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    Universidade Federal da Bahia

    Faculdade de Comunicao

    Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas

    Muito alm da opinio

    um breve esboo da relao entre charge e jornalismono Brasil

    Tattiana Teixeira1

    Com um p na atualidade e outro na ironia, a charge atravessa dcadas na imprensa

    nacional e, no por acaso, costuma ser classificada como gnero jornalstico. Dotada de

    caractersticas prprias e utilizando elementos provenientes de outras expresses artsticas -

    como as histrias em quadrinhos (comics), os cartuns e, sobretudo, a caricatura -, as

    charges, embora tratem da realidade - que pode se restringir origem de seus personagens

    -, nem sempre vinculam-se a elas diretamente, ou, em outras palavras, poucas vezes

    costumam ser construes discursivas de fatos reais (verdicos). Esta constatao, ao nosso

    ver, um dos dispositivos que nos coloca frente das discusses acerca de sua

    categorizao como jornalismo, mesmo quando enquadrada junto aos gneros opinativos.

    Isto porque, ao contrrio do que acontece em outros pases, no Brasil elas - pelo menos nos

    grandes veculos nacionais - no refletem necessariamente a opinio do jornal que as

    veicula como se fosse um editorial ilustrado e nem tampouco so dotadas de caractersticas

    bsicas que fazem do Jornalismo uma prtica mpar, muito longe da viso funcionalista

    durante muito tempo - e ainda hoje - defendida.

    Ao mesmo tempo em que tomam como matria-prima a atualidade, estas formas de

    expresso utilizam expedientes diversos que, em tese, poderiamaproxim-las das obras de

    arte, por exemplo. Lembremos, entre outras coisas, que elas recorrem a diversos elementos

    do Cmico amplamente difundido na Grcia Antiga e ainda presente em nossa sociedade de

    forma marcante2. Alm disso, as charges polticas utilizam procedimentos que lhe revestem

    de certa ambiguidade comum s mensagens estticas. Como sugere Eco (1991:52) a

    mensagem como funo esttica , antes de mais nada, estruturada de modo ambguo em

    1Jornalista, doutoranda em Comunicao e Cultura Contemporneas (Facom/UFBa), professora doCurso de Comunicao Social da UNIFACS e da Facom/UFBa.

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    relao ao sistema de expectativas que o cdigo. Outro ponto a ser ressaltado que

    comum charge poltica conter elementos da linguagem dos quadrinhos como os

    esteretipos mais comuns e certas metforas visuais.

    este vasto campo, alis, que delineia a necessidade de promover distines.

    Mesmo levando-se em conta, por exemplo, questes como a crtica do discurso jornalstico

    ressaltada por Lage (1990:44), onde acontece o deslocamento de um signo lingustico

    para significar outra coisa, de modo que se impe duplicidade de entendimentos e se

    mantm viva a regra social, inocentando suas violaes por mais habituais que sejam,

    ainda assim no possvel falar da linguagem chrgica de maneira semelhante s anlises

    acerca da jornalstica. Lembremos que em ambas as atividades, as palavras tm um papel

    fundamental3- resguardadas as devidas propores -, mas o seu emprego que produz as

    mais ntidas diferenas. Embora ambos os discursos possam ser classificados como

    manifestao retrica, fazem uso de elementos muito distintos e aqui vale destacar a

    importncia de se observ-los enquanto o efeito de sentido construdo no processo de

    interlocuo4, analisando-os sob o ngulo dos lugares de fala, das formaes discursivas e

    das condies de produo dos mesmos. Neste sentido, pode-se afirmar que metforas,

    hiprboles, ironia e stira so recursos no s comuns como indispensveis boa charge.

    Pode o jornalista usar os mesmos expedientes sem correr o risco de desvirtuar-se aos olhos

    de seus leitores mais exigentes e, mais do que isto, de fugir prpria essncia de sua

    atividade ? Pode o chargista abolir estes mesmos elementos e continuar produzindo charge

    poltica ? A resposta no.

    A partir de tais perspectivas, este trabalho pretende compreender a relao

    conflitante que existe entre charge poltica e jornalismo. importante frisar, porm, que ele

    no pretende funcionar como uma espcie de crtica definitiva queles que costumam

    colocar a charge como um produto do Jornalismo. A nossa inteno , ao invs disso,

    mostrar a necessidade de fugir s generalizaes sob pena de criar muitas categorias, mas

    poucas solues para problemas cada vez mais frequentes. Talvez, por trs disso, esteja a

    tentativa de consolidar uma resposta dvida que no raro figura nas discusses em torno

    2ver TEIXEIRA, Tattiana. A Comdia do Trao - um esboo para compreenso das charges polticasna contemporaneidade, trabalho apresentado na VI Comps, So Leopoldo, junho/1997 e___________. OBom-Humor da Imprensa, Dissertao de Mestrado, Salvador, Facom/UFBa, 1998.3Para comprovar esta hiptese, foram analisadas sob este ngulo especfico cerca de 200 chargespolticas publicadas nos principais jornais do pas entre maio de 1996 at os dias atuais. Cerca de 80%delas utilizam as palavras de alguma forma seja atravs de ttulos, falas atribudas aos personagenspelos chargistas ou outras formas distintas.

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    do Jornalismo na atualidade: como definir esta atividade to cara s sociedades

    contemporneas ? Neste sentido, ser basilar o estudo desenvolvido por Adelmo Genro

    Filho em O Segredo da Pirmide, adotando-se, portanto, como ponto-de-partida a

    conceituao do Jornalismo como forma de conhecimento baseada no singular e todas as

    implicaes decorrentes desta perspectiva terica.

    II - Um pouco de histria

    A relao entre charge, caricatura e jornalismo histrica. No Brasil, ela comea

    em 1837, no cariocaJornal do Commercio. A caricatura (e a charge), a partir de ento,

    passa a ser classificada como introdutora da reportagem grfica. Segundo Bahia

    (1990a:124), no comeo do sculo XX, a caricatura j compe o formato editorial

    obrigatrio de jornais e revistas. Os de maior expresso reproduzem, na primeira e nas

    pginas internas mais importantes, caricaturas, charges e desenhos que opinam, noticiam,

    documentam. A ilustrao populariza a informao, que toma o nome da reportagem

    grfica. A partir da comea um casamento de prestgio para ambas as partes e que, diga-

    se de passagem, no um fenmeno exclusivamente nacional. No toa que, no Brasil,

    nomes como Angeli, Glauco, os irmos Caruso, Cladio Paiva e Aroeira esto

    frequentemente nas pginas de jornais e revistas no s com as suas charges, mas como

    foco principal de matrias e entrevistas. Para quem pensa que o fenmeno novo, basta

    lembrar o papel de Agostini, Pederneiras, Jaguar, Henfil ou Millr Fernandes para a stira

    poltica brasileira ilustradade todos os tempos.

    importante destacar que esta denominao de reportagem grfica no surge

    aleatoriamente. Em uma poca em que o emprego da fotografia era invivel ao jornalismo,

    cabia aos ilustradores mostrar com desenhos a realidade abordada pelas matrias

    jornalsticas, ainda que de forma jocosa. A questo que a evoluo trouxe muitas

    mudanas e no cabe mais charge ser um retrato do real, mas sim uma viso mais ampla -

    e ao mesmo tempo particular - da realidade, no nosso caso, poltica. Ou seja, ela toma

    como subsdio questes do cotidiano, mas no tem a funo de complementar quer seja

    uma matria ou um editorial. Seus limites so muito maiores, assim como a sua liberdade.

    No curso do tempo em que passa de uma ao ornamental para uma ao substantiva, a

    4in Brando, Helena H. Nagamine. Introduo anlise do discurso, Campinas, Editora da Unicamp,1996 (7 edio), pp. 89

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    caricatura acentua a sua influncia e aumenta a sua carga informativa5. Assim, ela no

    deixa de ser um espao informacional, condio sine qua non sua existncia, mas - a

    partir da compreenso moderna de jornalismo por ns adotada - enquadra-se em outras

    categorias, tornando-se inadequado classific-la enquanto tal.

    Se a charge poltica no reportagem grfica, pode ento ser uma das forma de

    manifestao do gnero opinativo ? Segundo Marques de Melo (1994), sim. Para ele, o

    uso da imagem como instrumento de opinio atende, muitas vezes, ao imperativo de

    influenciar um pblico maior que aquele dedicado leitura atenta dos gneros opinativos

    convencionais:editorial, artigo, crnica etc.6. Esta posio, entretanto, parece-nos

    questionvel, pelo menos a nvel de Brasil. Ainda que as charges tenham a capacidade de

    nos fazer pensar naquela verdade que ela supostamente nos passa, seus mecanismos e a sua

    existncia vo muito alm de ser mais uma forma de manifestao da opinio do jornal para

    um nmero maior de pessoas. Entretanto, seria ingnuo no acreditar que elas so um

    poderoso recurso capaz de ampliar as possibilidades de trocas simblicas entre pblico e

    jornais. Como explica Landowski (1995:75), na realidade, ele (o caricaturista) auxilia o

    jornal a multiplicar e, portanto, a enriquecer e, finalmente, a melhor dominar o jogo das

    posies e das relaes complexas que entram na definio do regime de comunicao com

    seus leitores. O problema que esta troca se d muito mais a nvel do espao que

    oferecido ao chargista do que, necessariamente, forma pretensamente adotada pelo jornal

    para se manifestar perante os seus leitores. A personalizao da charge - a assinatura em

    todas elas - d bem uma prova disso.

    No difcil entender como se estabelece esta relao leitor-jornal atravs das

    charges. Elas, de fato, atuam como uma espcie deprova da liberdadeque governa um

    veculo, pelo menos aos olhos de seu pblico. Para ser eficaz - neste aspecto - a charge

    poltica precisa ser exata, no sentido de ter uma mira definida e seus argumentos concorrem

    para que, no curto espao de sua durao, ela diga tudo o que tem a dizer. Isto , sua

    responsabilidade no pode e no deve ser desviada sob pena de colocar em xeque sua

    credibilidade. Ter em seus quadros chargistas de renome e com comprovada empatia com o

    seu pblico-alvo - e isto normalmente significa dizer que seu poder de crtica muito

    elevado - pode indicar mais uma estratgia de marketing que, necessariamente, mudanas

    5Bahia, Juarez. Jornal, Histria e Tcnica - histria da imprensa brasileira, So Paulo, tica, 1990.

    vol.01, pp. 128.6in MELO, Jos Marques de. A opinio no jornalismo brasileiro, Petrpolis, Vozes, 1994, 2 edio,pp. 162.

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    na linha editorial de um veculo. Pensemos, por exemplo, em Chico Caruso poca do

    governo Collor e suas charges e caricaturas para O Globoou, ainda, aquelas selecionadas

    por Vejaque ridicularizam o atual presidente FHC.

    Neste sentido, consideramos interessante lembrar depoimentos de alguns chargistas

    durante o 3 Congresso Internacional do Jornalismo de Lngua Portuguesa:

    Chico Caruso contou que, quando chegou a O Globo, seus desenhos no tinham

    muito espao no jornal. At que um dia ganhou o alto da primeira pgina. Mal teve tempo para

    se convencer de que tal feito se devia genialidade dos seus traos e um colega apontou-lhe a

    dura realidade: Sabe por que a editora colocou a charge em to nobre espao ? Porque no tinha

    porcaria nenhuma para colocar l

    A regra tambm tem sua verso portuguesa. Antnio acreditou ingenuamente que

    era convidado para fazer a capa da revista do jornal semanal O Expressoporque gostavam do

    resultado do seu trabalho. Engano. Ele levou tempo, mas descobriu que na verdade era apenas

    solicitado para socorrer a edio quando um projeto fotogrfico falhava7

    III - Questo de paradigma

    Neste fogo cruzado de possibilidades tericas, no poderemos deixar de abordar

    aquilo que chamamos de princpios normatizantes do jornalismo. Ainda que questionemos avalidade de paradigmas como imparcialidade ou objetividade jornalstica, por exemplo, no

    podemos negar que, mesmo hoje, eles esto no cerne de determinados princpios pregados

    pela tcnica e que atendem, de certo modo, s expectativas dos leitores. Uma matria

    jornalstica deve se ater aos fatos, deve adotar uma linguagem na qual se evidencie a

    prevalncia da realidade sobre qualquer construo retrica8, atender a critrios de

    noticiabilidade que justifiquem a escolha deste ou daquele acontecimento e ser precisa. Pelo

    menos o que pregam os manuais, embora seja claro que nada disso representa a base dojornalismo. Imaginar o contrrio, alis, poderia colocar-nos diante de uma perigosa

    avaliao. Por conta de questes como esta que Waisbord (1995) afirma serem amplos

    os horizontes dos elementos que costumam governar a prtica jornalstica, dificultando,

    inclusive, pensar-se em Jornalismo,mas, sim, em jornalismos.

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    in Queiroz, Mirna. Cartoon, nem sempre s turras com os poderes. In: Dossi Ecos de Lisboa,Observatrio de Imprensa, 05 de maio de 1997. http://www2.uol.com.br/observatorio/cadernos8in LAGE, Nilson. Linguagem Jornalstica, So Paulo, tica, 1990. 3 edio, pp. 32

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    Porm, embora possamos discutir a validade ou no destes paradigmas impossvel

    falar de jornalismo sem remeter a eles. Gaye Tuchman, por exemplo, acredita que a

    objetividade muitas vezes utilizada pelos jornalistas como uma espcie de ritual

    estratgico, um escudo que o protege da crtica de leitores e dos prprios colegas. Assim,

    utilizam expedientes como as constantes aspas, atribuindofalasa especialistas, eximindo-se

    de certas responsabilidades ou tentam mostrar equilibradamente os dois lados de uma

    questo, ainda que seja evidente que apenas um deles tem a razo e assim por diante. J

    Koff (1993:29), afirma que a defesa de uma objetividade jornalstica um mecanismo

    ideolgico proposto pelos meios de comunicao de massa que pretendem mascarar a

    evidncia de que a suposta verdade dos fatos uma construo social. Para o autor,

    acreditar na linguagem como algo meramente descritivo uma falcia que esconde o fato

    da mesma ser sempre uma produo de sentido.

    Todos estes argumentos parecem-nos vlidos. Entretanto, se um veculo tradicional

    resolve dizer que parcial ou pouco objetiva, certamente passar a ser mal-vista at mesmo

    pelos seus leitores mais fiis, sobretudo porque isto abala diretamente a idia de verdade

    que envolve as matrias publicadas pelos jornais. Ainda que eles no acreditem nisso, estas

    possibilidades no podem surgir de forma incontestvel sob pena de abalar a credibilidade

    do veculo ou faz-lo parecer com os pasquins e panfletos de sculos passados. o leitor

    que escolhe o estilo, a orientao e a linha dos respectivos jornais. A exceo se nota nas

    regies ou pases onde no existe opo de veculos, situao em que a alternativa nica

    imposta. Mas nas condies de mltipla escolha, onde o leitor tem a faculdade de

    selecionar o veculo que mais se ajusta sua forma de ser, ele se afasta, se algo muda e no

    aprova.9

    No preciso ir muito longe para confirmar esta preocupao em negar qualquer

    possibilidade de fuga a estes padres. Uma recente campanha veiculada pelaFolha de S.

    Paulo ilustrativa. Em um VT bem-humorado um rapaz que se diz jornalista comea a

    dizer frases do tipo minha me muito bonita, meu pai muito bonito, meu colega do

    lado muito bonito, meu chefe mais bonito ainda, para depois a voz em offperguntar

    se um jornal assim que voc - leitor - deseja. A metfora parece bvia. Da mesma forma,

    um anncio de O Povo, do Cear, afirma que o jornalista tem papel decisivo na busca e na

    divulgao da verdade. J a Band prefere o slogan Compromisso com a verdade

    como marca do lanamento, poca, de seu novo telejornal. O Dia- do Rio de Janeiro -

    9in DINES, Alberto. O papel do jornal: uma releitura, So Paulo, Summus, 1986, 4 edio, pp. 55

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    tambm no fica atrs. Um exemplo foi a homenagem que prestou imprensa em um texto

    que dizia Publicando a Verdade, a Imprensa escreve a histria do Pas.

    Partindo-se da idia defendida por Landowski(1992:103), onde o discurso

    publicitrio apontado como lugar privilegiado para a figurao, no sentido mais

    concreto do termo, de certas relaes sociais, estas campanhas tornam-se ainda mais

    ilustrativas da imagem que a publicao pretende passar para o leitor, bem como a espcie

    de relao que pretende construir com o mesmo, independente do dispositivo enunciativo

    escolhido por cada uma delas. Todos estes exemplos so ilustrativos do que se costuma

    chamar de propaganda institucional, onde sempre se trata de produes em que a

    valorizao de si passa pela encenao de determinado tipo de relao que se procura

    estabelecer com um pblico, uma clientela, uma opinio etc.10

    Bem, todo este percurso para mostrar como problemtica a relao entre os

    paradigmas do jornalismo e aquilo que alguns acreditam reg-lo na prtica, sem que

    procuremos priorizar a anlise sob o ponto de vista de sua essncia, a nvel do que

    discutido por Genro Filho. Embora possa argumentar que a propaganda de um jornal nem

    sempre tem a ver com aquilo que ele pratica, no h como negar que elas tm uma forte

    carga institucional o que, em outras palavras, seria o mesmo que reconhecer a tentativa de

    construir uma auto-imagem baseada nestes mesmos princpios. interessante observar

    como esta preocupao torna-se ainda mais forte e paradoxal nas editorias de poltica que

    deveriam manter, caso no analisssemos a questo sob uma perspectiva mais ampla, um

    forte elo de ligao com as charges publicadas diariamente pelos principais veculos de todo

    o pas.

    No fcil lidar com estas oposies. Se a crena na objetividade e na

    imparcialidade como formas de garantir a qualidade do jornalismo se fez presente durante

    anos a fio desde meados da dcada de 50, hoje estes paradigmas perdem fora na redao

    mas no junto ao senso comum e s prprias pesquisas acadmicas da rea. Ilustrativo o

    trabalho de Hallin (1996) onde o autor mostra como o modelo profissional de jornalismo -

    nos EUA - est em declnio ao mesmo tempo em que reflete sobre a importncia deste

    mesmo profissionalismo para a manuteno de prerrogativas fundamentais para continuar

    viabilizando o dilogo entre imprensa e sociedade civil. importante observar que a

    proposta de um jornalismo objetivo e imparcial veio na esteira da profissionalizao da

    10in LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemitica, So Paulo, EDUC/Pontes,1992. pp. 103

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    imprensa nos Estados Unidos e, logo aps, em outros pases como o Brasil, por exemplo11.

    Por fim ele conclui que se o noticirio srio se transformar naquilo que chamado s

    vezes de programao de butique ou de nicho, ocorrer um tipo de diferenciao que

    reforar as barreiras sociais, excluindo na realidade o pblico das classes trabalhadoras de

    informaes sobre negcios pblicos e definindo-as como provadas, ou dominadas pela

    emoo e apropriadamente externas ao mundo onde o poder pblico exercido.

    Portanto, a quedadestes princpios um processo muito mais complexo do que se pensa.

    lgico que a aceitao dos paradigmas como norma no significam a garantia de

    uma prtica profissional melhor e mais honesta. Alis, no preciso ir muito longe para

    constatar isto: uma anlise breve do Cdigo de tica dos Jornalistas j nos d uma viso

    clara de como a crise muito mais prtica que terica. O artigo 13, por exemplo, afirma

    que o jornalista deve ouvir sempre, antes da divulgao dos fatos, todas as pessoas objeto

    de acusaes no comprovadas, feitas por terceiros e no suficientemente demonstradas ou

    verificadas. Algum se lembra do professor Leonardo, espcie de homem bomba de

    acordo com as verses da Imprensa, acusado de ser o responsvel pela exploso do avio

    da TAM enquanto ainda se encontrava em coma na UTI de um hospital paulista, sem

    chances de defender-se ? Certamente para responder esta pergunta, boa parte da populao

    brasileira precisa recorrer memria daquilo que foi noticiado. O que vem mente - de

    incio - a figura de algum totalmente desequilibrado. De to tendenciosas, reportagens

    como as de Veja sobre o assunto mereceram protestos de alguns leitores que - atravs de

    cartas enviadas redao - criticaram aposio nitidamente tomada pela revista que o

    trouxe na capa, sob a manchete O misterioso Leonardo.

    Este acontecimento - assim como tantos outros que esto todos os dias nos jornais

    do pas e do mundo - acaba por provar a adequao do que constata Barros Filho, quando

    afirma que a eficcia na construo da realidade social pela imprensa est interrelacionada

    com o grau de subjetividade aparente aplicado na elaborao de uma matria, seja ela em

    veculos impressos ou eletrnicos. Segundo o mesmo autor, isto acontece porque o pblico

    diante de uma matria aparentemente neutra e informativa, se despir de seus filtros

    valorativos (que contrastam sua prpria opinio com a opinio de outrem, concordando ou

    11A introduo no Brasil dos novos procedimentos adotados pela imprensa americana data da primeirametade da dcada de 50, sob a coordenao do jornalista Pompeu de Souza. O Dirio Carioca foi oprimeiro a adotar umstyle book. A novas medidas, princpio, causaram estranhamento entre os que

    atuavam poca nos jornais brasileiros. Segundo o prprio Pompeu de Souza, muitos nocompreenderam aquelas mudanas entre os quais o ontolgico Nelson Rodrigues que passou a cham-lo de pai dos idiotas da objetividade.

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    no). Ele estar mais inclinado a aceitar sem resistncia o que lhe dita a mdia por

    desconhecer a realidade fenomnica tratada e no por ter nenhum registro cognitivo sobre

    ela. O produto meditico desprovido de opinio explcita ter menor probabilidade de

    provocar dissonncia cognitiva12

    Ou seja, aspectos cruciais de toda esta discusso costumam permanecer em um

    plano secundrio e o texto de Barros Filho coloca-nos de frente com este problema. O

    importante no ser ou no objetivo, ter ou no entronizado certas regras ditadas pelos

    manuais e sim compreender a extenso daquilo que se pratica e discute. Entender

    efetivamente o que - ou deveria ser - Jornalismo, aqui, nos Estados Unidos, na Frana ou

    qualquer outra parte do mundo onde se garantam as mnimas liberdades democrticas. Por

    trs disso tudo est uma questo prioritria: entender o jornalismo antes de tudo

    compreender a sua essncia que, segundo Genro Filho, est no singular. A partir desta

    perspectiva torna-se mais fcil distinguir - diante dos textos que esto em publicaes

    com qualquer periodicidade - o que pode ou no ser classificado enquanto produto ou

    gnero jornalstico e aplicar os mesmos critrios para tudo, sem entretanto, ser genrico ou

    leviano. Adotar tal procedimento pode, ainda, auxiliar-nos para que no fiquemos dando

    voltas em torno dos mesmos pontos, chegando a poucas concluses satisfatrias.

    Em outras palavras, um dos grandes problemas de boa parte das discusses que,

    ao se deter em critrios universais, perde-se a idia bsica do que Jornalismo. Seria uma

    cincia ? Uma atividade voltada para atender s necessidades de toda e qualquer sociedade

    por informao ? Uma forma de construir realidades ? Por outro lado, todo texto com

    pretenses objetivas e imparciais jornalstico ? O princpio morda tica jornalstica ouvir

    e dar igual espao a todos os lados envolvidos em alguma questo polmica ? Dizer a

    verdade - ou estar em busca dela - deve ser o objetivo de todo jornalista ? E o chargista, ao

    dizer a sua verdade, est condizente com estas e muitas outras normas comumente

    aplicadas para classificar o seu trabalho como jornalstico ?

    IV - Em busca da essncia

    12BARROS FILHO, Clvis. A crtica objetividade da mdia. In: Pauta Geral, ano 2, n 02, 1994.pp. 7.

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    em meio a este panorama to diversificado que se encontra o problema central

    deste texto. A charge , sem dvida, ganha muito mais fora quando publicada em veculos

    jornalsticos. A razo ? Supomos que a sua prpria condio de usar como principal

    matria-prima a atualidade, o que, alis, lhe d, tambm, uma sobrevida muito curta. Ainda

    que Chico ou Paulo Caruso, por exemplo, publiquem as suas melhores charges em lbuns

    que so a coqueluche dos colecionadores, elas perdem, com o tempo, o seu sentido

    primeiro, sobretudo quando esto diretamente relacionadas a um ou outro acontecimento

    especfico. Por isso que elas exigem do leitor uma bagagem prvia porque mesmo atuais

    elas podem ser totalmente desprovidas de um sentido linear para este ou aquele leitor

    menos atento aos acontecimentos aos quais elas se referem.

    As charges esto, portanto, diretamente ligadas cultura, sociedade, a um

    contexto histrico que lhe fornece lgica em termos de significao mesmo e no de

    prtica, em uma perspectiva mais especfica. Sem todos esses elementos interligados, ela se

    perde em sua potencialidade enunciativa. A pergunta que surge : ser que acontece o

    mesmo com um texto jornalstico ? Por exemplo, podemos no entender a cultura, a

    crena, que leva alguns povos da frica a praticar - ainda hoje - a extrao do clitris em

    crianas ou adolescentes, mas da a no entender uma matria sobre o assunto algo bem

    diferente, desde que respeitadas todas as regras que normatizamaquilo que se pode chamar

    de um bom texto jornalstico: claro, exato, coerente e que respeite as regras bsicas da

    lngua na qual escrito. Se nos depararmos, por exemplo, com uma charge rabe onde uma

    espcie de representao demonaca surge com um torso onde se v a Estrela de Davi, s

    poderemos compreend-la se conhecermos os conflitos anti-semitas e o significado da

    Estrela para o povo judeu enquanto um de seus principais smbolos. Ou seja, a charge exige

    certas premissas bsicas que o Jornalismo nem sempre invoca.

    Mas, no nos ateremos em questes cognitivas. Se adotamos a idia de Jornalismo

    como uma forma de conhecimento que vai cumprir um papel semelhante ao da percepo

    individual da singularidade dos fenmenos, s que agora como se nos relacionssemos

    com a imediaticidade do mundo, de um aldeia global13 sob esta luz que deveremos

    enxergar a diferenciao a que se prope este trabalho, bem como a idia de que o

    jornalismo um dos mecanismos de construo do mundo real, a nvl de imaginrio social.

    Dentro desta perspectiva, um dos primeiros desafios que nos posto tentar observar se as

    charges, assim como o jornalismo, utilizam como ponto-de-partida para tratar de alguma

    13in GENRO FILHO, op.cit., pp. 53

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    informao ou acontecimento, o singular. claro que no aprofundaremos, aqui, este

    problema sob a perspectiva filosfica o que demandaria um espao muito maior de

    discusso. O que se pretende , ao invs disso, lanar alguns pontos de reflexo.

    J afirmamos, alguns pargrafos acima, que a atualidade a matria-prima das

    charges. Ora, isto mostra-nos o quanto, por outro lado, charge poltica e jornalismo se

    interrelacionam. a partir daquilo que sai no jornalque uma charge comea a existir.

    neste intercmbio que ela amplia a singularidade jornalstica, ainda que traga seus elementos

    intrnsecos em seu sentido, para centrar-se no particular que evidenciado no seu discurso.

    Isto no quer dizer, obviamente, que a charge esteja em uma posio secundria ao

    jornalismo. Deixamos claro que no pretendemos aqui estabelecer nenhuma espcie de jogo

    hierrquico entre ambas as atividades.

    Nesta tentativa de buscar o melhor lugarpara as charges no pretendemos, ainda,

    voltar velha questo - j anteriormente discutida - de que, sendo o discurso da charge

    rico de recursos retricos como a metfora, a hiprbole e a ironia, ela menos objetiva e

    mais ideolgica que um produto jornalstico e suas diferenas se dariam a nvel de funo

    social. Este ponto de partida pode ser previamente descartado, uma vez que parece-nos

    impossvel falar de jornalismo como algo desprovido de conotaes ideolgicas. Alis, por

    usar igualmente a linguagem, que est muito longe de possibilitar a quem a utiliza fazer um

    retrato fiel e indiscutvel do real, o jornalismo no pode alimentar tais presunes.

    Ressaltemos, porm, que ideologia, pelo menos aqui, no est sendo utilizada como

    sinnimo de partidarismo.

    Deste modo, parece-nos satisfatrio, neste primeiro momento, considerarmos as

    charges como fruto da interpretao proposta por seu autor de acontecimentos

    verificados na esfera poltica a partir de um enfoque centrado no particular - ainda

    que mantendo fortes ligaes com o carter singular do fenmeno - a partir do

    humor. Esta interpretao impe-se na forma de argumentos retricos de forte apelo e

    recursos grficos - sendo o principal deles a caricatura -, sem ter que estabelecer neste

    processo relaes inequvocas com a realidade. Em outras palavras, uma interpretao

    bem-humorada no de acontecimentos, mas da prpria configurao histrica da sociedade

    que retratada. Atravs delas, pode-se fazer uma reconstituio alm dos fatos. Elas nos

    fornecem algumas consideraes acerca de grupos e procedimentos sociais em perodos

    especficos.No toa, portanto, que Tabacof , em matria publicada noJornal do Brasil

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    garante que em muitos pases, quem quer saber, num passar de olhos, qual o estado de

    esprito da nao, pode consultar as charges e as caricaturas publicadas em seus jornais.

    Por tudo isto, defendemos que a charge uma manifestao humorstica -

    capaz de congregar em sua gramtica as mais variadas formas do Cmico - que tem

    como elementos constitutivos obrigatrios a stira e a ironia expressas sobretudo

    graas ao uso da linguagem verbal que as complementa e presena de caricaturas

    que remetem a figuras pblicas de grande visibilidade social. Sua condio de

    existncia a recorrncia a temas que sejam conhecidos pelos seus leitores, pois, caso

    contrrio, perde o seu sentido e razo de ser. Sua abordagem sempre atual,

    cotidiana, seguindo critrios de notabi lidadecalcados tanto na visibilidade de quem se

    fala quanto na importncia e pertinncia dos temas para a sociedade na qual ela est

    inserida. (...) Sua ligao com a realidade circundante se resume aos personagens e

    temticas abordadas. A forma de representao, porm, no baseada na descrio

    ou reproduo de acontecimentos reais (...) (TEIXEIRA,1998:21). Crtica, ela faz da

    stira uma forma de colocar-se frente aos problemas que afetam a sociedade diretamente e

    de modo mais grave, podendo, em seu amplo espao de ambiguidade, fazer transparecer

    uma srie de aspectos - conhecidos ou no da audincia - proporcionando a queda de

    mscaras na tentativa de destruir os muitos simulacros nos quais os polticos normalmente

    tentam se esconder14. Longe de ser puro divertimento, a charge uma arma poderosa de

    desmoralizao que tem contornos muito prprios. Capaz de chamar Presidentes da

    Repblica de mentiroso, caipira ou falso intelectual e at uma primeira-dama de ladra, estas

    formas de manifestao no costumam ser comentadas ou contestadas pelos seus

    personagens principais. Alis, neste sentido foi emblemtica a irritao oficial de quem,

    provavelmente, considera que charge e jornalismo so a mesma coisa. O texto indignado

    aqui reproduzido na ntegra: o consideramos providencial para o encerramento deste

    trabalho.

    Divirtam-se!

    Presidncia da Repblica

    14sobre este ponto ver LANDOWSKI, Eric. No se brinca com o humor: a imprensa poltica e suascharges. In: Face - revista de semitica e comunicao, v.04, n 02, jul/dez 1995. pp. 64-95

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    Braslia, 3 de setembro de 1993

    A Nao, que se viu perplexa nos ltimos dias diante de atos desatinados de gente

    que se sente poderosa contra cidados humildes e indefesos, v-se agora agredida atravs

    do trao de profissionais que pem a pena de seu talento acima do que a tica e o respeito

    pessoal admitem.

    Eu trouxe para a Presidncia da Repblica as minhas origens simples, de homem do

    povo, que no tem vergonha de cumprimentar outro homem do povo e de ir ao circo, um

    patrimnio inalienvel do qual muito me orgulho.

    Ser que o Presidente no pode cumprimentar impunemente um artista, na rua ?

    Um homem simples do povo, que faz do barro de seu trabalho a arte da alegria e de fazer

    rir ?

    com justa e ferida indignao que registro meu protesto contra essas charges

    desagregadoras do esprito pblico, cuja defesa deveria nortear sempre, e acima de tudo, o

    papel da imprensa.

    Aos que pensaram que diminuam e atingiam a dignidade da Presidncia da

    Repblica ao tentar ferir este que a exerce hoje em mandato passageiro, espero que - se

    tiverem limpos os olhos da conscincia - vejam que o mais ofendido foi o artista circense e

    no o Presidente.

    Na verdade, as charges, debochadas, denunciam antes um preconceito que se revela

    na tentativa de atribuir ao Presidente da Repblica a acepo pejorativa de que os palhaos

    so injustamente estigmatizados.

    Que pensam os homens da imprensa, dos mais altos aos mais humildes escales ?

    Que pensam do seu semelhante, que no tem na mo essa arma poderosa, essa mquina

    que quer deixar de ser senhora de si para assumir a postura de senhora de todos ?

    Itamar Franco

    V - Bibliografia

    AMARAL, Luiz. A objetividade jornalstica, Porto Alegre, Sagra - D.C. Luzzatto,

    1996

    BAHIA, Juarez. Jornal, Histria e Tcnica, So Paulo, tica, 1990, 2 vol., 4 edio

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    In:_______. Discovering the news:a social history of American newspapers, USA,

    Basic Books, 1978.

    TEIXEIRA, Tattiana. O Bom-Humor da Imprensa- Dissertao de Mestrado,

    Facom/UFBA, Salvador, 1998.

    TUCHMAN, Gaye. A objetividade como ritual estratgico: uma anlise das noes de

    objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson(org.) Jornalismo: questes,

    teorias e estrias, Lisboa, Vega, 1993 (Srie Comunicao e Linguagens)

    WAISBORD, Silvio R. When watchdogs bark:press and political accountability in

    South American democracies. Trab. apresentado na reunio anual da American

    Political Association, Chicago, 31 ago/03 de set., 1995.(mimeo)