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Foi a duras penas que as mulheres conquistaram espa- ço na sociedade e na políti- ca brasileira. O direito ao voto e a disputar uma eleição só foi conquis- tado em 1932. Apesar dessas con- quistas, a participação das mulheres na política ainda é tímida. Cerca de 52% do eleitorado brasileiro é mulher, mas a represen- tação feminina na Câmara Federal é de apenas 9%, e no Senado 13%. Essa realidade coloca o Brasil atrás de países tidos como expressão maior do sexismo, como Paquistão e Sudão. Além da busca pela igualda- de de representação de gênero, há uma barreira maior a ser transpos- ta: a do preconceito contra a mu- lher nos espaços públicos, ocupado majoritariamente por homens. Ao completar 23 anos de his- tória, o Mulher 24H se consolida como importante instrumento de debate da pauta feminista e de luta contra a opressão às mulheres. Esta edição comemorativa traz a tona o desrespeito às mulheres na política e em outras esferas. Apesar das su- perações, elas ainda lutam contra o estereótipo ideal imposto pela socie- dade, como a recente exaltação da primeira-dama Marcela Temer como “bela, recatada e do lar”. As ofensas contra a ex-pre- sidente Dilma Rousseff nas redes sociais e até em adesivos de carro reafirmam essa constatação. O des- contentamento com o governo de Dilma não se restringiu a críticas à sua gestão, e trouxe a tona o ma- chismo contra a mulher em um es- paço de poder, ocupado até então apenas por homens. Editorial Informativo do Sindicato dos Bancários/ES - Coordenador Geral: Jonas Freire Santana - Diretor de Imprensa: Carlos Pereira de Araújo - Editoras: Bruna Mesquita Gati - MTb 3049-ES, Elaine Dal Gobbo MTb 2381-ES e Ludmila Pecine dos Santos - MTb 2391-ES - Estagiária: Júlia Zumerle - Diagramação: Jorge Luiz (MTb 041/96) - nº 110 - Dez./2016 — Jan./2017 - [email protected] - Tiragem: 10.000 exemplares Mulher 24 HORAS 3 Os impactos do ajuste fiscal na vida das mulheres Ser mulher onde quiser VEJA NESTA EDIÇÃO 2 A nova primeira dama e a reprodução dos papéis sociais na política Mulher 24 Horas - 110 - DEZEMBRO-2016.indd 1 12/12/2016 16:08:06

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Foi a duras penas que as mulheres conquistaram espa-ço na sociedade e na políti-ca brasileira. O direito ao voto e a disputar uma eleição só foi conquis-tado em 1932. Apesar dessas con-quistas, a participação das mulheres na política ainda é tímida.

Cerca de 52% do eleitorado brasileiro é mulher, mas a represen-tação feminina na Câmara Federal é de apenas 9%, e no Senado 13%. Essa realidade coloca o Brasil atrás de países tidos como expressão maior do sexismo, como Paquistão e Sudão.

Além da busca pela igualda-de de representação de gênero, há uma barreira maior a ser transpos-ta: a do preconceito contra a mu-lher nos espaços públicos, ocupado majoritariamente por homens.

Ao completar 23 anos de his-tória, o Mulher 24H se consolida como importante instrumento de debate da pauta feminista e de luta contra a opressão às mulheres. Esta edição comemorativa traz a tona o desrespeito às mulheres na política e em outras esferas. Apesar das su-perações, elas ainda lutam contra o estereótipo ideal imposto pela socie-dade, como a recente exaltação da primeira-dama Marcela Temer como “bela, recatada e do lar”.

As ofensas contra a ex-pre-sidente Dilma Rousseff nas redes sociais e até em adesivos de carro reafirmam essa constatação. O des-contentamento com o governo de Dilma não se restringiu a críticas à sua gestão, e trouxe a tona o ma-chismo contra a mulher em um es-paço de poder, ocupado até então apenas por homens.

Editorial

Informativo do Sindicato dos Bancários/ES - Coordenador Geral: Jonas Freire Santana - Diretor de Imprensa: Carlos Pereira de Araújo - Editoras: Bruna Mesquita Gati - MTb 3049-ES, Elaine Dal Gobbo MTb 2381-ES e Ludmila Pecine dos Santos - MTb 2391-ES - Estagiária: Júlia Zumerle - Diagramação: Jorge Luiz (MTb 041/96) - nº 110 - Dez./2016 — Jan./2017 - [email protected] - Tiragem: 10.000 exemplares

Mulher 24 HORAS

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Os impactos do ajuste fiscal na vida das

mulheres

Ser mulher onde quiser

VEJA NESTA EDIÇÃO

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A nova primeira dama e a reprodução dos papéis

sociais na política

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Fotos Públicas

A primeira dama e o papel atribuído à mulher na sociedade patriarcal

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Mulher 24 HORAS

A iniciativa terá como uma espécie de embaixatriz a primeira dama, Marcela Temer, que na apre-sentação do programa fez seu pri-meiro discurso público, de breves três minutos. Até então, suas apa-rições se resumiam a estar ao lado de seu marido em eventos, o que sempre rende diversas matérias na imprensa sobre a sua beleza física e vestimenta.

A figura de Marcela Temer pro-põe reflexões sobre o papel da mu-lher, principalmente na política e no espaço público. Segundo a militante do movimento feminista, professora do Departamento de Comunicação e do Mestrado em Comunicação da Ufes, Gabriela Santos Alves, não se trata de execrar a figura da Marcela, mas de pensá-la como um exemplo para que se possa culturalmente olhar a sociedade e estabelecer uma crítica a partir disso.

A professora questiona qual imagem é trabalhada do papel da mulher na sociedade por meio da figura da primeira dama. “Mesmo no momento que a gente ocupa o espaço público, onde a gente pode estar? A gente pode estar no traba-lho assistencialista. A gente pode ser professora no ensino primário, secundário, já no ensino superior não é tão permitido assim. E a polí-tica dentro desse espaço público? A mulher não pode ser presidente, ela não pode estar a frente do cargo de maior expressão e mais importante do cenário político. Mas primeira

dama pode”, destaca. Segundo a Folha de São Pau-

lo, Michel Temer afirmou, no lança-mento do Criança Feliz, que o papel de Marcela no programa será de mobilização, incentivando prefeitas, governadoras e primeiras damas a se envolverem na iniciativa, o que confirma que o trabalho assistencia-lista é destinado às mulheres. Vale lembrar o histórico de atuação das primeiras damas brasileiras. A maio-ria delas presidiu a Legião Brasileira de Assistência (LBA), fundada por Darcy Vargas, esposa de Getúlio, e extinta em 1995.

Para Gabriela, numa socieda-de patriarcal tende-se a invisibilizar a mulher e supervalorizar a ques-tão estética. “Não importa o que você faça, sempre vão te avaliar pela roupa que está usando, pela cor do seu baton. A Ruth, apesar de ter sido importante do ponto de vista acadêmico, sempre se referiam a ela como a mulher do Fernando Henrique Cardoso. É sempre essa tentativa de apagar, de silenciar o que a gente faz. No desfile de 7 de setembro, a grande discussão da mí-dia era ‘como o vestido da Marcela é acessível, toda mulher pode ter’.

No início de outubro foi apresentado aos brasileiros o

Programa Criança Feliz, do Governo Federal, que prestará atendimento médico e psicológico semanal para crianças de até três anos beneficiadas pelo Bolsa Família.

Invisibilização e supervalorização estética

Fizeram isso também com Diana, com Hillary Clinton. Independente da proposta que se apresente poli-ticamente, a discussão está sempre recaindo na questão estética, na avaliação do corpo”, afirma.

Recordando a matéria da re-vista Veja de abril deste ano, Gabrie-la explica o que, para ela, significa

ser “bela, recatada e do lar”, adjeti-vos atribuídos a Marcela pela publi-cação. “São atributos que a socieda-de cobra o tempo todo que a mulher seja. O que é o bela, que a Marcela representa? Bela por ser magra, loi-ra, jovem. E o recatada? É usar rou-pas que não chamem muita atenção, ficar calada num canto, é quase ser um ornamento ao lado do marido, um bibelô. E do lar, que é o espaço privado. A mensagem do bela, reca-tada e do lar é muito forte. Traduz grande parte do que o patriarcado e as práticas machistas colocam para as mulheres em seu cotidiano”, diz.

Marcela Temer no discurso de lançamento do Programa Criança Feliz

“Não importa o que você faça, mas sempre vão te avaliar pela roupa que está usando, pela cor do seu baton”

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Gilsa Helena Barcelos, professora do Departamento de Serviço Social da Ufes e

integrante do Fórum de Mulheres do Espírito Santo

Palavra de Mulher

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Mulher 24 HORAS

Os impactos do ajuste fiscal na vida das mulheres

A PEC 55 vai impedir no-vos investimentos em áreas como saúde e educação por 20 anos. Como isso vai afetar es-pecialmente as mulheres?

Vivemos numa sociedade pa-triarcal, onde há uma nítida divisão sexual do trabalho que produz hie-rarquias entre homens e mulheres.

Nessa divisão, as mulheres têm responsabilidades que, para serem bem desenvolvidas precisam das políticas sociais. Elas são, por exemplo, as responsáveis por cuidar da saúde da família. É a mulher que leva o filho doente para a unidade, que assume a função de cuidado dos seus pais quando estão envelhe-cendo ou de outros familiares.

Menos investimento signifi-ca menos unidades básicas, menos profissionais, menos acesso à tecno-logia em saúde, a medicamentos. A responsabilidade do cuidado vai de-safiar muito mais as mulheres.

A outra questão é a saúde. No SUS identificamos avanços, como o desenvolvimento de política de assistência à mulher lésbica, tran-sexual, a ampliação do direito aos preventivos preconizados pela Or-ganização Mundial de Saúde, de acesso maior a consultas para mu-lheres grávidas. Tudo isso vai ser comprometido.

As mulheres também são a maioria entre os trabalhadores de saúde e educação. A PEC as atinge enquanto trabalhadoras?

O município, o Executivo Esta-dual ou a União não vão fazer concur-so público para profissionais de saúde e educação, e a tendência é uma so-brecarga sobre os profissionais em atu-ação. Além disso, a possibilidade desse profissional ter aumento salarial, tanto no serviço público quanto na iniciativa privada, vai ser zero. Essas mulheres, que vão viver uma sobrecarga e um

achatamento salarial te-rão afetadas sua saúde e sua relação com o ser-viço público. Enquanto ela vive isso como pro-fissional, do outro lado ela também é usuária da saúde e tem que cuidar de seus familiares.

Como essa re-alidade pode afastar as mulheres dos es-paços de decisão política?

A educação vai ser direta-mente afetada pela PEC. As mulhe-res precisam ter uma base material mínima para que possam cuidar de suas famílias de forma conciliada com a educação. Quando essa base é reduzida, a mulher tende a abrir mão de seus projetos de vida para cuidar da família. Com a PEC, a mulher terá menos acesso à creche. Ela, então, vai priorizar o cuidado do filho em detrimento do de si própria. Com a redução de investimento pú-blico em políticas fundamentais,

que dão base à vida das mulheres, há uma tendência delas abrirem mão da sua presença nos espaços públicos e, consequentemente, nos espaços de poder. As mulheres tam-bém participam de espaços de luta, de movimentos sociais e isso pode acirrar a luta das mulheres por polí-ticas públicas e aumentar a presença delas nos movimentos sociais. Pode, mas não é uma relação automática. E acho que será mais difícil com a aprovação da PEC.

E o caso da mulher negra?A tendência, com o aprofunda-

mento da precarização e da flexibili-zação das relações de trabalho, é que as mulheres negras, por serem a força de trabalho menos valorizada, se sub-metam a condições mais precárias. Em Vitória, segundo o IBGE, a maior parte das domésticas são mulheres negras, que tendem a se submeter ao trabalho informal, com salários meno-res, e isso vai se aprofundar e afetar o acesso delas à educação, que terão uma base material menor, o que ten-de a um aprofundamento do racismo.

E qual é o impacto da Reforma da Previdência, que iguala a idade para aposenta-doria de homens e mulheres.

Há uma pressão do merca-do e os que estão conduzindo as políticas de Estado acabam au-mentando o tempo de aposenta-doria das mulheres para igualar ao

dos homens. As mulheres conquista-ram tempo menor de aposentadoria porque há um reconhecimento pú-blico de que elas trabalham mais, se desgastam mais no decorrer de sua vida. Qual é a realidade da reforma da previdência? Não há reconheci-mento por parte dos agentes públi-cos de que as mulheres vivenciam a dupla jornada de trabalho e que elas têm um desgaste maior do que os homens. Aí as mulheres precisam travar suas lutas.

“Menos investimento significa menos unidades básicas, menos

profissionais, menos acesso à tecnologia em saúde, a

medicamentos”

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Mulheresantenadas

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L á se vão quatro meses após o impeachment de Dilma Rousseff, consolidado no dia

31 de agosto pelo Senado. Muito ainda se discute sobre a legalidade do processo, mas gostando ou não do seu governo, um aspecto que marcou o afastamento de Dilma não pode ser esquecido: o sexismo.

A misoginia por trás do impeachmentAdesivo de carro espalhado pelo país durante a crise de governo

A primeira mulher a presidir o Brasil já era alvo de críticas antes do afastamento temporário. Mas político sendo criticado não é novidade, nem problema. O fato é que, no caso da petista, a insatisfação com seu gover-no era manifestada de forma desres-peitosa com a sua sexualidade, corpo e condição feminina, diferente do que acontece com políticos do sexo oposto.

Durante a crise política, um ade-sivo de carro colado na abertura do tanque de gasolina colocava Dilma de

pernas abertas, sugerindo que a válvula de combustível a penetrasse durante o abastecimento. Um símbolo de violên-cia à presidenta e a todas as mulheres.

Na época, Twitter e Facebook também foram recheados de críticas que em nenhum momento avaliavam o mandato da presidenta – Dilma era simplesmente achincalhada. Puta, va-gabunda, gorda, eram alguns dos ter-mos usados para adjetivá-la.

Grande mídia fortelece estereótiposAs ofensas à Dilma não se restringiram às redes sociais, espaço onde são comuns, pela liberdade e falta de compromisso que oferecem, brincadeiras jocosas de toda sorte. Veículos de mídia de expressão nacional também entraram na dança.

Edição 2417 da revis-ta IstoÉ, publicada em 06 de abril, trazia na capa expres-são que representaria “as explosões nervosas da presi-dente”. À época, o Brasil vi-via o auge da efervescência política contra e a favor do impeachment, com mani-festações quase que sema-nais nas ruas do país. Pouco mais de um mês depois, no dia 12 de maio, o Congresso instauraria o processo de im-pedimento na Câmara, dan-do início ao afastamento da presidenta por 180 dias até o julgamento final.

Para os adeptos do impeachment, a capa era

mais que oportuna. Que de-núncia trazia, efetivamente? Nenhuma. Queria mostrar apenas o destempero de uma mulher na condução da política nacional diante de seu eminente afastamen-

Vale lembrar que Fernando Collor, quando impeachmado em 1992, foi chamado de corrupto, la-drão, desonesto, mas em nenhum momento de puto, vadio, vagabundo ou coisa semelhante, o que deixa evi-dente o caráter misógeno das críticas proferidas à petista.

to. O texto é puramente de-preciativo. A imagem raivo-sa de Dilma busca associá-la à idéia da mulher louca, descontrolada, incapaz de racionalizar sobre o seu fu-turo e, principalmente, sobre o futuro do país. Destaca-se que o contexto original da foto era de comemoração a um gol da Seleção Brasileira na Copa.

A posição da revista reforça a ideia reproduzida na história de que a raciona-lidade é uma característica atribuída ao homem, en-quanto a emoção, à mulher.

No dia seguinte à abertura do impeachment, outra capa apresenta o in-terino. Temer está pensati-vo, sério e sereno, olhando em perspectiva e sentado à frente da bandeira nacio-nal, como quem arquite-

ta o futuro. Na manchete: dois anos para reconstruir o Brasil.

Nos exemplos, texto e imagem produzem sentidos que extrapolam a literalida-de. Endossam posições po-líticas claras sobre o papel do homem e da mulher na sociedade.

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