MULHER: SONHO, RAZÃO E PODER Flávia Regina Ramos ...HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 3....

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MULHER: SONHO, RAZÃO E PODER Flávia Regina Ramos Gonzaga * Cláudia Maria de Maos Penna * Maa Machado Verdi * RESUMO - O texto apresenta uma síntese do filme "Mulher: Son ho, Razão e Poder", no qual as autoras discutem as relações de pode r presen- tes no cotidiano de uma enfermeira. O eixo principal se estabele ce em torno da condição da mulher e da enfermagem profis sional na sociedade brasilei- ra . A reflexão, enriquecida com recortes de vários _tudiosos contemporâ- neos do tema "poder ", percorre três momentos: - o confr ont o consigo mesma, - o de sperta r para a realidade, e - a tomada de consciên cia do po- der. O objetivo do trabalho foi es tabelecer a trajetória do processo de ama- durecimento pessoal e profissional que culmina numa nova visão de si e da profissão e recupe ra a consciência da diversidade e do potencial de opo- sição às forças que cond icionam a realidade impondo-lhe novo rumo. ABSTR ACT - A synthesis of the film "Woman: dream, reason and powe r" where the au thors discus s the relation ship of power p resented in a nu rse's everyday life. Th e plot is around a woman and prof essional nursing in Brazilian society. The reflexion, enri ched by many contempora ry researches on power theme idea goes th rough three moments:- herself conf rontation, - awakening to reality and - power awa reness. The objective task has b e en to establish the persona l and professional growth looking for he rself and fo r a profession new view. 1 INTRODUÇÃ O N 6 s, como eeeas, temos purado nos últimos os flet a nossa prática no sen- do de retom nossa his ria, question nos- sos valos, ampli nosso saber num contuo dimensionento e abertura de novas pers- פcvas que spond ao contexto sio-polC - co em que nos insemos. No entto, percebemos que, ao voltmos nosso olh pa "o pfissional", muitas vezes nos spimos "do picul", daquilo que nos difencia, do que nos impe u m�eira pr6pa de ser, peer e ag no mundo. ste modo consideos que uma profissão como a feagem, eminenmente fenina, az em si os que geram פcidades na foa de - socialmente como abalho, de icu- l-se com ouos processos de balho, de es- tlecer laçs inteas enquto categoa fissiol, em no modo pr6po. de imb- c-se na nca si. m isto não desejas apsent a são ducionis à complexa de de asptos que devem ser considedos ao analiss c- ticn pfissão. Aפnas, escolhemos como foco desta reflexão lações de ' poder que פrmeiam o codiano da enferira, en- quanto mulher que vive numa sociedade pa- iarcal e enquanto profissional que está subme- tida a um modelo hegemônico de organização do tbalho em saúde que tende a reproduzir a ordem social estabelecida. A pair dessa idéia, solves bu uma foa de provocar a flexã o e o deba do as- sunto que não se toasse apenas uma teori- zação do tema, mas que relacionasse o feren- cial te6rico com a vivência diia פssoal e pro- fissional. Além disso, mos como objetivo fa- vocer um contato mais estimulan e dinico com os estudiosos do assunto, que normnte não são essíveis à nossa categoria e, ao mes- mo tempo, melá-los com foas de expssão ms unives como a esia e a música, mas . que fletem análise is cca i- dade e o atual monto hist6co-sial. Considerdo os objevos p postos, esco- emos co esatégia de discussão do ma a apsentação de um vídeo que acditamos, sin- ze conjunto de id é ias que r Enfeeis Mesand em Assisncia de Enfeagem, Universidade Federal de S Ca R. Br. Enfe., Brflia, 45 (53): 1 52- 154, aset. 1992 152

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MU LHER : SO N HO, RAZÃO E PODER

Flávia Regina Ramos Gonzaga * Cláudia Maria de Mattos Penna * Marta Machado Verdi *

RES U MO - O texto a p resenta u ma s íntese do f i l me "Mulher : Sonho, Razão e Poder", no q u a l a s autoras d i scutem a s re l a ções d e pode r p resen­tes n o cot i d i a n o d e u ma e nfe rmei ra . O eixo p r i n c i p a l se esta be l ece em to rno d a co n d i çã o da mu l he r e d a enferma g e m p rof iss i o n a l n a soci e d a d e b ra s i l e i ­ra . A ref l exão, en r i q u ec i d a c o m reco rtes de v á r i o s _ .:ltu d i osos contemporâ­neos d o tema "poder", pe rco rre t rês mome ntos: - o confronto con s igo mesma , - o despe rta r pa ra a rea l i d a d e , e - a tomada d e co nsc iênc ia do po­d e r . O o bj et ivo do t raba l ho fo i esta b e l ecer a t ra jetó r i a do p rocesso de a ma­d u rec i me nto pessoa l e p rof i ss i o n a l que cu l mi na n u ma nova v i são de s i e da p rofi ssão e r ecu pera a co nsci ênc i a d a d i ve rs i d a d e e do potenc i a l de o po­s ição às fo rças q u e cond i c i o na m a rea l i d a d e i mpondo- l he novo r u mo .

A BSTRACT - A synth es is of t h e f i l m "Woma n : d ream, reason a n d powe r" where the a u t h o r s d i scuss the r e l a t i o n s h i p of powe r p resented in a n u rse' s everyday l i fe . T h e p l ot i s a ro u n d a woma n a n d p rofessi o n a l n u rs i n g i n

B ra z i l i a n soci ety . T h e ref l e x i o n , e n r iched by many co ntempo ra ry resea rches o n powe r th eme i dea g oes th rou g h th ree mome nts : - h e rs e l f confro ntati o n , -

awa ke n i n g to rea l ity a n d - powe r awa re ness . T h e obj ective task h a s been to

esta b l i s h the perso n a l a nd p rofess i o n a l g rowth look i ng fo r herse l f a n d fo r a p rofess i o n new v i ew.

1 INTROD UÇÃO

N6s, como enfermeiras, temos procurado nos últimos anos refletir a nossa prática no sen­tido de retomar nossa história, questionar nos­sos valores, ampliar nosso saber num contínuo redimensionamento e abertura de novas pers­pectivas que respondam ao contexto s6cio-polC­tico em que nos inserimos.

No entanto, percebemos que, ao voltarmos nosso olhar para "o profissional", muitas vezes nos despimos "do particular" , daquilo que nos diferencia, do que nos imprime uma m�eira pr6pria de ser, perceber e agir no mundo. Deste modo consideramos que uma profissão como a enfermagem, eminentemente feminina, traz em si traços que geram peculiaridades na forma de inserir-se socialmente como trabalho, de articu­lar-se com outros processos de trabalho, de es­tabelecer relações internas enquanto categoria profissiorial, enfim no modo pr6prio. de imbri­car-se na dinâmica social.

Com isto não desejamos apresentar uma visão reducionista à complexa rede de aspectos que devem ser considerados ao analisarmos cri­ticamente uma profissão. Apenas, escolhemos

como foco desta reflexão as relações de' poder que permeiam o cotidiano da enfermeira, en­quanto mulher que vive numa sociedade pa­triarcal e enquanto profissional que está subme­tida a um modelo hegemônico de organização do trabalho em saúde que tende a reproduzir a ordem social estabelecida.

A partir dessa idéia, resolvemos buscar uma forma de provocar a reflexão e o debate do as­sunto que não se tornasse apenas uma teori­zação do tema, mas que relacionasse o referen­cial te6rico com a vivência diária pessoal e pro­fissional. Além disso, temos como objetivo fa­vorecer um contato mais estimulante e dinâmico com os estudiosos do assunto, que normalmente não são acessíveis à nossa categoria e, ao mes­mo tempo, mesclá-los com formas de expressão mais universais como a poesia e a música, mas . que refletem uma análise mais crítica da reali­dade e o atual momento hist6rico-social.

Considerando os objetivos propostos, esco­lhemos como estratégia de discussão do tema a apresentação de um vídeo que acreditamos, sin­tetize um conjunto de idéias que pode ser um

• Enfermeiras Mestrandas em Assist!ncia de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina

R. Bras. Enferm., Brasflia, 45 (213): 1 52- 154, abrillset. 1992 152

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referencial para o debate.

2 MULHER, SONHO RAZÃO E PODER Todo o desenvolvimento do tema ocorre a

partir de um personagem fictício que pensa em sua interioridade, na sua profissão, na sua con­dição feminina e no mundo onde vive. Trata-se de uma enfermeira que está questionando sua trajetória de vida e as perspectivas de transfor­mações individual e coletiva.

No primeiro momento, ela se encontra em uma perspectiva mais pessoal onde relembra seus projetos, seus sonhos e realizações e se depara com uma poesia citada por FREIRE2:

"Só conheço dois caminhos, os mesmos que aprendi quando menina. Num, o coração se abre verdadeiro desmanchado em mágoas, lágrimas e tristezas de amor. Noutro, sobreviver é imperativo e a raiva alimenta a vida. A primeira alternativa me descobre vulnerável e nua, me mata. A segunda me consome a doçura e o prazer morro. E como, até hoje, me deparo. na mesma, encruzilhada, escolho a vida".

(MARGARIDA apud FREIRE2).

Desta forma, ela questiona as opções que fez frente a vida e como se percebe subjugada em seu cotidiano, onde suas vontades estão frá­geis diante de outras vontades que lhe são im­postas. Pensa o que representa como indíviduo e a postura que deve assumir frente ao futuro. Confronta-se consigo própria através de GUAITARI e ROLNIK8:

"Quem é você? Você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê? O que você vale na escala de valores re­conhecidos enquanto tais na sociedade? A que corresponde sua fala? Que eti­queta poderia classificar você? E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. • . Só que isso é freqüên­temente impossível de fazermos sozi­nhos, pois uma posição implica sempre numa organização coletiva. É como se nosso direito de existência desabas­se. E aí se pensa que a melhor coisa que se tem a fazer é calar e interiorizar valores" •

Assim" passamos para um segunuu 1l1UIlJCU­to, onde o pensamento da personagem se deslo­ca do foco pessoal para o coletivo e ela relem­bra seu período de formação profissional e o contexto s6cio-político que envolve a profissão. Ela analisa as possibilidades de enfrentamento e singularização* que viabilizem formas de se opor a reprodução dos modelos que sustentam a estrutura vigente. Para isso, considera necessá­rio mais do que uma força pessoal, um projeto político de transformação que envolva uma mo­bilização da categoria, mas que se amplie para a dinâmica dos movimentos sociais.

Neste momento, ocorre seu encontro com FOUCAULT4 e GUATTARJ5 que analisam:

"Onde não há poder, há resistência, e, no entanto, esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder ... Os pontos de resistência estão presentes em toda rede de poder ( • . . ) os focos de resistência disseminam-se (. . .) provocando o levante de grupos e indivíduos de maneira defmita, infla­mando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de com­portamento • . . E é certamente a codifi­cação estratégica desses pontos de re­sistência que torna possível uma revo­lução" •

(FQUCAULT4). "A luta de classes não passa mais sim­plesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmen­te detectável nas cidades, nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosas estigmas na pele e na vida dos explorados, pelas marcas de autori­dade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la a partir do vocabulá­rio de uns e de outros, seu jeito de fa­lar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim! ( • . • ) De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é ne­gado em todo o lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? . . • Pois na ausência de desejo a energia se au­toconsome sob a forma de sintoma, de inibição de angústia. E pelo tempo que já estão nessa, já podiam ter se dado conta destas coisas por si mesmo". (GUAITARI8). Passamos, então, para o 32 momento em

que ela toma consciência do poder que pode emergir dessa prática de organização coletiva. Ao perceber esse caminho, ela não despreza·as

* Singularizaçlo - tcl'lDÓ usado por GUA rr ARI, para diferenciar de individualidade quando afirma que todo "proceuo de lraDlformaçlo passa pela singularidade" e que esta se faz "emprestando, associando, aglomerando dimensões de diferentes esp6cics". GUA rr ARI e ROLNIK8 ,(Micropolítica: cartografia do desejo, 1 986, p.37)

1 53 R. Bras. Enferm., Brunia, 45 (213): 152- 1 54, abril/set. 1992.

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possíveis microtransformações que possam ocorrer. Com esta constatação ela se reporta a uma situação de sua experiência profissional quando estabelece um diálogo que contrapõe a visão revolucionária à uma visão inc6gnita opo­sicionista*. Com esse diálogo ela manifesta o seu reconhecimento e compreensão das relaçôes de poder da realidade e declara seu potencial de contrapô-Io. Porque mesmo que não nos deixem correr, ainda andaremos; mesmo que não nos deixem andar, ainda moveremos; mesmo que não nos deixem mover, ainda poderemos ver; mesmo que não nos deixem ver, ainda sentire­mos; mesmo que não nos deixem sentir, mesmo assim, ainda pensaremos ... Porque é no livre campo da consciência que germinam as trans­formações. "

No entanto, mobilizar esse potencial não é uma tarefa simples, pois existe uma complexa rede de mecanismos sociais que buscam ocultar e sufocar qualquer iniciativa que visem sua emergência. Por isso GOETHR citado por HELLER 7 alerta:

"Que não te despojem de teu sentido inicial. É fácil crer no que crê a multidão. Fortalece teu entendimento de um modo natural; difícil é saber o que é saber".

A adversidade está justamente no reconhe­cimento do poder que possui, na capacidade de união, na postura revolucionária que tem como um dos instrumentos a pr6pria construção de uma identidade individual e coletiva que vai impulsionar a ação transformadora. Com essa idéia, ela conclui sua reflexão trazendo como

proposição que guie sua prática o pensamento de GRAMSCI apud FRIGOTT03:

"Instruí-vos porque temos necessidade de toda a nossa inteligência. Agitai-vos porque temos necessidade de todo nos­so entusiasmo. Organizai-vos porque temos necessidade de toda a nossa for­ça".

3 CONCLUSÃO

Como foi dito anteriormente este trabalho buscou. como foco principal a análise das re­lações de poder presentes na sociedade atual e especificamente na vida da mulher-enfermeira. No entanto, o texto aqui apresentado é uma SÚl­tese com alguns elementos básicos que compõem o roteiro original do vídeo.

Nele, a trajet6ria da reflexão do persona­gem percorre três momentos fundamentais e in­terrelacionados: o confronto consigo mesmo, o despertar para a realidade e a tomada de cons­ciência do poder. Esses momentos nada mais são do que representações do que julgamos ser o processo contínuo de amadurecimento pessoal e profissional que nos toma capaz de fazell uma escolha e nos enganjar ou não à luta de trans-. formação da realidade e da construção cons­ciente da hist6ria.

Esperamos que este trabalho, aliado aos que já levantaram essas questões e a out1"9.s que poderão aprofundá-las, venha contribuir para as discussões que busquem o redimensionamento da prática profissional da enfermagem. Não es­quecendo que "até aqui as possibilidades da mulher foram sufocadas e perdidas para l a hu­manidade; já é tempo, em seu interesse e,no de todos, de deixá-la enfim correr todos os (iscos, tentar a sorte". (BEAUVOIR1).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivi­da. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

2. FREIRE, Roberto. Ame e dê vexame. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1990.

3. FRIGOffO, Gaudêncio. Aula inaugural d a fundação da Es­cola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Cadenw de Saúde Pública. ENPS/FIOCRUZ, 4 (4) outJdez. 1988.

4. FOUCAULf, Michel. MicrojTsica do poder. 9. ed. Rio de Janeiro: G RAAL . 1990. 295p.

5. GUA ff ARI, Felix. Revoluções moleculares: pulsações poU­ticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense. 1987. 229 p.

6. GUA f f ARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolftica: carto­grafias do desejo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1 986.

7. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 3. ed. Rio de Ja­neiro: Paz e ferra, 1989.

* �isão i�cógnita oposicionista, segundo HELLER7 (p. 98- 106), é aquela que encontra-se em contraposição do mundo e!ll que VIV�. Nao � sen� a vontade na realidade, sofre com os papéis que tem que representar, mas não consegue manifestar-se, depor o seu mc6gruto. Nao é um confOrmIsta, mas tampouco chega a ser um revolucionário ( • • • ) é um rebelde.

R. Bras. Enferm .• Brasílía,,45 (213): 152- 154, abril/set. 1 992 154