Mulher Como Outro - Ferreira

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139 A MULHER COMO “O OUTRO” – A FILOSOFIA E A IDENTIDADE FEMININA “Seule la médiation d’autrui peut constituer un individu comme un Autre” Simone de Beauvoir 1 . A oposição masculino feminino é uma concretização do pensamento por opostos, tão caro a filósofos e a cientistas 2 . Mas tal oposição ultrapassa o plano lógico e epistemológico - domínios preferenciais do pensamento categorial - colocando-se no coração da biologia, na qual radica. De facto a divisão sexual masculino/feminino diferencia os seres vivos, introduzindo no estudo dos mesmos a categoria da alteridade. Os filósofos não ignoraram tal distinção e foi a partir do seu olhar que se estabeleceu o cânon, a norma, melhor dito, a escolha de um pólo dominante e regulador, susceptível de gerir a oposição em causa. Na aparente neutralidade do binómio masculino feminino, fruto da observação dos fenómenos da vida, paulatinamente se foram estabelecendo valorações, afirmando-se um elemento forte e um elemento fraco, um pólo que domina e outro que obedece, algo que representa a norma e algo que personifica a divergência. A hierarquia instala-se pois um dos pares categoriais coloca-se como modelo a seguir enquanto o outro é visto como negação ou falha. Na inicial complementaridade insinua-se a diferença. A questão “o que é o homem?” que desde Sócrates atravessa toda a filosofia parece anular tal diferença postulando uma unidade - a do ser humano. O uso do termo “homem” para designar a totalidade dos humanos não perturbou a maior parte das pessoas. Também não perturbou os filósofos que até meados do século XX a usaram sem quaisquer problemas de consciência. Só que esta homogeneidade de designação não é inocente. No que respeita à filosofia ela significa um modelo que se impõe, um modelo masculino pois foi pensado por homens e teve os homens como destinatários. Face a tal modelo a mulher aparece como desviante, ou numa hipótese mais moderada como diferente ou como “outro”. Esta comunicação debruça-se sobre o modo como os filósofos entenderam a mulher e o feminino pretendendo mostrar que conceber a mulher como “o outro” não é necessariamente uma teoria ética e politicamente incorrecta. Só o é quando 1 Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe, Paris, Gallimard, 1949, II, p. 13. 2 Veja-se a este respeito Fernando Gil “O Pensamento Categorial: Das Simetrias às Contradições”, in AAVV, Filosofia e Epistemologia, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978, pp. 149-207.

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    A MULHER COMO O OUTRO A FILOSOFIA E A IDENTIDADEFEMININA

    Seule la mdiation dautrui peut constituer un individu comme un Autre

    Simone de Beauvoir1.

    A oposio masculino feminino uma concretizao do pensamento por opostos, to caro a lsofos e a cientistas2. Mas tal oposio ultrapassa o plano lgico e epistemolgico - domnios preferenciais do pensamento categorial - colocando-se no corao da biologia, na qual radica. De facto a diviso sexual masculino/feminino diferencia os seres vivos, introduzindo no estudo dos mesmos a categoria da alteridade. Os lsofos no ignoraram tal distino e foi a partir do seu olhar que se estabeleceu o cnon, a norma, melhor dito, a escolha de um plo dominante e regulador, susceptvel de gerir a oposio em causa. Na aparente neutralidade do binmio masculino feminino, fruto da observao dos fenmenos da vida, paulatinamente se foram estabelecendo valoraes, armando-se um elemento forte e um elemento fraco, um plo que domina e outro que obedece, algo que representa a norma e algo que personica a divergncia. A hierarquia instala-se pois um dos pares categoriais coloca-se como modelo a seguir enquanto o outro visto como negao ou falha. Na inicial complementaridade insinua-se a diferena. A questo o que o homem? que desde Scrates atravessa toda a losoa parece anular tal diferena postulando uma unidade - a do ser humano. O uso do termo homem para designar a totalidade dos humanos no perturbou a maior parte das pessoas. Tambm no perturbou os lsofos que at meados do sculo XX a usaram sem quaisquer problemas de conscincia. S que esta homogeneidade de designao no inocente. No que respeita losoa ela signica um modelo que se impe, um modelo masculino pois foi pensado por homens e teve os homens como destinatrios. Face a tal modelo a mulher aparece como desviante, ou numa hiptese mais moderada como diferente ou como outro.

    Esta comunicao debrua-se sobre o modo como os lsofos entenderam a mulher e o feminino pretendendo mostrar que conceber a mulher como o outro no necessariamente uma teoria tica e politicamente incorrecta. S o quando

    1 Simone de Beauvoir, Le Deuxime Sexe, Paris, Gallimard, 1949, II, p. 13.2 Veja-se a este respeito Fernando Gil O Pensamento Categorial: Das Simetrias s Contradies,

    in AAVV, Filosoa e Epistemologia, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978, pp. 149-207.

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    se reveste de uma conotao pejorativa em que o outro tende a ser secundarizado, ou discriminado ou simplesmente anulado. Pretendemos mostrar que esta atitude se manteve durante muito tempo na tradio losca com o contributo ou pelo menos com a aquiescncia dos lsofos. Mas queremos tambm sublinhar o papel das mulheres lsofas na assuno da sua alteridade e diferena, delas tirando consequncias positivas para todos, homens e mulheres.

    1. O losofema mulher/feminino

    Il ny a presque pas de questions exclusivement locales dans les grandes oeuvres philosophiques.

    Pierre Guenancia 3.

    Os temas da mulher e do feminino so pouco trabalhados na tradio losca. Aparentemente trata-se de questes locais, espordicas e com pouco interesse. No entanto, fazendo jus armao de Guenancia, diramos que o lugar que as mulheres ocupam no pensamento dos lsofos s aparentemente irrelevante. No s muitos deles teceram consideraes sobre este assunto, como interessante vericarmos at que ponto tais reexes esto (ou no) em harmonia com a totalidade dos seus sistemas.

    Uma primeira diculdade reside precisamente no carcter secundrio que tal tema ocupa no pensamento dos grandes lsofos. Na verdade, de um modo manifesto parece-nos que tal temtica no encarada como um losofema, sendo geralmente desprezada e secundarizada pelo pensamento ocial. No entanto, vericamos que ela existe de um modo latente, apresentando-se disfarada sob a capa de temticas aceites como o caso das abordagens loscas feitas ao amor, ao desejo, ao corpo, alteridade, diferena, etc.

    Note-se que a partir do sculo XIX constatamos uma alterao no status quo losco, comeando os temas da mulher e do feminino a despertar interesse. Mas ainda hoje a diferena dos sexos continua a suscitar reaces enquanto objecto ocial de uma abordagem losca. Acontece que, como j anteriormente referimos, o feminino e o masculino so representaes mentais que no se circunscrevem ao humano e que perpassam todo o Universo, podendo ns consider-los como categorias ontolgicas fundantes, apelando para relacionamentos ticos e gnosiolgicos da ordem da complementariedade, da oposio, da hierarquia e do envolvimento4.

    A oposio feminino/masculino exemplicativa de uma viso dicotomizada do real, apelando para outros pares de opostos como o caso de natureza/cultura, corpo/esprito, objecto/sujeito, etc. So dicotomias que envolvem uma hierarquia valorativa pois h um dos elementos do binmio que comanda e determina o que deve ser. A diversidade que envolve estes pares de opostos, mais do que uma diferena um diferendo. Se a oposio homem/mulher se justica a partir do biolgico, a diferena masculino/feminino tem uma carga cultural muito forte, prendendo-se com um imaginrio, com uma ideologia, com representaes que determinam nitidamente

    3 Pierre Guenancia, Lire Descartes, Paris, Gallimard, 2000, p. 2654 Maurice Godelier, Du Quadruple Rapport entre les catgories de Masculin et de Fminin , em

    AAVV, La Place des Femmes, Paris, Ed. de la Dcouverte, 1995, pp. 439-442.

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    aquilo que caracterstico de homens e aquilo que cabe s mulheres, identicando-se com as normas dominantes (embora variadas) das diferentes sociedades. O modo como a cultura ocidental tem encarado a diferena masculino/feminino tambm sofreu a inuncia dos lsofos. De um modo muito breve citarei alguns.

    Quando falamos de lsofos imediatamente pensamos em pessoas que abriram novas perspectivas, que nos ajudaram a entender o mundo de um modo original e inovador, que contriburam para o afastamento de supersties e que lutaram contra os preconceitos. Ora no que se refere temtica da mulher e do feminino isto nem sempre verdade. Consideremos em primeiro lugar os pais fundadores, aqueles que Whitehead considerava to importantes que toda a losoa escrita depois deles nada mais seria do que notas de rodap rero-me obviamente a Plato e a Aristteles.

    2. O lo platnico aristotlico

    No que respeita ao losofema que nos preocupa inegvel que Plato e Aristteles foram pioneiros, traando orientaes que ainda hoje deixam marcas. Plato habitualmente empurrado para os defensores da igualdade, Aristteles coloca-se entre aqueles que proclamam a diferena. Vejamos a legitimidade destas classicaes5.

    A posio platnica relativamente ao estatuto ontolgico e tico da mulher mergulha na ambivalncia, da haver toda uma srie de autoras feministas que o admiram, contrastanto com outras que fortemente o criticam. Citamos um texto que nos parece paradigmtico:

    Quanto minha arte de dar luz tem todas as propriedades das parteiras mas os meus doentes so homens e no mulheres e a minha preocupao com o nascimento das almas e no com o dos corpos. Por outro lado o que h de mais importante na minha arte ser capaz de efectuar sobre o pensamento de um jovem, de todas as maneiras possveis, a provao para que ele d luz e [ser capaz]de ver se um simulacro e uma iluso, ou ento se algo de vivel e de verdadeiro.

    Plato, Teeteto, 150 b 6.

    De facto, neste texto Plato vai buscar uma funo tradicionalmente feminina, a da parteira, mas despoja-a de tudo aquilo que tem a ver com as mulheres. A parteira Scrates, os doentes so homens, o que est em causa o nascimento de ideias e no de crianas, o corpo secundarizado em detrimento da alma. Da mulher apenas ca uma funo que transportada para outro contexto e encarnada noutros personagens perde todo o sentido, apenas valendo como metfora. Esta apropriao e simultaneamente rejeio de um protagonismo feminino ir estar presente em todas as passagens em que o autor fala da mulher. Que razes ento levam a que o lsofo grego seja aproximado das teses igualitrias? Analisemos outros textos.

    5 Para o contributo de Plato e de Aristteles relativamente condio feminina veja-se Maria Jos Vaz Pinto, O que os lsofos pensam sobre as mulheres Plato e Aristteles em Maria Lusa Ribeiro Ferreira (org.), O que os lsofos pensam sobre as mulheres, Lisboa, Centro de Filosoa da Universidade de Lisboa, 1998, pp. 7-16.

    6 Os excertos citados foram-no a partir de Platon, Oeuvres Compltes, trad. de Lon Robin, Paris, La Pliade, 1964.

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    Um caso signicativo o mito do andrgino, relatado no Banquete. Ao discursar sobre o Amor, Aristfanes relata as origens da humanidade explicando atravs de um mito o aparecimento e a natureza do homem. Fala-nos de trs gneros primitivos: o andrgino, o masculino e o feminino. Na realidade a natureza humana era mista nos seus primrdios. Zeus cortou esse ser uno em duas metades que nunca mais deixaram de se desejar mutuamente. um tema grato s primeiras correntes feministas onde a androginia se colocava como um valor. Tambm nesta orientao se via com bons olhos a defesa da igualdade presente em certos passos da Repblica:

    (...) no h na administrao da cidade, nenhuma ocupao, meu amigo, prpria da mulher enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais esto distribudas de modo semelhante em ambos os seres, e a mulher participa de todas as actividades, de acordo com a natureza, e o homem tambm, conquanto em todas elas a mulher seja mais dbil do que o homem.

    Plato, Repblica, livro V, 455 d e.

    Estes e outros textos nos quais se enfatiza a possibilidade de certas mulheres, desde que devidamente educadas, poderem aspirar a guardis da cidade, esto na base das interpretaes que vem em Plato um feminista avant la lettre. Pessoalmente contestamos esta interpretao. No s porque nos parece signicativa a reserva feita no nal do extracto acima citado conquanto em todas elas (actividades) a mulher seja mais dbil do que o homem como porque entendo que nessa educao ministrada s mulheres se faz tbua rasa de tudo aquilo que constitui o seu universo, desprezando-se a sua feminilidade em funo de um modelo masculino. De facto, nessa cidade ideal, no se atende especicidade do corpo feminino e das suas funes, todos so sujeitos a treinos violentos, a exerccios guerreiros, a competies desenfreadas; o casamento e a famlia so abolidos; a relao maternal anulada; os afectos so neutralizados; o cuidado para com os outros desprezado. Numa palavra, a mulher desvalorizada enquanto mulher e s consegue alcanar um estatuto dentro da cidade se imitar o homem.

    Se Plato enfatiza a igualdade, Aristteles o promotor da diferena, tomando como ponto de partida a oposio dualista masculino/feminino, concretizada noutros pares de opostos como o caso de forma/matria, racional/irracional. No uma dicotomia inocente e, no dizer de algumas interpretaes, nomeadamente das losoas ecofeministas, a identicao da mulher com o segundo elemento do binmio uma das manifestaes da viso categorial, dualista, prpria do pensamento ocidental, eminentemente masculino. No entanto, outras vozes, como Sylviane Agacinski, vem na perspectiva aristotlica virtualidades positivas para a condio feminina7. Em Aristteles h um territrio em que as mulheres tm poder o domnio do oikos, da casa e de tudo o que diz respeito ao seu governo. No importa que seja circunscrito pois tal condicionamento fruto de um contexto histrico e social susceptvel de alteraes. Diferentemente de Plato que se preocupa com a alma e que tece consideraes sobre a inferioridade da alma das mulheres, Aristteles fundamenta a diferena destas no corpo. A alma a forma do corpo. O corpo das mulheres mais fraco, consequentemente a alma tambm o . O critrio passa por justicaes biolgicas como so a do calor, do frio ou da espessura dos uidos:

    7 Sylviane Agacinski, Politique des Sexes, Paris, Seuil, 1998.

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    Aquele que por natureza possui uma poro mais pequena de calor mais fraco

    Aristteles, Gerao dos Animais, 726b 338.

    A palidez e a ausncia de vasos sanguneos [na mulher] sempre mais visvel, e bvio o desenvolvimento deciente do seu corpo comparado com o do homem

    ibidem, 727a 24-25

    Para Aristteles a mulher uma espcie de desvio relativamente a um tipo mais perfeito que se concretiza no homem. uma privao. O homem a medida da humanidade e ela uma falha, uma falta, um homem incompleto ou mesmo mutilado como explicitamente referido noutros textos:

    A fmea um macho mutiladoibidem, 737a 27-28

    No pensamento aristotlico a mulher passiva e incapaz de controlar as suas paixes. Identica-se com a matria e, mesmo na concepo, o seu papel secundrio pois se limita a receber a forma, dada pelo seu parceiro masculino:

    Mas a fmea, enquanto fmea, passiva, e o macho, enquanto macho, activo, e o princpio de movimento vem dele

    ibidem, 729b 12-14

    O que poder ento levar Sylviane Agacinski e outras lsofas feministas a preferir Aristteles a Plato no que respeita condio feminina?

    Note-se que embora no tenha acesso a uma cidadania plena, embora seja considerada inferior no que respeita capacidade intelectual, embora seja relegada para o terreno das emoes e afastada da razo, h nas teses aristotlicas sobre a natureza feminina, aspectos de valorizao da mesma visto que as mulheres reinam na famlia, na economia domstica, nos assuntos da casa. A sua especicidade dene-se na esfera do privado e este determinante para o equilbrio social. Aristteles apresenta a famlia como um fundamento da sociedade e defende a sua manuteno pois considera anti-natural suprimi-la. este reconhecimento do papel da mulher no interior da famlia, e, consequentemente como pilar da sociedade que justica a preferncia de algumas feministas pelo estagirita. Plato anula a mulher pois esta s tem possibilidade de sobreviver se se transformar num homem, perdendo todas as caractersticas da sua feminilidade. Aristteles secundariza-a, inferioriza-a a nvel fsico, intelectual, tico e poltico mas assume a sua especicidade e confere-lhe um papel. Este poder deixar de ser secundrio se mudarem os condicionantes sociais e polticos. O que sabemos ser provvel.

    8 As citaes de Aristteles so feitas a partir de The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan Barnes, Princeton, Princeton University Press, 1984.

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    3. Alguns iconoclastas

    O lo platnico (anulao da mulher) e aristotlico (inferiorizao da mesma) teve continuidade no pensamento europeu. A questo Sero as mulheres seres humanos? subjacente aos escritos dos lsofos gregos acima mencionados embora no se colocando nestes termos teve como resposta um modelo comum - a aferio das mulheres face a uma norma ou padro masculino. o masculino que dene o humano. Sendo as mulheres geralmente desviantes relativamente a esse modelo, compreende-se que tenham sido consideradas inferiores.

    uma situao que se mantm em muitos lsofos, mesmo naqueles que, mais prximos de ns, se armaram como iconoclastas no que respeita a preconceitos e a ideologias obsoletas. Exemplico com dois pensadores, classicados por Paul Ricoeur como lsofos da suspeita9 por terem aberto novos modos de encarar o homem, a cultura e a histria, muito contribuindo para as mundividncias hoje dominantes. So eles Nietzsche e Freud, dos quais apresentamos alguns textos:

    Ns, homens, desejaramos que a mulher no continuasse a comprometer-se com explicaes; pois foi por preocupao pelo homem e considerao pela mulher que a igreja decretou: mulier taceat in ecclesia! Tal como foi para bem da mulher que Napoleo deu a entender clebre Madame de Stal: mulier taceat in politicis! E penso que um verdadeiro amigo das mulheres aquele que hoje diz s mulheres: mulier taceat de muliere!

    Nietzsche, Para Alm do Bem e do Mal10. A estupidez na cozinha; a mulher como cozinheira; a ausncia manifesta

    de pensamento com que efectuada a alimentao da famlia e do dono da casa! A mulher no entende o que signica a comida, e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura com capacidade para pensar, teria encontrado, sendo cozinheira, j h milhares de anos, os maiores factos siolgicos e poderia ter-se apoderado da arte da medicina! Atravs de ms cozinheiras, atravs da completa falta de razo na cozinha, o desenvolvimento do homem foi, durante muito tempo, retardado e prejudicado da pior maneira: hoje, as coisas no esto muito melhor. Um discurso para alunas de colgio.

    Nietzsche, Ibidem11.

    Curiosamente, Nietzsche um lsofo bem visto no domnio dos Estudos de Gnero, sendo frequente aproximar-se o seu iconoclastismo de algumas lutas feministas contra os valores institudos. verdade que a desconstruo por ele empreendida de um determinado modelo de racionalidade, a crtica que fez ao dogmatismo e a pr-pria comparao da verdade a uma mulher poderiam justicar tal simpatia. No entanto estes textos (e outros que por falta de tempo no apresentamos) exemplicam bem

    9 Paul Ricoeur, Le conit des interprtations, Paris, Seuil, 1969.10 Nietzsche, Para Alm do Bem e do Mal in Obras Escolhidas de Nietzsche, trad. Carlos Morujo,

    Lisboa, Crculo de Leitores, 1996, vol. V, 232, p. 182.11 Nietzsche, ob. cit. 323, p. 183.

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    o pensamento de Nietzsche sobre o tema em causa. O facto de nos propor um novo homem de modo algum o levou a promover a causa das mulheres, que, pelo contrrio, explicitamente ridicularizou.

    Freud outro caso paradigmtico do modo como o lo platnico/aristotlico se manteve. Na sua obra Novas Conferncias sobre a Psicanlise, nomeadamente na quinta conferncia dedicada feminilidade, o pensador vienense descobre o modo como a lbido vivida diferentemente por homens e mulheres, analisando algumas caractersticas do modo de ser feminino. Assim, considera prprio da mulher um maior narcisismo, um desejo de ser amada, mais do que o de amar, uma vaidade com o corpo, uma diferente vivncia do pudor, um menor sentido de justia. Cito de um outro ensaio um texto que considero particularmente signicativo:

    No posso evitar a ideia (embora hesite em dar-lhe expresso) de que, para as mulheres, o nvel do que eticamente normal diferente do que para os homens. O superego delas nunca to inexorvel, to impessoal, to indepen-dente das suas origens emotivas como pensamos que ele deve ser nos homens. Traos de carcter que os crticos de todas as pocas assinalaram negativamente nas mulheres - o facto de mostrarem ter um menor sentido de justia do que os homens, de serem menos susceptveis de obedecer s grandes exigncias da vida, de serem muitas vezes inuenciadas nos seus juzos por sentimentos de afectividade ou de hostilidade - a todos eles se deveria atender na modicao e formao do seu superego a que acima nos referimos.

    S. Freud, Some Psychical Consequences of the Anatomical Distinction Be-tween the Sexes12.

    Segundo Freud as mulheres tm menos interesses sociais do que os homens, tm uma menor capacidade de sublimao e a sua evoluo termina mais cedo o homem tem capacidade de evoluir para alm dos trinta anos, coisa que no acontece com elas.

    Note-se que, tal como no caso de Nietzsche, seria injusto classicar Freud por estes texto (descontextualizado) ou por outros (muitos) que escreveu na mesma linha. Inegavelmente que h aspectos em que contribuiu para questionar um certo conceito de natureza humana, derrubando esteretipos, nomeadamente os relativos dualidade masculino/feminino. De facto ele defendeu a bissexualidade presente em cada um dos sexos, quer a nvel fsico quer a nvel psquico. Partindo de uma tese ainda muito arreigada no seu tempo, tese essa que sustenta, em termos de sexualidade, a actividade masculina, contrastando-a com a passividade feminina, Freud desmistica-a, mantendo no entanto que a actividade das mulheres se manifesta no aleitamento e no na relao sexual.

    Para ele, a diferena entre o super-ego masculino e o feminino tem a ver com o modo como cada um viveu e interiorizou a sexualidade prpria, prende-se com o modo diferente como vivido por meninos e meninas o complexo de castrao: o medo de ser castrado sentido pelos rapazes tem um reverso feminino na inveja de um pnis. Tambm o desenvolvimento sexual diferente e mais difcil no que toca s raparigas visto que no s mudam as zonas ergenas como se alteram os objectos de

    12 S. Freud, Some Psychical Consequences of the Anatomical Distinction Between the Sexes in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, London, Hogarth Press, 1961.

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    amor. No entanto Freud considera que uma mulher, com a sua vida sexual estabilizada no casamento e nos lhos, pode encontrar nestes sobretudo se forem rapazes uma compensao para o seu pnis perdido. No podemos deixar de ver presente na teoria freudiana da sexualidade feminina a transposio do modelo da falta ou da falha, j detectado em Aristteles. Na obra j referida Politique des Sexes, Agacinski insere ambas as teorias naquilo que designa como la logique du manque13, estabelecendo um paralelismo entre a mutilao aristotlica pela falta de calor e de uidos e a mutilao freudiana pela ausncia de um orgo. A esta lgica da falha ou falta ope uma outra centrada na diferena, designando-a como lgica do misto, ou da mixit. Esta atenderia a um modo feminino de ser e de estar, aceitando a sua especicidade e relevncia. O que nos leva a colocar a questo, para alguns obsoleta, da legitimidade de considerarmos uma natureza feminina.

    4. Haver uma natureza feminina?

    Em dois dos seus mais recentes livros, Francis Fukuyama relata-nos os ataques iconoclastas que nos ltimos dois sculos se abateram sobre o conceito de natureza humana por parte de cientistas e de lsofos, sendo sua inteno mostrar a pertinncia e actualidade desta noo a partir de uma outra entrada a da biotecnologia14. Numa perspectiva ainda mais restrita, a de uma natureza feminina, vericamos que entre as mltiplas orientaes nos estudos de gnero, a maioria contesta a validade da questo, criticando-a pelas conotaes xistas que encerra, nocivas para a causa da libertao das mulheres. Na verdade, a questo da natureza feminina divide as investigadoras (e investigadores) dos Women Studies, mais uma vez mostrando que no h um gru-po homogneo que possa designar-se por losoa feminista. De entre as mltiplas orientaes desta (libertria, radical, socialista, cultural, ps moderna, etc.) escolho uma, com a qual me sinto mais em sintonia e que me servir de guia para responder questo proposta a corrente habitualmente designada como feminismo cultural, uma linha de pensamento que de um modo explcito ou implcito aceita a natureza feminina. Embora nem sempre a designao em causa seja usada, uma orientao que defende a diferena e que assenta as suas teses na especicidade de um modo feminino de ser e de estar. Trata-se portanto de uma tese essencialista, que sublinha o que caracterstico procurando demonstrar que elas tero tanto mais poder quan-to mais se realarem as caractrersticas do universo feminino. a orientao em que a losoa est mais presente, enquanto que noutras o enfoque privilegiadamente dado histria, psicologia e sociologia. No mbito do feminismo cultural tm sido tratados, numa perspectiva losca, temas como a maternidade, a relao da mulher com a Natureza e com a terra, as ticas do cuidado, a discusso da especicidade de uma razo feminina, etc. etc.

    Admitimos que seja uma tese perigosa pelas ambiguidades que encerra. A defesa de uma natureza feminina tem sido feita quer por feministas quer por anti-feministas. Neste ltimo caso, sob a bandeira de uma natureza feminina podero

    13 Sylviane Agacinski, ob. cit. pp. 45 e segs.14 Francis Fukuyama, A Grande Ruptura. A natureza humana e a reconstituio da ordem social,

    Lisboa, Quetzal, 2000 e O Nosso Futuro Ps-Humano. Consequncias da Revoluo Biotecnolgica, Lisboa, Quetzal, 2002.

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    acolher-se aquelas vozes que circunscrevem as mulheres a um determinado universo, atribuindo-lhe certos papeis e negando-lhes outros. Percebemos que possvel, sob o pretexto de delidade a uma natureza prpria, reforar argumentos que atestam o lugar subordinado da mulher na sociedade. H pois que ter cuidado em no pactuar com a ameaa conservadora, constante nas teses essencialistas, deturpando-as pela sua identicao com o determinismo e o xismo e sobretudo manipulando-as de um modo inaceitvel. Oiamos agora as defensoras do feminismo cultural, tambm por vezes designado como radical pois no se limita a combater pela condio feminina mas prope uma alterao geral de toda a sociedade, aproximando-a daquilo que consideram um modo mais feminino (e como tal mais humano) de viver.

    Entre as posies mais extremistas, encontram-se as de Mary Daly, Adrienne Rich, Susan Grifn e muitas defensoras do ecofeminismo. Embora cada uma destas lsofas assuma posies individualizadas e como tal diferentes, h uma linha comum que em todas perpassa a dimenso celebrativa, potica, maternal. Todas sustentam que a mulher deve viver a sua feminilidade no que ela tem de natural ou mesmo de inato. H um combate comum s instituies, moda, s tcnicas de seduo, linguagem estabelecida, prpria medicina no que ela impe mulher. Na sua vertente francesa, defendem esta linha de pensamento alguns nomes maiores do movimento designado como criture fminine: Julia Kristeva, Luce Irigaray, Hlne Cixous, Monique Wittig, com todas as particularidade que as distinguem, unem-se na importncia que atribuem psicanlise lacaniana, sustentando a especicidade de um inconsciente feminino. A mulher parte do seu corpo, pensa com o seu corpo e como tal pensa e escreve diferentemente do homem.

    No me debruarei sobre esta trama de diferentes posicionamentos, todos eles pugnando por uma natureza feminina, embora a maior parte das vezes substituam estes termos por outros, menos deterministicamente conotados como condio ou identidade. Parece-me no entanto mais correcto enunciar a questo de um modo diferente: em vez de perguntar carrment se h uma natureza feminina, interrogarmo-nos sobre a possibilidade de a natureza humana tomar formas sexualmente diferen-ciadas. Foi o que zeram as defensoras de uma tica do cuidado, entendida como um modo feminino de viver, pensar e agir.

    6. A tica do cuidado

    Mulher o dia em mil tarefasalm da tarefa de ser ()Maria Cabral15

    Na sua obra Saber cuidar. tica do humano - Compaixo pela Terra 16, Leonardo Boff defende que a falta de cuidado um estigma do nosso tempo. No podemos viver sem cuidar. H em ns um apelo relativamente ao outro, com quem nos preocupamos e sobre quem fazemos incidir a nossa benevolncia. explorando esta tendncia,

    15 Maria Cabral Mulher (poema no publicado).16 Leonardo Boff, Saber Cuidar. tica do humano compaixo pela terra, Petrpolis, Vozes,

    1999.

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    ou antes, pervertendo-a, que recentemente se ressuscitou a moda do tamagoshi, o bicho de estimao virtual. A necessidade quase instintiva de cuidar de algum explorada pelas tcnicas de marketing aplicadas ao universo das crianas, propondo-lhes esse boneco que sofre, se alimenta, dorme, solicitando constantemente a ateno e cuidados dos donos. O seu sucesso a prova de que essa inclinao se manifesta em todos os nveis etrios. Embora aqui se trate de um desvio motivado pelo desejo de vender um objecto, o facto que ele assenta numa das constantes que denem a natureza humana a relao com o outro.

    Cuidar implica dar ateno a algum ou a algo, exige uma vivncia face a face, sujeito a sujeito:

    Cuidar mais do que um acto uma atitude. Portanto, abrange mais do que um momento de ateno, de zelo e desvelo. Representa uma atitude de ocupao, de preocupao, de responsabilidade e de envolvimento afectivo com o outro.

    Leonardo Boff, Saber Cuidar17

    O cuidado no uma relao de domnio mas de inter-aco, de companhia e de afecto. Apela para a convivialidade, para a ternura e a compaixo. Exige uma solidariedade e responsabilidade que se concretiza no s entre humanos mas que se estende a todos os seres, vivos e no vivos. Na sua obra Saber cuidar. tica do humano - Compaixo pela Terra, Leonardo Boff alarga o cuidado a toda a terra, considerando esta como ptria ou mtria comum da humanidade. Dai a proposta de uma reviso dos nossos actos de consumo e a defesa de uma tica do cuidado tomada de um modo universal.

    As mulheres tm um papel preponderante no cuidado com os outros. No quer dizer que esta atitude lhes seja exclusiva. Mas a vida familiar tal como ainda est organizada, faz delas responsveis mais prximas pelos lhos, pelos doentes da famlia, pelos idosos, pela casa, pelos animais domsticos, etc. etc. Tal facto ressente-se nos padres de conduta. Em sociedades como a nossa, onde a maior parte das mulheres trabalha fora de casa e os papeis familiares so mais uidos, a mulher continua no entanto a ser responsabilizada pela sade e bem estar do seu agregado. Quantos homens faltam ao emprego para acudir a um lho doente? Quantos sistematicamente se preocupam se h leite ou manteiga no frigorco, ou se os trabalhos da escola foram feitos, ou se h roupa lavada para vestir? Todas essas tarefas comezinhas que a sociedade exige das mulheres e que elas inconscientemente interiorizam to diferente o super-ego masculino e o feminino foram avaliadas positivamente por certas investigadoras que, inserindas no chamado feminismo cultural, enfatizaram a diferena, defendendo uma identidade feminina construda a partir da especicidade das tarefas, obrigaes, gestos e gostos das mulheres. De entre elas escolhi uma que me pareceu particularmente relevante para ajudar a responder questo da natureza feminina - Carol Gilligan.

    Gilligan uma psicloga americana que com os seus trabalhos contribuiu para salientar uma voz diferente nas mulheres, nomeadamente no que respeita

    17 Boff, ob. cit. p. 33.18 Carol Gilligan, In a Different Voice, Cambridge, Massachusets and London, Harvard University

    Press, 1993.

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    tica18. As suas investigaes tiveram como ponto de partida uma divergncia quanto aos resultados obtidos por Kohlberg na aplicao a um pblico feminino da escala de desenvolvimento moral por ele elaborada. semelhana de Piaget, Lawrence Kohlberg estudou a gnese da maturidade tica, traando-lhe vrios estdios ou etapas. O estudo foi feito atravs de dilemas para cuja soluo no interessava a opo escolhida mas sim as razes aduzidas para justicar a escolha. Na escala construda por Kohlberg em funo das respostas dadas, as mulheres cavam mal classicadas (havia seis estdios e elas situavam-se geralmente no terceiro, que tinha a ver com o desejo de aprovao). Raramente uma mulher alcanava o ltimo estdio, o dos princpios universais. Tal facto no preocupou Kohlberg nem Erikson, outro psiclogo que se debruou sobre o mesmo tema. Mas inquietou Gilligan que no se conformou com as concluses deste estudo, ou seja, a menoridade tica das mulheres. Ao investigar a auto-representao tica, considerando-a um dado importante para a caracterizao da identidade feminina, Gilligan ps em causa os instrumentos utilizados por Kohlberg e Erikson, suspeitando que eles eram pouco signicativos para as mulheres e apresentando outros que entendeu serem mais adequados. De facto, embora Kohlberg parta de casos o dilema de Heinz o mais divulgado estes apresentam-se de um modo fechado, com uma situao explicitamente denida e sem possibilidade de alternativas. A pergunta do tipo deve ou no deve e a resposta que se pretende ter que se circunscrever a uma situao delimitada. Acontece que, quando confrontadas com as situaes dilemticas, a maior parte das mulheres recusam-se a responder de um modo directo e imediato. Assim, levantam elas prprias questes, propem alternativas no contempladas, apelam para factores emotivos e pragmticos que no tinham sido pensados. Numa palavra, subvertem o dilema e so consequentemente punidas dado que as hipteses que colocam no cabem dentro da grelha de classicao. Da tornarem-se desviantes e serem relegadas para os nveis mais baixos da escala de Kohlberg.

    Mantendo o interesse pela gnese dos conceitos morais mas orientando--os para um pblico exclusivamente feminino, Gilligan deixa cair os dilemas construdos por Kohlberg e utiliza outras situaes, para ela mais consentneas com os interesses de um universo feminino. Deste modo, estuda um conjunto de mulheres grvidas que concretamente viviam o dilema do aborto. Da anlise das mltiplas entrevistas conclui pela existncia de uma voz diferente, de uma moralidade tipicamente feminina, menos atenta ao direito mas sim ao cuidado, relao com os outros, responsabilidade. uma voz que contrasta com a linha predominante na tica ocidental que progressiva-mente se encaminha para a abstraco, para o pensamento formal, para a autonomia. Neste modelo a posio das mulheres vista como desviante e, por no se encaixar nos cnones estabelecidos penalizada. As respostas colhidas por Gilligan nas ml-tiplas entrevistas que realizou, revelam, por parte das entrevistadas, uma grande preocupao com os outros, um desejo de agradar e de ajudar, uma ateno s relaes pessoais. De igual modo constatou uma certa relutncia quanto a juzos ntidos sobre o que bem e o que mal bem como uma recusa em tomar decises drsticas sobre a moralidade de certos comportamentos e situaes. Da Gilligan avanar com a tese de uma identidade feminina que necessrio reconhecer na sua diferena. No campo da moral ela pressupe uma ontologia relacional, reforando as ligaes inter-pessoais e apresentando o valor do cuidado como complementar ao da justia.

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    Seria absurdo opormos uma tica do cuidado a uma tica da justia. impossvel uma tica sem autonomia o valor que a justia enfatiza. Mas a autonomia s se constri na relao e na concretude, sendo perpassada por uma dimenso social.

    A tica da justia foi a que norteou os trabalhos de Kohlberg. Baseando-se nas teses de Kant e de Rawls, atende essencialmente aos direitos; contratualista e legalista. Sobrevalorizando o dever, d um particular relevo imparcialidade, objectividade, ao distanciamento, tendo como ideal maior a autonomia. O modelo que tal moral elege o do contrato, o da transaco. Os direitos que mais pesam so os do indivduo. A linguagem moral que utiliza prescritiva - os juzos morais exprimem-se de um modo universal. Os princpios que regem as nossas aces devero poder estender-se a toda a humanidade. O problema essencial o de uma justia igualitria, niveladora. A aco moral mede-se em funo do dever e no das suas consequncias.

    A tica do cuidado valoriza a relao mais do que a autonomia, a compaixo mais do que a justia, o caso mais do que a lei, a responsabilidade mais do que o dever. Ao defend-la e ao aproxim-la de um modo feminino de ser, Gilligan reala outras valncias ticas como o amor, a ateno ao outro, a inter-relao, a responsabilidade, a compaixo. O paradigma em que assenta o das relaes de conana e no o das relaes de contrato. Mais do que a independncia valoriza a inter-dependncia, defendendo que a moral deve chamar a si aspectos afectivos, preferenciais e electivos. No uma moral de imperativos categricos mas de imperativos hipotticos. uma tica da autenticidade, da tolerncia, da alteridade, do respeito pelo outro naquilo que ele tem de absolutamente diferente. O modelo que valoriza no d primazia ao indivduo mas sim rede ou teia de inter-actuaes.

    verdade que no podemos generalizar e dizer que feminina toda a tica da autenticidade, do amor e do cuidado. No entanto vericamos que a ateno ao caso concreto, s consequncias de uma aco particular, avaliao de uma situao levando em conta todas as suas nuances algo que tem muito peso nos juzos morais emitidos pelas mulheres. Ao estud-los e ao procurar compreend-los Gilligan deu um contributo notvel para o problema da identidade feminina.

    7. O pensamento maternal

    Sara Ruddick outra achega importante para o tema que nos ocupa. Gilligan apresentara a relao me/lho como paradigma de uma tica do cuidado, pelo facto de ser absolutamente desinteressada e se concretizar sem leis ou regras pr-xadas. Ruddick vai fazer do pensamento maternal um tema determinante para acentuar a diferena, encarando positivamente a questo de uma identidade prpria das mulheres. Em Maternal Thinking19 debrua-se sobre este tipo de pensamento, considerando-o no s prprio das mes mas de todas as pessoas (incluindo homens) que cuidam de crianas, de velhos, de doentes ou de outros indivduos que por uma qualquer razo esto sob a sua dependncia. A autora professora de losoa mas paralelamente ao ensino e investigao v-se (viu-se) envolvida em outros registos diferentes, nos quais tinha simultaneamente de pensar e de agir. Um deles concernente s tarefas que executa enquanto me. Vericando que no pensa nem age do mesmo

    19 Sara Ruddick, Maternal Thinking, Boston Beacon Press, 1989.

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    modo nesses diferentes registos, interroga-se quanto legitimidade de considerar um pensamento que se desenvolve com o cuidar dos lhos. pergunta de haver ou no um pensamento que se manifesta e consolida nas relaes de cuidado, responde de um modo armativo. E designa esse pensamento de pensamento maternal. Preocupa-a no s a perspectiva tica, como acontecia em Gilligan, mas tambm os aspectos ontolgicos e epistemolgicos.

    Para Ruddick, o pensamento maternal estrutura-se com base em elementos cognitivos, afectivos e activos. H nele uma profunda ambivalncia pois sujeito a inmeras tenses e sentimentos contraditrios: quem tem prtica de tomar conta de crianas sabe como rapidamente se sucedem estados do encantamento e de exasperao, de amor e de dio, e assim por diante. um pensamento que durante curtos espaos de tempo sujeito a utuaes, que implica uma concretizao rpida e um agir imediato.

    Segundo esta autora, o exerccio do pensamento maternal leva ocorrncia de determinadas atitudes metafsicas, ao desenvolvimento de capacidades cognitivas variadas e a diferentes concepes de virtude. No primeiro caso (atitudes metafsicas) temos a vigilncia, a ateno que a relao com uma criana permanentemente exige. Acompanhando esta atitude vem a humildade pois h que ter conscincia dos factores imponderveis que constantemente ocorrem e se atravessam numa relao de proteco, ameaando-a. A alegria, que a autora vai buscar a Espinosa, elevando-a a virtude, convive com a angstia e com a incontornvel abertura mudana perante o crescimento dos lhos as mes treinam a sua capacidade de mudar.

    Proteger, criar e educar - por muito abstracto que seja este esquema, a histria simples. Uma criana debrua-se de uma janela alta para atirar um balo cheio de gua sobre um transeunte. Tem que ser afastada da janela e ensinada a no pr em risco pessoas inocentes (educao) e o mtodo usado no pode pr em risco o seu auto-respeito ou conana (criao). Num qualquer quotidiano de vivncia maternal as exigncias de preservao, crescimento e aceitabilidade esto inter-ligadas. E no entanto, uma me atenta pode identicar separadamente cada exigncia, em parte porque elas entram muitas vezes em conito. (...) Se o lho mais velho, num zelo competitivo, empurra o irmo menor quando ambos sobem para o escorrega, ser de inibir este prazer competitivo ou vai permitir uma agressividade que voc prpria no aprecia? Ser que o mais pequeno deve aprender a lutar para se defender? E se ele no o faz ser que se est a curvar demasiado facilmente ao poder do mais forte? (...) O amor pode tornar dolorosas estas perguntas; no lhes d resposta. As mes tm de pensar.

    Sara Ruddick, Maternal Thinking20.

    No que respeita aos aspectos cognitivos, Ruddick acentua a especicidade do pensamento maternal enquanto concreto, complexo, holstico, perpassado de afectos.

    No que respeita tica a obra em causa desenvolve a tese de que as mes, pela funo que exercem, desenvolvem qualidades de negociao que podero ser usadas na causa da paz. O cuidado que comeou por se circunscrever ao domnio privado, pode e deve expandir-se para o domnio pblico, contribuindo para a cons-

    20 Ruddick, ob. cit., p. 23.

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    truo de um mundo pacco. Por fora das circunstncias as mes costumam ser boas negociadoras. O pensamento maternal absolutamente contrrio ao belicismo e militarismo pois estes pem em causa o cuidado desenvolvido durante anos, despresando-o e anulando-o. A sua fora pacicadora tem-se revelado em alguns casos que a lsofa relata como por exemplo as redes de solidariedade feminina e a actuao de madres e abuelas chilenas na procura dos desaparecidos no regime Pinochet.

    7. Em jeito de concluso

    As teses de Gilligan e Ruddick situam-se predominantemente no campo da tica e da gnosiologia, realando a especicidade de uma tica do cuidado e de um pensamento maternal, identicando-os com um modo feminino de agir. A teorizao que apresentam ajuda-nos a dar mais consistncia a algo que comeou por ser intudo mas que progressivamente se tem armado na investigao losca sobre as mulheres a existncia de uma identidade feminina. Se, como focmos no incio, a alteridade das mulheres pouco preocupou os lsofos que quer a ignoraram quer a tentaram anular, diluindo-a num modelo nico de ser humano, hoje a diferena assumida e valorizada. A mulher v-se como o Outro, com plena conscincia das aportaes positivas decorrentes desse olhar. A identidade feminina. no deriva s do gnero, ou seja, das representaes e expectativas que as diferentes sociedades e culturas atribuem aos diferentes sexos. Radica em algo mais fundo, profundamente dinmico, sujeito a mutaes mas nem por isso anulvel ou desprezvel. Esse algo passa pelo corpo, que na sua diferena traa caminhos e prope tarefas. No o entendemos de um modo determinstico como aquilo que nos aprisiona ou cerceia mas como ponto de partida permevel a mltiplas interseces. Os factores biolgicos no podem isolar-se de outras instncias com as quais dialogam e a partir das quais se desenvolvem. Mas a vivncia pessoal do corpo que temos e as implicaes das suas funes no nosso modo de estar, constituem um dado que no pode subestimar-se.

    As correntes ps-modernas alertam-nos para o perigo dos essencialismos e das perspectivas fundacionalistas. Para elas, falar de uma natureza feminina pactuar com teorias que aprisionam a mulher, relegando-a para o domnio do privado e consolidando o estatuto de inferioridade que foi o seu ao longo de sculos. A posio que defendemos e que procurmos claricar ao longo desta comunicao, postula a diferena e, como tal, legitima os conceitos que a evidenciam e exprimem. Pensamos que h uma tendncia geral para considerar humanas, no seu sentido mais nobre, determinadas caractersticas prximas de um modo masculino de pensar e viver, como o caso da competitividade, agressividade, desejo de armao e todas aquelas que se ligam s qualidades do mando. Para triunfar num universo masculinizado as mulheres foram obrigadas a abdicar de muito daquilo que lhes interessa e importa, secundarizando os seus valores e substituindo-os por valncias padronizadas, geralmente pautados por modelos masculinos.

    Se o termo natureza feminina pode ser perigoso pelas razes aduzidas, substituamo-lo por outros como identidade ou condio. Mas assumindo a sua especicidade, que a sociedade ter que respeitar e promover, atenta aos benefcios que dela colhe. A igualdade s ser plenamente realizada na diferena. O que implica uma profunda mutao do modus vivendi. Este em muito beneciaria se acolhesse

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    e relevasse os valores femininos pois neles que se encontra um potencial dinmico que nos permite reconstruir o mundo mais humano que todas e todos desejamos.

    Maria Lusa Ribeiro FerreiraUniversidade de Lisboa

    Resumo da comunicao:Na tradio losca ocidental o tema da mulher e do feminino pouco trabalhado.

    Salvo raras excepes, os lsofos quer o consideraram de um modo pejorativo, entendendo a mulher como o outro, como algo desviante de um modelo aceite, quer simplesmente o ignoraram, no o considerando um losofema relevante. Aparentemente trata-se de uma questo local, espordica e com pouco interesse. A presente comunicao pretende sublinhar que o reconhecimento da mulher como outro hoje de pleno direito um tema losco, impondo--se pelas consequncias positivas que traz para uma nova forma de habitar o mundo.

    A comunicao organiza-se em sete tpicos: 1 O losofema mulher/feminino no qual se pretende demonstrar que embora pouco trabalhado um tema relevante na tradio losca ocidental. 2 O lo platnico-aristotlico onde se mostra que os pais fundadores tiveram a sua palavra a dizer sobre a condio feminina, discutindo o pseudo-feminismo de Plato e levantando a hiptese de Aristteles ter favorecido mais a causa das mulheres. 3. Alguns iconoclastas um tpico que se debrua sobre Nietzsche e Freud, defendendo que embora crticos da mundividncia coeva no o foram da situao da mulher, antes pelo contrrio demonstraram o maior conservadorismo no que respeita sua natureza.. A questo da existncia de uma natureza feminina ser abordada no ponto 4 Haver uma natureza feminina?, com a apresentao das teses do feminismo cultural. Sendo armativa a resposta dada interrogao do ponto 4, apresenta-se no ponto 5 A tica do cuidado enquanto paradigmtica de um modo feminino de ser e de agir, concretizada nas teses de Carol Gilligan. Em 6 O pensamento maternal, fala-se de Sara Ruddick e do modo como ela entende este tipo de pensamento, decorrente da relao que se estabelece entre me e lho. Em 7 Em jeito de concluso reitera-se o conceito de identidade feminina e a concepo da mulher entendida como o outro, algum que assume de um modo positivo a sua alteridade, consciente das implicaes bencas desta diferena no que respeita construo de um mundo mais humano.

    Abstract: The issues woman and feminine have been scarcely worked in accademical philosophy.

    But women have occupied a relevant place in the thought of philosophers. Many of them wrote about these subjects and it is interesting to verify that their texts are not always in accordance with their systems. I would like to show that this is a relevant topic in western tradition and that philosophers who fought for freedom and human rights were not always sensible to the cause of women. I will discuss the dichotomy gender and sex and argue for a positive answer to the question Is there a feminine nature?, presenting some theses that show there is a feminine way of living and thinking. As a paradigm of a feminine specicity in ethics and epistemology I will present the theses of Carol Gilligan and Sara Ruddick.