Muçulmanos - Suas Crenças e Práticas - Andrew Rippin (01)

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MUÇULMANOS SUAS CRENÇAS E PRÁTICAS Andrew Rippin

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MUÇULMANOS SUAS CRENÇAS E PRÁTICAS

Andrew Rippin

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ELEMENTOS FORMADORES DO ISLAMISMO CLÁSSICO

Datas Significativas:

570 d.C. Data do nascimento de Maomé, segundo a Tradição 622 Migração de Maomé para Medina – a hijra ou hégira 632 Morte de Maomé 634 Morte de Abu Bakar (ABŪ BAKR), primeiro Califa 644 Morte de Omar (‘UMAR), segundo Califa 656 Morte de Usman (‘UTHMĀN), terceiro Califa 661 Morte de Ali (‘ALĪ), quarto Califa e líder dos xiitas 661-750 Dinastia UMAYYAD 750 Dinastia ABBISID tem início 767 Morte do biógrafo Ibn Ishaq 819 Morte do historiador Ibn Al-Kalbi 823 Morte do historiador Al-Waqidi 824 Morte do estudioso exegeta/literário Abu Ubayda 830 Atividade do debatedor cristão Al-Kindi 833 Morte do historiador/editor Ibn Hisham 845 Morte do historiador Ibn Sa’d 870 Morte do compilador de hadis Al-Bukhari 875 Morte do compliador de hadis Muslim Ibn Al-Hajjaj 887 Morte do compilador de hadis Ibn Maja 889 Morte do compilador de hadis Abu Dawud 892 Morte do compilador de hadis Al-Tirmidhi 915 Morte do compilador de hadis Al-Nasa’i 923 Morte do exegeta/historiador Al-Tabari 996 Morte do gramático/teólogo Al-Rummani 1111 Morte do teólogo/místico Al-Ghazzali

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1. PRÉ-HISTÓRIA Surgido quando o Judaísmo Rabínico e o Cristianismo ainda se encontravam no processo de firmemente se estabelecerem institucionalmente, o Islamismo associa suas origens à Arábia do século VII. Orbitando em torno de um profeta de nome Maomé, com uma escritura denominada al-Corão, o Islamismo tornou-se a ideologia que serviu para unir o Império Árabe, que se estabeleceu primeiramente na área do Crescente Fértil e Egito e, mais tarde, ao longo do Norte da África e Pérsia. Ao fazer isto, demoveu, em grande parte, as religiões mais antigas, incluindo a da antiga Pérsia, o Zoroastrianismo. Os Fundamentos do Islamismo Clássico

A sabedoria comum sugeriria que, para entender-se os fundamentos do Islamismo nos é necessário possuir algum conhecimento dos contextos históricos, políticos, econômicos e sociais a partir dos quais a religião emergiu. De modo geral, é claro, tal conhecimento possui um grau de utilidade. Entretanto, é bem possível questionar o valor deste tipo de abordagem para a contextualização histórica do Islamismo por ser esta altamente dependente de uma noção da religião islâmica existente como entidade conceitualmente definida desde os primórdios de sua proclamação. Um modelo mais estimulante da fundação do Islamismo retrata a religião como gradualmente emergente, trazendo em si um firme senso de identidade (fatores vinculados a fontes de autoridade) ao longo de um período de cerca de dois séculos. Certamente, o gradativo entrelaçamento do desenvolvimento da ideologia islâmica com o ambiente imediato apresenta um retrato complexo e confuso e, portanto, um rascunho da situação político-religiosa no Oriente Próximo no período entre os séculos VI e VIII pode certamente auxiliar a colocar o assunto sob perspectiva correta. A provisão de tais informações não deve ser tomada, entretanto, no sentido de procurar por ‘influências sobre Maomé’ vindas deste período pré-islâmico (como muitos estudos sobre o islamismo parecem sugerir), mas, ao invés disto, como uma tentativa de retratar o contexto no qual o Islamismo eventualmente emergiu e no intuito de observar a combinação de fatores na sociedade que tornaram a religião bem-sucedida, transformando-a na religião que é hoje. Ao mesmo tempo em que tal argumento possa parecer surpreendente em um primeiro momento, a relevância da região geográfica da Arábia Central para a definição emergente do que hoje conhecemos como o Islamismo é altamente questionável; o Islamismo (em sua forma claramente definida e desenvolvida) teve o período de desenvolvimento de sua formação fora do contexto da Arábia e, ao mesmo tempo em que o ímpeto da religião é fortemente ligado ao Hijaz na Arábia, o caráter adotado pela religião foi moldado por mais precedentes Médio-Orientais espalhados do que pareceria historicamente possível dentro do estreito isolamento da Arábia. O Oriente Próximo Antes do Islamismo

Há três focos de interessa nos paises que precedem a onde de conquista árabes na região do Oriente Próximo no século VII. Os Cristãos Bizantinos tiveram alguma influência sobre o Mar Vermelho, estendendo-se, por vezes, a uma aliança com os Cristãos Monofisistas da Abissínia; os Persas Zoroastrianos, com sua capital em Cteisphon, na Mesopotâmia, tiveram influência que alcançou, por vezes, o lado oriental da Arábia e também a costa sul, até o Iêmen. Os reinos árabes do Sul, cujas fortunas flutuantes, finalmente manifestas na dinastia Himyar do século VI, haviam perdido praticamente toda a sua aparência de vitalidade quando os árabes emergiram. A Península Arábica, embora tendo centros urbanos estabelecidos em seu território por vários milênios, não continha um poder que pudesse ser reconhecido pelo mundo na época. A única qualificação parcial a esse respeito residia nas várias áreas tribais que poderiam ter se tornado em penhores nas mãos dos reinos estrangeiros, criando, talvez deste modo, as forças humanas que finalmente se expandiriam para fora da península e subjugariam os soberanos existentes. No ano de 527 d.C., Justiniano I subiu ao trono do Império Bizantino em Constantinopla. O imperador estava determinado a restaurar a unidade com os remanescentes do decadente Império Romano, cujas regiões ocidentais haviam sido perdidas para as tribos germânicas, especialmente os Vândalos e os Góticos. Ele foi bem-sucedido em liderar a reconquista da Itália, do Norte da África e de parte de Espanha, mas, quando de sua morte, em 565, muito destes feitos foi nulificado como resultado dos contínuos levantes locais. Os persas se aproveitaram da subseqüente situação instável e empreenderam iniciativas militares em suas fronteiras ocidentais com Bizâncio. Impostos altos, entretanto, provocaram instabilidade nas periferias desta área recentemente expandida. Heráclio, o líder bizantino morto em 641, conseguiu obter a supremacia em Constantinopla em 610, somente para testemunhar os persas tomarem Antioquia em 613 e Jerusalém em 614 e, então, marcharem e adentrarem o Egito, em 619. Uma tentativa de prosseguir a conquista até Constantinopla no ano de 626 deixou os persas desorganizados e com um contingente inferior ao necessário para ocupar e manter o território conquistado. Antes desta última manobra dos persas, Heráclio havia iniciado um contra-ataque e havia invadido, com sucesso, território persa, alcançando Ctesiphon em 628, recapturando Jerusalém em 629, forçando uma retirada por parte do Império Persa e, finalmente, provocando o assassinato de Shah

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Khusro II. Os Bizantinos, exageradamente confiantes, relaxaram e caíram vítimas da Conquista Árabe, que teve início, de maneira mais significante, com a captura inicial de Damasco, em 635.

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A situação na Península Arábica

Do ponto de vista da Arábia, esta situação política era mais confusa e tornou-se mais instável por dois fatores adicionais: a interação dos Árabes com os dois maiores poderes mundiais e a rivalidade religiosa entre Judeus, as várias seitas de Cristãos e, em uma menor extensão, a dos Zoroastrianos. Através de um sistema de estados funcionando como tributários dos bizantinos e persas, os nômades da Arábia foram mantidos dentro dos limites da área desértica e, portanto, não impuseram qualquer grande perigo à área fronteiriça. Do mesmo modo, estes estados tributários, Hira (cujos habitantes eram também conhecidos como Lakhmids) sob o domínio dos Persas no nordeste da Arábia, e os Ghassanss, sob o domínio dos Bizantinos, no noroeste, forneceram tropas aos seus respectivos dominadores. Por volta do século VI, estas áreas eram povoadas por tribos beduinas estabelecidas, enquanto o Cristianismo tornava sua presença mais e mais relevante

2. Os árabes desta área eram, entretanto, de pouca

conseqüência prática para as potências mundiais da época, ainda que, por volta do final do século BI, os Ghassanidas conquistaram a independência, enquanto os Lakhimidas foram forcados a um relacionamento ainda mais subserviente com os Persas do que anteriormente. De forma geral, o sistema tributário, enquanto esteve em operação por alguns séculos por volta do período das conquistas árabes, tornou-se gradativamente instável naquele tempo. No sul da Arábia, guerras intertribais trouxeram um fim ao império Himyar, o ultimo em uma longa linhagem de imponentes estados na região do Iêmen. Uma das razoes para o gradual declínio nesta região foi a decrescente importância do comércio de incenso no século IV, quando da conquista, por parte do Cristianismo, do mundo pagão e durante o despertamento da economia romana

3. O sul da Arábia, maior fonte de incenso do mundo da antiguidade (pelo

menos desde o século VII a.C.), havia baseado boa parte de sua economia sobre a produção e comércio deste material, que era utilizado em festivais religiosos Greco-Romanos e em preparos medicinais. Com as mudanças na situação mundial, esta economia sofreu grandemente. Alguns estudiosos sugerem que, por volta do ano 300 d.C., toda a região da Arábia sofreu uma seca, acarretando um colapso do caráter tradicional da agricultura que afetou a economia local, ainda que as evidências para tal fato não sejam abundantes. Religião na Península Arábica

O estilo de vida sedentário do sul da Arábia havia dado origem a uma sociedade profundamente envolvida nos vários sistemas religiosos do antigo Oriente Próximo. Evidências, provenientes de inscrições encontradas na região, refletem um estágio desenvolvido deste crescimento religioso e não possuímos quaisquer informações sobre como este sistema religioso veio a existir. Claramente, a região era fortemente ligada aos mundos Mediterrâneo e Mesopotâmio. Até o século IV, todas as evidências indicam a existência de uma religião politeísta dotada de um caráter norte-semítico. A adoração a ‘Athtar, uma figura divina masculina que era o mais proeminente dentre os deuses do Panteon (ele é sempre mencionado em primeiro lugar em listas de deuses), é freqüentemente descrito como tendo forte relação com o culto Ishtar do norte, cuja deusa se manifestava na estrela Vênus. Diz-se que ‘Athar era o portador das bênçãos que poderia assegurar uma boa colheita, muitos filhos e sucesso na guerra. Havia várias outras deidades proeminentes cuja identidade variava de acordo com a localidade e o período histórico. Manter estas diferentes deidades claras e distintas é tarefa extremamente difícil, dadas as complexidades de lidar com a fonte material das inscrições, mas algumas poucas observações podem ser feitas. O deus lua era variavelmente conhecido como Almaqah, ‘Amm, Sīn e Wadd (este último nome pode ser encontrado no Corão, em 71:23), enquanto a deusa lua era conhecida como Shams

4. Estes deuses e

diversos outros eram considerados como patronos tribais. Da mesma forma, deidades do clã e da família também existiam e estas eram freqüente e simplesmente descritas como ‘o deus [‘Ih] disso ou daquilo’. Cada nível de deidade deveria governar um âmbito diferente, cada um deles em um relacionamento de poder com o próximo nível: terras pessoais, terras comunitárias (vila), terras tribais e terras mundiais. De acordo com as evidências dos restos

1 Um sumário breve e útil da história deste período, com excelente atenção especial aos fatores religiosos envolvidos é

encontrado na obra de F.E. Peters, Allah’s Commonwealth: A History of Islam in the Near East, 600-1100 A.D., New

York, Simon and Schuster, 1973, introdução. Para uma ilustração de uma variedade de pontos de vista acadêmicos do

período pré-islâmico, ver acolecao de artigos reunidos em F.E. Peters (ed.), Arabs and Arábia on the Eve of Islam,

Aldershot, Ashgate/Variorm, 1999. 2 Ver J. Spencer Trimingham, Christianity among the Arabs in Pré-Islamic Times, Londres, Longan, 1979, capítulo 5.

3 Quanto ao papel do comércio no sul da Arábia e sua contribuição para o crescimento do islamismo, ver Patrícia Crone,

Meccan Trade and the Rise of Islam, Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 12 , 27. 4 Quanto à religião do sul da Arábia, ver Ulf Oldenburg, “Avobe the Star of El. El in Ancient South Arábia Religion”,

Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft, 82 (1970), 187-208.

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arqueológicos de diversos templos, sacrifícios eram uma parte proeminente do culto religioso. Ofertas de incenso sobre altares de pedra e ofertas de sangue provavelmente possuíam um papel relacionado à aquisição de benefícios para o individuo que oferecesse o sacrifício. Todas estas atividades aconteceram dentro dos templos que eram aparentemente freqüentados tanto por homens como por mulheres, com o propósito de que tais rituais fossem vistos como a aquisição dos benefícios que estes vários deuses poderiam conceder. Outros padrões demonstrados por inscrições incluíam atividades de peregrinação, refeições rituais e um código de pureza pessoal. A partir do século IV ou V, inscrições do sul da Arábia falam de uma seita monoteísta de Rahmanan, ‘o Misericordioso’, freqüentemente qualificado como ‘senhor dos céus e da terra’

5. Pouquíssimas evidências são encontradas nas inscrições

referentes à continuação da antiga seita politeísta (ainda que inscrições necessariamente reflitam uma elite e um segmento oficial de sociedade, o fato de o populacho comum ter abandonado suas crenças politeístas tão rapidamente ainda é questionado). Aparentemente, o surgimento do reino de Himyar, por volta do ano 380 d.C., marca esta mudança, ocorrida, provavelmente, como um resultado de (ou com a intenção de) uma unificação das várias tribos do Sul da Arábia. O ímpeto monoteísta é freqüentemente encarado como sendo resultado de influência judaica na sociedade, ainda que alguns estudiosos optem por enxergar tal ímpeto como um desenvolvimento natural, independente (baseado em uma figura evolucionária de religião em geral). Alguns estudiosos também tentam conectar este desenvolvimento com a noção corânica de um hanīf, ou seja, a característica de se ser monoteísta mesmo em face ao paganismo; se isto

é realmente uma referência a uma realidade histórica em termos de um movimento entre povos ou se tal conceito se refere a qualidades morais de certos indivíduos ainda é algo discutido. Não há evidências independentes que terminantemente sustentem a existência de um monoteísmo nativo árabe pré-islâmico

6. Os ecos bíblicos encontrados em

algumas das inscrições monoteístas, como por exemplo, a frase “o Misericordioso [rahmanan], que está nos céus” e o uso de plural gramatical em referência a Deus (momo no hebraico, elōhīm), encontrada na declaração inscrita “o Deu(s) a quem pertencem os céus e a Terra”, sugere que o judaísmo é a mais provável influência sobre a formação deste culto. Muito pouco se sabe a respeito do caráter religioso desta tendência monoteísta, portanto, não há informações adicionais disponíveis para concluir o assunto. É provável que o judaísmo tenha sido apoiado pelos persas como uma ferramenta contra a influência bizantina no sul da Arábia. Certamente o judaísmo estava presente neste período do culto monoteísta e, talvez, tenha alcançado aquela área um pouco antes do inicio desta tendência monoteísta. Há evidências claras e explícitas de uma presença judaica no sul da Arábia, atestada por volta do século IV. Referências são encontradas com respeito à ‘Comunidade de Israel’, bem como ao ‘Senhor dos Judeus’. A presença de judeus no Iêmen continuou até a metade do século XX, quando a maioria deles foi removida e transferida para o recém-formado Estado de Israel. Enquanto isso, o Cristianismo não estava em evidência no sul da Arábia antes do sexto século, período em que pode ter estado presente em uma comunidade centralizada na cidade de Najrān. Acredita-se que tenha se espalhado, a partir dali, para a Abissínia. Relatos são encontrados a respeito de perseguição aos cristãos no princípio do século VI, pelo governante judeu Yūsuf As’ar, provavelmente como resultado de temores de influências bizantinas sobre a comunidade cristã. Retaliações do século VI por parte de tropas abissínias parecem ter marcado a ruína do Judaísmo como uma potência, visto a existência de inscrições posteriores mencionando a crença em ‘Deus e Seu Messias e no Espírito Santo’ por parte dos governantes. Não há dúvida de que o Cristianismo que se disseminou a partir da Abissínia foi apoiado pelos bizantinos contra a influência persa na região, ainda que tenha sido, de uma perspectiva bizantina, uma persuasão herética monofisista. Por volta do final do século VI, os persas passaram a incentivar o Cristianismo Nestoriano, uma outra vertente do tipo de crença abominável, tanto para os bizantinos, como para os abissínios, e auxiliaram os iemenitas em sua iniciativa de destituir os dominadores abissínios. O país se encontrava tão fragmentado e destruído por ser submisso à manipulação dos vários poderes estrangeiros, que pouco restara, quando do surgimento do poder árabe, que fosse de algum valor para qualquer império de vulto significativo. A importância da Arábia Central

A região central da Arábia permanece como um vasto e desconhecido território durante este período histórico, de pouca importância para os povos do mundo antigo, a não ser por seu caráter de barreira natural do deserto. A despeito do extenso trabalho desenvolvido por estudiosos que analisaram os textos literários muçulmanos primitivos relativos ao assunto (escavações arqueológicas não foram autorizadas nos sites religiosas cruciais), as evidências sobre o papel da região como foco de um comércio rico e economicamente explosivo entre o sul da Arábia e o Crescente Fértil, como sugerido, são virtualmente inexistentes

7. Qualquer evidência sólida do caráter religioso da região revela um sistema

politeísta que possuía traços básicos comuns com a religião semita em geral; isto inclui a adoração a ídolos associada

5 Ver G Ryckman, “Heaven and earth in the South Arabian inscriptions’, Journal of Semitic Studies, 3 (1958), 225-36.

6 Ver Andrew Rippin, “RHMNN and the Hanīfs”, em Wael B. Hallaq e Donald P. Little (eds), Islamic Studies Presented

to Charles J. Adams, Leiden, E.J. Brill, 1991, 153-168. 7 Ver Patrícia Crone, Meccan Trade, esp. Pp. 149-167 para detalhes a respeito da provável extensão do comércio.

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com cultos astrais e crenças em espíritos residentes em rochas, arvores e afins8. O papel de Meca enquanto santuário é

pouco evidente, ainda que o caráter desta região sagrada se torne um tanto confuso como resultado das manipulações das informações por historiadores posteriores que substituíram o que parecia ser tradições sacerdotais por tradições judaicas

9.

Em geral, por causa desta situação, vários aspectos tornam-se claros neste retrospecto histórico. Politicamente, a região do Oriente Próximo era turbulenta quando das conquistas árabes e certamente se encontrava em uma condição que permitia a emergência de uma nova configuração de poder político. As interações ocorridas entre árabes e o restante do mundo viram as tribos sendo manipuladas pelas políticas estrangeiras dos impérios, com pouca ou nenhuma importância dada aos próprios habitantes da região; isto era verdade tanto no norte, como no sul. A conexão entre os impérios antigos e suas religiões era estreita, o que quer dizer que uma nova dispensação religiosa, separada das noções ligadas aos antigos regimes, pode muito bem ter se encontrado em uma posição favorável. Pré-História na identidade Muçulmana

Existe, entretanto, muito mais significação no período pré-islâmico do que a interpretação precedente dos dados históricos parece sugerir. Em termos de identidade muçulmana, o período pré-islâmico serve mais enfaticamente como um contraponto histórico, ideológico e ético à cultura e filosofia islâmicas. É, portanto, uma era na qual escritores muçulmanos tendiam a estar muito interessados, por isso, forneceram uma abundante quantidade de material que, teoricamente, retratam o período em questão. Portanto, a partir da posição de se tentar compreender a fundação da religião islâmica, a compreensão muçulmana do período assume um papel considerável e crucial. A apreciação do ponto de vista muçulmano, entretanto, deve ser distinta de reconstruir a própria história da época; o que está em questão aqui é o papel da compreensão do passado e os tipos de pressões e interpretações às quais tais compreensões se tornam sujeitas. Este processo, inerente aos escritos muçulmanos sobre o passado, é algo comum à humanidade: a recriação do passado incorporada na idéia de ‘tradição’, seletivamente formada e remodelada, dando origem a um contexto novo e relevante

10.

O conceito de´Jahiliyya´

O período pré-islâmico é uma era contrastada com o tempo e cultura islâmicos, um contraste incorporado no termo Jāhiliyya. Este termo é encontrado no Corão quatro vezes, em referência à própria idéia, e dez vezes em referência a pessoas, e é também utilizado em derivações verbais ligadas à palavra com o mesmo sentido. A palavra parece ser utilizada no texto de escritura como sendo o oposto de ‘Islã’, no qual aqueles ligados à Jāhiliyya são os ‘ignorantes a respeito de Deus’ – pelo menos esta é a maneira pela qual a maioria dos comentaristas muçulmanos do Corão interpretam a palavra. Por exemplo, a sura 48, aya 26, declara:

“Quando os incrédulos fomentaram o fanatismo - fanatismo da idolatria (Jāhiliyya) - em seus corações Deus infundiu o sossego em Seu Mensageiro e nos fiéis, e lhes impôs a norma da moderação, pois eram merecedores e dignos dela; sabei que Deus é Onisciente”.

As realizações religiosas do islã, norteadas pela palavra ‘moderação’ (lit. ‘taqwā’ = ‘temor de Deus’) contida nesta passagem, só podem ser julgadas ao compará-las com a situação existente antes delas. Ainda mais significativo, o impulso para se demonstrar tais realizações do islã parece repousar, em ultima estância, sobre o desejo de provar o status divino da própria dispensação religiosa. O que o islã realizou, em termos de transformação da sociedade, de um cenário de ‘Jāhiliyya’ para um outro, marcado pelo ‘temor de Deus’, na verdade, prova a natureza divina da religião. Uma conseqüência deste impulso aparente para ilustrar a separação entre Jāhiliyya e islã, é o surgimento de um grande volume de material destinado a provar e fornecer o apropriado contraste pré-islâmico. O ponto de partida de todo este material foi, obviamente, a posição islâmica – ou seja, somente as informações necessárias para prover este contraponto aos valores islâmicos são encontradas nos textos. De nenhum modo, as fontes islâmicas tentam prover uma apresentação imparcial da política, da religião e da sociedade pré-islâmicas (ainda que muitos estudiosos recentes do islamismo tenham certamente intentado examinar os materiais e recriar tal período, a despeito da seletividade e preconceitos interentes ao próprio material).

8 Ver Joseph Henninger, “Pre-islamic Bedouin Religion”, em Merlin L. Swartz (trad. e ed.), Studies on Islam, New York,

Oxford Universitu Press, 1981, pp. 3-22, ainda que boa parte dos detalhes neste artigo seja alvo de graves

questionamentos. 9 Ver G.R. Hawting, “The Oritings of the Muslim Sanctuary at Mecca”, em G.H.A. Juynboll (Ed.), Sudies in teh First

Century of Islamic Society, Carbondale, Southern Illinois University Press, 1982, pp. 23-47. 10

Ver Edward Shils, “Tradition”, Comparative Studies in Society and History, 13 (1971), 122-159.

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Descontinuidade do Islã com o passado

A maneira como esta abordagem para retratar o passado funciona pode ser mais facilmente ilustrada através de um exemplo relativo a um aspecto jurídico. Em assuntos legais, o impulso de se demonstrar os benefícios do islã são por demais perceptíveis, pois refletem elementos um tanto tangíveis do quotidiano do estilo de vida muçulmano. A sura 2, aya 168 diz:

“Ó humanos, desfrutai de todo o lícito e do que a terra contém de salutar e não sigais os passos de Satanás, porque é vosso inimigo declarado”.

Algo comum a diversas fontes que lidam com a interpretação do Corão e que contêm histórias a respeito do ‘contexto’ da revelação de um verso

11 é a seguinte premissa: “Este verso foi revelado a respeito [das tribos árabes de] Thaqīf, Khuzā’a

e ‘Āmir ibn Sa’sa, que lhes proibiu produção cultivada e gado de pasto. Eles também proibiram os camelos bahrīra, sā’iba, wasīla e hāmī”

12.

A imagem formada é de diversos povos anteriores à revelação do Corão praticando ações, neste caso proibindo a si mesmos diversos tipos de alimentos, que deveriam ser permitidos a partir da dispensação islâmica. Obviamente, não é possível provar que assim não era, que tal evento ‘realmente não aconteceu’, mas este não é o ponto central. O que é realmente de nosso interesse aqui é como a anedota funciona no contexto islâmico, pois a função de tais histórias é descrever a amplitude do feito causado pelo islamismo e claramente diferenciar o islamismo da situação presente anteriormente. Em verdade, é bem possível demonstrar, em situações particulares, que muçulmanos que viveram posteriormente não eram conhecedores dos ‘fatos’ do período pré-islâmico e, ao invés disso, que as anedotas emergiram com o propósito de ancorar o islamismo de maneira mais firme na história; outros escritores foram capazes de fornecer muitos exemplos lúcidos de tal fenômeno

13 e outras instâncias do mesmo são de fácil identificação. Quanto à passagem encontrada na

sura 2:158,

“As colinas de Assafa e Almarwa fazem parte dos rituais de Deus e, quem peregrinar à Casa, ou cumprir a `umra, não cometerá pecado algum em percorrer a distância entre elas”.

são repetidas as anedotas que falam das práticas pré-islâmicas concernentes às colinas de Assafa e Almarwa, mas as mesmas anedotas são um tanto obscuras a respeito de os árabes pré-islâmicos corriam ou não entre elas. Uma destas anedotas relata o seguinte:

“...Em Assafa se encontrava a imagem de um homem chamado Isaf, enquanto em Almarwa, a imagem de uma mulher chamada Na’ila. O povo do livro [judeus e cristãos] alegavam que estes dois haviam cometido adultério na Kaaba [em Meca]; por isso, Deus os transformou em pedra e os colocou em Assafa e Almarwa, para que servissem de aviso a outros... o povo da Jāhiliyya esfregavam as mãos nas imagens enquanto peregrinavam entre elas [durante seus rituais de peregrinação]. Quando veio o islã e os ídolos foram despedaçados, os muçulmanos abominaram tal perambulação entre as colinas por causa [de sua associação com] dos ídolos. Então, Deus revelou este verso

14 (2:158).

Outra explicação a respeito deste verso é encontrada no seguinte relato:

“Urwa ibn al-Zubayr disse a Aisha: ‘Não vejo erro em alguém que não corre entre Assafa e Asmarwa, nem tampouco me incomodaria se eu mesmo não corresse entre elas’. Aisha respondeu: ‘Estás errado, ó filho de minha irmã! Maomé correu entre elas e assim fizeram os muçulmanos. Diferentemente foram [os pagãos] que sacrificaram a Manat, o ídolo sobre a

11

Ver, por exemplo, al-Wāhidī, Kitāb Asbāb al-Nuzūlg, Ahamad Saqr (ed.) Cairo, Dār al-Kitāb al-Jadīd, 1969, pp. 43 e

44. Sobre a interpretação deste tipo de anedota, ver A. Rippin, ‘The Exegetical Function of Asbāb al-Nuzūl Material’,

Bulletin of the School fo Oriental and African Studies, 51 (1988), 1-20. 12

Comparar com a sura 5:103. 13

Ver, por exemplo, Michael Cook, Muhammed, Oxford, Oxford University Press, 1983, capítulo 7. 14

Al Wahidi, p. 42.

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montanha de Mushallal, que não correram entre elas. Então, Deus enviou este verso (2:158). Fosse como dizes, o verso diria ‘não há culpa em quem não corre entre elas’”.

15

Ilustrada nestas anedotas está a ambivalência da informação. Ou os árabes pré-islâmicos corriam ou não corriam entre as duas colinas. Ambos os relatos certamente fornece uma justificativa para que os muçulmanos corram entre elas (o que, enfim, é a questão central para os juristas muçulmanos posteriores) e, ao mesmo tempo, ambos os relatos fornecem um contraste com o período pré-islâmico. Este contraste perceba, pode ser positivo ou negativo – ou as coisas são diferentes do passado ou são iguais. Um fenômeno similar pode ser visto em muitas discussões jurídicas, por exemplo, com relação a alimentos proibidos a muçulmanos ‘pela virtude de não serem consumidos por árabes pré-islâmicos

16, nas quais a avaliação, quando comparadas com o passado, é, uma vez mais, positiva.

O papel do mito Abraâmico

Em geral, pode ser dito que este material pré-islâmico foi registrado não com motivações ‘históricas’ em mente, se, por isso, nos referirmos a princípios modernos de pesquisa histórica. Ao invés disso, os relatos foram transmitidos e registrados de modo a fornecer a informação necessária para a compreensão do Corão em um contexto de Arábia, e para avaliar o islã como um todo. Uma obra extremamente popular foi escrita por Hisham ibn al-Kalbi, que morreu em 819, intitulada The Book of Idols (‘O Livro de Ídolos’). O texto reúne referências poéticas a várias deidades ‘pré-islâmicas’, especialmente as citadas no Corão. Uma vez mais, entretanto, deve-se notar que as origens desta poesia não são, obviamente, oriundas do período histórico anterior a Maomé; tem caráter não-islâmico religiosamente falando (mas não necessariamente pré-islâmico historicamente falando), e isso sugere a possibilidade de que, pelo menos no período após Maomé, vestígios de manifestações religiosas anteriores ainda permaneciam. De especial interesse é o início do livro de Ibn al-kalbi, que apresenta um entendimento teológico claro da pré-história islâmica; o exemplo ilustra bem a abordagem de obras como esta. A História é apresentada (de fato, como se espera) de um ponto de vista islâmico e contada de acordo com princípios islâmicos e inclui, em sua reprise, uma condenação implícita da corrupção e imoralidade da era pagã que precedera o islã

17.

“Quando Ismael, filho de Abraão, que Deus abençoe a ambos, se instalaram em Meca, muitos filhos lhe nasceram, de modo que o número de pessoas tornou-se tão numeroso que ali se encontraram em multidão. Eles dispersaram os antigos habitantes, os amalequitas. Mais tarde, Meca tornou-se tão superpopulosa que as rivalidades e os conflitos logo surgiram entre eles, de modo que pelejaram uns contra os outros e, como resultado, viram-se espalhados por toda a terra, buscando um lugar de habitação... ninguém deixou Meca sem levar consigo uma pedra do santuário, como sinal de veneração do mesmo e de amor por Meca. Onde quer que se instalassem, eles erigiam a rocha e perambulavam em torno da mesma, como faziam na Kaaba, assim buscando bênçãos e afirmando sua ligação com a Kaaba. Eles mantiveram sua veneração pela Kaaba e por Meca a despeito desta prática e viajavam a Meca quando da peregrinação e visitação [‘umra] segundo a tradição herdada de Abraão

e Ismael, que Deus abençoe a ambos. Com o passar do tempo, isto os levou a adorar àquilo que bem lhes parecesse. Esqueceram-se de suas antigas crenças e trocaram a religião de Abraão e Ismael por outra. Adoraram ídolos e retornaram às práticas das nações anteriores a eles. Após terem descoberto as imagens que o povo de Noé (que a paz esteja sobre ele!) adorou, eles adoraram a adoração daqueles que eram relembrados. Entre as práticas havia algumas que remontavam ao tempo de Abraão e Ismael, incluindo a veneração e perambulação ao redor do templo (em Meca), a peregrinação, a visitação [‘umra], o estar de pé em Arafat, os rituais de Muzdalifa, o oferecimento de sacrifícios, e, finalizando a fórmula ritual durante a peregrinação e a visitação

18”.

O problema que tal passagem está tentando resolver para seus leitores é o seguinte: os muçulmanos sabem que os rituais ligados à peregrinação em meca eram continuações dos ritos pré-islâmicos; tais ritos possuíam conotações pagãs. Como poderia Deus legitimar tais atividades? A resposta é encontrada em Abraão e Ismael que, tendo vivido em

15

Al-Qurtubi, al-Jami li-Ahkam al-Qur’an, Beirute, Dar Ihya’ al-Turath al ‘Arabi, 1967, vol. 2, p. 178. Nesta passagem

e sua interpretação, ver Mahmoud M. Ayoub, the Qur’an and its Interpret, volume 1, Albany, State University of New

York Press, 1984, pp. 176-179. 16

Ver Michael Cook, “Early Islamic dietary Law”, Jerusalem Studies in Arabic and Islam, 7 (1986), 217-277,

especialmente pp. 270 e 271. 17

Ver G.R. Hawting, “The Literary Context of the Traditional Accounts of Pré-Islamic Arab Idolatry”, Jerusalem

Studies in Arabic and Islam, 21 (1997), 21-41. 18

Ibn al-Kalbi, Kitab al-Asnam, R. Klinke-Rosenberger (ed.), Leipzig, Otto Harrassowitz, 1941, pp. 3 e 4; uma tradução

completa em inglês desta obra está disponível, Nabih Amin Faris, The Book of Idols, being a Translation from the

Arabic of the Kitaba al-Asnan by Ihisham ibn al-Kalbi, Princeton, Princeton University Press, 1952.

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Meca e praticado os rituais da peregrinação ali (implicitamente os mesmos que os muçulmanos praticam até o dia de hoje), deixaram as atividades, mas o significado (ainda que não as ações em si) das mesmas foi esquecido entre os habitantes pagãos da região

19. Enquanto esta origem abraâmica não seja evocada em todos os casos de uma conexão

positiva entre a Jāhiliyya e o islã, é, sem dúvida, suficientemente freqüente de modo a ser vista como uma ferramenta generalizada de auxílio aos muçulmanos a respeito do passado. Abraão permanece como sendo o ‘primeiro muçulmano’, colocando em prática as atividades que seriam revividas por Maomé; os povos dos séculos intermediários são os perpetradores da distorção da verdadeira religião que Deus tornara disponível a Sua criação através de Abraão. A significação da pré-história

Portanto, podemos ver que a ‘pré-história’ do islã é uma noção conceitual significante, tanto para historiadores preocupados com a compreensão do surgimento do islã e para a própria comunidade muçulmana na compreensão de seu relacionamento com sua herança cultural-religiosa. No caso destes, a avaliação dos feitos do islã ao separar sua fé do passado é compreendida de duas maneiras – como uma separação radical do passado ou como uma continuação dos elementos dotados de valor (i.e., divinamente sancionados). Para aqueles, a confiança depositada em materiais preservados na estrutura da avaliação da fé muçulmana significa que o relato a respeito do surgimento do islã é permeado por problemas. Na ausência de fontes seguramente contemporâneas, literárias ou epigráficas, nosso conhecimento da ‘pré-história’ permanecerá filtrado pela figura teologicamente inspirada do passado fornecida por fontes muçulmanas posteriores.

19

Ver Reuven Firestone, “Abraham’s Association with the Meccan Sanctuary and the Pilgrimage in teh Pré-Islamic and

Early Islamic Periods”, Lê Muséon, 104 (1991), 359-387.

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2. O CORÃO O islã, enquanto religião, concentra-se em sua escritura, o Corão. Escrito em árabe, o Corão é um livro curto que possui uma chamada especial a todos os seus ouvintes e leitores. É relativamente fácil dar uma breve descrição do Corão como livro, uma vez que este se encontra facilmente disponível em nossos dias. Mesmos os conteúdos do Corão são prontamente sumarizados, contanto que não se deseje identificar uma posição teológica necessariamente sistemática no livro. Mas, com relação a como, por que e quando o Corão passou a existir como texto e por que tem a aparência e a sonoridade que apresenta em nossos dias é algo muito mais difícil de se determinar. Será de grande beneficio começarmos pelas tarefas fáceis e, então, intentar cumprir as mais difíceis posteriormente. O Corão como livro O Corão possui 114 capítulos, chamados sūras, toscamente organizados em ordem de extensão, da mais longa (cerca de 22 páginas no texto em árabe para a sura 2) à mais curta (apenas uma linha para a sura 108). A maior exceção a este princípio relativo à ordem é o primeiro capítulo, chamado de ‘A Abertura’, al-Fatiha que, essencialmente, é uma oração e é utilizada como tel em rituais muçulmanos. Cada capítulo é dividido em versos, āyas, cujo total ao longo de todo o livro é de entre 6204 e 6236, diferindo de acordo com os vários esquemas de contagem. Estas divisões de versos nem sempre correspondem ao sentido do texto, mas estão geralmente ligadas à estrutura de rima por letras desconexas do alfabeto árabe, sendo algumas letras sozinhas (Q – qāf, sura 50; N – nūn, sura 68) ou ainda conjuntos de até cinco

letras. O significado destas – assim chamadas – ‘letras misteriosas’ tem intrigado tanto muçulmanos tradicionais, como estudiosos modernos. Além disso, como um prefácio de cada capítulo, como exceção da sura 9, se encontra o basmala – a declaração “Em o nome de Deus, o Misericordioso, o Compassivo” (uma declaração que também ocorre no início de uma carta citada no Corão, 27:30). O texto, como é geralmente encontrado em nossos dias, demonstra tanto as consoantes como as vogais árabes de acordo com um sistema padrão de escrita, além de uma variedade de outros sinais ligados a práticas de recitação e divisões de versos. Entretanto, manuscritos primitivos do Corão, que datam dos séculos VIII e IX, apresentam apenas a forma consonantal do árabe. A leitura do Corão revela uma preocupação temática com três tópicos principais: lei, os profetas anteriores e o julgamento final. Os três se combinam para formar o que foi classificado por alguns como ‘um curioso amálgama’ de um pressuposto conhecimento bíblico por parte do leitor com um outro elemento, que parece ser algum tipo de tradição caracteristicamente árabe.

1

Deus como tema central

Dominante sobre todo o Corão e ponto de referência para todos os desenvolvimentos de temas, se encontra a figura de Deus, Allah, em árabe. O todo-poderoso, onipotente e todo-misericordioso trouxe o mundo à existência para o beneficio

de suas criaturas, enviou mensagens a suas criaturas no passado para guiá-las no caminho de vida mais benéfico a elas e a ele, deu-lhes a lei pela qual deveriam viver – e que alcançou sua perfeição e compleição no islã – e causará o fim do mundo em um tempo conhecido somente por ele, quando todos deverão ser julgados estritamente de acordo com seus feitos. O Corão declara, na sura 20, ayas 7 e 8:

“Não é necessário que o homem levante a voz, porque Ele conhece o que é secreto e ainda o mais oculto. Deus! Não há mais divindade além d'Ele! Seus são os mais sublimes atributos”.

Esta ênfase na unicidade de Deus, no fato de que ele é o único deus existente, é apresentada tanto na oposição à tradição judaico-cristã e em oposição aos idólatras politeístas.

“Os judeus dizem: Ezra é filho de Deus; os cristãos dizem: O Messias é filho de Deus. Tais são as palavras de suas bocas; repetem, com isso, as de seus antepassados incrédulos. Que Deus os combata! Como se desviam! Tomaram por senhores seus rabinos e seus monges em vez de Deus, assim como fizeram com o Messias, filho de Maria, quando não lhes foi ordenado adorar senão a um só Deus. Não há mais divindade além d'Ele! Glorificado seja pelos parceiros que Lhe atribuem!”

Sura 9:30 e 31

1 Para uma ilustração de diferentes abordagens acadêmicas à análise do Corão, ver a coleção de artigos reunidos em

Andrew Rippin (ed.), The Qur’an: Style and Content,Aldershot, Ashgate/Variorum, 2000.

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Enquanto a referência precisa sobre a acusação de que Ezra é o filho de Deus de acordo com os judeus jamais tenha sido esclarecida, a ênfase geral da passagem sobre a associação de simples mortais com Deus é suficientemente óbvia. Quanto a Jesus, há uma clara denúncia de sua filiação divina ao logo de todo o Corão, e, ao mesmo tempo em que ele é chamado de al-Masīh, o Messias (‘O Ungido’), este á apresentado como sendo seu nome somente e não como uma indicação de sua função ou status.

“Mesmo assim atribuem como parceiros a Deus os gênios, embora fosse Ele Quem os criasse; e, nesciamente, inventaram-Lhe filhos e filhas. Glorificado e exaltado seja, por tudo quanto Lhe atribuem. Originador dos céus e da terra! Como poderia Ter prole, quando nunca teve esposa, e foi Ele Que criou tudo o que existe, e é Onisciente? Tal é Deus, vosso Senhor! Não há mais divindade além d'Ele, Criador de tudo! Adorai-O, pois porque é o Guardião de todas as coisas”.

Sura 6:100-102

A referência aos jinns, ou aos ‘gênios’ das noites árabes, é mencionada aqui de modo a opor-se à idéia de que tais seres fossem considerados poderes divinos de qualquer sorte (como os politeístas aparentemente pensavam), mas a idéia de sua existência é, obviamente, amplamente aceita. Juntamente com os anjos e a humanidade, os jinns são vistos como parte da criação, mas existentes em uma dimensão diferente. A criação da humanidade a partir do barro (sura 15:26, 55:14) é simultânea à criação dos jinns a partir do fogo (sura 15:27, 55:15). A crença de que os anjos foram criados a partir da luz é uma forte tradição no islã, mas não é algo realmente mencionado no Corão

2. Em geral, cada parte da

criação possui seu próprio âmbito e seus próprios deveres específicos em seu relacionamento com Deus. Os profetas do passado

A figura de Deus no Corão é claramente a mesma do Deus que se comunicou com os profetas do passado. A sura 20:9-14 diz:

“Chegou-te, porventura, a história de Moisés? Quando viu o fogo, disse à sua família: Permanecei aqui, porque lobriguei o fogo; quiçá vos traga dele uma áscua ou, por outra, ache ao redor do fogo alguma orientação. Porém, quando chegou a ele, foi chamado: Ó Moisés, Sou teu Senhor! Tira as tuas sandálias, porque estás no vale sagrado de Tôua. Eu te escolhi. Escuta, pois, o que te será inspirado: Sou Deus. Não há divindade além de Mim! Adora-Me, pois, e observa a oração, para celebrar o Meu nome.”

Esta passagem ilustra de maneira bela a abordagem corânica à revelação anterior. A própria história é semelhante à da Bíblia Hebraica (Êxodo 3), mas é apresentada aqui destituída do elemento da extensa narrativa que parece tão essencial à maneira judaico-cristã de se entender as Escrituras. De modo contrastante, o Corão simplesmente apresenta um sumário da história e vai direto ao ponto religioso-moral, cada aspecto do qual é, na verdade, central à passagem islâmica. Neste caso, a ênfase é claramente colocada sobre a unicidade de Deus, mas, também, sobre a instituição da oração e da instrução de obediência a Deus como o elemento essencial à fé. Para entender completamente tais passagens em termos de uma narrativa geral coerente é freqüentemente necessário analisar os relatos corânicos sob os moldes da estrutura da tradição bíblica. Este fato enfatiza a necessidade de se considerar uma área muito mais ampla do que a Arábia Central quando se pensa no contexto original da mensagem do islã. Vinte e oito personagens além de Maomé são mencionados pelo nome como tendo sido comissionados ou selecionados por Deus para espalhar a mensagem dão verdadeiro meio de obediência a Ele. Somente um número limitado destes personagens recebeu escrituras de algum tipo para compartilhar com a comunidade. Abraão, Moises, Davi e Jesus são especificamente citados neste sentido. Nem todos os mensageiros são conhecidos pelo relato bíblico (ou, pelo menos, sua identificação como personagens do passado é menos que claro): Hud, Salih, Shu’ayb e Luqman são geralmente tratados como profetas específicos ao contexto árabe, tendo precedido Maomé. Dhu’l-Qarnayn é identificado como ‘Alexandre, o Grande’, de acordo com as lendas reunidas em torno do nome. Dhu’l-Kifl, o ‘senhor da porção’ (mencionado nas suras 21:85 e 38:48), é identificada de várias e incertas maneiras como Obadias, de 1 Reis, Ezequiel ou Elias, mas freqüentemente descrito como ‘desconhecido’ a partir da perspectiva da história. As histórias de tais profetas são recontadas com freqüência em passagens estereotipadas, refletindo a mensagem geral islâmica. O profeta é comissionado por Deus, o profeta confronta seu povo, o povo o rejeita e, como resultado, o povo é destruído e o profeta e quaisquer outras pessoas fiéis à sua mensagem são salvas pela misericórdia de Deus. Uma sura como, por exemplo, a 11ª, intitulada ‘Hud’, é típica em sua apresentação de tais histórias. Aqui encontramos, unidos em narrativas sempre similares em estrutura e mesmo nas palavras em algumas instâncias, relatos de Noé, Hud, Salih, Abraão, Ló, Shu’ayb e Moisés. a moral da história é sempre a mesma. Deus triunfará contra os descrentes e Sua mensagem permanecerá sempre no mundo, de uma forma ou de outra. Alguns outros profetas possuem suas histórias

2 Ver Encycopaedia of Islam, New Edition, “Mala’ika” (por D. B. McDonald).

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contadas de maneira forma mais expansiva. A história de José, recontada na sura 12 e uma das narrativas mais coesas encontradas no Corão, é apresentada em uma forma um tanto completa e, em algumas partes, ainda mais elaborada do que o relato bíblico. Esta elaboração indica que o Corão não é simplesmente uma repetição das histórias bíblicas, mas uma reflexão da forma popular do das histórias do profeta no ambiente do Oriente Médio do século VII. Elementos nas versões corânicas destas histórias são, por vezes, encontrados em obras como o Talmude Judaico ou Midrash, por exemplo. Portanto, o contexto no qual o Corão deve ser lido vai muito além da moldura fornecida pelo texto bíblico somente; ao invés disso, a tradição viva do Cristianismo e do Judaísmo, e todas as outras crenças e folclores da região são refletidos no Corão e fornecem o cenário necessário para sua compreensão. A famosa história de Gênesis 22 com respeito ao sacrifício do filho de Abraão é recontada no Corão, mas o filho não é identificado pelo nome e sua identidade tornou-se, por algum tempo, objeto de grande debate no islã

3. O contexto da

passagem corânica pareceria sugerir que Ismael foi o filho sacrificado, uma vez que, após a discussão do sacrifício no Corão (ver sura 37, ayas 102 a 109), a passagem continua e, no verso 112, afirma: “E lhe anunciamos, ainda, (a vinda de) Isaac, o qual seria um profeta, entre os virtuosos”, sugerindo que este era um personagem totalmente distinto. A interpretação sobre Ismael ser a vítima pretendida ganhou ainda mais força através da ideologia gerada mais tarde pelo debate entre a comunidade muçulmana e os judeus sobre estes haverem adulterado o relato bíblico para que este corroborasse sua herança através de Isaque; os judeus teriam cometido tal ato ao invés de elevar o status dos árabes e sua descendência através de Ismael (como relatado na Bíblia, ainda que a genealogia não ecoe em parte alguma no Corão). a despeito disso, a história dá outra ilustração da abordagem do Corão a narrativas bíblicas. A sura 37:102 afirma:

“E quando chegou à adolescência, seu pai lhe disse: Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício; que opinas? Respondeu-lhe: Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseverantes! E quando ambos aceitaram o desígnio (de Deus) e (Abraão) preparava (seu filho) para o sacrifício. Então o chamamos: Ó Abraão, Já realizaste a visão! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova. E o resgatamos com outro sacrifício importante. E o fizemos (Abraão) passar para a posteridade. Que a paz esteja com Abraão”.

Compactada aqui, em poucas linhas, encontra-se um capítulo da Bíblia que tem sido freqüentemente citado como um relato extremamente bem trabalhado em termos de impacto dramático por seu uso de tensão narrativa ao retratar o jovem Isaque viajando rumo ao sacrifício sem saber o destino a ele reservado. O Corão, entretanto, remove o drama, mas salva a mensagem, a suprema fé, tanto de Abraão, como de seu filho. Esta atitude fiel da parte de Isaque é também enfatizada no desenvolvimento da tradição em círculos judaicos e, subseqüentemente, cristãos, nos quais o filho de Abraão torna-se uma pré-figuração de Jesus em seu auto-sacrifício. Também significativo na história corânica é a ênfase no fato de que Abraão e seu filho se ‘renderam’ (em árabe, ‘aslama’), em suma, ‘tornaram-se muçulmanos’; mesmo aqui (ou, talvez, essencialmente aqui), a história é contada a partir de uma compreensão e abordagem muçulmanas. Jesus

Observações similares podem ser feitas concernentes à história de Jesus, cujos relatos, ainda que encontrados espalhados por todo o Corão, ao invés de uma narrativa coesa, apresentam uma figura freqüentemente encarada como sendo um reflexo de tendências variadas compreendidas dentro do Cristianismo – agnósticos, monofisistas e nestorianos

4. Nascido da Virgem Maria (sura 19:16-34), Jesus pronunciou seu primeiro milagre ainda no berço. Sua

tarefa na Terra era prover as ‘provas claras’ ou as ‘explanações’ (sura 2:253 e outros trechos) e sua missão foi marcada pr milagres, como encontrado na sura 3:49: curas, conhecimento de segredos ocultos e modelando pássaros de barro nos quais soprou o fôlego da vida, esta última uma história conhecida do evangelho apócrifo cristão segundo Tomé. A crucificação de Jesus, relatada na sura 4:157 e 158, gerou o maior movimento de interesse, visando seu possível reflexo de disputas sectárias cristãs:

“E por dizerem: Matamos o Messias, Jesus, filho de Maria, o Mensageiro de Deus, embora não sendo, na realidade, certo que [os judeus] o mataram, nem o crucificaram, senão que isso lhes foi simulado. E aqueles que discordam, quanto a isso, estão na dúvida, porque não possuem conhecimento algum, abstraindo-se tão-somente em conjecturas; porém, o fato é que não o mataram. Outrossim, Deus fê-lo ascender até Ele, porque é Poderoso, Prudentíssimo.”

A noção de que Jesus não morreu ‘realmente’ na cruz tem sido vista como uma continuação das discussões cristãs com respeito à natureza de Jesus – divino e/ou humano. Uma vez mais, entretanto, o Corão parece refletir um estranho

3 Ver Norman Calder, “From Midrash to Scripture: the Sacrifice of Abraham in teh Early Islamic tradition”, Le Muséon,

101 (1988), 375-402. 4 Ver Geoffrey Parrinder, Jesus in the Qur’an, Londres, Faber and Faber, 1965, especialmente pp. 22-29.

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amalgama, por um lado, sustentando o argumento favorável à verdadeiramente divina natureza de Jesus, negando, assim, a realidade de sua morte ao mesmo tempo em que, por outro lado, negando que Jesus era algo mais que um ser humano. A mensagem do dia do julgamento

Todos estes profetas, e muitos personagens adicionais que não são mencionados por seus nomes no Corão, mas descritos como tendo sido enviados (como diz a sura 10:47: ‘Todo povo tem seu mensageiro’), trouxeram a mesma mensagem de julgamento àquele que não se arrependerem e não seguirem a lei de Deus. A sura 19:59-61 afirma:

“Sucedeu-lhes, depois, uma descendência, que abandonou a oração e se entregou às concupiscências. Porém, logo terão o seu merecido castigo, salvo aqueles que se arrependerem, crerem e praticarem o bem; esses entrarão no Paraíso, e não serão injustiçados. (Repousarão nos) Jardins do Éden, que o Clemente prometeu aos Seus servos por meio de revelação, incognoscivelmente, e Sua promessa é infalível.”

A mensagem é simples. Todos os povos devem morrer em seu tempo determinado e, então, em um momento conhecido somente por Deus, a ressurreição acontecerá, na qual cada pessoa será julgada de acordo com suas obras praticadas na Terra. “E a hora da morte trará a verdade: Eis do que tentáveis escapar! E a trombeta soará. Eis aí o dia da advertência”, alerta a sura 50:19 e 20, fazendo referência à trombeta escatológica, um dos muitos elementos corânicos semelhantes às visões de João registradas no livro de Apocalipse. A cena do julgamento é pintada em estilo gráfico. Para cada pessoa, um livro de obras será trazido, testemunhando a respeito de sua boa ou má situação (sura 83); a imagem da balança enquanto a pesagem das obras também é empregada (sura 21:47). O julgamento determinará o destino final do individuo, seja ele o deleite do paraíso nos jardins ou o tormento flamejante do inferno. Ambos os lugares são retratados em termos vívidos, muito freqüentes no Corão, como por exemplo, na sura 55, onde ‘chamas de faíscas e fogo’ e o ‘banho fervente’ do inferno são contrastado com os ‘dois jardins’ do paraíso que possuem ‘todos os tipos de frutas, fontes abundantes’ e recompensas exóticas para os justos. O destino do individuo é descrito como estando nas mãos de Deus, ao mesmo tempo em que também depende do individuo. Deus, como o todo-poderoso criador pode controlar Seu mundo inteiramente, mas a humanidade deve tomar sobre si a responsabilidade por suas próprias ações. A tensão que tais declarações geram se mostraram como um tópico de grande importância para a especulação teológica no islã. Seja como for, o Corão é claro quanto à realidade de que é esperado que cada indivíduo siga a lei que Deus estabeleceu em Sua escritura, se é que há alguma esperança de entrada no paraíso no porvir. As pessoas são capazes de cometer pecado, sendo este definido como um ‘erro’, ao se desviar um indivíduo dos caminhos de Deus. A figura de satanás é introduzida para explicar a presença deste potencial para o mal no mundo. O caminho para o paraíso

A sura 4:136 proclama:

“Ó fiéis, crede em Deus, em Seu Mensageiro, no Livro que Ele lhe revelou e no Livro que havia sido revelado anteriormente. Em verdade, quem renegar Deus, Seus anjos, Seus Livros, Seus mensageiros e o Dia do Juízo Final, desviar-se-á profundamente”.

Aqui pode-se encontrar uma verdadeira afirmação confessional, reunindo todos os elementos considerados essenciais para se colher a recompensa final no paraíso. É necessária a crença na verdade e nos conteúdos da escritura; e qual é a evidência de tal crença, senão a aplicação prática de tais palavras? A sura 19:60, anteriormente citada, enfatiza a recompensa ‘para qualquer um que se arrepender e que creia a haja de modo justo’. Cumprir a lei de Deus – ‘agir de maneira justa’ – é um pré-requisito para que um individuo alcance a salvação. A lei, como anunciada no Corão, é remanescente da lei judaica em assuntos como a continuação da proibição relativa à carne de porco, e a instituição do rito de sacrifícios (ex., sura 2:173, 5:1-3), algumas regulamentações quanto à pureza (especialmente relativas às mulheres, na sura 2:222 e em uma situação ritual, 4:43 e 5:6) e a ênfase na regulamentação do casamento (ex. 4:23), divórcio (4:19-22) e herança (ex. sura 4:6-12). Claramente o islã se coloca ao lado do judaísmo contra o cristianismo em sua posição quanto ao papel da lei como sendo a apropriada implementação de fé, uma lei dada por Deus como um dom à humanidade com o intuito de prover orientação quanto a um viver puro e completo. De igual modo, vários emblemas do islã são mencionados no Corão, mas, freqüentemente, de maneira não elaborada. A peregrinação (ex. 2:196-200), o mês de jejum (2:183-187), a instituição das orações (2:142-152, 238 e 239) e a idéia da caridade (ex. 9:53-60) são todos tratados em níveis variados; a despeito da natureza de certa forma vaga de algumas das descrições de tais atividades no Corão (como comparada às formulações das mesmas atividades em outras fontes muçulmanas), fica claro que estas foram concebidas como uma parte compulsória da vida muçulmana.

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Um paralelo foi percebido entre os ‘Dez Mandamentos’ bíblicos e a sura 17:22-39. Certamente, o objetivo moral de muitas das declarações é similar: crença em um único Deus, demonstrar respeito aos pais, não cometer adultério e, assim, sucessivamente. Em termos de sua estrutura narrativa, entretanto, a lei não é apresentada da mesma maneira no Corão, como o é na Bíblia. De modo algum esta passagem é fundamental ou o ponto central do texto; nem tampouco é retratada na tradição muçulmana como central no contexto da carreira de Maomé. Portanto, a passagem não se equivale à compreensão tradicional dos ‘Dez Mandamentos’ em relação a Moisés e a Bíblia. Ao invés disso, a lei no Corão é parte integral do texto sem nada que a destaque do restante da palavra de Deus. Esta apresentação da lei não impede que esta seja estipulada em numerosos detalhes, em diversas referências, entretanto, exatamente como na Bíblia:

“Está-vos vedado casar com: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs, vossas tias paternas e maternas, vossas sobrinhas, vossas nutrizes, vossas irmãs de leite, vossas sogras, vossas enteadas, as que estão sob vossa tutela - filhas das mulheres com quem tenhais coabitado; porém, se não houverdes tido relações com elas, não sereis recriminados por desposá-las. Também vos está vedado casar com as vossas noras, esposas dos vossos filhos carnais, bem como unir-vos, em matrimônio, com duas irmãs - salvo fato consumado (anteriormente) -; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo.”

Sura 4:23

O Corão também trata da lei que foi revelada às comunidades precedentes. Tanto a Torá de Moisés, como o Evangelho de Jesus são especificamente citados como revelações precedentes

5. O Corão é encarado como escritura que confirma

ambas as escrituras e que atua como um mediador das disputas entre as duas: “(Enviamo-los) com as evidências e os Salmos. E a ti revelamos a Mensagem, para que elucides os humanos, a respeito do que foi revelado, para que meditem” (16:44). Mas o Corão também possui uma função corretiva, de acordo com a compreensão muçulmana, pois os seres humanos interpretaram mal e adulteraram as revelações anteriores, infundindo na palavra de Deus perversões humanas (ver 5:48). O Corão provê uma clara e perfeita versão da vontade de Deus, a correta versão da revelação. O caráter do Corão

Um sumário dos conteúdos do Corão, como o fornecido anteriormente, por exemplo, ainda que necessariamente incompleto, destaca um ponto importante a respeito da composição do próprio livro – seu aparente caráter aleatório e seu senso de organização aparentemente arbitrário

6. Esta composição peculiar é ilustrada pelo exame dos conteúdos de

quaisquer suras mais extensas, que são, claramente, um composto de muitos temas e ramificações de pensamentos diferentes. A sura 2, por exemplo, a mais longa do Corão, apresenta uma surpreendente imagem ao ser analisada de acordo com seus tópicos principais: Versos Tópicos 1-29 Fé e descrença 30-39 Criação, Adão, Satanás 40-86 História Bíblica – Moisés 87-103 História Bíblica – judeus, Jesus, Moisés 104-121 Polêmica – muçulmanos, judeus, cristãos 122-141 História Bíblica – Abraão 142-167 Identidade islâmica (direção de oração, oração e peregrinação) 168-203 Problemas jurídicos (comida, testamentos, jejum, peregrinação) 204-214 História da salvação 215-242 Problemas jurídicos (guerra santa, casamento, divórcio, etc.) 243-253 História da salvação 254-260 (diversos assuntos) 261-283 Problemas jurídicos (caridade, usura) 284-286 Fé Tal resumo absolutamente não faz justiça à complexidade da estrutura temática da sura

7, mas, ainda assim, fornece

informações que levam uma consideração. Como o Corão obteve a aparência que possui em nossos dias, com os

5 Ver Artur Jeffery, “The Qur’an as Scripture”, The Muslim world, 40 (1950), especialmente pp. 202-206.

6 Tais observações provocaram um grande volume de trabalhos acadêmicos (alguns marcadamente polêmicos); ver a

coleção de árticos acadêmicos a respeito deste tópico em Ibn Warraq (ed.). The Origins of the Koran, Amherst, NY,

Prometheys Press, 1998. 7 Esta, obviamente, não é a única maneira possível de dividir a sura; para um outro ponto de vista, ver Neal Robinson,

Discovering the Qur’an, Londres, SCM Press, 1996, pp. 201-223.

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assuntos nos capítulos individuais pulando de um tópico para o outro e com as duplicações e aparentes e abundantes inconsistências na gramática, lei e teologia? Para a ciência da crítica das fontes, a obra demonstra todas as tendências de uma edição feita às pressas, dando a mais superficial importância ao conteúdo, estando os editores/compiladores aparentemente determinados a estabelecer um texto final reparado para a escritura. Sob esta perspectiva, um argumento histórico lógico para o surgimento deste texto reparado é a elevação do Corão a uma posição de absoluta autoridade nos assuntos de lei e teologia (oposto à autoridade da tradição, do califa ou da razão). A criação de um texto estável de escritura e a canonização dos diversos elementos em um todo podem ser vistas como medidas que andaram de mãos dadas com a confirmação do texto como a maior fonte de autoridade legal e teológica sobre a comunidade muçulmana. O relato muçulmano a respeito da compilação do texto

A comunidade muçulmana possui, obviamente, uma explicação a respeito de o Corão possuir a aparência atual, mas, a contraditória natureza dos relatos sobre a multiplicidade de versões da história levantou sérias dúvidas por parte de diversos estudiosos quanto à motivação de tais versões. Geralmente, o próprio Maomé não possui qualquer participação na compilação do texto, ainda que seja possível encontrar relatos que o mostram revisando todo o texto juntamente com Ali, seu primo, genro e líder dos xiitas, surgidos anos mais tarde. Zayd ibn Thabit, um companheiro de Maomé, geralmente recebe o crédito da primeira compilação da escritura, enquanto relatos afirmam que as páginas do texto foram entregues a Hafsa, uma das esposas de Maomé. Sob as instruções de Uthman, o terceiro califa do império após a morte de Maomé, afirma-se que a principal compilação do texto ‘como possuímos em nossos dias’ (já que os muçulmanos alegam possuí-la) tenha sido realizada. Se pensarmos a respeito dos trechos de texto escritos em ‘folhas de palmeiras ou pedras achatadas ou nos corações dos homens’, o texto completo (que teria sobrevivido em sua inteireza) foi escrito em sua totalidade e distribuído aos maiores centros do império primitivo. Portanto, acredita-se que, após cerca de 30 anos após a morte de Maomé, o Corão já existia em sua forma definitiva, em termos de sua estrutura; teologicamente, é dito que a forma na qual o texto se encontrava neste ponto era algo semelhante à ‘placa celeste’, sugerindo que sua estrutura e conteúdo eram precisamente aquelas que Deus planejara

8. A partir deste texto estrutural,

que trazia somente as consoantes da escrita árabe em forma rudimentar, o texto final do Corão foi desenvolvido ao longo dos dois séculos seguintes, quando foram inseridos todos os detalhes relativos à língua e escrita. Ainda mais importante do ponto de vista muçulmano, acredita-se que uma tradição oral preservou todo o texto, desde o momento de sua revelação, sendo que a forma escrita serviu apenas como um recurso mnemônico para a memorização do texto. De certa forma, há duas maneiras de lidar com o Corão na tradição muçulmana: a oral, tradição seqüenciada a partir de Maomé, e a escrita, seqüenciada a partir do califa Uthman. A evidência dos manuscritos

Em 1972, um tesouro repleto de manuscritos antigos do Corão foi descoberto na Grande Mesquita de Sana’a, durante algumas reformas. Em 1979, uma equipe de estudiosos alemães deu início a uma análise de 12.000 fragmentos em pergaminho e papel, alguns dos quais (vinte e dois grupos de fragmentos) foram datados como pertencentes ao século VIII baseando-se, principalmente, na utilização de uma escrita árabe antiga conhecida cujo estilo é conhecido como Hijazi

9. Esta descoberta gerou um grande interesse, tanto popular como da parte de estudiosos. A existência de cópias

primitivas do texto do Corão pode muito bem ser considerada como auxílio na resposta a alguns enigmas relativos a sua composição. Até então, entretanto, isso não ocorreu e apenas sugestões hipotéticas foram dadas quanto ao assunto. Certamente, a existência de manuscritos do Corão indica que o texto (ou, pelo menos, partes substanciais do mesmo) existia em alguma forma de compilação por volta do século VIII. Isto, é claro, não nos diz nada a respeito do status do próprio texto dentro da comunidade muçulmana. Algumas discrepâncias na ordem das suras, como são encontradas em alguns manuscritos, podem indicar alguma variação na forma geral do texto. Ainda mais interessante, entretanto, é o fato de que o texto contém versões variantes de pequena importância, o que sugere a alguns estudiosos que a idéia de uma tradição oral existente paralelamente à tradição escrita não pode ser considerada historicamente verdadeira. Algo do que talvez possuamos evidências é a natureza interpretativa das detalhadas anotações adicionadas ao texto mais tarde, ou seja, o texto atual é o produto do reflexo de um texto primitivo e não da transmissão paralela de um texto oral, como sugere a tradição muçulmana. Exemplos podem ser dados, quanto à evidência de manuscritos primitivos, de situações nas quais palavras, por causa da maneira na qual foram escritas no estilo primitivo da época, foram, muito provavelmente, mal pronunciadas como resultado de uma má interpretação da escrita e da ausência de uma tradição oral consistente. Alguns exemplos incluem

8 Ver John Burton, The Collection of the Qur’an, Cambridge, Cambridge University Press, 1977, para uma abordagem

destes diversos relatos e seu significado em potencial. 9 A fonte de informação mais prontamente disponível a respeito destes manuscritos e algumas das controvérsias sobre

eles podem ser encontradas em Toby Lester, “What is the Koran?” The Atlantic Monthly, 283, i (Janeiro 1999), 43-56. O

texto do artigo está disponível na Web nos arquivos Athlantic Monthly (www.theatlantic.com).

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o nome Ibrāhīm, de melhor e mais fácil compreensão em uma versão mais próxima do hebraico, Abrāhām, e Shaytān, outra vez mais próximo do hebraico se escrito Sātān. A interpretação e evolução destas duas palavras resultam da má compreensão da escrita primitiva do vocábulo longo ‘a’ no meio da palavra

10.

Um outro exemplo de caráter diferente pode auxiliar na compreensão do que está em jogo nesta discussão. O último verso (112), da sura 21 inicia-se assim: “Ele disse [qāla]: Ó meu Senhor, julga com eqüidade! Nosso Senhor é o Clemente...”. A referência a ‘meu Senhor’ e ‘Nosso Senhor’ no texto indica que o sujeito de ‘dize’ não pode ser Deus, mas o recitador do Corão, primeiramente interpretado como sendo Maomé. Tal passagem, em verdade, se encaixa em uma forma comum de discurso corânico encontrada em passagens normalmente prefaciadas pelo imperativo ‘Diz!’ (qul).

O ponto significativo aqui é que no texto do Corão, a palavra aqui traduzida como ‘Ele disse’ seria, na verdade, mais adequadamente traduzida como ‘Dize!’, devido à ausência do sinal indicativo da vogal longa ‘a’ (algo que ocorre comumente no Corão, com certeza, mas a palavra qāla é soletrada desta maneira apenas duas vezes – sendo a outra ocasião na sura 21:4, o que ocorre apenas em algumas tradições de escrita do texto). Nos manuscritos primitivos San’a, a ausência do ‘a’ longo na palavra qāla é um padrão de um conjunto inteiro de textos primitivos. Mas, por que deveria esta passagem ser lida da maneira hoje se lê? A palavra deveria realmente ser lida como ‘Dize!’, para que pudesse ser coerente com o restante do texto. Isto cria a hipótese de que houve um tempo no qual o Corão era compreendido não como sendo a Palavra de Deus (como em ‘Dize!’), mas como a palavra de Maomé, como o profeta mensageiro. Tem-se a impressão de que, no processo de edição do texto, a maioria das passagens foi transformada de “Ele disse” para “Dize!”, tanto na interpretação, como na escrita, à exceção destas duas passagens na sura 21, que não foram alteradas. Isto pode ter ocorrido simplesmente porque alguém trabalhou com base no texto escrito na ausência de uma tradição oral paralela. É, portanto, justo afirmar que a tradição manuscrita pode possuir um impacto significante sobre nossa compreensão da história primitiva do texto to Corão. O estudo de tais manuscritos ainda se encontra em seu início, entretanto, e não se conhece realmente o impacto que estes textos poderão causar. A autoridade do Corão

O valor e o propósito das histórias a respeito da compilação do Corão ainda sto em debate entre os estudiosos, mas, a despeito do que venha a acontecer, uma coisa permanece muito clara. O Corão é, e tem sido desde o início do surgimento do islã como religião firmemente estabelecida, o ponto principal ao qual se deve reportar para definir-se algo como ‘islâmico’. O Corão é o ponto de definição para a identidade islâmica. O surgimento da comunidade muçulmana está intimamente conectada com o surgimento do Corão como texto dotado de autoridade na tomada de decisões relativas a assuntos de lei e teologia. Pesquisas revelaram que o status de escritura e autoridade foi debatido em tempos remotos, especialmente entre as diversas comunidades religiosas do Oriente Médio, além de na própria comunidade emergente. Elementos do processo pelo qual o Corão surgiu como fonte dotada de autoridade, juntamente com o surgimento do próprio islamismo, podem ser detectados nos escritos dos vários textos de interpretação corânica datados dos primeiros séculos do islã

11, em antigas obras de caráter legal e em diversos documentos de polêmicas inter-

religiosas. A derradeira elevação do texto do Corão à categoria a conhecemos hoje de escritura sagrada, palavra de Deus, inimitável, ligada a um profeta analfabeto e, desta forma, autoritário dentro da comunidade, foi o resultado de dois ou três séculos de vigoroso debate, como pode se verificar nestes textos. Sustentando o status da autoridade do Corão se encontram diversos dogmas teológicos diretamente ligados ao livro pelo qual o islã institucionalizado foi capaz de reclamar para o Corão o status de fonte primária em lei e teologia. Estes dogmas têm como resultado final a diluição de polêmicas relativas à construção do texto. A ação de tais dogmas se dá fazendo com que se veja o próprio corpo do livro como uma evidência da mão divina em ação. Mas é neste ponto que os textos polêmicos primitivos revelam diversos fatores para discussão, enquanto textos islâmicos exegéticos primitivos que lidam com o Corão indicam que o argumento relativo à forma do texto como evidência de divina autoria levou pelo menos três séculos para alcançar sua formulação totalmente desenvolvida. O Corão como a prova do islamismo

10

Gerd-R. Puin, ‘Neue Wege der Koranforschung: II. Über die Bedeutung der ältesten Koranfragmete aus Sanaa

(Jemen) für die Orthographiegeschichte dês Korans’. Universität dês Saarlandes Magazin Forschung, 1 (1999), 37-40,

especialmente p. 40. 11

Ver John Wansbrough, Quranic Studies: Sources and Methods of Scriptural Interpretation, Oxford, Oxford University

Press, 1977, parte 4, sobre o que ver Andrew Rippin, “Quranic Studies, parte IV: some methodologic notes”, Method

and Theory in the Study of Religion, 9 (1997), 39-46.

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Tem-se a impressão que, no princípio, os muçulmanos tinham que defender sua religião em nascimento contra ataques teológicos cristãos na região do Crescente Fértil, especialmente no Iraque. Formou-se, então, o seguinte argumento: milagres provavam o status de profeta e o Corão é o milagre de Maomé; portanto, Maomé era verdadeiramente um profeta e o islã era uma religião verdadeira, revelada. Todos os participantes do debates parecem ter concordado com tal argumento na primeira premissa. O que os muçulmanos tiveram que provar, e os cristãos desmentir, era a validade da segunda premissa, pois a conclusão, a verdade do islã, se sustentaria ou ruiria por causa de sua credibilidade. Ao longo do tempo, o argumento tornou-se algo centrado em provar a ‘inimitabilidade’ do Corão, um argumento que, seus proponentes eram rápidos em ressaltar, se embasava no próprio Corão, ainda que, se isto estava ou não claro antes que as reivindicações de tal argumento tivessem sido colocadas sobre estes versos, não seja algo inteiramente óbvio. Conhecidos como ‘os versos desafiadores’, a produção de um texto ‘semelhante’ ao Corão é encorajada, mas sabidamente impossível:

“Componde, pois, uma surata semelhante às deles; e podeis recorrer, para isso, a quem quiserdes, em vez de Deus, se estiverdes certos (...) Pois bem, apresentais dez suratas forjadas, semelhantes às dele”.

Sura 10:38 e 11:13

Deus confiara o Corão ao Maomé e, por causa de sua origem divina, nenhum texto que lhe fosse ‘semelhante’ poderia, de fato, ser composto. A inimitabilidade do texto prova sua autoridade divina e, portanto, seu status como um milagre, confirmando o papel de Maomé e a veracidade do islã. Textos polêmicos escritos entre 150 e 200 anos após a morte de Maomé indicam os tipos de discussões mantidas na época; a existência dos argumentos indica que não haviam respostas muçulmanas claramente formuladas contra tais polêmicas naquele tempo. Isto sugere que o Corão, como um texto oficial de escritura, ainda se encontrava no processo de angariar apoio para sua própria autoridade dentro da comunidade; na realidade, pelo menos 100 anos mais, antes da enunciação completa da doutrina da inimitabilidade, poderiam responder de modo coesivo a tais desafios. O cristão Al-Kindi, que escreveu um texto por volta do ano 830, inicia seu argumento da seguinte maneira: “Mostre-me qualquer prova ou sinal ou prodígio realizado por seu mestre Maomé, para certificar sua missão, e para provar que o que ele fez, em termos de assassinatos e pilhagens, foi, como ele, por divino mandamento”. O isolamento de um dos elementos centrais da fé cristã contra o islã – que a religião de Maomé fora expandida por meio da espada – é somada aqui à demanda por provas de um milagre. Antecipando-se à resposta muçulmana (que o Corão era a evidência), Al-Kindi prossegue:

“O resultado de todo este [processo pelo qual o Corão veio à existência] é patente a todos vós que lestes as escrituras e vedes como, no vosso livro, histórias encontram-se todas amontoadas e cujos conteúdos se encontram misturados uns aos outros; uma evidência de que muitas mãos diferentes estiveram nesta obra, e que causaram discrepâncias, adicionando ou subtraindo tudo aquilo que apreciavam ou abominavam. São estas, portanto, as condições de uma revelação enviada dos céus?”

12

O estado literário do Corão é usado contra os muçulmanos por Al-Kindi como prova de sua origem não-divina. A Doutrina da Inimitabilidade

A resposta muçulmana a estas acusações não alcançou sua expressão literária defensiva completa senão por volta do final do século X, nas mãos do teólogo e especialista gramático al-Rummani (morto em 996), que defendeu o ‘i’jaz’, ‘inimitabilidade’, do Corão, baseada, primariamente, em suas qualidades literárias, especialmente seus irrefutáveis méritos como, por exemplo, sua concisão

13. Em dado momento de sua argumentação, al-Rummani cita um ditado

popular árabe, sugere que seu significado é semelhante a uma afirmação corânica, mas ressalta (mais que isso, al-Rummani afirma categoricamente) que o Corão expressa o mesmo sentimento, em um menor número de letras. Além disso, o que, para escritores polêmicos dos primeiros séculos, eram falhas no Corão – evidências do caráter humano de sua produção e, portanto, de seu status não-literário – tornou-se para al-Rummani elementos positivos no livro. Elipses no texto, por exemplo, eram consideradas como artefatos positivos de retórica, ao invés de serem encaradas como evidências de um processo de redação feito às pressas ou imprudentemente. Boa parte deste tipo de argumentação

12

William Muir, The Apology of Al-Kindi, Written at the Court of al Mâmûn, (A. H. 215; 830 d.C.) in Defense of

Christianity against Islam, Londres, Smith, Elder and Co., 1882, pp. 18, 19 e 28, passagens levemente modificadas. 13

Al-Rummani, al-Nikat fi I’jaz al-Qur’an, Cairo. Dar-al-Maarif, 1956, especialmente pp. 76-80; uma tradução parcial

do texto está disponível em Andrew Rippin e Jan Knappert, Textual Sources for the Study of Islam, Mancehster,

Manchester University Press. 1986, seção 2.3.

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tornou-se ligado a uma compreensão da natureza da linguagem árabe, linguagem repleta de potencial retórico do qual, naturalmente, o Corão tem de tirar o maior proveito. O Corão, de acordo com suas próprias afirmações (suras 12:2 e 26:192-195) foi revelado por Deus ‘Em elucidativa língua árabe’ e, de acordo com o argumento, deve partilhar de todas as características deste idioma. Este tipo de argumento é difícil, senão impossível, de ser avaliado, devido à falta de literatura profana contemporânea pela qual o sucesso retórico do Corão possa ser verificado. O argumento permanece como algo dogmático, essencial à prova do status do texto, mas que opera (como muitos outros argumentos religiosos) somente segundo as pressuposições do islã. Interpretação do Corão

Em realidade, os muçulmanos, nos dois séculos anteriores a al-Rummani dos quais há alguma evidência literária, aparentemente possuíam sentimentos um pouco diferentes a respeito de suas escrituras. Eles parecem ter estado mais preocupados em catalogar as peculiaridades do próprio texto e em enfrentar o trabalho prático da compreensão do texto, ao invés de se aplicar na defesa de suas particularidades. Portanto, o problema mais generalizado da interpretação e, de mãos dadas com este, da consolidação de sua autoridade através da clara enunciação de seu significado, eram merecedores de muito maior preocupação. O texto do Corão apresenta muitas ambigüidades, palavras difíceis (cuja leitura precisa é incerta), problema de divisão textual e afirmações aparentemente incompatíveis. Com a elevação do texto ao status de dotado de autoridade, ou, talvez, paralelo a isto e estimulando a própria elevação do status, emergiu a disciplina de interpretação, conhecida como tafsir ou, em um sentido mais generalizado, as ciências corânicas chamada ´ulum al Qur’an.

Fundamentalmente, um trabalho de tafsir fornece uma interpretação do texto árabe de escritura e é definido por algumas características formais: segue o texto do Corão, do início ao fim e fornece uma interpretação do texto segmentada em palavras, frases ou versos. Enquanto exceções a tais características podem ser encontradas em algumas obras que seriam aceitas como tafsirs, cuja grande maioria das obras se encaixa neste padrão. Obras primitivas tendem a focalizar

certas tendências de interpretação. Alguns seguem os aspectos narrativos (‘haggad’) do Corão, desenvolvendo o texto em um todo envolvente e edificante, levando em consideração as necessidades do leitor que aborda o texto de escritura com um espírito curioso e especulativo. Portanto, o fornecimento do contexto histórico das diversas porções de revelação (em um formato que, mais tarde, torna-se conhecido como asbab al-nuzul, ou ‘as ocasiões de revelação’) e identificar pessoas, locais e outros elementos que são apenas mencionados (conhecidos mais tarde como ta’yin al-mubham) tornam-se aspectos importantes. Outras obras seguem os aspectos legais (‘halakh’) do texto, focalizando a necessidade da comunidade primitiva de sustentar a prática legal segundo o texto da escritura, algumas vezes facilitada pela organização do Corão em tópicos ao invés de seguir o texto ad seriatim. Ainda outros trabalhos examinam os

assuntos textuais, incluindo matérias mais estritamente ‘massoréticas’ e lexicográficas. Outra tendência é vista na obra de Abu ‘Ubayda (morto em 824) chamada Majaz al-Qur’an, que analisa mais especificamente figuras e expressões. A obra apresenta uma lista de tipos de versos ‘problemáticos’ no Corão e sua explicação; itens como elipses devidas a omissões, discordâncias gramaticais de número (ex. verbos no plural com sujeitos no singular) e variações no tratamento do gênero de substantivos estão registradas em sua totalidade. Esta catalogação dos problemas no Corão é também encontrada em outras obras que lidam com o vocabulário do texto, além de tratar também das características estilísticas e das versões variantes. Com o surgimento da doutrina da inimitabilidade, a atitude em relação a estes elementos sofreu mudanças, como já foi sugerido.

Mais trabalhos proeminentes de interpretação do Corão surgiram no século IX, tendo como objetivo esclarecer o texto à luz das compreensões e condições contemporâneas. Este não apenas foi o resultado da maturação da comunidade muçulmana e uma consolidação de opinião a respeito da escritura, como também foi o resultado de pressões de foro prático. À medida em que se expandia, a comunidade muçulmana incorporava um grande número de pessoas que não sabiam árabe e que não eram totalmente familiarizadas com a tradição bíblica, a qual, como dito anteriormente, parece ter sido uma base pressuposta para a compreensão do texto corânico. O primeiro marco do que veio a se tornar a vasta biblioteca de obras que forneciam interpretações compreensivas do Corão, foi escrito por Abu Jafar al-Tabari, morto em 923

14. Uma análise verso-a-verso fornece uma detalhada discussão das maiores vertentes de interpretação (exceto as

vertentes sectárias, como por exemplo, a Xiita); cada idéia é documentada pela transmissão das opiniões consideradas oriundas diretamente de Maomé ou de seus companheiros, tidos como os portadores das melhores informações com

14

Um volume desta obra está disponível em tradução em inglês: J. Cooper, The commentary on the Qur’an by Abu Jafar

Muhammad b. Jarir al-Tabari, Oxford University Press, 1987. Para bibliografia mais extensa a respeito de interpretação

corânica, ver Andrew Rippin, “The Present Status of Tafsir Studies”, The Muslim World, 72 (1982), 224-238; para uma

introducao ao tafsir e sua forma e estrutura primitivas, ver a coleção de artigos acadêmicos reunidos em Andrew Rippin

(ed.), The Qur’an:Formative Interpretation, Aldershot, Ashgate/Variorum, 1999.

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relação à compreensão do texto. Torna-se também claro que a gramática e a perspectiva teológica tornam-se as principais ferramentas de orientação para a construção de uma exegese madura do Corão. A gramática servia para definir o status e autoridade do estudioso na disciplina do tafsir, de tal forma que a habilidade de dissecar as minúcias das construções árabes tornou-se um ponto de foco de argumentação a respeito de como um significado do texto poderia ser derivado. A teologia tendia possuir um papel de menor importância, normalmente submisso aos conflitos de foro legal ou gramatical.

Enquanto uma citação breve não faz justiça às complexidades do texto de al-Tabari, a seguinte seção nos dá alguns indícios de suas bases de raciocínio, ainda que não vemos aqui sua constante referência a relatos de Maomé e de seus companheiros que forneçam as bases materiais para muitas discussões e variações nas interpretações. Ao tratar da sura 3:7, “Ele foi Quem te revelou o Livro; nele há versículos fundamentais, que são a base do Livro, havendo outros alegóricos.”, al-Tabari faz a seguinte afirmação:

“Então Deus descreveu estes versículos fundamentais [‘versos claros’] ao dizer que eles são a mãe do livro [‘base do Livro’], o que quer dizer que estes são a fonte do livro que contem em si

todos os deveres da religião, incluindo as responsabilidades e as penalidades e todo o mais cuja criação necessita quanto à lei de sua religião. Também incluídas estão as responsabilidades confiadas neste mundo e no além. Estes são denominados de ‘a mãe do livro’ por serem a maior porção do livro e um lugar de refúgio para o povo do Corão, quando se encontram em necessidade de tal. Esta é a prática dos árabes, quando denominam ‘mãe’ a reunião da maior porção de algo. De igual modo, nomeavam a bandeira do povo sob a qual se reuniam em seus pelotões de batalha, ‘mãe’; além disso, o líder que julgava a maioria dos assuntos da vila ou distrito era também denominado ‘mãe’. Mãe do livro esta no singular; não pode ser tornado plural como em “Estas são as mães do Livro”. Estas é usado, entretanto, porque todos os versículos fundamentais são considerados como a mãe do livro, ao invés de cada um deles ser a mãe do livro. Se o significado fosse que cada um dos versos fundamentais é a mãe do livro, não haveria dúvida quanto ao assunto, pois, assim estaria escrito: ‘Eles são as mães do livro’. A afirmação análoga feita por Deus de Eles são a mãe do livro, como a interpretamos no sentido singular de mãe, sendo o complemento gramatical de estes se encontra na sura 23:50: ‘E fizemos do filho de Maria e de sua mãe, sinal...’. ele não disse ‘dois sinais’, pois o significado é ‘Nós fizemos, dos dois juntos, um sinal’. O significado é singular eles concederam um único aviso à humanidade. Se a intenção fosse que cada um deles, de forma independente, desse um alerta à humanidade, então, assim se teria escrito: ‘E fizemos do filho de Maria e de sua mãe, dois sinais...’, porque, assim, em cada um deles teria havido um alerta. Os sinais estão no fato de que Maria teve um bebê, não por meio de um homem e que seu filho falou quando ainda bebê, no berço. Portanto, em cada um destes eventos havia um sinal para o povo

15”.

O processo de tornar histórico o texto do Corão foi um outro elemento importante na produção de muitas obras de exegese. A integração do texto com as histórias dos profetas do passado (primariamente bíblicas) no material conhecido como o qisas al-anbiya, ‘histórias dos profetas’, e com a história da vida de Maomé, como vemos enraizada em livros de Sira (‘história da vida’) como, por exemplo, na escrita por Ibn Ishaq (morto em 767), foi designada tanto para provar a o

fato teológico da realidade de revelação e para prover um contexto que servisse à interpretação de textos que, sem tal mecanismo, seriam historicamente opacos. O resultado foi um texto baseado na existência humana quotidiana, com ênfase no período da comunidade muçulmana em surgimento.

O Corão como objeto de fé

Para a comunidade muçulmana, o Corão é a palavra de Deus, como fora revelada a Maomé, o ponto central da fé islâmica. Como símbolo desta fé, o livro angariou naturalmente muito maior importância para o crente individual do que as discussões polêmicas acima esboçadas parecem sugerir. Afinal, para os muçulmanos, não há a menor dúvida a respeito do status de sua escritura; em qualquer instância, sua fé lhes confirma a veracidade do livro. Surgiu, então, um grande número de crenças a respeito do próprio texto do livro, separado de seus conteúdos, o que reflete a honra e proeminência atribuídas à escritura enquanto livro. Em um período de, no máximo, duzentos anos após a morte de Maomé, surgiram tradições que falavam a respeito da significação de seções individuais do Corão. o primeiro capítulo,

15

Al-Tabari, Jami al-Bayan na Tawil Ay al-Qur’an, Ahmad and Mahmud Shakir (eds), Cairo, Dar al-Maarif, 1971, vol.

6, pp. 170 e 171.

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surat al-fatiha, não reivindica ser apenas um elemento essencial ao ritual de oração16

, mas também a ‘maior’ de todas as

suras, a cuja recitação atribui-se a habilidade de cura contra picadas de escorpião, por exemplo; de igual modo, as suras 113 e 114 são tidas como eficazes na cura de enfermidades. Acredita-se que a recitação de porções individuais específicas do Corão (os dois últimos versos da sura 2, em especial) confira proteção contra Satanás durante a noite. a recitação da sura 18, 48 e 112 concede méritos e benefícios

17. O resultado de tais práticas foi o surgimento de um grupo

de complexas crenças médicas e espirituais, todas ligadas ao livro, e conhecidas como khawass al Qur’an. A história de tais práticas, como a maioria das crenças populares, não é muito conhecida, mas é provável que práticas modernas

18,

como usar uma minúscula cópia do Corão ou o nome de Allah como amuleto, do mesmo modo como cristãos usam um crucifixo ou uma cruz e judeus uma estrela de Davi, sejam uma herança do período islâmico primitivo. O Corão tem sido o símbolo central do islamismo, bem como a sua fonte vital e, assim como Jesus para o Cristianismo, seu poder para mover e motivar indivíduos jamais foi subestimados pelos muçulmanos.

16

Ver Muslim ibn al-Hajjaj, Sahih Muslim, Kitab al-Salat, Muhammad Fu’ad Abd al-Baqi (ed.), Cairo, Dar Ihya al-

Kutub al-Arabiyya, 1955 e 1956, vol. 1, pp. 295-298, tradições 34-46, traduzido para o inglês em Rippin and Knappert,

Textual Sources, seção 3.2.3.2. Uma tradução completa em inglês da obra de Muslim ibn al-Hajjaj está disponível: Abdul

Hameed Siddique, Sahih Muslim, Lahore, M. Ashraf, 1971. 17

Ver Bukhari, al-Sahih, Kitab Fadail al-Qur’an, Muhammad Muhsin Khan (ed. e trad.). Nova Delhi, Kitab Bhavan,

1984, quinta edição, vol. 6, pp. 489-496. Para uma abordagem mais recente do mesmo assunto, ver A. E. Christensen,

Xavass-i-Ayat. Nocices et extraits d’um manuscrit persan traitan la magie dês versets du Coran, Copenhagen, ª F. Host

and Son, 1920. 18

Para exemplos interessantes a esse respeito, ver Bess Allen Donaldson, The Wild Rue: A Study of Muhammadan magic

and folklore in Iran, Londres, Luzac, 1938, capítulo 16.

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3. MAOMÉ

Maomé é a figura central do islã. Escolhido por Deus para receber a revelação do Corão, ele foi considerado por todos os muçulmanos como o homem ideal, a perfeita encarnação do que significa ser muçulmano. Tendo vivido uma existência deveras normal na Arábia Central no século VI d.C., à idade de 40 anos, Maomé revolucionou sua sociedade de maneiras tanto inesperadas quanto duradouras. Estudiosos contemporâneos do islamismo geralmente não consideram adequado supor que Maomé não existiu. que alguém chamado Maomé incorporou o ponto de convergência das conquistas árabes e criou a marca de uma doutrina religiosa em nome da qual terras conquistadas foram unificadas, há verdadeiramente pouca dúvida; pelo menos, nenhum lucro será obtido pela negação de tais fatos em termos da construção de uma imagem histórica coerente

1. Fontes externas à nascente sociedade islâmica fornecem evidências,

ainda que de forma um pouco divergente do retrato ‘aceito’ do profeta árabe, o qual confirma o papel de sua própria pessoa. Tais fontes são limitadas em número, extremamente difíceis de serem datadas (o que levanta questionamentos de influências muçulmanas sobre os escritores da história, caso a fonte seja, de fato, muito mais tardia do que estes alegam) e questionáveis em sua apresentação supostamente ‘desinteressada’ ou ‘objetiva’ da história

2.

A despeito da existência destas fontes externas e da proliferação da documentação oriunda da comunidade, o fato é que ainda é muito difícil falar-se sobre Maomé, tanto quanto a sua aparência política, como sua faceta religiosa, de modo livre da perspectiva que a tradição muçulmana posterior impôs sobre sua pessoa. A biografia de Maomé serviu a múltiplas funções importantes no islã, cada uma delas dando suas próprias cores de modo crucial à obra. Há dois aspectos principais que têm de ser confrontados aqui. Um, a biografia de Maomé deve ser encarada como uma estrutura de sustentação para a revelação do Corão e, dois, deve ser compreendida como uma fonte para o exemplo normativo, ou Sunna, de Maomé.

Fontes muçulmanas sobre a vida de Maomé

Materiais a respeito da vida de Maomé se encontram amplamente disponível se não, na verdade, em quantidades excessivas. O texto primitivo mais completo em existência provém de uma versão da biografia (Sira) de Maomé por Ibn Ishaq (morto em 767 d.C.) editada por Ibn Hisham (morto em 833). Esta pode ser suplementada por outros textos um tanto primitivos como os de al-Waqidi (morto em 823) e Ibn Sa’d (morto em 845). Também úteis são as coleções de hadis que reúnem histórias a respeito de Maomé e sua fica, geralmente organizados de acordo com tópicos legais e

transmitidos pelos seguidores mais próximos de Maomé, seus assim chamados ‘companheiros’. De maneira ampla, todas estas fontes apresentam a mesma história, mas assuntos ligados a cronologia e detalhes são sempre problemáticos.

O relato dos eventos durante a vida de Maomé é um tanto padronizado, a despeito da multiplicidade de fontes disponíveis e das diversas discordâncias entre estudiosos do islã a respeito de como interpretar o material de maneira significativa. A maioria dos relatos remonta ao texto de Ibn Ishaq, suplementado por várias outras fontes. A despeito das corajosas tentativas por parte de alguns estudiosos fornecer informações, o Corão se mostrou muito opaco em termos da vida de Maomé: o nome é mencionado 4 vezes – suras 3:144, 33:40, 47:2 e 48:29 – mas, sem qualquer conhecimento prévio dos relatos da Sira de Ibn Ishaq, o material não fornece qualquer dado além de afirmar a existência de Maomé e uma concepção de seu papel profético. Além disso, uma vez que, em muitas instâncias, a Sira claramente parece tentar explicar, dar algum sentido ou esclarecer o texto elíptico e alusivo do Corão, há o perigo de se andar em círculos interpretativos. A ausência de material biográfico nada mais é do que um exemplo de uma tendência geral no Corão em não fornecer qualquer contexto geral. O Corão simplesmente não apresenta os necessários elementos de esclarecimento pelos quais seria possível obter dados relativos ao contexto contemporâneo árabe, através da citação de alguns nomes

3. É nesta vertente, portanto, que um dos papéis da biografia de Maomé no islamismo deve ser vista como

1 Com respeito ao problema histórico geral relativo a Maomé, ver F.E. Peters, “The Quest for the Historical

Muhammad”, International Journal of Middle East Studies, 23 (1991), 291-315. Para uma ilustração de deversas

abordagens acadêmicas ao estudo de Maomé, ver a coleção de artigos reunidos em Uri Rubin (ed.), The Life of

Muhammad, Aldershot, Ashgate/Variorum, 1998. 2 Ver o uso feito deste material, Patrícia Crone and Michael Cook, Hagarism: The making of the Islamic World,

Cambridge, Cambridge University Press, 1983. Todos os originais de fontes estão reunidos em Robert G. Hoyland,

Seeing Islam as Others Saw It: A Survey and Evaluation of Christian, Jewish and Zoroastrian Writings on Early Islam,

Princeton, Darwin Press, 1997. Um suplemento útil a esse respeito é Robert G. Hoyland, “The Content and Context of

Early Arabic Inscriptions”, Jerusalém Studies in Arabic and Islam, 21 (1997), 77-102. 3 Para observação de uma tentativa de utilizar o Corão como fonte histórica para a vida de Maomé, ver A. T. Welch,

‘Muhammad’s Understanding of Himself: teh Koranic Data”, em R. G. Hovannisian and S. Vryonis Jr. (eds.), Islam’s

Understanding of Itself, Malibu, CA, Undena Publications, 1983, pp. 15-52. É necessário lembrar-se, entretanto, que a

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provedora da estrutura contextual para a revelação do Corão. Enquanto os detalhes de tal estrutura são freqüentemente vagos e contraditórios, o ponto teológico básico se sobressai, sustentando todo o corpo biográfico: Deus revelou o Corão a Maomé, um homem comum, vivendo em meio às tribos árabes, ao longo de um período de 22 anos

4. Como resultado,

todo o relato biográfico foi colorido por estes esforços de situar e interpretar o Corão.

A vida de Maomé nas fontes

Diz-se que Maomé nasceu por volta do ano 570 d.C.; esta é uma data fixada por uma tradição que registra que a ‘Expedição do Elefante’, expedição realizada por um líder do sul da Arábia chamado Abraha, até a terra natal de Maomé, o Hijaz, se deu no mesmo ano. A evidência que posiciona a data da expedição no ano de 570 é desestabilizada por inscrições encontradas no sul da Arábia, que sugere que o evento tenha se passado mais provavelmente na década de 540. A importância da data no contexto muçulmano se refere ao fato de que a mesma serve para estabelecer a idade de Maomé, 40 anos, quando este começa a receber revelações, sendo o número 40 dotado de alguma significação espiritual na região do Oriente Médio

5. Maomé nasceu na família de Banu Hashim na tribo Quraish; sua família era um

grupo proeminente, mas não dominante na sociedade daquela época. Ficou órfão ainda muito cedo e viveu de maneira inexpressiva até casar com Khadija, uma mulher mais velha que possuía envolvimento financeiro com o comércio em caravanas de camelos. Supõe-se que o próprio Maomé tenha estado envolvido com o comércio. À idade de 40 anos, afirma-se que ele se dirigiu a um retiro solitário, em algum lugar nas colinas próximas a Meca, seguindo uma prática religiosa da época, quando o anjo Gabriel veio a ele para informá-lo de sua comissão como profeta o único Deus, Allah. A este evento se encontra tradicionalmente ligada a passagem corânica contida na sura 96:

“Lê, em nome do teu Senhor Que criou; Criou o homem de algo que se agarra. Lê, que o teu Senhor é Generosíssimo, que ensinou através do cálamo, ensinou ao homem o que este não sabia”.

Histórias de dúvidas a respeito de si próprio estão ligadas a este chamado ao ministério profético, mas, enfim, Maomé acaba por seguir as ordens do anjos e por pregar a mensagem do Corão. No princípio, ele obteve pouco sucesso, talvez convertendo alguns dos membros da classe baixa de sua sociedade, além de sua esposa Khadija e seu primo Ali, seu futuro genro, quarto califa e líder do movimento Xiita no islã. Á medida em que Maomé tornava mais duros seus ataques à sociedade politeísta de Meca, suas desigualdades e hipocrisias, os habitantes do local tornaram-se rancorosos de sua presença. Especulações dizem que a causa de parte deste ressentimento foi o ataque às instituições da sociedade de Meca, especialmente a conexão da cidade com o santuário religioso, a Kaaba, o que deu à localidade um grau de proeminência na Arábia da época. Diz-se que a perseguição aos membros desta nova religião aumentou substancialmente, enquanto tradições falam de um grupo de crentes que emigraram para a Abissínia, talvez para encontrar asilo entre os cristãos ou, ainda, numa tentativa de fazer mais convertidos entre uma audiência que pode ter sido simpática à mensagem do movimento. Enquanto isso, Maomé empreendeu esforços para encontrar um novo lugar para viver na Arábia, tentando a cidade vizinha de al-Taif, antes de ser convidado a Yathrib (mais tarde chamada Medina ou, de forma completa, Madinat al-nabi, a ‘Cidade do profeta’), cerca de 350 quilômetros a nordeste de Meca. Comunidades de judeus viviam em Yathrib e sugere-se que estes grupos tenham sido parte da atração da localidade, pois se ansiava por uma audiência responsiva à mensagem de Maomé entre este ‘povo do livro’.

A mudança para Yathrib é conhecida como a hijra (ou ‘régira’) – ‘emigração’ ou ‘vôo’ – e o ano no qual esta ocorreu (622 d.C.)serve como o ponto focal do calendário muçulmano. Um evento ao qual o Corão faz apenas uma referência ambígua é, a despeito disso, visto como a ocasião na qual a comunidade muçulmana veio à existência, sendo, portanto, um apropriado ponto de partida para o calendário (a noção de ‘comunidade’, umma, é um ponto de definição do senso de identidade islâmica). Não parece haver qualquer instância da menção da idéia de um calendário ‘hijri’ em moedas ou documentos do sétimo século; ao invés disso, uma era indefinida é empregada ou uma referência é feita a uma era

única maneira disponível ao autor para tirar as conclusões por ele apresentadas é presumir, a priori, a estrutura básica

fornecida pelo material da Sira. No plano geral, ver Andrew Rippin, “Muhhamad in the Qur’an: Reading Scripture in the

21st Century ”, in Harald Motzki (ed.), The Biography of Muhammad: The issue of the Sources, Leiden, E. J. Brill, 2000,

pp. 298-309. 4 Para detalhes a respeito da compreensão deste assunto, ver Andrew Rippin, “Al-Zarkashi and al-Suyuti on the Function

of the ‘Occation of Revelation’ Material”, Islamic Culture, 59 (1985), 243-258. 5 Ver Lawrence I. Conrad, “Abraha and Muhammad: some Observations apropos of Chronology and Literaty topoi in teh

Early Arabic historical Tradition”, Bulletin of the School of Oriental and African Studies, 50 (1987), 225-240; sobre uma

tendência similar em textos históricos, ver também, do mesmo autor, “Seven and the Tasbi: On the Implications of

Numerical Symbolism for the Study of Medieval Islamic History”, Journal of the Economic and Social History of the

Orient, 31 (1988), 42-73.

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(aparentemente iniciada em 622) como o ‘governo dos árabes’6. Definir o calendário em termos de hijra parece estar

ligado com o surgimento do islã como religião estatal.

Foi em Yathrib/Medina que Maomé emergiu como um poderoso líder político-religioso, conduzindo a comunidade de Medina sob os termos de um tipo de tratado, a assim chamada ‘Constituição de Medina’, na qual sua autoridade foi descrita como primariamente oriunda de Deus: os aspectos ideais político-religiosos da vida comunitária muçulmana são personificados neste documento. Controladas por esta ‘constituição’ estavam as relações políticas e civis das várias tribos pertencentes à federação de Medina, devendo todas as disputas ser trazidas a Maomé para julgamento. A ‘constituição’ explicitamente declara: ‘Sempre que uma disputa ou controvérsia potencialmente causadora de distúrbios se levantar entre o povo deste documento, esta deverá ser encaminhada a Deus e a Maomé, o apóstolo de Deus. Deus é o que zela pela observação pia do que neste documento está escrito’

7.

A conversão dos habitantes de Medina ao islã não foi imediata e as comunidades judaicas foram acusadas de traição e, finalmente, foram todas removidas ou atacadas.

A estratégia de Maomé em Medina, especialmente após ter ele percebido que os judeus não eram uma audiência simpática à sua mensagem como pensado, foi retornar a Meca. Este objetivo foi perseguido através de uma tentativa de aleijar o comércio de Meca por meio de ataques aleatórios às caravanas de camelos, gerando condições instáveis para uma conduta confiável de negócios e levando os lucros de tais ataques para mãos de Medina, produzindo, assim, poder e prestígio para a comunidade aos olhos das tribos árabes

8. O mais importante destes ataques ficou conhecido como a

batalha de Badr; ocorrida em 624, iniciou-se com um ataque a uma caravana de Meca e logo tornou-se uma batalha contra a tribo Quraish, de Meca. Esta batalha deu grande vitória a Maomé e seus seguidores, uma vitória que foi interpretada como um sinal de aprovação divina com a estratégia. No ano de 625, um ataque perpetrado por homens da tribo Quraish na Batalha de Uhud, resultou em uma derrota para os seguidores de Maomé, enquanto, em 627, um exército da cidade de Meca sitiou Medina, naquela que ficou conhecida como a Batalha das Trincheiras. Os habitantes de Medina, entretanto, foram capazes de resistir ao assalto e os homens de Meca se viram forçados a bater em retirada após 40 dias de cerco. Este sucesso foi seguido por um ataque direto a Meca, liderado por Maomé, que culminou não numa batalha, mas no Tratado de Hudaybiyya, cujos termos permitiam que os habitantes de Medina entrassem em Meca no ano seguinte para perfazer a peregrinação; este tratado foi honrado. Nesta época, o poder da comunidade de Medina havia crescido significativamente na Arábia e, no ano seguinte, em 630, Maomé atacou e tomou Meca, encontrando pouquíssima resistência a seus esforços. Os dois últimos anos da vida de Maomé foram vividos em Medina, e o viram tentando consolidar sua posição na Arábia com alianças e a conversão pelo menos nominal ao islã, dos beduínos nômades da Arábia.

Problemas na biografia

Este é o relato básico da vida de Maomé, como nos é apresentada nas fontes narrativas a nós disponíveis. Muitos aspectos da biografia são questionáveis, especialmente em termos de datas precisas e, com base somente nisto, o sumário da ‘vida de Maomé’, como aqui apresentado, é permeado de dificuldades e de problemas insolúveis. Evidências de tais elementos como a tendência das fontes a ‘tornarem-se melhores’ com o passar do tempo – como em casos onde fontes mais recentes são capazes de fornecer dados precisos, enquanto fontes mais antigas provêem informações vagas – e a notória intenção, de boa parte do material, de interpretar passagens obscuras do Corão como mencionado acima, sugere que textos como a Sira de Ibn Ishaq são muito mais complexos em termos literários do que uma biografia histórica pode ser popularmente concebida nos dias de hoje. Essencialmente, estes textos estavam envolvidos em um criativo ‘contar de histórias’ no qual a habilidade do contador de histórias de elaborar, entreter e incrementar era méritos altamente louvados. No subsolo de tal estrutura, entretanto, encontra-se o intento de fornecer um contexto para a revelação do Corão, de modo que referências ambíguas podem ser esclarecidas ao longo do processo de interpretação.

A dimensão mítica da biografia de Maomé

Um outro fator correlacionado age na intenção de restringir o grau de confiança que pode ser depositado nestes relatos da vida de Maomé, desconsiderando, inclusive, discordâncias a respeito de pequenos detalhes. A importância religiosa de Maomé é tamanha que não seria nem mesmo realista (nem necessariamente desejável) distinguir a ficção

6 Ver Crone and cook, Hagarism, p. 157, n. 39 e p. 160 n. 56; ver também patrícia Crone, “The First-century concept of

Higra”, Arábica, 41, (1994), 352-387, para idéias ligadas a aspectos por trás do significado de hijra. 7 Ibn Hisham, al-Sira al0Nabawiyya, Mustafá al-Saqa, et al. (eds.), Cairo, Halabi, 1955, vol. 1, pp. 504; A. Guillaume,

The Life of Muhammad: A translation of [ibn] Ishaq’s Sirat Rasul Allah, Oxford, Oxford University Press, 1955, p. 223. 8 Compare esta apresentação padrão com Patrícia Crone, Meccan Trade and the Rise of Islam, Princeton, Princeton

University press, 1987, para mais noções sobre os problemas históricos da biografia de Maomé.

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religiosamente inspirada surgida posteriormente do que poderia ser chamado de ‘fato’ histórico. A estrutura completa de uma obra como a de Ibn Ishaq sugere que muitos dos elementos são construídos a partir do que foi classificado por um estudioso como ‘paradigma mítico’ ou uma narrativa religiosa básica e convenções temáticas. Este paradigma era empregado por todo o Oriente Médio na construção de vidas literárias de personalidades religiosas. Em adição a isto, o texto da Sira é composto de listas, documentos, genealogias, cronologias, poesia e prosa formal

9. O efeito geral é criar

uma figura tanto de Maomé como da comunidade muçulmana em sua forma ‘imaculada’. Isto significa que a imagem que emerge, bem como o impulso por trás de sua composição, é normativa: este é um retrato de como a comunidade muçulmana deveria ser, projetado de volta no tempo de seu fundador, o qual foi descrito em termos míticos. Sua intenção é retratar a religião do islã como conceitualmente identificável já na época de Maomé.

Uma parte da razão de se ter produzido tal imagem de Maomé era o intento de formar-se uma expressão de islã que claramente o separasse do judaísmo e do cristianismo. O papel do líder de uma religião em produzir identidade para a comunidade religiosa é evidente em todas as três tradições monoteístas e o lugar de Maomé nesta rivalidade religiosa foi estabelecido tanto através do Corão (como o livro dado especificamente a ele, da mesma forma pela qual as Torás oral e escrita foram reveladas a Moisés) como do material biográfico. A maior preocupação demonstrada através de uma obra como a da Sira de Ibn Ishaq é a aceitação ou rejeição por parte de diversos grupos de credenciais nas mãos do mensageiro, ou seja, a escritura. Portanto, a autoridade da pessoa de Maomé está em jogo, não em termos de lei, mas como profeta. A conexão de Maomé com a revelação do Corão torna-se, assim, central

10.

A significação da figura de Maomé

Outra razão para o surgimento desta imagem elaborada, detalhada de Maomé é muito mais complexa e vital à própria ventura do islã. na realidade, a despeito de quão interessantes os eventos da vida de Maomé possam ser, a significação da própria pessoa e dos verdadeiros ‘fatos’ da narrativa (de modo oposto a seu objetivo teológico geral) para os muçulmanos não se encontra, de modo algum, na narrativa histórica. Ao invés disso, são as anedotas sobre sua vida, os hadis, e os aspectos mais generalizados quanto ao significado do que este comportamento representa, que importam para a comunidade acima de tudo. Esta é a Sunna, o ‘exemplo’ fornecido pela vida de Maomé, o que todo muçulmano tenta imitar. Obviamente, os dois aspectos – o histórico e o anedótico – são interligados e, para o historiador, indistinguíveis; isto é, como conseqüência, o que causou alguns dos problemas quanto a tentativas de reconstrução do ‘Maomé histórico’.

A informação encontrada em obras como a de Ibn Ishaq (pelo menos em sua forma embrionária) e que foi reunida nas obras dos hadis especialmente, é considerada pelos muçulmanos como tendo sido transmitida desde as gerações mais primitivas de membros da comunidade até os compiladores de tais livros. Estas transmissões estão documentadas por algo conhecido como os isnad, ‘corrente’ de transmissores de um relato (listados de trás para frente, cronologicamente), enquanto o texto em si é conhecido como matn (ou ‘matan’ – n.t.). Eis um exemplo:

“Ishaq disse-me que Ubayd Allah lhe disse, baseado na autoridade de Shayban, baseado na autoridade de Yahya, baseado na autoridade de Muhammed ibn Abd al-Rahman, cliente de Banu Zuhra, baseado na autoridade de Abu Salama, baseado na autoridade de Abd Allah ibn Umar, que ele disse: “‘O mensageiro de Deus (que as orações e a paz de Deus estejam sobre ele) disse-me’: ‘Recita todo o Corão em um mês’. Eu disse: ‘Mas, sou capaz de fazer mais que isso!’ Então [Maomé] disse: ‘Então, recita-o em sete dias, mas não em menos tempo que isso’”

11.

Relatos como estes compreendem o texto de uma série de livros devotados à reunião do material, que pode ser organizado tanto de acordo com o transmissor do relato, como de acordo com o tópico legal. Este último método de organização se mostrou o mais bem sucedido, sendo o princípio empregado nas seis obras aceitas como de maior importância pela maioria dos muçulmanos. Tais livros reúnem o que era considerado como relatos de hadis (e, como tal,

os relatos servem como a base hipotética do direito (lei) islâmico). Os livros foram compilados por al-Bukhari (morto em 870), Mulsim ibn al-Hajjaj (morto em 875), Ibn Maja (morto em 887), Abu Dawud (morto em 889), al-Tirmidhi (morto em 875) e al-Nasai (morto em 915).

Todos os relatos nestes livros tratam do que Maomé disse, fez e do que aprovou ou desaprovou implicitamente (como indicado por seu comportamento geral). Eles são classificados em assuntos que parecem seguir a discussão legal em

9 Ver John Wansbrough, The Sectarian Milieu: Content and Coposition of Islamic Salvation History, Oxford, Oxford

University Press, 1978, p. 32. 10

Wansbrough, Sectarian Miieu, p. 56 11

al-Bukhari, sl-Sahih, Kitab Fada’il al-Qur’an, Muhammad Muhsin Khan (ed. e trad.), Nova Deli, Kitab Bhavan, 1984,

quinta edição, vol. 6, pp. 518 e 518, numero da tradição: 574.

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evidência na época de sua compilação. Al-Bukhari, por exemplo, possui um total de 93 capítulos com subtítulos, mas, em alguns capítulos, na realidade, nota-se que alguns subtítulos não possuem qualquer hadis em sua respectiva seção; fica claro, portanto, que ele trabalhava com uma estrutura pré-organizada e tentava documentar os assuntos em discussão. A estrutura do livro reflete as preocupações interentes ao quotidiano muçulmano, indo além da simples definição de ‘lei’ e norteia muitos aspectos diferentes. Tomando al-Bukhari como exemplo uma vez mais, vemos que sua obra tem início com o que pode ser considerado tópicos ‘teológicos’: revelação, fé e conhecimento. Ele, então, lida com vários aspectos de oração (capítulos 4 a 23), seguidos por caridade, peregrinação e jejum (capítulos 24-32). Ali são abordados os elementos que se tornaram os símbolos centrais do islã, sacramentados no conceito dos ‘cinco pilares’. Após isto, o livro fala, entre os capítulos 33-53, a respeito de interações interpessoais genéricas (com ênfase especial no comércio) e, então, a atenção é voltada para certos conceitos religiosos, como o mérito dos profetas e do Corão. Casamento e divórcio vêm em seguida e, então, uma variedade de tópicos, indo desde medicina e boas maneiras a apostasia e sonhos. A obra termina com ‘A Unidade de Deus’, levando a seqüência a um desfecho. Maomé, portanto, é encarado como possuidor de influência em todos os aspectos da vida muçulmana, tanto no âmbito pessoal, como no interpessoal, como se vê refletido nesta classificação do material dos hadis.

O problema dos relatos dos hadis

Enquanto relato individual, o isnad, ou ‘corrente de transmissores’, é considerado um elemento atuante na preservação da genuinidade do texto do relato. Entretanto, o mecanismo do isnad era, de acordo com os muçulmanos, sujeito a

grande possibilidade de fraude no período primitivo. Os muçulmanos, portanto, criaram diversos métodos de avaliar tais isnads, utilizando critérios que lidavam, em particular, com a vida e caráter dos transmissores individuais encontrados na seqüência de nomes. A intenção era documentar isnads que eram completos em seu testemunho da transmissão do texto do relato de geração a geração. A citação de pessoas de alta integridade moral que possivelmente se conheceram em suas respectivas épocas para que os relatos pudessem ser repassados fisicamente era o fator importante na determinação das correntes de transmissores. Não surpreendentemente, talvez, tais métodos poderiam apenas separar as fabricações inaptas de isnads das menos inaptas.

A tendência a fabricar relatos de hadis se estendia amplamente de modo que incluíam relatos que pudessem justificar o emprego de relatos de hadis no intento de resolver problemas legais e outros que alertavam contra a falsa transmissão

de relatos. Um dos mais famosos de todos estes relatos é o seguinte:

“Abu Bakr ibn abi Shayba nos disse que Ghundar lhe disse, baseado na autoridade de Shuba, e também que Muhammad ibn Jafar lhe disse que Shuba também lhe disse, baseado na autoridade de Mansure, baseado na autoridade de Ribi ibn Hirash, que ouviu Ali, que Deus dele se agrade, dando um sermão no qual ele disse que o mensageiro de Deus, que as oracoes e a paz de Deus estejam sobre ele, disse: ‘Não espalhem mentiras a meu respeito! Quem espalhar mentiras quanto a mim adentrará o fogo do inferno’”

12.

As forcas que tentaram impedir a maré da extensa disseminação de hadis não-confiáveis parecem ter lançado mão da

mesma prática que tentavam condenar para impedir a disseminação.

Também encontramos, em coleções de relatos de hadis, episódios que demonstravam clara preocupação com assuntos de interesse da comunidade existente gerações após Maomé, mas que foram moldadas como se fossem profecias trazidas pelo profeta. Um exemplo é o seguinte relato, oriundo de uma polêmica divisiva entre livre arbítrio e predestinação, como discutido por teólogos vários séculos mais tarde na era islâmica.

“Bundar nos disse que Abd al-Rahman ibn Mahdi disse-lhe que Shuba disse-lhe, baseado na autoridade de Assim ibn Ubayd Allah, que disse ter ouvido Salim ibn Abd Allah relatando, baseado na autoridade de seu pai, que disse que Umar disse: ‘Oh, mensageiro de Deus, o que pensas? São as obras que praticamos de nossa própria autoria ou são elas pré-estabelecidas por Deus?’ [Maomé] disse: ‘São verdadeiramente pré-estabelecidas, oh Ibn Al-Khattab, e tudo foi facilitado [ver sura 80:20]. Quem for do povo da alegria fará o que leva à alegria, e quem for do povo da miséria fará apenas o que leva à miséria’”

13.

12

Muslim ibn al-Hajjaj, Sahih Muslim, Muqaddima, Mhammad Fu’ad Abd al-Baqi (ed.), Cairo, dar Ihya al-Kutub al-

Arabiyya, 1955 a 1956, vol. 1, p. 9, número da tradição: 1. 13

Al-Tirmidhi, al-Jami al-Sahih, Kitab al-Qadar, Ahmad shakir (ed.), Beirute, Dar al-Kutub al-Ilmiyya, 1987, vol. 4,

pp. 387 e 388, tradição número 2135.; também citado em Kenneth Cragg and Marston Speight (eds), Islam from Within:

Anthology of a Religion, Belmont, CA, Wadsworth Publishing, 1980, p. 82.

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Aqui, Maomé é empregado como um porta-voz do partido teológico que apoiava a doutrina da predestinação; desta forma, tais pessoas tentavam justificar a retidão de sua posição citando Maomé como sua prova. Pode-se encontrar relatos de hadis que também sustentam a posição oposta.

Também foi descoberto por pesquisadores modernos que isnads possuíam uma tendência a ‘crescer para trás’. Em alguns textos primitivos encontram-se afirmações que seriam atribuídas a um califa da dinastia Umayyad, por exemplo, ou mesmo que não eram atribuídas a ninguém, como no caso de certas máximas legais; em outras passagens, as mesmas afirmações podem ser encontradas na forma de relatos de hadis ligadas a isnads completamente documentados que remetem os relatos a Maomé ou um de seus companheiros. Há episódios nos quais teria sido apropriado, por causa dos argumentos conduzidos nos textos, citar o devido relato diretamente de Maomé, caso tais relatos se encontrassem disponíveis; mas, na verdade, afirmações sem quaisquer atribuições são encontradas. A conclusão a ser tirada disto é que, em algum momento, o isnad não havia sido completamente desenvolvido e ainda não era considerado, por alguns autores, necessário ao estabelecimento da autoridade de um relato. Somente quando a significação de determinada declaração era totalmente estabelecida é que o isnad ‘crescia para trás’ para incluir Maomé

e, assim, outorgar a autoridade do profeta do islã a uma opinião14

.

A autoridade de Maomé

Esta fabricação de relatos de hadis surgiu por causa da importância que muçulmanos atribuíam a Maomé na elaboração do islã. O exemplo de Maomé tornou-se a base legal de sustentação de itens individuais do comportamento muçulmano. A prática de Maomé, ou Sunna, tornou-se uma fonte de lei no islã (precedida apenas pelo Corão, em termos de autoridade) como resultado do desejo de introduzir-se tanto uma uniformidade, como um senso de autoridade definida na comunidade muçulmana. Por causa disso, o nome e a autoridade e Maomé foram utilizados para substanciar posições legais; o que um dado grupo de muçulmanos entendia ser correto ou prática legalmente apropriada se tornava, ao mesmo tempo, ser sinceramente entendida como a prática de Maomé.

A questão crucial, muito debatida no meio acadêmico moderno, é: quando Maomé emergiu como fonte de autoridade para a comunidade, e qual é, de modo claro, a posição atribuída a ele por volta do século IX? Certamente, o status de autoridade de Maomé na comunidade muçulmana primitiva não é claro. Moedas que se referem a ele como rasul Allah, o ‘mensageiro de Deus’, começam a aparecer somente entre 60 a 70 anos do calendário hijra e, mesmo assim, tais

citações podem não ser, necessariamente, uma evocação de sua autoridade; ao invés disso, seu valor simbólico como um emblema do islã – uma parte de uma autodefinição emergente – parece ser o ponto de tais referências, uma vez que o califa, ao mesmo tempo, proclamava-se a si mesmo a autoridade na vida da comunidade como o khalifat Allah. Esta mesma questão também é levantada no contexto da discussão da lei referente a quando a noção da ‘tradição local’, como a base da prática legal foi suplantada pela Sunna ou prática guiada por Maomé especificamente como primeira em autoridade após o Corão.

Portanto, fica claro que o status de Maomé como a base legal para as ações e crenças da comunidade possuiu certo impacto sobre o material biográfico a nós disponível nos dias de hoje. Boa parte do material nos informa mais a respeito dos desenvolvimentos na comunidade muçulmana não-primitiva – os aspectos que estavam em elaboração, os debates então vigentes – do que a respeito de Maomé como pessoa. Todo este material é de grande valor para o historiador, portanto, mas deve ser enxergados com olhos críticos e dotados de discernimento, sempre atentos ao valor ideológico contido em qualquer anedota ou reminiscência.

A significância de Maomé

Em suma, portanto, a vida de Maomé pode ser recontada de acordo com as diversas fontes, e seus detalhes podem ser debatidos. O valor de tal obra como base para o Corão é passível de exame. O desenvolvimento do papel de Maomé como autoridade na comunidade pode ser analisado e as evidências podem ser citas. Entretanto, todas estas discussões não possuem a essência das impressões muçulmanas a respeito da significação de Maomé.

Com freqüência, comenta-se que, ao mesmo tempo em que os muçulmanos aleguem que aqueles que negam a existência de Deus ou que blasfemam de modo extremo contra Ele estão no erro, tais discussões não ofenderão da mesma maneira que discussões a respeito de Maomé lhes serão ofensivas. Aqueles que insinuam o mal a respeito de Maomé ou que lançam suspeitas sobre ele são considerados como ofensores do islã. Tal fenômeno, se levado em

14

Declarações acadêmicas clássicas a respeito desta compreensão do crescimento dos hadis são também encontradas em

Ignaz Goldzier, Muslim Studies, Londres, George Allen and Unwin, 1971 (edição original em alemão, 1890), vol. 2, pp.

17-251, e Joseph Schacht, The Origins of Muhammadan Jurisprudence, Oxford, Clarendon Press, 1950.

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consideração, não é surpreendente. As acusações feitas por cristãos contra o islã em tempos medievais sempre se concentraram em Maomé e em seu uso da ‘guerra santa’, jihad, a permissão da poligamia e o número de casamentos consumados pelo próprio Maomé. Portanto, ‘insultar’ Maomé, seja qual for o modo utilizado, sempre recria a imagem daqueles tempos e levanta suspeitas de que tais acusações estejam sendo feitas mais uma vez, mesmo que em outras palavras. Mas um pouco mais de consideração sobre o assunto revela que ‘atacar’ Maomé é, obviamente, atacar o estilo de vida de indivíduos muçulmanos, pois seu estilo de vida deve repousar sobre o exemplo do fundador de sua religião. Se algo é interpretado pelos muçulmanos como tendo a intenção de denegrir algum aspecto da vida de Maomé, então, por implicação, tal pode ser visto como um ataque ao estilo de vida de cada muçulmano como um todo, ou, pelo menos em sua concepção idealizada.

Maomé, como implícito em todo o conceito da Sunna, é o ‘homem perfeito’. Ele é o mais liberal, o melhor, o mais corajoso. Acima de tudo, Maomé é considerado como um homem que viveu sua vida em um estado de impecabilidade (isma). Com tal doutrina, tudo o que Maomé fez é considerado como a perfeita incorporação da vontade de Deus – nada, em qualquer instância de sua vida, teria ocorrido em contravenção de tal vontade. Foram necessários alguns séculos para que esta doutrina se tornasse firmemente estabelecida no islã, como evidenciado por materiais primitivos, divergentes, que apresentam Maomé como sendo capaz de cometer erros, mesmo em assuntos religiosos básicos

15. é

muito provável que a significação da doutrina devesse ser encarada como parceira da doutrina do ijaz, ou a ‘inimitabilidade’ do Corão; a impecabilidade de Maomé não simplesmente protege o conceito da Sunna, mas também os

conteúdos do Corão contra qualquer ataque relativo à falta de perfeição.

A figura de Maomé, como resultado da noção de impecabilidade, tem sido submetida a todas as sortes de elaborações ‘fantásticas’, criando uma imagem mítica do profeta do islã. Um retrato do ‘homem perfeito’ emerge, fornecendo detalhes inclusive de sua descrição física:

“[o cabelo de Maomé] não era nem seco, nem curto nem assanhado. Tocava seus ombros. Maomé costumava fazer quatro tranças, expondo cada uma das orelhas entre duas tranças. O número de cabelos brancos não excedia dezessete. Seus olhos eram muito grandes e negros. Seu nariz era adunco. Ele possuía um peito largo. Entre seu umbigo e peito havia um único fio de cabelo. Ele possuía duas dobras abdominais

16”.

Descrições como esta não são abundantes nos textos muçulmanos, mas demonstram pelo menos um aspecto da devoção a Maomé que, ainda que fosse descrito como um ser mortal comum, desprovido de quaisquer atributos sobrenaturais, inevitavelmente tornou-se o foco de muitas especulações populares e devoção a sua pessoa.

A viagem noturna de Maomé

Mais proeminente nesta elaboração da figura de Maomé, é a história de sua viagem noturna (isra) a Jerusalém e sua ascensão ao céu (miraj). A narrativa não somente é favorita por e em si mesma, mas as histórias foram objeto de numerosas venturas artísticas

17. A história também fornece pelo menos alguns dos endossos para a importância de

Jerusalém na devoção muçulmana (este é o lugar de onde Maomé ascendeu ao céu). De igual modo, o relato da ascensão permanece como um modelo de devoção espiritual muçulmana quando interpretada em um nível metafórico como a jornada interna que leva à visão de Deus. Polêmicas que tratam da natureza do céu e do inferno, sua existência e as condições para entrada freqüentemente se encontram ligadas a esta história. Finalmente, a estipulação de cinco orações diárias como requerimento aos muçulmanos também encontra sua base na narrativa em questão. A história funciona em muitos níveis diferentes, portanto, e não é apenas um veiculo para vôos da imaginação popular.

Tradicionalmente ligada18

à sura 17:1, “Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o Seu servo, tirando-o da Sagrada Mesquita (em Meca) e levando-o à Mesquita de Alacsa (em Jerusalém), cujo recinto bendizemos, para

15

Ver as obras de M. J. Kister, Studies in Jahiliyya and Early Islam, Londres, Variorum, 1980; também Harris

Birkeland, The Lord Guideth: Studies on Primitive Islam, Oslo, H. Aschehoug, 1950. 16

Al-Ghazali, Ihya Ulum al-Din, Cairo, al-Maktaba al-Tijara al-Kubra, 1965, vol. 2, p. 381, citado em Kees

Wagtendonk, “Images in Islam, Discussion of a Paradox”, em Dirk van der Plas (ed.), Effigies Dei: Essays on the

History of Religion, Leiden, E. J. Brill, 1987, p. 123. Todo o livro 20 da Ihya de al-Ghazali é dedicado ao caráter de

Maomé como o ‘muçulmano perfeito’. 17

Ver Marie Rose Seguy, The Mireculous Journey of Mahomet: Miraj nameh, New York, George Braziller, 1977.

Hamel Eddine Bencheikh, Lê Voyage Nocturne de Mahomet, paris, Imprimerie Nationale, 1988, combina uma excelente

coleção de ilustrações com algumas análises úteis. 18

A Sura 53 também é, por vezes, conectada com a viagem noturna; ver Josef van Ess, “Vision and Ascension: Surat al-

Najm and its Relationship with Muhammad’s miraj”, Journal of Qur’anic Studies 1 (1999), 47-62.

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mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é Oniouvinte, o Onividente”, a história conta sobre Maomé viajando a Jerusalém no lombo do cavalo alado, Buraq, e, de lá, ascendendo através dos sete níveis do céu, encontrando-se com os grandes profetas do passado à medida que avançava: Adão, João, Jesus, José, Enoque, Arão, Moisés e Abraão. A ele também é dada uma visão a respeito de diversos aspectos do inferno. Finalmente, lhe é concedida uma visão de Deus e ele recebe o mandamento de cinqüenta orações por dia para seus seguidores. Em uma narrativa que evoca o relato de Sodoma e Gomorra, em Gênesis 18, Maomé, sob insistência de Moisés, retorna a Deus para barganhar por uma exigência menor; o resultado final são as cinco orações diárias

19. Maomé retorna a Meca e relata sua aventura e é

capaz de provar a veracidade de sua história por saber sobre a chegada iminente de uma caravana em sua cidade-natal, a qual ele viu quando de seu retorno sobre o dorso de Buraq. A prova da missão fornece um clímax extraordinário ao relato. Quando questionado a respeito de qual prova ele possuía a respeito de sua jornada a Jerusalém, Maomé responde que

“...passara por uma determinada caravana em um certo vale e o animal sobre o qual cavalgava assustou os membros da caravana e um camelo fugiu. [Ele disse] ‘eu lhes mostrei onde o camelo estava quando eu voltava a al-Shams. Continuei até chegar em Dajanan, onde passei por outra caravana. Os caravaneiros dormiam; eles tinham um jarro de água coberto por algo. Retirei a cobertura, bebi um pouco de água e recoloquei a tampa exatamente como a encontrara. A prova disso é que a caravana deles se aproxima agora de al-Bayda, na passagem de al-Tanim; ela é conduzida por um camelo de cor escura, carregando dois sacos, um preto e o outro multicolorido’. As pessoas correram para a passagem e era exatamente como Maomé descrevera”

20.

A substância básica da história noturna e da ascensão é encontrada na Sira de Ibn Ishaq e continua a ser elaborada até

o dia de hoje21

. Tais histórias miraculosas não são abundantes nos relatos populares da vida de Maomé (se comparadas com as encontradas na vida de Jesus), mas tendem a desenvolver um papel importante, tanto conferindo uma garantia do status de Maomé, como fornecendo um ponto focal para a crença popular. Outras instâncias de histórias populares são freqüentemente conectadas ao nascimento e à juventude de Maomé. É muito popular o relato de anjos que o visitam para purificar seu coração. A história existe em muitas versões. Uma versão fala de dois homens de roupas brancas tomando o infante Maomé, abrindo seu peito e removendo seu coração. Eles então procedem à lavagem de seu coração em uma bacia de ouro com água purificadora do poço de Zamzam, localizado próximo à Kaaba, em Meca. Este tipo de história e muitas outras semelhantes revelam uma adaptação colorida de lendas judaicas e cristãs sobre qualificações proféticas e iniciação; as histórias freqüentemente combinam este empréstimo temático com anedotas que giram em torno de declarações do Corão, como no episódio do relato da jornada celestial

22.

Maomé como intercessor

Um outro aspecto do Maomé popular que é de grande importância é o de seu papel como intercessor em favor dos membros de sua comunidade no dia do Julgamento. Ao mesmo tempo em que não encontra qualquer apoio no Corão (que enfatiza a responsabilidade individual neste ponto), comumente é afirmado que Maomé agirá como advogado perante Deus em favor de seu povo. Enquanto este tipo de idéia não é desenvolvido em uma noção de redenção através do profeta por meio de seu sofrimento em lugar de outrem, como no cristianismo, nem em uma idéia de Maomé possuindo uma quota de mérito que pode ser compartilhada, seu papel é claramente enunciado nos textos do islã clássico que se concentra nos eventos do dia do julgamento. Um texto atribuído ao famoso teólogo sufista, al-Ghazali (morto em 1111) retrata Maomé dizendo, em uma cena no pós-vida: “Eu sou o justo! Eu sou o justo [para interceder] neste momento, pois Deus o permite a quem quer que Ele escolha e o deseje”. Deus, então, diz a Maomé: “Oh, Maomé, ergue tua cabeça e fala, pois serás ouvido; busca intercessão e esta lhe será concedida”

23. Uma vez mais, o retrato

popular de Maomé o constrói como um elemento extremamente importante na salvação de sua comunidade, alguém muito mais significante do que simplesmente o recipiente da revelação do Corão. O islã gira em torno de suas fontes gêmeas de autoridade, o Corão e Maomé, sendo as duas entidades firmemente situadas na pré-história da comunidade na Arábia.

19

Para a significação desta motivação, ver Ilai Alon, “Interpretation as Compromise: the Case of the Five Daily Islamic

Prayers” em Shlomo Biderman and Ben-Ami Scharfstein (eds.), Interpretation of Religion, Leiden, E. J. Brill, 1992, pp.

207-227. 20

Ibn Hisham, Sira, vol. 1, pp. 402 e 403; A. Guillaume, Life of Muhammad, p. 184. 21

Ver, por exemplo, Najm al-Dim al-Ghayti (morto em 1573), Qissa mi’raj al-nabi, encontrado em versão Suahili por

al-amin ibn Ali em J. Knappert, Swahili Islamic Poetry, Leiden, E. J. Brill, 1971, vol. 3, 227-275. 22

Ver Harris Birkeland, The Legend of the Opening of Muhammad’s Breast, Oslo, Jacob Dybwad, 1955. 23

Jane Idleman Smith (ed.), The Precious Pearl: a Translation from the Arabic, Missoula, MT: Scholars Press, 1979, pp.

59 e 60.