Mudança ao Acaso - Escola Secundária Dr. António Carvalho Figueiredo

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    MUDANÇA AO ACASO

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    Com um calor reconfortante, a noite parecia correr agitada e desgarrada sobrea estrada feita de alcatrão já desgastado e pedras colocadas ao acaso pelo sabor dotempo. Era uma jovem noite de Agosto. Debruçado sobre o parapeito da janela daquela

    casa amarela, pintada de fresco, João mirava extasiado a beleza da noite e reparava,

    curiosamente, no seu reflexo sobre o vidro limpo.

    Através da janela era possível observar todo o jardim que rodeava a casa. As

    ervas, as árvores e o carro azul da mãe e o carro vermelho do pai. Eram ambos carros

    antigos mas, para João, o pequeno carro sujo, velho e ofuscante pela cor vermelha, que

    quando iluminada, cria sempre reflexos alaranjados, fora sempre o seu preferido. Era,

    talvez, o seu pequeno sonho, um dia poder conduzi-lo.

    Pela sua janela aberta, e já distraído de todos os objetos, o menino avistava

    outros automóveis e bicicletas que flutuavam entre luzes e fragmentos de som na ruadiante de si. Passavam apressados ou sem pressa alguma, mas raramente paravam por

    ali. João, muitíssimo curioso, punha-se, muitas vezes, a imaginar quem eram, o que

    faziam e para onde iam.

    Nas aulas, à semelhança de um verdadeiro lunático, perdia-se a contar todas as

    pecinhas, todos os mecanismos precisos para criar um carro. Vistas pelos colegas da

    escola, estas coisas pareciam feéricas e irreais. Nenhum deles demonstrava interesse

    em ouvir os pensamentos de João e, por isso, ele nada dizia. Guardava tudo isso para si.

    Guardava tudo isso para momentos como este.

    João tinha apenas 14 anos e era a primeira vez que comparecia a uma festa

    como as que aparecem nas revistas. Tinha vindo com o pai e com a mãe.

    Seguido pelo pai e pela mãe, João atravessou o grande corredor da sala. Vinhareceoso e, o sentimento que assaltava o seu coração era de nervosismo. Queria ir

    embora mas sabia que tinha de estar e ficar ali. Previa uma noite longa e aborrecida.

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    A mãe avançou em direção aos donos da casa. Falaram-se, beijaram-se, sorriam e trocavam muitos olhares. Abraçavam-se

    repetidamente e, para João, tudo estava próximo demais, perfeito demais, superficial demais e, sobretudo, pairava, no ar, uma futilidade

    avassaladora. Durante segundos, conseguiu avistar um rapaz, provavelmente da sua idade, por trás do vestido lilás da dona da casa, mas

    rapidamente o perdeu de vista.

    -Este é o Joãozinho, o meu filho- disse a mãe

    - Ai que menino tao bonito!...- Respondeu o dono da casa com um sorriso e um ar ausente.

    Depressa, deixando de os ouvir, procurou uma janela aberta.

    A grande sala estava cheia de gente dançando, pessoas e mais pessoas e João sentiu alguma dificuldade em desviar-se de todas

    elas.

    Lá estava ele. Novamente, olhando a noite e observando minuciosamente a combinação de luzes e aromas que sobrevoavam no

    ar. Passou-se cerca de meia hora, e sentia já os joelhos a fraquejar.

    “Vou-me sentar ali”, pensou. 

    Olhou em redor procurando um lugar onde estivesse pouco exposto à vista de todos, um lugar onde somente restassem os seus

    pensamentos. Por fim, viu uma cadeira vazia quase ao fundo da sala, do lado oposto, meia escondida pelas cortinas.

    Respirou fundo durante cerca de um minuto. Ganhou, finalmente, coragem para entrar no labirinto de pernas compridas, muitohidratadas e cuidadas de senhoras e de calças de tecidos caros de senhores.

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    A meio do caminho, sentiu uma pequenina mão agarrar-lhe a camisa.

    -Anda comigo.

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    Depois de subirem longas escadas, chegaram finalmente aosotão daquela enorme casa.

    -Quem és tu?-perguntou João, intrigado.

    -Sou o António. Sou o filho da dona da casa e tu és o João.

    Trocaram breves palavras e tiveram ambos a sensação de

    que já se conheciam. Sentiram uma cumplicidade amigável invadir-

    lhes o coração. Riram e falaram muito e entre tudo isso, João pôde

    reparar que o sotão tinha um aspeto muito velho.

    - Tens aqui muita coisa- desabafou.

    Naquele local havia de tudo: cadeiras partidas, candeeiros de

    petróleo, frascos de perfume antigos, revistas e livros, montes de

    roupa e uma mala fechada. Aquela mala roubou toda a atenção dos

    dois meninos e, com muita cautela, tentaram abri-la. Usaram

    tesouras e uma faca que estava por ali, mas nada resultou. Antóniolembrou-se então de que tinha guardado no bolso um gancho de

    senhora.

    -Tenta isto- sugeriu.

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    A mala abriu. Cheia de bilhetes, mensagens e cartas amorosas. João e António passaram um bom bocado a desvendar todos os

    segredos, por entre papel húmido e letra sumida, ali escondidos.

    Perto de desistirem, António leu em voz alta:

    “PARA TI, QUE ESTÁS A LER ESTE BILHETE, MUDA O MUNDO. FAZ ALGO DIFERENTE. TESTA-TE”  Aquela mensagem ecoava na cabeça das crianças e, no meio de todo aquele ambiente de ingenuidade e pureza, João,

    impulsivamente, disse:

    -Vamos criar um carro que ande sozinho!

    António riu-se. Seguiu-se um longo silêncio.

    -Falavas a sério?

    -Falava.

    -Mas como? Isso não é impossível?

    João, entusiasmado, levantou-se com força, colocou a mão robusta dentro do bolso das calças de ganga e tirou um, dois, três

    pedaços de papel já rabiscados.

    -Eu tenho tudo aqui. Tenho a certeza que vai resultar.

    Tinham-se tornado amigos, mas mais que isso, parceiros de um futuro brilhante que, para eles, parecia ilusório.Era véspera de outono, António e João tinham passado o resto do verão debruçados sobre planos para o seu sonho, para o seu

    projeto. Com o bilhete mágico guardado, relembravam a sua mensagem, dia após dia. Infelizmente, tinha surgido um problema…algo

    faltava para o seu plano não falhar.

    -Mas o quê?- perguntavam-se.

    Cansados de pensar e dar voltas à cabeça, decidiram abandonar a mesa do café e ir passear. Enquanto caminhavam em silêncio,

    procurando respostas no vazio, chegaram a um parque. Entraram e sentaram-se num dos bancos ainda desocupados As árvores

    baloiçavam-se com o ritmo do vento e a água do rio corria lentamente. Absorviam a tranquilidade daquele local, quando avistaram um

    grupo de trabalhadores a falar muito alto. Decidiram aproximar-se.

    -Isto tem acontecido cada vez mais. Estamos a ficar preocupados.- afirmava, com voz revoltada, uma das pessoas.

    -Bom dia. O que se passa?- perguntou João.

    - Há muitas plantas a morrer devido ao fumo dos carros. A situação pode ser muito grave se isto continua assim. Não sabemos o

    que fazer.

    João ficou perplexo com o que ouvira.

    -Como pode ser? Não podemos criar um carro que faça mal ao nosso planeta… 

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    - Tens razão, João…só se… -Tens alguma ideia?

    António explicou, o melhor que pôde, a sua ideia. Pegaram num papel que, rapidamente, se transformou em mais de doze.

    Era chegada a hora de colocar os seus planos em prática. Tinham encontrado o que lhes faltava, algo que não poluísse o planeta e

    não fosse prejudicial para plantas como aquelas que tinham visto no jardim.

    Sabiam que tinham ainda um longo caminho a percorrer. Correram para a oficina do avô do António e, sem muitas

    demoras, começaram. Martelo, parafusos, pneus. Mas era sobretudo o que tinham descoberto naquela tarde com que mais se

    preocupavam. Jamais imaginaram que pudesse ser criado algo assim; algo inovador e sustentável, algo que percorresse estradas

    ao sabor do vento, inteligente e cuidadosamente. Intensamente atento, João admirava e mirava cada pormenor, fixava a eficácia

    de cada peça ali, naquela obra, aplicada.-Estamos quase a realizar um sonho! Quase a cumprir o que diz aquela mensagem.- refletiu António. João sorriu

    ligeiramente e continuou.

    De súbito, e já com os primeiros sinais da dor física, levantou-se e debruçou-se sobre o pequeno

    parapeito. A noite já poisava intensamente sobre a sua mão e sobre seu rosto suado e exausto.

    Ficou assim alguns instantes. Quando, de novo, se virou para dentro da garagem, viu, perto dele,

    António. Vinha com uma lágrima a percorrer-lhe o rosto rosado.

    -Conseguimos João. Conseguimos!- Assim que disse estas palavras, abraçou-o com força. Os

    amigos tinham, após longas horas de árduo trabalho, acabado o seu projeto. O seu carro autónomo,

    amigo do ambiente.

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    Eles sabiam que era algo que ia mudar a sociedade, talvez o rumo futuro do mundo.