seja, se por um lado a
burguesia boliviana era dbil, entreguista e esquizofrnica, por outro lado, a classe
operria ainda encontrava-se em fase de amadurecimento onde no se observava a
passagem da classe em si classe para si (Marx, 2003), fenmeno que ocorreu
tambm com o movimento campesino. Apesar disso, os camponeses desde o incio do
perodo republicano, acumularam maiores experincias na resistncia colonial lutas
contra os mtodos de dominao oligrquica que permitiu maior elaborao
interventiva na revoluo de 1952, mas com uma aliana de classes com o operariado.
Neste sentido, a discusso sobre a plurinacionalidade na Bolvia oposta
concepo de Estado-nao: o Estado era o principal arquiteto da prtica da
homogeneizao cultural (Regalsky, 2005). Portanto, mesmo com a revoluo de 52 a
discusso da questo tnica relegada aos povos indgenas, e a plurinacionalidade na
Bolvia negada e no prioritria, inclusive para o novo Estado-nao que se
configurou com o apoio do movimento sindical e campons. Neste sentido, do ponto
de vista cultural e tnico, no houve avanos significativos em relao ao passado
oligrquico e racista herdado do perodo colonial - a questo da opresso dos
indgenas.
Segundo Alb (2002) a problemtica tnica parecia ser negativa do ponto de
vista tico, tanto pelos partidos de esquerda, quanto pelos partidos de direita. Estes
partidos recusavam-se a utilizar o termo indgenas para os povos originrios,
atribuindo-lhes a palavra camponeses. Ou seja, seguiam a concepo segundo a qual
o apelativo de indgena era somente para os camponeses da selva buscando a todo
momento aniquilar do imaginrio campons e indgena o seu passado tnico originrio.
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Em definitiva, a funo do conceito de campons tem um carcter de classe
social ligado posio econmica dos indgenas nos moldes de produo do sistema
capitalista. Esta agregao valorativa foi construda no perodo anterior revoluo de
52 pelo movimento operrio (Rivera, 2003; Paco, 2007) e reafirmada pelo Estado que
via na palavra indgena um tab para o vocabulrio oficial, pois considerava-o um
termo discriminador, vigorando assim a concepo de que a Bolvia um Estado
mestio (Alb, 2008).
Assim, a noo de indgena formada por um contexto de dominao colonial,
perpetuada negativamente pelos revolucionrios, que no se preocupavam em
realmente buscar as origens histricas para discriminar negativamente.
Para mi es ser discriminado. El indio es el colonizado. Y en este sentido todos somos indios. Todos somos indios porque todos estamos sometidos a unas jerarquas coloniales que comezaron en Europa. Nadie es europeo, todos somos indios. Porque somos discriminados, porque somos disminuidos, empequeecidos. Para m el indio es el colonizado y es el oprimido, entonces, esa es la definicin que tengo del indio. Por lo tanto debria praticame