Movimentos Sociais No Campo3.PDF

42
XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 01 a 05 de setembro de 2003 Universidade de Campinas – UNICAMP Campinas/SP Título da atividade : GT 10 – Movimentos sociais rurais em múltiplas dimensões Sérgio Sauer A luta pela terra e a reinvenção do rural Sérgio Sauer é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Filosofia da Religião pela Universidade de Bergen/Stavanger (Noruega), trabalha como assessor da Senadora Heloísa Helena – PT/AL.

description

movimentos sociais

Transcript of Movimentos Sociais No Campo3.PDF

A luta pela terra e a reinveno do rural

XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

01 a 05 de setembro de 2003

Universidade de Campinas UNICAMP

Campinas/SP

Ttulo da atividade:

GT 10 Movimentos sociais rurais em mltiplas dimenses

Srgio Sauer

A luta pela terra e a reinveno do rural

Srgio Sauer doutor em Sociologia pela Universidade de Braslia (UnB), mestre em Filosofia da Religio pela Universidade de Bergen/Stavanger (Noruega), trabalha como assessor da Senadora Helosa Helena PT/AL.

Endereo para contato:

SQN 406 Bloco H Apto. 305

Asa Norte

Braslia/DF

Fone: (61) 311 3197 (trab.) e 347 4569 (res.)

e-mail: [email protected]

A luta pela terra e a reinveno do rural

Srgio Sauer*Resumo

A constatao de que a cidade tem sido o lugar privilegiado do desenvolvimento econmico leva a interpretaes que afirmam a dominao do urbano e a conseqente diluio das contradies e diferenas entre o rural e o urbano. O tecido urbano passa a dominar toda a sociedade porque a modernizao capitalista est completa, mesmo que de modo relativo. Nesta perspectiva, no h mais espaos geogrficos e sociais para a existncia de valores e modos de vida tradicionais, distintos, porque este tecido urbano consumiu todos os resduos da vida agrria. Tem havido, no entanto, um ressurgimento e um processo de retomada terica do rural nos ltimos anos, em perspectivas muito diferente da leitura acima. Certamente esta retomada pode ser interpretada como uma simples tentativa de anlise do extico, de algo marginal racionalidade ocidental, como uma ttica para apreender aspectos que a cultura contempornea exclui de seu discurso. No contexto de transformaes sociais, econmicas, polticas e culturais da sociedade ocidental, este trabalho analisa a luta pela terra e as aes dos movimentos sociais agrrios como processos de recriao ou reinveno do rural brasileiro, especialmente no Estado de Gois.

Introduo

O desenvolvimento do capitalismo ocidental transformou a cidade em lugar privilegiado para a localizao da indstria, do comrcio e dos servios, ou seja, um lugar de produo e trocas. Os centros urbanos passaram a ser plos irradiadores de mercadorias e tecnologia e, conseqentemente, de valores ideolgicos e culturais, reforando uma distino dicotmica entre a cidade e o campo. Esta dicotomia tem funcionado como uma lgica explicativa fundante da realidade social, que ora contrape os dois plos, ora subordina, incondicionalmente, o rural ao urbano.

Historicamente, as reflexes e elaboraes sobre a modernidade exacerbaram esta dicotomia, especialmente atravs do estabelecimento de uma estreita identificao entre urbano e moderno, de um lado, em oposio ao rural e tradicional, de outro. Mais recentemente, as discusses em torno da globalizao e da ps-modernidade tm mantido esta mesma racionalidade, provocando ou aprofundando a excluso do rural das representaes e explicaes do real, pensado sob a tica da modernidade. As transformaes sociais, econmicas, polticas e culturais tm sido interpretadas a partir de uma viso centrada na importncia da indstria (dimenso setorial) e da cidade (dimenso geogrfica), relegando um espao residual ao mundo rural e seus significados.

verdade que esta excluso do rural e de suas populaes das reflexes tericas e interpretaes da realidade no novidade, nem uma criao exclusiva da modernidade. Este tipo de leitura excludente remonta aos pensadores gregos e construo de conceitos como cidadania e cidado, to caros ao pensamento moderno ocidental. Aristteles, por exemplo, em seu tratado Poltica considerando que a cidade uma espcie de comunidade e toda comunidade se forma com vistas a um bem afirmou que

...a cidade uma criao natural, e que o homem por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e no por mero acidente, no fizesse parte de cidade alguma, seria desprezvel ou estaria acima da humanidade (...) De fato, se cada indivduo isoladamente no auto-suficiente, conseqentemente em relao cidade ele como as outras partes em relao a seu todo, e um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja auto-suficiente a ponto de no ter necessidade de faz-lo, no parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus (1997, pp. 15 e 16).

Diferentemente da centralidade da cidade na Antiguidade, a Idade Mdia (ocidental e europia) centrou o poder poltico na propriedade da terra, criando uma sociedade baseada na soberania fundiria e militar sobre o solo ocupado por comunidades subjugadas (Lefebvre, 2001, p. 41). O desejo de vencer este domnio abriu espao para a representao da cidade como o lugar de liberdade ou, no dizer prprio da poca, os ares da cidade libertam. O advento da modernidade na esteira da filosofia iluminista que entendia a cidade como lugar da virtude, da cidadania e da civilizao marca tambm a reconquista do domnio poltico da cidade, incorporando ou transformando a estrutura feudal, dando um novo significado ao sistema urbano a partir da industrializao.

O encantamento pela efervescncia dos espaos urbanos e suas possibilidades (Aug, 1997) relegou o rural ao esquecimento ou a uma posio de anttese, de oposio cidade, ao urbano e ao moderno (como o lugar de manuteno de resqucios feudais). O processo recente de globalizao e muitas das tentativas de interpretao das mudanas sociais, polticas, culturais e econmicas deste processo exacerbaram esta viso cunhando expresses e conceitos como cidade global (Ianni, 1997; Ortiz, 1997) ou cidade mundo (Auge, 1997). Expresses totalizadoras porque, segundo Aug, o mundo da cidade basta-se a si mesmo. Ele tem sua prpria histria, suas referncias, seus smbolos (idem, p. 171), as quais eliminam qualquer oposio ou realidade distinta da urbana.

A luta pela terra se coloca no contexto do debate sobre a espacialidade e a territorialidade na modernidade, transformadas pelo processo de globalizao. A modernidade historicamente um conceito relacional identificado com a cidade produz representaes sociais e valores que perpassam os itinerrios de vida e influenciam a reconstruo da identidade das pessoas que lutam pelo acesso terra. Os processos sociais possibilitam, no entanto, releituras e re-apropriaes destes valores, criando oportunidades e perspectivas de vida que se diferenciam do modo de vida moderno.

As lutas pela terra e pela reforma agrria se inserem em um contexto de transformaes sociais, econmicas, polticas e culturais da modernidade ocidental. Estas transformaes so exacerbadas pelo que, mais recentemente, se tem denominado de globalizao. Esta globalizao constitui, basicamente, re-arranjos nos processos de acumulao do capital que atingem todas as dimenses da vida, inclusive o meio rural brasileiro, abrindo espao para novas interaes com o espao urbano.

A globalizao tem provocado mudanas nas representaes de tempo e espao, estabelecendo novas relaes entre o local e o global (Giddens, 1991). A mobilidade social e geogrfica caracterstica desta globalizao provoca novas interaes entre estas duas dimenses espaciais (no apenas o domnio de uma sobre a outra), recolocando a importncia do local, da territorialidade e da espacialidade na experincia cotidiana. A luta pela terra torna-se tambm uma luta por um lugar que contrasta com os processos constantes de mobilidade geogrfica e identitria, dando novos significados ao local.

1 Urbano e rural no mundo contemporneo

Segundo Lefebvre, o papel secundrio e residual do rural j est presente nas reflexes de Marx sobre o desenvolvimento do sistema capitalista ocidental (Lefebvre, 2001). A partir de releituras de textos de Marx como, por exemplo, os Manuscritos de 1844, Lefebvre afirma que este aponta a necessidade de superar a relao pessoal do dono com a propriedade caracterstica do sistema feudal na Idade Mdia para que a terra ganhe o status de mercadoria. Para Marx, esta passagem ou superao aconteceu, historicamente, com o processo de industrializao (na Inglaterra), a qual deu um novo impulso cidade e um novo sentido urbanizao da sociedade moderna ocidental.

Apesar de reconhecer que Marx no desenvolveu muito esta lgica, Lefebvre sustenta que h uma centralidade (inclusive a partir de noes e conceitos como a diviso social do trabalho, prxis, produo e reproduo, etc.) da noo de cidade e da oposio desta com o campo no pensamento marxista. Esta oposio d-se, por exemplo, na diviso do trabalho social onde ocorre, primeiro, uma separao entre trabalho industrial e comercial (dentro do espao urbano) e, segundo, destes com o trabalho agrcola (Lefebvre, 2001, p. 39), materializando a diviso e a oposio entre campo e cidade.

Em sua releitura da obra A Ideologia Alem, Lefebvre ainda mais incisivo afirmando que Marx e Engels teriam colocado a cidade como sujeito da histria (2001, p. 48). Segundo ele, apesar de Marx nunca ter explicitado claramente a questo do sujeito em suas elaboraes, nesse texto o Sujeito da histria incontestavelmente a Cidade (idem, p. 49), pois os autores deixam claro a diviso entre cidade e campo, a supremacia da primeira sobre o segundo e a necessidade de superar tal diviso. Segundo Lefebvre,

O campo, em oposio cidade, a disperso e o isolamento. A cidade, por outro lado, concentra no s a populao, mas os instrumentos de produo, o capital, as necessidades, os prazeres. Logo, tudo o que faz com que uma sociedade seja uma sociedade. assim porque a existncia da cidade implica simultaneamente a necessidade da administrao, da polcia, dos impostos, etc., em uma palavra, a necessidade da organizao comunal, portanto, da poltica em geral (2001, p. 49 nfases no original).

A separao e oposio entre cidade e campo fruto da diviso social do trabalho bloqueiam a totalidade social (Lefebvre, 2001, p. 49), relegando um trabalho material desprovido de inteligncia ao campo (idem, p. 49). Esta separao resulta na diviso de classes e na alienao e, conseqentemente, deve ser superada. A superao (como fruto do processo histrico e da prxis da sociedade) desta oposio ... uma das primeiras condies da comunidade (idem, p. 50).

Segundo Lefebvre, a oposio ou conflito (dialtico) entre cidade e campo abarca uma certa unidade, criando dificuldades para apreender, teoricamente, a relao entre unidade e contradio (2001, p. 55). Esta dificuldade estaria na base da ambigidade com que Marx e Engels trataram do fim da cidade, pois o surgimento da grande indstria fez com que a cidade deixasse de ser o sujeito do processo histrico (idem, p. 63). Em todos os casos, Lefebvre reafirma a noo da superao do rural pela urbanidade capitalista ocidental.

A concentrao da populao acompanha a dos meios de produo. O tecido urbano prolifera, estende-se, corri os resduos de vida agrria. Estas palavras, o tecido urbano no designam, de maneira restrita, o domnio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestaes do predomnio da cidade sobre o campo (Lefebvre, 1999, p. 17 nfases no original).

Partindo da premissa de que o desenvolvimento capitalista na ps-modernidade abarcou todas as esferas da vida (inclusive a natureza e o inconsciente), Fredric Jameson aponta na mesma direo de Lefebvre afirmando a superao do rural porque a modernizao est, mesmo que relativamente, completa (1997a, p. 26). Diferente do perodo moderno, as pessoas j no tm nenhuma possibilidade de se contraporem ao rural, ao residual porque ...aquela satisfao mais profunda de ser absolument moderne se dissipa quando as tecnologias modernas esto em toda parte... (idem, p. 26 nfases no original).

Nessa perspectiva, Jameson avalia que houve uma completa assimilao do rural pelo processo de industrializao da sociedade ocidental. A implantao da Revoluo Verde, da industrializao da agricultura, em um primeiro estgio, ...reteve um modo de produo pr-capitalista na agricultura, mantendo-o intacto, explorando-o de maneira tributria, obtendo capital de relaes essencialmente pr-capitalistas... (Jameson, 1997a, p. 40). O novo estgio do capital abarcou todas as esferas da vida, inclusive a agricultura, eliminando as diferenas e tornando-a parte da prpria explorao industrial (idem, p. 40).

Diferentemente de Lefebvre, no entanto, Jameson afirma que este processo de assimilao capitalista da agricultura (e da natureza) acaba deteriorando o outro termo da oposio binria. Segundo ele, o desaparecimento da Natureza a mercantilizao do campo e a capitalizao da prpria agricultura em todo o mundo comea agora a desgastar o seu outro termo, o que antes era o urbano (Jameson, 1997a, p. 42), provocando um processo de deteriorao da vida nas cidades.

Este processo de urbanizao e de deteriorao da cidade muito evidente no recente processo histrico brasileiro. O deslocamento forado de milhes de pessoas do campo para as cidades gerou um crescimento artificial dos grandes centros urbanos, praticamente inviabilizando qualquer possibilidade de fornecimento de servios bsicos como infra-estrutura (asfalto, energia eltrica, sistema de esgoto, etc.), sade, educao, etc. Um dos resultados a condio sub-humana de existncia nas periferias urbanas, contradizendo inclusive a lgica de que o xodo rural deveria libertar as pessoas das amarras comunitrias.

Emmanuel Wallerstein aponta em uma direo semelhante utilizando a noo de desruralizao do mundo moderno. De forma diferente de Lefebvre e Jameson, no entanto, este autor no explica o processo de desruralizao atravs da justificativa tradicional de que a industrializao exige a urbanizao (1999, p. 245). Wallerstein busca outra explicao porque, segundo ele, ainda restam indstrias localizadas nas regies rurais e j temos notado a oscilao cclica entre concentrao e disperso geogrfica da indstria mundial (idem, p. 245).

Na verdade, Wallerstein recorre a outra noo definindo o rural como o lugar depositrio de mo-de-obra barata. Diante da necessidade de rearranjos no sistema de acumulao para compensar a transferncia de parte da mais valia para os operrios qualificados e organizados, os proprietrios dos meios de produo transferem setores de atividade econmica pouco rentveis para regies com mo-de-obra rural disponvel (Wallerstein, 1999, p. 246). Essas novas localidades urbanas atraem mo-de-obra rural porque os salrios representam ...um aumento de sua renda familiar, mas que no cenrio mundial representam custos mnimos de trabalho industrial (idem, p. 246).

Esta lgica de acumulao fora constantes processos de deslocamento de setores menos competitivos para regies depositrias de mo-de-obra barata. Este o processo social e econmico que resulta na desruralizao do mundo moderno, porque ...para resolverem as dificuldades recorrentes das estagnaes cclicas, os capitalistas fomentam em cada ocasio uma desruralizao parcial do mundo (Wallerstein, 1999, p. 246). Segundo este autor, o grande problema que j no h mais populao para desruralizar, o que se transforma em um dilema insolvel para o sistema capitalista (idem, p. 246).

Este processo de desenvolvimento capitalista dos anos 50 e 60 forjou uma concepo de progresso baseada em uma relao linear entre modernizao industrializao urbanizao. O desenvolvimento econmico e social mundial no teria outro caminho a no ser um processo crescente de industrializao, atraindo as pessoas para os aglomerados urbanos, na mesma lgica da interpretao de Wallerstein sobre a desruralizao do mundo moderno. Nesta mesma perspectiva, Lefebvre sugere ento que o carter essencial da sociedade industrial , acima do crescimento quantitativo da produo material, o desenvolvimento das cidades ou da sociedade urbana.

a vida urbana que d sentido industrializao, que a contm como segundo aspecto do processo. possvel que a partir de certo ponto crtico (onde podemos nos situar), a urbanizao e sua problemtica dominem o processo de industrializao. O que resta como perspectiva sociedade industrial, se ela no produz a vida urbana em sua plenitude? Nada mais que produzir por produzir (Lefebvre, 1991, p. 55 nfases no original).

Nesta perspectiva, o fenmeno da urbanizao, como uma realidade mundial e inevitvel, se transforma na grande aventura da humanidade. A cidade, em contraposio ao atraso do meio rural, considerada o espao fundamental para o desenvolvimento econmico e a construo da cidadania (Wanderley, 2001, p. 2). Modernizao significa ento um processo histrico de generalizao de um padro cultural urbano, sinnimo de emancipao, autonomia, desenvolvimento, progresso e cidadania.

Estas concepes levam a interpretaes que afirmam a diluio das contradies e diferenas entre o rural e o urbano (Ianni, 1997; Silva, 1996), pois o tecido urbano domina toda a sociedade porque a modernizao capitalista est relativamente completa (Jameson, 1997a). No h mais espaos geogrficos e sociais para a existncia de valores e modos de vida tradicionais, distintos, porque este tecido urbano consumiu todos os resduos da vida agrria (Lefebvre, 1999). Conseqentemente, segundo Octavio Ianni

...faz tempo que a cidade no s venceu como absorveu o campo, o agrrio, a sociedade rural. Acabou a contradio cidade e campo, na medida em que o modo urbano de vida, a sociabilidade burguesa, a cultura do capitalismo, o capitalismo como processo civilizatrio invadem, recobrem, absorvem ou recriam o campo com outros significados (1996, p. 60).

Este processo civilizatrio capitalista abarca todas as esferas da vida e da sociedade, integrando, modernizando e mesmo diluindo o mundo agrrio. Este perde as suas caractersticas (inclusive a sua base econmica passa a ser de atividades no agrcolas) deixando de ser o lugar de manuteno e reproduo de valores tidos como tradicionais, a exemplo do comunitarismo e do familismo. O processo de urbanizao do campo traz consigo tambm secularizao, individualizao e racionalizao, destruindo os ltimos resqucios que poderiam diferenciar o espao rural do urbano.

O que permanece o buclico, a nostalgia da natureza, a utopia da comunidade agrria, tribal, indgena, passada, pretrita, remota, imaginria. (...) A prpria cultura de massa, agilizada pela indstria cultural, retrabalha continuamente a nostalgia da utopia buclica. Tanto pasteuriza como canibaliza elementos presentes e pretritos, reais e imaginrios do mundo agrrio. Reinventa o campo, country, campagna, champ, serto, deserto, serra, montanha, rio, lago, verde, ecologia, meio ambiente e outras formulaes, aparecidas no imaginrio de muitos como sucedneos da utopia do paraso (Ianni, 1997, p. 63 nfases no original).

Muitas objees poderiam ser feitas a estas concepes de rural e do desenvolvimento atual do mundo contemporneo. O padro de modernizao, por exemplo, no um dado que abarca o conjunto da sociedade de forma igual, como entende Jameson. Por outro lado, a modernizao agropecuria no Brasil implantada de forma desigual, possibilitando um profundo descompasso social e poltico e a convivncia de situaes e valores plurais, quando no contraditrios, frutos de uma produo capitalista baseada em relaes no-capitalistas (Martins, 1989).

A noo de carter residual do rural quando no relegado ao completo esquecimento faz parte das reflexes e produes tericas sobre a modernidade (conceito essencialmente urbano). Por outro lado, a diluio ou descentramento do rural vem sendo colocado em xeque tanto por reflexes tericas recentes como pelos processos sociais e polticos de resistncia e luta de diversos segmentos da populao rural. Os movimentos sociais como sujeitos polticos, especialmente na luta pela terra, recolocam a importncia do rural tanto na agenda poltica brasileira como nas interpretaes da sociedade ocidental contempornea.

2 Industrializao e urbanizao ou especificidade do rural

As questes relacionadas com a terra e a explorao de seus habitantes so parte da histria da Amrica Latina desde que os primeiros colonizadores aportaram no continente. Estas questes ganharam relevncia e nfases diferenciadas ao longo desta histria, influenciando a prpria produo terica sobre os problemas e perspectivas do meio rural. Diferente de muitas interpretaes da sociedade ocidental contempornea, este desenvolvimento histrico tem mantido o rural, negando sua diluio ou urbanizao. Inclusive, a resistncia da populao rural aos processos de modernizao, expropriao e excluso, tem mantido o meio rural, seus problemas e perspectivas, na agenda poltica nacional, forando reflexes e novas interpretaes do real.

Estas questes adquiriram, no entanto, uma perspectiva nova a partir dos anos 1950 e 1960, quando os programas de modernizao agropecuria comearam a ser implantados atravs da chamada Revoluo Verde na Amrica Latina e de seu conseqente processo de modernizao conservadora no Brasil (Silva, 1994). As situaes agrria e agrcola brasileiras sofreram profundas mudanas, pois a agropecuria passou por um processo de transformao tecnolgica, possibilitando sua integrao dinmica industrial de produo e a criao dos complexos agroindustriais.

Estas mudanas foram realizadas basicamente atravs de pesados investimentos governamentais no setor industrial, buscando modernizar a economia nacional destruindo sua antiga base agrcola. O principal instrumento, utilizado pelo Estado para promover esta transformao, foi o crdito agrcola subsidiado que capitalizou os grandes proprietrios, possibilitando a industrializao do campo. Os subsdios governamentais abriram a oportunidade para investimentos pesados na agropecuria, promovendo seu avano tecnolgico atravs do uso de tratores e mquinas, sementes selecionadas, fertilizantes qumicos e pesticidas, etc.

Os pesados subsdios e incentivos fiscais concedidos pelo Estado s grandes empresas abriram o campo ao investimento capitalista, protegeram e reafirmaram a renda da terra e a especulao imobiliria, incluram a grande propriedade fundiria num projeto de desenvolvimento capitalista que tenta organizar, contraditoriamente, uma sociedade moderna sobre uma economia rentista e exportadora. Um capitalismo tributrio atualizado (Martins, 1989, p. 85).

O apoio modernizao do latifndio deu ao programa seu carter conservador. Os incentivos possibilitaram a modernizao da produo agropecuria (mecanizao, aumento da produo e produtividade, competitividade no mercado exportador), mas mantiveram e ampliaram a m-distribuio da propriedade da terra e, conseqentemente, aprofundaram um modelo excludente e concentrador no Pas.

A distribuio social, setorial e espacial dos incentivos provocou uma diviso de trabalho crescente; grosso modo, maiores propriedades, em terras melhores, tiveram acesso a crdito, subsdios, pesquisa, tecnologia e assistncia tcnica, a fim de produzir para o mercado externo ou para a agroindstria (Martine, 1991, p. 10).

O cultivo monocultor de grandes extenses padro predominante do modelo de modernizao aumentou a produo agrcola do Pas. No promoveu, porm, o bem-estar social da maioria da populao rural, ao contrrio, provocou concentrao da propriedade da terra, xodo rural, fome e violncia. A dominao do capital industrial, ou agro-industrial, permitiu uma subverso do processo produtivo e uma expropriao do saber dos agricultores familiares e camponeses. Este processo provocou a dominao destes, imobilizando sua fora de trabalho (atravs do trabalho escravo ou semi-escravo) ou expropriando seus meios de produo atravs da expulso da terra (Porto, 1997).

O desenvolvimento agropecurio da Revoluo Verde foi planejado e implantado em uma contraposio entre campo e cidade. Isso resultou no reforo de um modelo industrial concentrador, predatrio e excludente. Este modelo seguiu a lgica dominante de privilegiar investimentos no setor industrial voltado para o desenvolvimento dos centros urbanos, transformando o atraso do meio rural no contraponto ideal, imagem e representao de como o desenvolvimento moderno no deveria ser.

A modernizao e a modernidade criam e recriam suas prprias representaes ou, nos termos de Duarte (2000), seus prprios mitos. Estes mitos se constituem em fundamentos de prticas sociais, permeando inclusive muitas das anlises e interpretaes da realidade contempornea. Segundo Duarte, um dos mitos fundantes da modernidade resultado de uma urbanizao generalizada e desorganizada a crena da igualdade scio-econmica e do sucesso nos grandes centros urbanos ditos desenvolvidos (2000, p. 2), a qual refora a excluso do rural das anlises tericas e definies de progresso e de desenvolvimento econmico.

O processo de modernizao provocou um deslocamento de milhes de pessoas do meio rural para os meios urbanos (periferia das cidades) ou para as reas de colonizao na Regio da Amaznia Legal. Tal deslocamento espacial no resultou em um processo de emancipao, como uma conseqncia natural do desenraizamento e urbanizao, como apregoavam os defensores da modernizao. Para a maioria, a mobilidade social e espacial raiz da emancipao do indivduo da dependncia tradicional da comunidade rural, segundo concepes modernistas no resultou em mudana de valores dos padres tradicionais no sentido da autodeterminao individual no estilo de vida, mas em fome, pobreza e excluso.

O aprofundamento da contraposio entre sociedades urbanas modernas e atrasos do meio rural tem influenciado pensadores brasileiros em suas interpretaes, perspectivas e possibilidades de vida no campo, negando a importncia da luta pela terra e de qualquer processo de redistribuio da propriedade fundiria. Partindo de um pressuposto de que cidadania no campo um contra-senso e que modernizao sinnimo de urbanizao, estas interpretaes condenam o meio rural por sua inviabilidade como espao social e produtivo (Franco, 1996).

Em uma perspectiva um pouco diferente, Jos Graziano da Silva enfatizando a racionalidade econmica das empresas rurais e do atual padro tcnico-produtivo agrcola afirma que j no se pode caracterizar o meio rural somente como agrrio. O campo no pode ser pensado apenas como um lugar produtor de mercadorias agropecurias, pois o surgimento de uma srie de atividades no-agrcolas est recriando o meio rural brasileiro (Silva, 1996), seguindo uma tendncia constatada nos pases desenvolvidos.

Este processo associado a outras transformaes como, por exemplo, as das relaes de trabalho leva Graziano da Silva a concluir que as melhorias de condies de vida da populao rural dependem do grau de urbanizao do interior (Silva, 2000, p. 8), inclusive com incentivos para a gerao de empregos no-agrcolas no meio rural. Ainda, segundo ele, o meio rural brasileiro se urbanizou como resultado do processo de industrializao da agricultura, mantendo uma anlise que privilegia o urbano sobre o rural (Silva, 1996).

Esta lgica exacerbada nos anos mais recentes pelos avanos da globalizao (Silva, 1998) refora a noo de que, em vez de diferenciao, existe um continuum entre o rural e o urbano. As dificuldades de delimitar fronteiras (exacerbadas inclusive pela idia de que a globalizao elimina todas as fronteiras territoriais) entre cidades, vilas e o campo reforam noes que enfatizam processos de indiferenciao entre estes espaos. A conseqncia o fim do isolamento entre as cidades e o meio rural, o que freqentemente expresso atravs do conceito de continuum rural-urbano (Wanderley, 2001, p. 32).

O problema fundamental desta noo de continuum justamente a tendncia a privilegiar uma viso centrada no urbano, relegando o rural novamente ao plo atrasado desta inter-relao (Wanderley, 2001). Siqueira e Osrio (2001) afirmam que a noo de continuum tem como base a dicotomia j conceitualmente postulada, a qual acaba se sobrepondo ao antigo conceito de rural como um lugar de permanncia de mo-de-obra barata e desqualificada.

Levada s ltimas conseqncias, esta vertente das teorias da urbanizao do campo e do continuum rural-urbano apontam para um processo de homogeneizao espacial e social, que se traduziria por uma crescente perda de nitidez das fronteiras entre os dois espaos sociais e, sobretudo, o fim da prpria realidade rural, espacial e socialmente distinta da realidade urbana (Wanderley, 2001, pp. 32s).

Os questionamentos sobre a diluio de fronteiras no levam necessariamente necessidade de reforar qualquer viso dicotmica para preservar as singularidades do rural. A noo de continuum ou de um processo inter-relacional no leva necessariamente a uma homogeneizao dos espaos urbano e rural. Mesmo ressaltando as semelhanas, interferncias e continuidades, as relaes entre o campo e a cidade no destroem as particularidades dos dois plos e, por conseguinte, no representam o fim do rural (Wanderley, 2001, p. 33).

Nesta perspectiva, Wanderley formula a hiptese de que o desfecho dos processos recentes de transformao no o fim do rural e a urbanizao completa do campo (2000, p. 89). As transformaes do rural, intensificadas pelas trocas materiais e simblicas com o urbano, fazem emergir uma nova ruralidade (idem, p. 89), sendo que o espao local , por excelncia, o lugar de convergncia entre o urbano e o rural (Wanderley, 2001, p. 33).

Maria Jos Carneiro tambm enfatiza esta perspectiva, apesar de reconhecer a importncia das mudanas no meio rural inclusive uma re-orientao da capacidade produtiva. Afirma que a integrao do rural economia global, ao invs de diluir as diferenas, pode propiciar o reforo de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade (Carneiro, 2000, p. 5).

Esta ncora territorial permite interaes e garante a manuteno de uma identidade (Carneiro, 2000, p. 5). No possvel, segundo ela, entender a ruralidade apenas como um processo de urbanizao do campo, ...mas tambm do consumo pela sociedade urbano-industrial, de bens simblicos e materiais (a natureza como valor e os produtos naturais, por exemplo) e de prticas culturais que so reconhecidos como tendo a sua origem no chamado mundo rural ou agrrio (idem, p. 7).

Wanderley enfatiza tambm as diferenciaes presentes nas representaes sociais do rural. Mesmo com os atuais graus de homogeneizao e indiferenciao, provocados pelos processos de globalizao, ...as representaes sociais dos espaos rurais e urbanos reiteram diferenas significativas, que tm repercusso direta sobre as identidades sociais, os direitos e as posies sociais dos indivduos e grupos, tanto no campo quanto na cidade (Wanderley, 2001, p. 33).

Mais importante do que uma definio precisa das fronteiras entre o rural e o urbano buscar os significados, do ponto de vista dos diferentes agentes, das prticas sociais que operacionalizam as interaes entre estes espaos (Carneiro, 2000, p. 7). Neste sentido, h um ressurgimento que transcende a um simples esforo de retomada terica do rural. Estes esforos buscam incluir o rural e seus agentes sociais no contexto dos diferentes processos de transformao pelos quais passa a sociedade ocidental contempornea. Certamente a retomada do rural poderia ser interpretada como uma simples tentativa de anlise do extico, de algo marginal racionalidade ocidental, como uma ttica para apreender aspectos que a cultura contempornea exclui de seu discurso (Certeau, 2001). A perspectiva aqui transcender esta ttica, tomando em considerao processos sociais e polticos (a luta pela e a conquista de terra) que podem ser compreendidos como recriaes do mundo rural brasileiro.

Este ressurgimento ou retomada do rural pode ser interpretado tambm como um processo social no interior da globalizao, a qual marcada por contradies entre a diluio de fronteiras, de um lado, e o reforo s identidades locais, de outro. Segundo Hall, a tendncia de homogeneizao global (fruto da diluio das fronteiras na modernidade) possui uma anttese, pois h tambm uma fascinao com a diferena e com a mercantilizao da etnia e da alteridade (1999, p. 77). Esta fascinao pela diferena e pela alteridade abre espao para a valorizao do local, em geral, e do rural, em particular, nas caracterizaes e interpretaes da sociedade ocidental contempornea.

Em que pese as diferenas vrios aportes tericos, discusses sobre ruralidade (Wanderley, 2000 e 2001; Carneiro, 1996 e 2000), desenvolvimento territorial (Abramovay, 2000), neo-ruralismo (Giuliani, 1990) e desenvolvimento sustentvel (Duarte, 2000) constituem exemplos que retomam o rural e as relaes rural-urbanas sob outras perspectivas. So aportes tericos que procuram demonstrar a existncia de uma realidade mais complexa, permeada por fenmenos e processos que negam modelos explicativos e valores predominantes na mentalidade moderno-desenvolvimentista (Giuliani, 1990).

Diferentemente das representaes e concepes dicotmicas sobre o rural, possvel compreender o campo, em geral, e a luta pela terra, em particular, a partir de outras perspectivas que no eliminam o rural. Em primeiro lugar, fundamental romper com qualquer concepo dicotmica da realidade evitando separar o rural do urbano. Estes dois espaos no possuem divises ou fronteiras to explcitas, pois h um processo permanente de interaes e intercmbios que precisam ser levados em conta nas anlises (Carneiro, 2000), sem perder as especificidades e identidades de cada um.

Em segundo lugar, fundamental considerar que as lutas dos movimentos sociais no campo no se restringem a lutas pela propriedade fundiria e pela manuteno dos valores tradicionais camponeses. Transcendem luta pelo acesso aos meios de produo e se transformam em um processo de construo de sujeitos polticos, recriando relaes sociais e transformando o espao rural na constituio de uma nova ruralidade.

Vrios autores, a exemplo de Martins, tm demonstrado que as lutas camponesas ultrapassam a simples demanda por terra porque so lutas pela libertao e emancipao humanas. Estas lutas em busca de sobrevivncia e reproduo social no se restringem dimenso econmica, mas incluem demandas por sade, educao, justia, paz. So lutas que reivindicam ...integrao poltica, [de] emancipao, (isto , de libertao de todos os vnculos de dependncia e submisso), [de] reconhecimento como sujeitos de seu prprio destino e de um destino prprio, diferente, se necessrio (Martins, 1994, p. 159), possibilitando processos sociais e polticos de recriao do rural e de uma nova ruralidade.

Em terceiro lugar, fundamental considerar a importncia da terra como meio de trabalho, retomando a perspectiva da terra de trabalho. Celso Furtado tem colocado esta perspectiva, relacionando a terra como um fator fundamental no combate ao grande dilema da sociedade industrial moderna: o desemprego em massa.

De 1990 para c a agricultura criou 4 milhes de empregos, o que extraordinrio, mesmo sendo de subsistncia. O setor urbano deixou de criar empregos. Quer crise maior do que essa? S que em nosso pas temos um milagre: a terra. H hoje no mundo algum pas que crie empregos na agricultura? (Furtado, 1997, p. 9).

A democratizao do acesso propriedade da terra mais do que uma simples poltica social compensatria de combate pobreza rural representa a possibilidade da construo de identidades e cidadania no meio rural. Alm das implicaes polticas, como a constituio de sujeitos pela redistribuio do poder (Martins, 1993), a luta pela terra representa uma aventura em busca de um lugar de oportunidades e autodeterminao, diferente (mas no necessariamente em oposio ao) do espao urbano.

3 A luta pela terra como uma recriao do rural

Alm das formulaes tericas, h um movimento social e poltico de recriao do campo atravs da luta pela terra no Brasil (Martins, 2000). Este movimento agrrio gestado como resistncia ao aprofundamento da expropriao e explorao das populaes rurais com a implantao da modernizao agropecuria recoloca a importncia da realizao de uma reforma agrria no Pas, a partir de uma perspectiva que transcende a mera implantao de polticas governamentais compensatrias.

A luta pela terra como um processo social de resistncia ao modelo agropecurio e ruralidade de espaos vazios (Wanderley, 2001) se transforma em uma luta poltica, social, cultural, pela construo e realizao da cidadania das populaes rurais (Martins, 1994). Est em curso uma prxis espacial emancipatria (Soja, 1993), ou seja, um processo social de reinveno do rural no Brasil sendo que a luta pela terra materializa esta recriao, agregando novos elementos e perspectivas vida no meio rural, criando uma nova ruralidade.

Esta prxis espacial emancipatria (Soja, 1993) se materializa em embates sociais e polticos contra a concentrao da propriedade fundiria e o latifndio, instrumento e local de exerccio de poder e dominao. Mais do que falta de eficincia econmica, o latifndio como promotor do deslocamento geogrfico atravs do xodo rural smbolo, instrumento e lugar de excluso social e marginalizao poltica. Grandes extenses de terras so representadas como no-lugares (Aug, 1994) que geram a ruralidade de espaos vazios, ou seja, espaos que materializam ausncias e so representados como vazios identitrios para milhes de pessoas.

O Estado de Gois fronteira agrcola e palco histrico de lutas camponesas tem experimentado este processo de reinveno social que no se restringe aos seus aspectos econmicos e polticos, mas se traduz em vivncia e produo de sentido. As famlias acampadas e assentadas, como agentes sociais, lutam e atuam construindo a realidade social a partir de estruturas estruturantes, mediadas pelo habitus (Bourdieu, 1996). Nesse processo, apreendem o mundo real e concreto, organizando imagens, linguagem e representaes sociais para que este mundo faa sentido. Os acampamentos e assentamentos do Estado so espaos de reinveno da sociedade atravs das interaes sociais das diferentes biografias na busca de um lugar de vida, trabalho e cidadania.

A luta pela terra um processo social, poltico e econmico que abarca um conjunto de transformaes no campo, redistribuindo a propriedade da terra e o poder, redirecionando e democratizando a participao da populao rural no conjunto da sociedade brasileira. A luta social pela realizao de uma reforma agrria est, portanto, baseada, em primeiro lugar, na busca de instrumentos que gerem emprego e renda, criando melhores condies de vida no meio rural.

As experincias de luta e de acesso terra, no entanto, alm de garantir bem estar social e melhoria das condies de vida (Stdile, 1997), so tambm impulsionadoras de transformaes culturais, simblicas e representacionais. Este processo social gesta valores e representaes sociais, dando novas perspectivas ao mundo rural, permitindo inclusive transformaes nas relaes com o meio ambiente, com o lugar e entre as pessoas (Novaes, 1997).

A participao nas mobilizaes e lutas pela posse da terra produz uma renovao das representaes e valores das pessoas acampadas e assentadas (Geiger, 1995). Esta renovao no se reduz a uma atualizao momentnea como resultado, por exemplo, da unidade exigida pelo contexto de privaes, ameaas e medo dos acampamentos mas em resignificaes que modificam representaes e a prpria conscincia das pessoas. O envolvimento nas lutas um processo social que possibilita a reorganizao das diversas representaes, provocando alteraes da percepo da prpria identidade. Isto possibilita tambm uma reconstruo da conscincia de sujeito, baseada na conquista do direito ao trabalho e no significado simblico da produo.

Este um aspecto fundante de uma nova ruralidade, ou seja, constituda por relaes de sujeitos autnomos que protagonizam histrias e biografias. A modernidade de acordo com muitos tericos, a exemplo de Giddens, Touraine, Beck caracterizada por um processo poltico e cultural de constituio de sujeitos livres e autnomos, protagonistas da histria. Independentemente dos questionamentos a esta autonomia (a exemplo das posies adotadas por Jameson e Hall), os processos sociais agrrios (lutas, mobilizaes, negociaes, etc.) tambm constituem atores sociais e sujeitos da histria.

Este protagonismo abre possibilidades para a diluio da oposio entre terra (rural como atraso) e modernidade (urbano como local do moderno). A contraposio histrica entre estes se desfaz na constituio de sujeitos polticos e atores sociais no meio rural, impedindo leituras dicotmicas que estabelecem uma relao estreita entre moderno e urbano em contraposio a tradicional e rural. Conseqentemente, a conquista da cidadania e do direito ao trabalho, atravs do acesso terra, criam protagonistas da histria e sujeitos modernos, mas que se apropriam de valores e perspectivas de uma forma distinta dos sujeitos urbanos.

Os valores simblicos e culturais da modernidade no so fenmenos exclusivos do contexto urbano industrial, mas perpassam o conjunto da sociedade brasileira. Na verdade, esta sociedade marcada por uma mescla de valores e cdigos tradicionais e modernos (Arajo, 2000), gerando disjunes e situaes paradoxais e contraditrias. Historicamente, a adoo de dimenses e valores da modernidade no Brasil sempre esteve mesclada com a manuteno de valores culturais e prticas polticas arcaicas como, por exemplo, o exerccio do poder poltico baseado na propriedade de grandes reas de terras.

Estas formulaes contestam s interpretaes das transformaes sociais e representacionais da sociedade brasileira baseadas apenas em uma lgica linear de passagem do tradicional para o moderno, e deste para o ps-moderno. O rural brasileiro (assim como a sociedade brasileira, em geral) caracterizado por combinaes muitas vezes contraditrias e desiguais de valores e cdigos pr-modernos e modernos (Araujo, 2000), os quais exigem uma leitura distinta de modelos explicativos baseados na lgica moderno-desenvolvimentista.

A luta pela terra no pode ser compreendida, portanto, como uma volta ao passado, nem como uma tentativa de preservar resqucios buclicos (Ianni, 1997) ou de construir a utopia da comunidade agrria (Carvalho, 2002). No se trata, no entanto, de simplesmente identificar processos sociais e simblicos, decorrentes da mobilizao e da luta pela posse da terra, com transformaes recentes no contexto da modernidade. A luta pela terra constitui sujeitos histricos, impedindo que seja classificada como um movimento social arcaico ou antimoderno.

De acordo com Ortiz, as transformaes mundiais recentes provocaram alteraes tambm na percepo do espao, ou seja, a modernidade e a globalizao criaram o que ele definiu como uma territorialidade desenraizada (Ortiz, 1997). Esta resultado de processos de desterritorializao e reterritorializao, os quais alteram a percepo espacial. Uma caracterstica essencial da globalizao a desterritorializao (Santos, 1997), mas a conquista e o acesso terra no representam a sua anttese. O acesso terra, como um processo de localizao, no uma anttese globalizao e seus processos de interao entre global e local (Giddens, 1991), mas representa uma reterritorializao que d novos sentidos aos lugares.

Diferentemente da noo de deslocamento e esvaziamento do espao como unidade geogrfica elementar (Ortiz, 1997), esta luta recoloca a importncia da noo de territrio e de lugar, como parte da experincia humana de espacialidade. A estrutura espacial (entendida como resultado de processos sociais, inclusive de embates pelo poder) parte fundante da construo e representao da vida cotidiana. A luta pela terra materializa esta importncia porque , explicitamente, a busca por um lugar, geograficamente localizado e delimitado.

A luta pela terra um processo social de reforo de vnculos locais e de relaes de pertencimento a um determinado lugar, se constituindo em um processo de reterritorializao que situa as pessoas em um espao geograficamente bem delimitado. O assentamento (e as prprias parcelas e lotes) caracterizado por limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas sociais que do identidade e sentimentos de familiaridade a seus habitantes. Isto no representa necessariamente uma contradio com a globalizao, mas uma revalorizao da importncia do lugar e do local (Giddens, 1995).

A luta pela terra uma busca por um pedao de terra como um lugar de trabalho, de moradia, de cidadania, de vida. Apesar de todas as dificuldades e problemas, os assentamentos grandes propriedades fundirias repartidas so a materializao de uma espacialidade efetivamente vivida e socialmente construda (Soja, 1993). Resultado de conflitos sociais e disputas polticas, os assentamentos so lugares identitrios, histricos e relacionais (Aug, 1997).

Apesar de descontinuidades espaciais, os assentamentos no so ilhas mas territrios, social e politicamente demarcados, resultados do exerccio do poder de di-viso (Bourdieu, 1996), ou simplesmente contexturas das prticas sociais (Soja, 1993). So, portanto, espaos singulares que possibilitam um convvio face a face (Berger e Luckmann, 1998), abrindo a possibilidade para novas interaes e resignificaes identitrias e representacionais.

A criao dos assentamentos gera uma nova organizao social, econmica e poltica. Segundo Martins, os projetos de assentamentos so uma verdadeira reinveno da sociedade como uma clara reao aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da prpria modernidade (2000, p. 46s). Nessa mesma perspectiva, Carvalho (1999) trata os assentamentos como um processo social inteiramente novo. Segundo ele,

Nesse espao fsico, uma parcela do territrio rural, plasmar-se- uma nova organizao social, um microcosmo social, quando o conjunto de famlias de trabalhadores rurais sem terra passarem a apossarem-se formalmente dessa terra. Esse espao fsico transforma-se, mais uma vez na sua histria, num espao econmico, poltico e social (Carvalho, 1999, p. 7).

Pensados como encruzilhadas sociais (Carvalho, 1999), os acampamentos e assentamentos so lugares de sociabilidade, diferenciados entre si basicamente pela oportunidade de acesso terra. As experincias de luta, privaes, desejos e sonhos associadas s histrias de vidas, verdadeiros itinerrios biogrficos de deslocamentos em busca de sobrevivncia forjam novas identidades e perspectivas de vida.

Apesar de considerar os acampamentos como espao de sociabilidade instvel, Martins enfatiza que a ressocializao nesta fase da luta pela terra ...por fora do convvio e dos enfrentamentos conjuntos com estranhos. H a, pois, um alargamento de horizontes e de convivncia (2000, p. 47). Este convvio cotidiano e a interao face a face abrem caminho para o intercmbio contnuo das diferentes expressidades (Berger e Luckmann, 1998, p. 47) e a construo de novos vnculos identitrios.

O acampamento o lugar onde diferentes biografias se encontram e iniciam novos processos de interao e identidade sociais, os quais ganham diferentes contornos nos projetos de assentamento. Mais do que um simples espao de transio (uma passagem) um lugar identitrio, um lugar privilegiado de reconstruo de identidade e de interao sociais. Estas encruzilhadas sociais so lugares (diferente dos assentamentos) de sociabilidade e construo de identidades, e no apenas uma passagem na luta pela terra, temporria e marcada pela ausncia de significao.

Os acampamentos e assentamentos so lugares fundamentais no processo de constituio de identidade e re-significao do mundo. A diferena mais significativa entre estes dois lugares terra, ou seja, o sonho e o desejo da terra (acampamento) e a realidade do acesso mesma (assentamento). O acesso a esta transforma a realidade e a identidade dos sem terra em pessoas com terra, gerando diferenas nas formas de organizao e demandas polticas, sociais e econmicas.

O processo de luta e a construo simblica colocam a terra (acampamentos e assentamentos) como um lugar de vida, uma moradia, capaz de acolher e dar sentido existncia. Diferentemente dos processos de deslocamento do espao do lugar (Giddens, 1991), a terra representada como um local, geograficamente localizado, que possibilita trabalho e moradia.

Representada como lugar de morada, a terra se transforma em smbolo de fartura e garantia de futuro, materializando a possibilidade de reproduo social. A luta pelo acesso a terra significa ainda um processo de construo de alternativas realidade atual, portanto, na construo simblica da terra como uma heterotopia, ou seja, um lugar, simultaneamente real e imaginrio, de oposio s tendncias de homogeneidade do espao da modernidade (Foucault, 1984).

Conseqentemente, a terra no significa somente a sustentabilidade fsica da vida humana, portanto, no tem apenas um significado real de cunho poltico, econmico e social, mas tem tambm um sentido simblico. Terra vida, portanto, lugar e meio de produo e reproduo social. A luta dos sem terra uma luta por uma heterotopia (Foucault, 1984), um outro lugar qualitativamente diferente e de resistncia ao processo de desterritorializao, forada pelo modelo agrrio e agropecurio implantado no Brasil.

Concluso

O Estado de Gois tem sido palco deste processo de re-inveno ou recriao do rural atravs da luta pela terra. O sonho de possuir um lugar para viver, morar e trabalhar tem levado muitas famlias a ingressarem na luta por um pedao de cho, saindo inclusive das cidades do Estado, em um movimento de retorno ao campo.

As lutas por terra, educao, trabalho, infra-estrutura, vm incorporando outros elementos e valores que possibilitam processos sustentveis de desenvolvimento, melhoria nas condies de vida e preservao do meio ambiente. Todo esse processo de mobilizao e luta se constitui, portanto, tambm na expanso da modernidade para o meio rural, calcada em valores diferentes dos impostos junto com o atual padro de modernizao tecnolgica e produtiva.

No contexto de globalizao, a luta pela terra materializa a luta por um lugar, buscando melhores condies de vida (cidadania) e transformando as conquistas em processos de apropriao de territrios, ou seja, em reterritorializaes. As mobilizaes, articulaes e lutas do protagonismo social e poltico s organizaes agrrias. Este protagonismo representa tambm um processo pedaggico que transforma as pessoas em atores e sujeitos de suas prprias biografias. Isso faz dessa luta um movimento moderno que permite releituras e consolidao de novos valores no meio rural, o que no dilui diferenas mas estabelece novas inter-relaes entre campo e cidade.

As mobilizaes e lutas pela terra constroem sujeitos e transformam a realidade rural possibilitando a emergncia de uma nova ruralidade. Baseada em valores e pressupostos diferentes do atual padro de modernizao e desenvolvimento, esta ruralidade se constitui na materializao da modernidade no campo. A luta pela terra , portanto, a passagem para esta modernidade porque implica em uma srie de mudanas, reais e simblicas, que alteram as condies de vida, produo, relaes com a natureza, etc., no meio rural brasileiro e em Gois.

Bibliografia1. ABRAMOVAY, Ricardo. Funes e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporneo. So Paulo e Braslia, IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, 2000.2. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. So Paulo, Boitempo Editorial, 1999.

3. ARAJO, Caetano Ernesto Pereira de. Entre o holismo e o individualismo: Tipos morais e cultura poltica no Brasil. In.: ARAJO, Caetano Ernesto Pereira de et alli (orgs.). Poltica e valores. Braslia, Editora da UnB, 2000, pp. 117ss.

4. ARISTTELES. Poltica, Braslia, Editora da UnB, 1997 (traduo de Mrio da Gama Kury).

5. AUG, Marc. No-lugares: Introduo a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus Editora, 1994.

6. __________. Por uma antropologia dos mundos contemporneos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.

7. BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. A construo social da realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento, Petrpolis, Editora Vozes, 15 edio, 1998.

8. BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998.

9. ________________. A economia das trocas lingsticas: O que falar quer dizer. So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo (EDUSP), 1996.

10. CARNEIRO, Maria Jos. Ruralidade: Novas identidades em construo. Rio de Janeiro, CPDA/UFRRJ, 1997 (mimeo), disponvel no site http://www.eco.unicamp.br/ projetos/rurbzeze.

11. CARVALHO, Horrio Martins de. Interao social e as possibilidades de coeso e de identidade sociais no cotidiano da vida social dos trabalhadores rurais nas reas oficiais de reforma agrria no Brasil. Curitiba, Ncleo de Estudos Agrrios e de Desenvolvimento (NEAD), 1999, disponvel no site www.nead.gov.br.

12. ____________________________. Comunidade de resistncia e de superao. Curitiba, fevereiro de 2002 (mimeo).

13. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: Artes de fazer. Petrpolis, Editora Vozes, 2000, 5 edio.

14. DUARTE, Laura M.G. Desenvolvimento rural sustentvel: Possibilidades tericas e prticas. In: Anais do X Congresso, Rio de Janeiro, IRSA, 2000.15. FOUCAULT, Michel. What is enlightenment? In.: RABINOW, Paul (ed.). The Foucault reader: An introduction to Foucaults thought. London, Penguin Books, 1984.

16. FRANCO, Augusto de. A reforma agrria na virada do sculo. In.: Monitor Pblico, Rio de Janeiro, IUPERJ, ano 3, n. 11, out/dez. de 1996.17. FURTADO, Celso. Entrevista Revista Veja, Rio de Janeiro, Editora Abril, edio de 08/01/1997.18. GAIGER, Luis Incio Germany. Entre as razes de crer e a crena na razo: Mobilizao coletiva e mudana cultural no campesinato meridional. In.: Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, ANPOCS, n. 27, ano 10, fevereiro de 1995, pp. 111ss.

19. GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade ps-tradicional In.: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernizao reflexiva: poltica, tradio e esttica na ordem social moderna. So Paulo, Editora Unesp, 1995, pp. 73ss.

20. _________________. As conseqncias da modernidade. So Paulo, Editora UNESP, 1991.

21. GRAF, Friedrich W. Lutheran Land Reform? On the ecumenical discussion on Land Reform in Brazil. In.: MORTENSEN, Viggo (ed.). Region and Religion: Land, territory, and nation from a theological perspective, Geneva, LWF, 1994, pp. 22. GRAZIANO NETO, Francisco. A (difcil) interpretao da realidade agrria. In.: SCHMIDT, Bencio V., MARINHO, Danilo N. C. e ROSA, Sueli L. (orgs.). Os assentamentos de reforma agrria no Brasil. Braslia, Editora da UnB, 1998.

23. HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1999.

24. IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1997.

25. JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. So Paulo, Editora tica, 1997a.

26. ________________. Ps-modernismo: A lgica cultural do capitalismo tardio. So Paulo, Editora tica, 1997.

27. LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. So Paulo, Editora tica, 1991.

28. ________________. A revoluo urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.

29. ________________. A cidade do capital. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001, 2 edio.

30. MARTINE, George. A trajetria da modernizao agrcola: A quem beneficia? In. Lua Nova Revista de cultura e poltica, n 23, So Paulo: CEDEC, maro/1991.31. MARTINS, Jos de Souza. A chegada do estranho. So Paulo: Ed. Hucitec, 1993.

32. _______________________. Caminhada no cho da noite: Emancipao poltica e libertao nos movimentos sociais do campo. So Paulo, Editora Hucitec, 1989.

33. _______________________. O poder do atraso: Ensaios de sociologia da histria lenta. So Paulo, Editora Hucitec, 1994.

34. _______________________. O significado da criao da Comisso Pastoral da Terra na histria social e contempornea do Brasil. In.: SECRETARIADO Nacional da CPT (org.). A luta pela terra: A Comisso Pastoral da Terra 20 anos depois. So Paulo, Editora Paulus, 1997, pp. 70ss.35. _______________________. A sociabilidade do homem simples: Cotidiano e histria na modernidade anmala. So Paulo, Editora Hucitec, 2000.36. NOVAES, Regina. A trajetria de uma bandeira de luta. In.: COSTA, Luiz Flvio Carvalho e SANTOS, Raimundo (org.) Poltica e reforma agrria. Rio de Janeiro, Editora Mauad, 1998, pp. 169ss.

37. ORTIZ, Renato. Um outro territrio: Ensaios sobre a mundializao. So Paulo, Editora Olho dgua, 1997.

38. PORTO, Maria Stela Grossi. Tecnologia e violncia: Algumas relaes possveis. In.: PORTO, Maria Stela Grossi (org.). Politizando a tecnologia no campo brasileiro: Dimenses e olhares. Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1997, pp. 177ss.

39. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mo de Alice: O social e o poltico na ps-modernidade. So Paulo, Cortez Editora, 1997.

40. SERAGELDIN, Ismail. Themes for the third millennium: The challenge for rural sociology in an urbanizing world. In:. 10 Congresso Mundial de Sociologia Rural, Rio de Janeiro, 2000. Esse texto est disponvel no site http://www.ag.auburn.edu/ irsa/ismail/.41. SILVA, Jos Graziano da. O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a reforma agrria. In: STDILE, Joo Pedro (coord.). A questo agrria hoje. Porto Alegre, Editora da Universidade UFGRS, 1994, pp. 137ss.

42. ____________________. O novo rural brasileiro. Trabalho apresentado no 24. Encontro Nacional de Economia Agrria, guas de Lindia, So Paulo, 1996.

43. ____________________. Por uma reforma agrria no essencialmente agrcola. In.: COSTA, Luiz Flvio Carvalho e SANTOS, Raimundo (orgs.) Poltica e reforma agrria. Rio de Janeiro, Editora Mauad, 1998, pp. 79ss

44. SIQUEIRA, Deis e OSRIO, Rafael. O conceito de rural. In.: GIARRACCA, Norma (coord.). Una nueva ruralidad en Amrica Latina? Buenos Aires, CLACSO, 2001, pp. 67ss.

45. SOJA, Edward W. Geografias ps-modernas: A reafirmao do espao na teoria social crtica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.

46. STDILE, Joo Pedro. A luta pela reforma agrria e o MST. In.: STDILE, Joo Pedro (org.). A reforma agrria e a luta do MST. Petrpolis, Editora Vozes, 1997, pp. 95ss.

47. WALLERSTEIN, Immanuel. A reestruturao capitalista e o sistema-mundo. In.: GENTILI, Pablo (org.). Globalizao excludente: Desigualdade, excluso e democracia na nova ordem mundial. Petrpolis, Editora Vozes, 1999, pp. 223ss.

48. WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. A emergncia de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avanadas o rural como espao singular e ator coletivo. In.: Estudos Sociedade e Agricultura, Pernambuco, 2000, pp. 87ss

49. ____________________________________. A ruralidade no Brasil moderno: Por um pacto social pelo desenvolvimento rural. In.: GIARRACCA, Norma (coord.). Una nueva ruralidad en Amrica Latina? Buenos Aires, CLACSO, 2001, pp. 31ss.

* doutor em Sociologia pela Universidade de Braslia (UnB), mestre em Filosofia da Religio pela Universidade de Bergen/Stavanger (Noruega), trabalha como assessor da Senadora Helosa Helena PT/AL.

Segundo Soja, as preocupaes de Lefebvre se estendiam muito alm de uma simples compreenso ou defesa da cidade, pois para ele a urbanizao era metfora resumida da espacializao da modernidade e do planejamento estratgico da vida cotidiana, que haviam permitido ao capitalismo sobreviver, reproduzir com xito suas relaes essenciais de produo (Soja, 1993, p. 65 nfases no original).

Esta releitura de Lefebvre reconhece que o prprio Marx no tratou diretamente (ou extensivamente) sobre a questo urbana. No entanto, segundo ele, as numerosas consideraes emitidas por Marx s tm sentido e importncia em um contexto social: a realidade urbana. Ora, Marx no fala disso. Uma ou duas vezes somente, mas de uma maneira decisiva, ele traz o encadeamento dos conceitos para esse contexto, no entanto continuamente implicado (2001, p. 32).

Lefebvre defende que h uma lacuna no pensamento de Marx e Engels porque no exploraram a cidade como lugar de nascimento, quadro social e condio de uma seqncia de ideologias e de conhecimentos... (2001, p. 65). Segundo ele, preciso afirmar no o fim da cidade mas a sua superao pelo urbano, pois o trabalho no acaba no lazer, mas no no-trabalho. A cidade no acaba no campo, mas na superao simultnea do campo e da cidade. Isso deixa um vazio que pode ser preenchido pela imaginao, pela projeo e pela previso terica (idem, pp. 72s).

A preocupao e a crtica de Jameson sociedade contempornea a lgica e a estratgia de eliminar qualquer tipo de diferena em busca da homogeneizao (espacial) e estandarizao (do consumo) global (Jameson, 1997a, p. 41).

A promoo do modelo de desenvolvimento, a partir dos anos 50 e 60, foi baseada e aprofundou a contraposio terica entre as economias agrrias atrasadas e as sociedades modernas. De acordo com Friedrich W. Graf, os socilogos idealistas norte-americanos definiram o termo modernizao como um processo no qual as sociedades atrasadas e tradicionais se desenvolveriam em direo a sociedades modernas (1993, p. 32).

O texto disponibilizado como base para as reflexes do 10 Congresso Mundial de Sociologia Rural naturaliza o processo crescente de migrao campo cidade, estabelecendo uma relao automtica entre urbanizao e melhorias na qualidade de vida. Segundo o autor, essa rpida urbanizao cria oportunidades melhores de vida, mas tambm gera desafios assustadores: superpopulao, pobreza, e destruio ambiental (Serageldin 2000, p. 7 grifos meus).

De acordo com Martins, a questo agrria surge no Brasil em meados do sculo XIX com o processo de abolio da escravido e criao da Lei de Terras, de 1850, que impediu o acesso terra queles que no podiam comprar, forando os pobres livres, inclusive os imigrantes europeus, a trabalhar para os grandes proprietrios. A questo agrria surge ...quando a propriedade da terra, ao invs de ser atenuada para viabilizar o livre fluxo e reproduo do capital, enrijecida para viabilizar a sujeio do trabalhador livre ao capital proprietrio de terra (Martins, 1997, p. 12).

Ver, por exemplo, as reflexes recentes de Francisco Graziano Neto sobre a ausncia de retorno econmico da atual poltica fundiria redistributiva e a necessidade de recriar a reforma agrria, tendo como base a necessidade de criar ocupao rural, ou seja, no centralizar as aes governamentais na redistribuio da propriedade fundiria mas utilizar outros mecanismos para gerar empregos no campo (Graziano Neto, 1999).

Augusto de Franco, por exemplo, enfatizando a inevitabilidade da m qualidade de vida no meio rural, conclui que ...o fim do campesinato na ultrapassagem da modernidade o fim do campo enquanto espao social e econmico oposto cidade (Franco, 1996).

Segundo Graziano da Silva, a diluio da diferenciao entre estes dois espaos se d inclusive porque a cidade j no pode ser caracterizada nica e exclusivamente como industrial. H uma crescente semelhana nas formas de organizao do trabalho industrial com o trabalho rural como, por exemplo, a flexibilidade de tarefas e da jornada, a contratao por tarefa ou por tempo determinado, etc. (Silva, 1996).

Os encantos com a efervescncia urbana relegaram o rural a um lugar marginal, palco de tradies e prticas sociais residuais. As noes de progresso e desenvolvimento foram identificadas apenas como parte da sociedade urbana industrial. As leituras das transformaes recentes, baseadas na urbanizao do campo (Silva, 1996), mantm essa mesma lgica relegando o especificamente rural tradio e ao atraso.

A definio de Giddens (1995) de que a globalizao constitui uma ao distncia, a qual aproxima o local e o global e permite uma maior interao entre estes espaos refora a importncia do rural (mesmo em uma perspectiva de extico) nas anlises das transformaes sociais, econmicas, polticas e culturais da sociedade contempornea.

Jos de Souza Martins tem utilizado amplamente este conceito enfatizando a importncia histrica da resistncia dos posseiros da Amaznia. Resistncia centrada na compreenso de que o acesso terra representa a garantia do direito ao trabalho, dimenso que precisa ser resgatada, considerando, porm, contribuies e debates recentes sobre as transformaes no mundo do trabalho. Ver, por exemplo, Antunes, 1999.

Francisco Graziano Neto enfatiza apenas a dimenso social da reforma agrria quando afirma ...nada comprova que dar um pedao de terra para essas famlias marginalizadas seja a nica, nem a melhor soluo, do ponto de vista do interesse pblico. Talvez um bom emprego seja prefervel ao assentamento. Ou ento, trat-las com mecanismos de poltica social, assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentao e sade (Graziano Neto, 1998, p. 168).

No processo simultneo de construo e apreenso do real, os movimentos sociais agrrios, organizaes representativas e entidades de apoio tm incorporado novos aspectos e perspectivas nas elaboraes sobre o rural brasileiro. Novos temas foram agregados como, por exemplo, a importncia econmica e a capacidade re-distributiva da produo familiar; a relao entre um programa de acesso terra e a democratizao das relaes polticas na sociedade brasileira, ou ainda a formulao de alternativas de desenvolvimento, especialmente a perspectiva da sustentabilidade ambiental, a partir da expanso da agricultura familiar por meio da promoo de uma ampla reforma agrria.

Esta perspectiva tem como referncia que no h um desenvolvimento linear e progressivo, mas processos e valores sociais contraditrios, reforados por uma globalizao desigual (Hall, 1999). O processo de modernizao, a modernidade e a globalizao so, na verdade, misturas complexas de fenmenos que, contraditoriamente, geram disjunes e novas formulaes sociais e culturais (Giddens, 1995).

Esta perspectiva abre espao para interpretar a luta pela terra como a busca e a construo de heterotopias (Foucault, 1984), ou seja, a constituio de outros lugares como espaos, simultaneamente reais e imaginrios, contestatrios de valores estabelecidos pela sociedade ocidental contempornea.

Ainda segundo Martins, o processo de re-socializao modernizadora nos acampamentos resulta que, nos assentamentos ...a sociedade literalmente reinventada, abrindo-se para concepes mais largas de sociabilidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo as concepes ordenadoras da vida social provenientes do familismo antigo (2000, p. 47).

Os relatos biogrficos como verdadeiros itinerrios de deslocamentos em busca de sobrevivncia ou simplesmente sintaxes espaciais (Certeau, 2000) revelaram uma srie de desejos, imagens, sonhos e representaes que desvelam a realidade social e poltica da luta pela terra em Gois, influenciadas pelos processos ampliados de transformaes na sociedade brasileira.

Segundo esses autores, a vida cotidiana partilhada com outros na situao face a face. Esta a experincia mais importante o prottipo da interao social quando as expresses de uma se orientam na direo da outra pessoa, criando uma reciprocidade de atos expressivos (Berger e Luckmann, 1998, p. 47).

PAGE 25