MULLER,Gabriela.Ações e descontinuidades da política habitacional do Rio, governos Brizola e...

210
 UFRJ AÇÕES E DESCONTINUIDADES NA POLÍTICA HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO: O DESCOMPASSO ENTRE A CONCEPÇÃO E A IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS HABITACIONAIS NOS GOVERNOS LEONEL BRIZOLA E MOREIRA FRANCO (1983-1995) Gabriela Klôh Müller Neves Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientadora: Eli Diniz Rio de Janeiro Dezembro de 2007 

Transcript of MULLER,Gabriela.Ações e descontinuidades da política habitacional do Rio, governos Brizola e...

  • UFRJ

    AES E DESCONTINUIDADES NA POLTICA HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO: O DESCOMPASSO ENTRE A CONCEPO E A IMPLEMENTAO DE PROGRAMAS

    HABITACIONAIS NOS GOVERNOS LEONEL BRIZOLA E MOREIRA FRANCO (1983-1995)

    Gabriela Klh Mller Neves

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Cincia Poltica, Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Cincia Poltica.

    Orientadora: Eli Diniz

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2007

  • i

    AES E DESCONTINUIDADES NA POLTICA HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO: O DESCOMPASSO ENTRE A CONCEPO E A IMPLEMENTAO DE PROGRAMAS

    HABITACIONAIS NOS GOVERNOS LEONEL BRIZOLA E MOREIRA FRANCO (1983-1995)

    Gabriela Klh Mller Neves

    Eli Diniz

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica. Aprovada por:

    _____________________________ Presidente, Prof. Eli Diniz

    _____________________________ Prof. Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna _____________________________ Prof. Joo Trajano Sento-S

    Rio de Janeiro Dezembro de 2007

  • UFRJ

    AES E DESCONTINUIDADES NA POLTICA HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO: O DESCOMPASSO ENTRE A CONCEPO E A IMPLEMENTAO DE PROGRAMAS

    HABITACIONAIS NOS GOVERNOS LEONEL BRIZOLA E MOREIRA FRANCO (1983-1995)

    Gabriela Klh Mller Neves

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Cincia Poltica, Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Cincia Poltica.

    Orientadora: Eli Diniz

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2007

  • ii

    Neves, Gabriela Klh Mller.

    Aes e descontinuidades na poltica habitacional no Rio de Janeiro: o descompasso entre a concepo e a implementao de programas habitacionais nos governos Leonel Brizola e Moreira Franco (1983-1995) / Gabriela Klh Mller Neves Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2007.

    xii, 197 f. Orientadora: Eli Diniz. Dissertao (Mestrado) UFRJ / IFCS / Programa de

    Ps-Graduao em Cincia Poltica, 2007. Referncias Bibliogrficas: f. 177 - 183. 1. Poltica Habitacional. 2. Rio de Janeiro. 3.

    Concepo e implementao de Programas habitacionais. 4. Instituies polticas. I. Diniz, Eli. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica. III. Aes e descontinuidades na poltica habitacional no Rio de Janeiro: o descompasso entre a concepo e a implementao de programas habitacionais nos governos Leonel Brizola e Moreira Franco (1983-1995).

  • iii

    AES E DESCONTINUIDADES NA POLTICA HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO:

    O DESCOMPASSO ENTRE A CONCEPO E A IMPLEMENTAO DE PROGRAMAS HABITACIONAIS NOS GOVERNOS LEONEL BRIZOLA E MOREIRA FRANCO

    (1983-1995)

    Gabriela Klh Mller Neves

    Orientadora: Eli Diniz

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica.

    As favelas so reconhecidas como um problema secular na dinmica da

    urbanizao carioca. Ao longo desses 100 anos de vida, tiveram um crescimento

    desordenado, tendo sido objeto de algumas iniciativas do poder pblico no sentido

    de enfrentar, ao menos parcialmente, os problemas que apresentavam. Os planos e

    regulamentos urbansticos as colocavam fora da legalidade urbana. A presente

    dissertao pretende, atravs da observao do planejamento e concepo de

    polticas voltadas para a habitao popular, identificar as provveis causas das

    descontinuidades no que se refere implementao de programas habitacionais na

    cidade do Rio de Janeiro, no primeiro e segundo governos Leonel Brizola,

    respectivamente entre os anos 1983-1987 e 1991-1995, e o governo Moreira

    Franco, 1987-1991. Para isso, a pesquisa faz uma viagem na histria e literatura

    sobre favelas, levantando os principais programas habitacionais em seus contextos

    polticos, na busca por respostas sobre a possvel paralisia decisria que cria um

    verdadeiro descompasso entre a concepo e a implementao destes programas.

    Palavras-chave: favela; poltica habitacional; Leonel Brizola; Moreira Franco; programas habitacionais burocracia; instituies polticas.

    Rio de Janeiro Dezembro de 2007

  • iv

    ACTIONS AND DISCONTINUITIES ON THE DWELLING POLITICS IN RIO DE JANEIRO: THE DISORDER BETWEEN THE CONCEPTION AND THE ACCOMPLISHMENT OF DWELLING PROGRAMMES IN THE GOVERNMENTS OF LEONEL BRIZOLA AND MOREIRA FRANCO (19831995)

    Gabriela Klh Mller Neves

    Orientadora: Eli Diniz

    Dissertation abstract of Masters degree concerning to the Postgraduation Program in Political Science, Philosophy and Political Science Institute, from the Federal University of Rio de Janeiro, as part of the necessary requirements to the achievement of Masters Degree in Political Science. The slums are known as an archaic problem on the dynamics of Rio urbanization. Along these hundred years of life, they had a disordered increase, as purpose of some initiatives taken by the State in order to face, at least partially, the problems they represented. The urban plans and rules used to place them out of the urban legality. The present dissertation intends, through the planning observation and politics conception directed to popular habitation, to identify the probable causes of discontinuities relating to the accomplishment of dwelling programmes in Rio de Janeiro city, on the first and second governments of Leonel Brizola, particularly among the years of 1983 1987 and 1991 1995, and the government of Moreira Franco, 1987 1991. For that, the research should come back to the history and literature of slums, raising the main dwelling programmes in their political contexts, seeking for answers about the potencial power to decide paralysis which produces a real difficult situation between the conception and the accomplishment of these programmes. Key words: slum; dwelling politics; Leonel Brizola; Moreira Franco; bureaucracy; political institutions;

    Rio de Janeiro Dezembro de 2007

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar a minha famlia: Volnei, Angela, Gustavo,

    Cristina, Paulo, Mariana, Eduardo, Sergio, Catia, Vitor e Luisa. Sem o seu apoio

    nada seria possvel.

    Agradeo aos professores Jos Ricardo Ramalho e Ingrid Sarti por me

    inspirarem e motivarem na carreira das Cincias Sociais, e conseqentemente na

    Cincia Poltica.

    professora Eli Diniz, que me inspira e orienta com tanta sabedoria. Aos

    professores: Maria Lucia T. Werneck Vianna e Joo Trajano Sento-S, por

    aceitarem participar da banca de defesa da dissertao e pelo apoio. Agradeo

    tambm, a todos os professores que participaram da minha formao na Ps-

    Graduao em Cincia Poltica do IFCS/UFRJ.

    Muito obrigada aos amigos que tanto me incentivaram e sempre acreditaram

    em mim: Andr, Agatha, Alina, Bianca, Bruno, Elim, Dbora, Flavia, Fernanda,

    Gustavo, Lia, Luisa, Nabuco, Nathlia, Farrah, Thiago, aos amigos da turma 2005, e

    tantos outros que sempre estiveram ao meu lado me apoiando.

    E por fim, agradeo a todos os pensadores, pesquisadores e personalidades

    da Cincia Poltica por tornaram este trabalho possvel, e por iluminarem a minha

    vida com suas idias, conceitos e filosofias, mostrando a todo o momento, que nem

    tudo o que parece ser.

  • vi

    A Meus Pais, pelo apoio e pela confiana.

  • vii

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AID Agncia Internacional de Desenvolvimento.

    ALEG Assemblia Legislativa do Estado da Guanabara.

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento.

    BIRD Banco Mundial.

    BNH Banco Nacional de Habitao.

    CEDAE Companhia Estadual de guas e Esgotos.

    CEF Caixa Econmica Federal.

    CehabRJ - Companhia Estadual de Habitao do Rio de Janeiro.

    Cetel Companhia Estadual de Telefones.

    Chisam Coordenao da Habitao de Interesse Social da rea Metropolitana do

    Grande Rio.

    CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna.

    CIDE Centro de Informaes e Dados do Estado do Rio de Janeiro.

    CIEP Centros Integrados de Educao Pblica.

    Codesco Companhia de Desenvolvimento das Comunidades.

    Cohab RJ Companhia de Habitao do Estado do Rio de Janeiro.

    Coophab-GB Cooperativa Habitacional do Estado da Guanabara.

    DFL Fundo de Emprstimo para o Desenvolvimento.

    DHP Departamento de Habitao Popular.

    FAL Fundo de Assistncia Liquidez.

    Famerj Federao das Associaes de Moradores do Rio de Janeiro.

    FASE Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional.

    FCP Fundao da Casa Popular.

    FCVS Fundo de Compensao das Variaes Salariais.

    FINEP Financiadora de Estudos e Projetos.

    Fundhap Fundo de Desenvolvimento da Habitao Popular.

    Fundrem Fundao para o Desenvolvimento da Regio Metropolitana.

    GEROE Grupo Executivo de Recuperao e Obras de Emergncia.

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatstica.

    IAP Instituto de Aposentadoria e Penso.

    Iapfesp Caixa de Aposentadorias e Penses dos Ferrovirios e Empregados dos

    Servios Pblicos.

    IPEG Instituto de Previdncia do Estado da Guanabara.

    Iplanrio Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro.

    IPMF Imposto Provisrio sobre Movimentaes Financeiras.

  • viii

    IPPUR Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional.

    IUPERJ Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro.

    MBES Ministrio da Habitao e do Bem-Estar Social.

    MDB Movimento Democrtico Brasileiro.

    MDU Ministrio do Desenvolvimento Urbano e meio Ambiente.

    MHU Ministrio de Habitao, Urbanismo e Meio Ambiente.

    Novacap Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil.

    PAIH Plano de Ao Imediata para a Habitao.

    PCB Partido Comunista Brasileiro.

    PDS Partido Democrtico Social.

    PDT Partido Democrtico Trabalhista.

    Planhap Plano Nacional de Habitao Popular.

    PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro.

    PNB Programa Nova Baixada.

    PRN Partido da Reconstruo Nacional.

    Proface Programa da Cedae de construo de redes de gua e esgoto nas

    favelas.

    Promorar Programa de Erradicao e Subhabitao.

    PT Partido dos Trabalhadores.

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro.

    Salte Sade, Alimentao, Transporte e Energia.

    SBPE Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo

    SEAC Secretaria Especial de Habitao e Ao Comunitria.

    Secplan Secretaria de Planejamento e Controle.

    Sedec Secretaria de Estado de Defesa Civil.

    Sehaf Secretaria de Habitao e Assuntos Financeiros.

    Serfha Servio Especial de Recuperao de Favela e Habitaes Anti-higinicas.

    Serfhau Servio Federal de Habitao e Urbanismo.

    Serla Secretaria Estadual de Rios e Lagoas.

    Sifhap Sistema Financeiro de Habitao Popular.

    SETH Secretaria do Estado de Trabalho e Habitao.

    SFH Sistema Financeiro de Habitao.

    SPH Superintendncia de Poltica Habitacional.

    Sursan Superintendncia de Urbanizao e Saneamento.

    Telerj Telecomunicaes do Estado do Rio de Janeiro.

    USAID United States Agency for International Development.

  • ix

    LISTA DE GRFICOS Grfico 1: Nmero de votos nas eleies de 1982 por candidato 72 LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Histria da urbanizao da cidade do Rio de Janeiro: aes federais,

    estaduais e municipais 45

    Quadro 2: Sntese do processo de favelizao da cidade do Rio de Janeiro 62

    LISTA DE TABELAS Tabela 1: Crescimento da populao do estado e da cidade do Rio de Janeiro 62

    Tabela 2: Crescimento da populao favelada, por dcada, na cidade do Rio de

    Janeiro 62

    Tabela 3: Programa Cada Famlia, Um Lote regularizao de propriedades.

    Levantamento at Setembro de 1985 99

    Tabela 4: Nmero de lotes titulados por favelas 100

    Tabela 5: Cada ano / total de lotes 101

    Tabela 6: Produo Cehab-RJ dcadas de 60, 70 e 80 107

    Tabela 7: Porcentagem de votos dos candidatos do PDT, Leonel Brizola e

    Darcy Ribeiro, s eleies de 1982 e 1986, por regio fluminense 110

    Tabela 8: Porcentagem de votos de Darcy Ribeiro e Moreira Franco por regio

    (1986) 110

    FLUXOGRAMA

    Programa Cada Famlia, Um Lote 85

    ORGANOGRAMA

    Organograma do governo do estado no Projeto Reconstruo-Rio 142

  • x

    SUMRIO Introduo 1

    Captulo 1. Uma breve viagem histria e literatura sobre os processos de urbanizao e favelizao no municpio do Rio de Janeiro (1902-1982) 23

    A evoluo urbana da cidade do Rio de Janeiro

    A Reforma Passos (1902-1918)

    Os anos 1920 e 1930

    Presidncia de Getlio Vargas e o Golpe do Estado Novo (1930-1945)

    Os governos democrticos de 1945-1964

    O Segundo mandato de Getlio Vargas (1951-1954)

    Presidncia de Juscelino Kubitscheck (1956-1965)

    O estado da Guanabara: a conjuntura da metrpole carioca nos anos 1960

    Governo Negro de Lima e o Regime Militar (1965-1970)

    Fuso dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro e o fim do Regime Militar (1975-1979) Governo Chagas Freitas (1979-1983)

    Consideraes finais do captulo 1

    Captulo 2. O primeiro governo Leonel Brizola no estado do

    Rio de Janeiro: efeitos sobre a cidade (1983-1987) 67

    As Eleies de 1982: contexto

    Brizola Governador (1983-1987)

    O perodo das invases

    Objetivos e Programas do governo Brizola (1983-1987)

    O Programa Cada Famlia, Um Lote

    Outros Programas do Governo Brizola: infra-estrutura

    Resultados do governo e avaliao das polticas urbanas

    Resultados e avaliao do Programa Cada Famlia, Um Lote

    Consideraes finais do captulo 2

  • xi

    Captulo 3. O governo Moreira Franco: incio da descontinuidade

    de programas habitacionais na cidade do Rio de Janeiro(1988-1991) 106

    Contexto das Eleies de 1986

    Diretrizes do Governo Moreira Franco: Habitao

    Programas Habitacionais e reas de Atuao do Governo

    Governo Moreira Franco (1987-1991)

    Projeto Reconstruo-Rio (1988-1991)

    Consideraes finais do captulo 3

    Captulo 4. Instituies polticas e processos decisrios:

    um debate sobre a concepo e a implementao

    de programas habitacionais durante o segundo governo

    Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro (1991-1995) 131

    Quadro poltico nacional: Eleies Presidenciais de 1989

    A situao habitacional no incio dos anos 1990

    As eleies estaduais de 1990

    Segundo Governo Brizola: Projeto Reconstruo-Rio (1991-1995)

    Papel das Instituies e da Burocracia Estatal na implementao

    de programas habitacionais no estado do Rio de Janeiro

    Uma breve passagem pelo programa Favela-Bairro

    Consideraes finais do captulo 4

    Consideraes finais 168

    Referncias bibliogrficas 188

    Anexo 1 195

    Anexo 2 207

    Anexo 3 209

  • Introduo

    V legal que h mais favela do que bairro e agora os bairros to dentro da favela

    V legal ento... j no alguma pobreza dentro de muita riqueza

    agora alguma riqueza dentro de muita pobreza V legal ento, se favela hoje regra

    ento se bairro exceo. 1

    Em 1998 cheguei cidade do Rio de Janeiro, para cursar Cincias Sociais na

    Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi o primeiro grande passo rumo ao

    futuro. Da cidade maravilhosa, conhecia apenas o centro. Ao descer a serra e

    chegar cidade, uma imagem marcou minha memria: a Favela da Mar. Nunca

    tinha visto de perto o problema real da habitao e da completa falta de infra-

    estrutura, em que a populao carente do Rio se encontrava. Com o passar dos

    anos, conheci a fundo a cidade e pude presenciar a completa ausncia de polticas

    de cunho social, que atendessem principalmente as classes mais pobres da

    populao.

    Aps me formar no ano de 2003, recebi o convite para trabalhar como

    consultora num projeto que visava elaborao de relatrios sobre a situao

    econmica, poltica e social em diversas favelas em toda cidade, atravs da

    avaliao de questionrios que seriam aplicados na comunidade e em suas

    lideranas locais. Infelizmente o trabalho no se concretizou na poca, mas foi

    definitivo na minha escolha do tema.

    Com vistas a ingressar no Mestrado em Cincia Poltica, comecei a

    amadurecer a idia de me envolver em algum trabalho que contribusse, de alguma

    forma, para futuras anlises sobre o problema das favelas na cidade. Ao ler alguns

    autores que tratam do tema, percebi uma carncia no quesito ineficcia das

    polticas pblicas de habitao do governo para comunidades de baixa renda.

    O Rio de Janeiro apresenta singularidades naturais que definem sua

    evoluo. De frente para a entrada da Baa de Guanabara, a cidade cresceu a partir

    1 Poema Regras e Excrees, de Deley de Acari.

  • dali, como centro do poder poltico-capital do Vice-Reino, do Reino, do Imprio e da

    Repblica. Circunstncias histricas e geogrficas que imprimem particularidades

    sua organizao territorial. A proximidade entre diferentes estratos sociais

    caracterstica da cidade desde a sua fundao. Alm da falta de solo edificvel, o

    Rio sofria da falta de polticas pblicas voltadas s populaes de baixa renda,

    levando os mais pobres a se aglomerarem. Desta forma, a cidade se justaps, se

    amontoou, multiplicando quartos em cima de quartos, escravos e senhores

    dividindo a mesma casa, trabalhadores e patres a mesma vizinhana.

    As favelas surgiram no Rio de Janeiro, no final do sculo XIX. So lugares

    onde habitam irregularmente as populaes pobres da cidade. At hoje, a maioria

    dos habitantes das favelas no tem a posse do terreno e vive com medo da

    desapropriao. Acrescenta-se, ainda, que a pobreza estava vinculada

    precariedade legal.

    Embora, hoje, o poder pblico procure um discurso no estigmatizante,

    devido s prprias demandas democrticas, dos movimentos sociais e de novos

    atores sociais oriundos das favelas, ainda se percebe uma interveno autoritria e

    segregadora sobre o espao da favela e sobre a vida dos seus moradores. O estudo

    da arrumao do espao urbano no Rio de Janeiro, relatado brevemente nesta

    pesquisa, possibilita-nos o entendimento da construo de espaos diferenciados e

    estigmatizados na cidade. Embora no haja consenso na literatura sobre a favela

    em relao ao seu surgimento, muitos especialistas afirmam que esta comeou nos

    anos 1920 do sculo XX. 2

    As favelas so reconhecidas como um problema secular na dinmica da

    urbanizao carioca. Ao longo desses 100 anos de vida, cresceram de forma

    desordenada, tendo sido objeto de algumas iniciativas do poder pblico no sentido

    de enfrentar o desafio que representavam para a sociedade carioca. Os planos e

    regulamentos urbansticos as colocavam fora da legalidade urbana, recomendando

    2 FERRAZ, J. As reformas do espao urbano e o lugar da pobreza, 2005: 1.

  • a sua remoo, sob argumentos inspirados, principalmente no sanitarismo e

    tambm em aspectos estticos e funcionais.

    O tema da favela inicialmente foi tratado, nas Cincias Sociais, como um

    vasto terreno para estudos acerca do desenvolvimento da marginalidade, assim

    como estudos sobre o mercado de trabalho, a migrao, o aumento populacional

    das metrpoles, que desencadeou no aumento dos ndices de desemprego e de

    habitaes informais.

    Entre os anos 1960 e 1970, uma gama de autores, entre eles John Turner,

    Anthony Leeds, Elizabeth Leeds, Janice Perlman, Milton Santos, Luiz Antonio

    Machado da Silva, Carlos Alberto de Medina, Licia do Prado Valladares, entre

    outros, abordaram o tema da favela, questionando principalmente as teorias sobre

    marginalidade e as polticas de erradicao, caractersticas do perodo anterior. Na

    dcada de 1970, os estudos so direcionados para o mbito das polticas pblicas, a

    crtica ao autoritarismo e anlise dos impactos da poltica de construo de

    conjuntos habitacionais, no qual tambm se destacaram autores como Gislia

    Grabois e Linda Gondim.

    Nos anos 1980, o debate terico se desenvolveu entre os significados reais

    da autoconstruo e do bem-moradia no quadro do processo de acumulao

    capitalista, em que se destacam os autores Carlos Nelson Ferreira dos Santos e

    Ermnia Maricato. Nesta dcada, os estudos sobre favelas situaram-se no mbito

    das polticas pblicas, tambm associados aos movimentos sociais urbanos e

    institucionalizao democrtica. Durante todo este perodo o debate foi marcado

    pela implementao de novas prticas relacionadas busca de formas

    democrticas de gesto e de barateamento de custos, assim como, estudos de caso

    sobre experincias de autoconstruo e de gesto participativa, como destaca a

    autora Maria Lais Pereira da Silva. 3

    3 SILVA, M. Favelas Cariocas, 1930-1964, 2005: 16.

  • Nos anos 1990, os trabalhos desenvolvidos sobre as favelas passam a se

    dirigir questo da violncia urbana, do crime organizado e suas conseqncias,

    com destaque para autores como Alba Zaluar, assim como o tema da organizao

    interna das favelas, seus novos significados e implicaes espaciais e territoriais, a

    degradao ambiental, integrao e diversidade cultural, havendo por fim uma

    retomada da favela como objeto das polticas pblicas, destacando-se autores como

    Licia do Prado Valadares e Pedro Abramo.4

    Ao realizar uma retomada desta bibliografia, possvel constatar que o

    problema da favela est longe de ser solucionado. Contudo, foi nos estudos das

    polticas pblicas de habitao, que encontrei a mais vasta bibliografia,

    principalmente nos centros de pesquisa poltica e urbana, onde encontrei meu

    primeiro objeto de estudo: o programa Cada Famlia, Um Lote, implantado no

    primeiro governo Brizola (1983-1987). No Instituto de Pesquisa e Planejamento

    Urbano Regional, o Ippur, levantei a maior parte da bibliografia necessria entre

    teses, monografias, dissertaes, cadernos, folhetos e livros. Outras bibliotecas

    como as da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, a PUC, do Instituto

    Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro, o IUPERJ, na Fundao Getlio Vargas,

    foram consultadas. Estas bibliotecas ofereceram uma vasta coleo de obras que

    enriqueceram o debate sobre as polticas pblicas, do governo do estado, voltadas

    para as classes menos favorecidas da sociedade, revelando o papel da burocracia,

    das instituies, dos governantes e da sociedade, no processo de implementao

    dos programas habitacionais, com nfase na cidade do Rio de Janeiro.

    Os programas de habitao popular desta pesquisa foram levantados no

    nvel municipal, estadual e federal. Porm, a escolha da nfase nos governos

    estaduais como fonte de pesquisa se deu principalmente, devido ao mais ambicioso

    dos planos habitacionais, elaborado para o estado e para a cidade do Rio de Janeiro

    o Programa Cada Famlia, Um Lote, implementado durante o primeiro governo

    Leonel Brizola (1983-1987). No estado do Rio de Janeiro, a eleio de Leonel

    4 Idem: 18.

  • Brizola em 1982 criou grande expectativa em relao ao atendimento s

    necessidades bsicas das populaes carentes, devido ao anncio de que na rea

    habitacional seria implementado o Programa Cada Famlia Um Lote, com a meta

    de distribuir 1 milho de lotes urbanos, suburbanos e rurais num prazo de 5 anos,

    como veremos no decorrer do trabalho.

    Visto estes fatores, e tendo em mente a importncia da retomada de

    questes do passado para se compreender o problema recente da exploso de

    favelas na cidade do Rio de Janeiro, a histria da concepo e implementao dos

    programas habitacionais voltados para a populao carente ser contada nesta

    dissertao, percorrendo quase todo o sculo XX (1902-1995). Na busca de fatores

    que indiquem, como foi frisado anteriormente, as possveis causas das

    descontinuidades existentes na implementao destes programas, o perodo

    escolhido muito longo. Nestes 93 anos o Rio de Janeiro teve 3 Governadores do

    atual estado do Rio de Janeiro (1975-1991): Chagas Freitas, Leonel Brizola, Moreira

    Franco e novamente Leonel Brizola; 27 prefeitos do Rio de Janeiro enquanto

    Distrito Federal; 5 Governadores da Guanabara; 8 Prefeitos da cidade do Rio de

    Janeiro; 37 governantes do perodo republicano (1889-1975); e 28 Presidentes da

    repblica, dentre eles 6 militares. Devido impossibilidade de relizar um trabalho

    completo sobre a atuao de cada um dos representantes, somente alguns deles,

    que se destacaram no cenrio da elaborao de polticas pblicas de habitao e

    infra-estrutura, voltadas para as populaes carentes, foram selecionados.

    O recorte temporal de destaque da pesquisa foi determinado perodo que

    antecede o Programa Cada Famlia, Um Lote e o perodo posterior ao Programa

    (1982-1991) e os representantes de governo ligados diretamente a este perodo

    tiveram sua trajetria de elaborao e implementao de polticas pblicas de

    habitao e infraestrutura postas em evidncia, j que estas polticas esto

    diretamente ligadas essa imensa teia de muitos planos e pouca ao, do qual

    queremos tratar.

  • Para ilustrar, mais claramente, a proposta desta pesquisa, o trabalho foi

    dividido em quatro captulos: Captulo 1, Uma breve viagem histria e literatura

    sobre os processos de urbanizao e favelizao no Rio de Janeiro (1902-1982);

    Captulo 2, O primeiro governo Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro (1983-

    1987): efeitos sobre a cidade; Captulo 3, O governo Moreira Franco: incio da

    descontinuidade de programas habitacionais na cidade do Rio de Janeiro; Captulo

    4, Instituies polticas e processos decisrios: um debate sobre a concepo e a

    implementao de programas habitacionais durante o segundo governo Leonel

    Brizola no estado do Rio de Janeiro (1989-1995).

    No Captulo 1, foi realizada uma viagem histria e literatura sobre os

    processos de urbanizao e favelizao do municpio do Rio de Janeiro. Trata,

    principalmente, da evoluo urbana da cidade do Rio de Janeiro, atravs,

    primeiramente, da Reforma Passos (1902-1918), observando a atuao dos

    governos federal, estadual e municipal nos anos 1920 e 1930. Em seguida, revela

    as transformaes ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, e no Brasil, em

    decorrncia do primeiro governo de Getlio Vargas (1930-1945). Parte, ento, para

    o estudo dos governos democrticos de 1945-1964, abrangendo o segundo

    mandato de Getlio Vargas (1951-1954) e a presidncia de Juscelino Kubitscheck

    (1956-1965). Neste captulo descrita a conjuntura da metrpole carioca nos anos

    1960, quando Estado da Guanabara, assim como, no governo Negro de Lima e no

    Regime Militar (1965-1970). O captulo 1 se encerra com a fuso dos Estados da

    Guanabara e do Rio de Janeiro; o fim do Regime Militar (1975-1979); e o Governo

    Chagas Freitas (1979-1983). O propsito desta etapa da pesquisa situar em que

    circunstncias polticas, sociais e econmicas, Leonel Brizola assume o governo do

    estado do Rio de Janeiro, em 1983, para assim, caracterizar sua poltica, dentro de

    um contexto mais amplo de polticas pblicas em desenvolvimento.

    O captulo 2 focaliza o primeiro governo Leonel Brizola no estado do Rio de

    Janeiro (1983-1987), inicia-se a trajetria de anlises de polticas pblicas de

    habitao, realizadas pelo governo do estado, focando principalmente sua ao na

  • cidade do Rio de Janeiro. Para uma melhor compreenso deste processo, foi

    observado o contexto das eleies para governador do estado do Rio de Janeiro em

    1982; o desenrolar dessas eleies at a escolha popular por Leonel Brizola, e, em

    seguida, a sua gesto e os respectivos programas apresentados em seu plano de

    desenvolvimento econmico e social (1983-1987), com nfase no Programa Cada

    Famlia, Um Lote; o perodo das invases na cidade do Rio de Janeiro; e, por fim,

    este captulo realizou uma breve avaliao dos resultados tanto do Programa Cada

    Famlia, Um Lote, quanto do governo, no que se refere s polticas pblicas de

    habitao popular. O objetivo deste captulo mostrar como, no incio dos anos 80,

    depois da falncia das polticas de remoo e recolocao de moradores para a

    periferia da cidade, as favelas passaram a ser palco de projetos de urbanizao

    que, muitas vezes, faziam parte de uma poltica governamental maior. Lidando, em

    geral, com saneamento e regularizao fundiria, tais projetos tiveram efeitos

    diversos, como a expanso das atividades locais de gerao de renda.

    O captulo 3 focaliza o governo Moreira Franco: incio da descontinuidade de

    programas habitacionais na cidade do Rio de Janeiro aborda, alm do contexto das

    eleies para governador do estado do Rio de Janeiro, em 1986, as diretrizes do

    governo Moreira Franco, no que se refere habitao, assim como, alguns

    programas habitacionais e as reas de atuao do governo. O objetivo deste

    captulo identificar os principais problemas quanto implementao de novos

    programas e a descontinuidade dos programas desenvolvidos no governo anterior.

    O captulo tambm privilegia em sua anlise o Projeto Reconstruo-Rio (1987-

    1991). O Projeto Reconstruo-Rio foi concebido originalmente em 1988, como um

    projeto emergencial. O projeto visava a recuperar rapidamente as reas destrudas

    pela grande enchente ocorrida em Fevereiro daquele ano, alm de realizar obras de

    preveno contra futuras enchentes, principalmente na Regio Metropolitana do Rio

    de Janeiro. Previsto para ser executado em 4 anos, o projeto levou mais que o

    dobro de tempo para ser concludo. Institucionalmente contou, tanto no mbito do

    planejamento quanto na gesto e execuo de cada um de seus aspectos, com

  • diferentes rgos financeiros Banco Mundial (BIRD), Caixa Econmica Federal

    (CEF) e Governo do Estado envolvendo direta e indiretamente rgos

    governamentais federais, do estado e dos municpios diretamente beneficiados. 5

    O captulo 4 de nome Instituies polticas e processos decisrios, apresenta

    um debate sobre a concepo e a implementao de programas habitacionais

    durante o segundo governo Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro (1991-

    1995). Inicia-se com a contextualizao do quadro poltico nacional e as eleies

    presidenciais de 1989. Em seguida, faz um levantamento da situao habitacional

    no incio dos anos 1990. O captulo tambm contextualiza as eleies

    governamentais de 1990, e a conseqente reeleio de Leonel Brizola (1991-1995).

    Na rea da habitao, o captulo continua o debate sobre as aes do Projeto

    Reconstruo-Rio, no governo Brizola, observando, ao longo dos anos, o papel das

    instituies e da burocracia estatal na implementao de programas habitacionais

    (1983-1995). Assim, em sua fase final, o captulo 4 debate o tema da

    descontinuidade nas polticas de habitao na cidade do Rio de Janeiro, luz do

    descompasso existente entre a concepo e implementao de programas

    habitacionais, voltados para a populao de baixa renda, principalmente no local

    onde a crise habitacional mais aguda em todo o estado, a cidade do Rio de

    Janeiro. Apesar da pesquisa estar voltada para as aes do governo do estado, a

    cidade do Rio de Janeiro destacou-se no perodo analisado, por receber maior

    nmero de programas habitacionais, advindos tambm da prefeitura da cidade,

    fazendo com que esta se destacasse em relao as demais cidades do estado.

    A presente pesquisa visa, atravs do estudo dos programas habitacionais

    implementados entre os anos de 1983 e 1995, desvendar algumas causas da

    descontinuidade destes programas. Para isso, no captulo 4 elaborou-se uma

    anlise das principais dificuldades vivenciadas, ao longo destes 12 anos e trs

    5 MANCINI, L. Cimentando fendas institucionais: o papel da burocracia estatal na administrao pblica: o Projeto Reconstruo-Rio do Governo do Estado do Rio de Janeiro: 24.

  • gestes, quanto implementao de tais programas, observando o papel da

    burocracia tcnica estatal e o papel das instituies ligadas a este processo.

    O que se pretende investigar o descompasso entre a concepo e a

    implementao dos programas habitacionais voltados para a populao de baixa

    renda. Por qu afinal os programas no se concretizam da maneira como foram

    planejados? Quais so as verdadeiras razes para estas descontinuidades nos

    programas de habitao para a populao de baixa renda? Quais so as possveis

    barreiras a serem quebradas para que os programas sejam contnua e efetivamente

    implantados no estado e na cidade do Rio de Janeiro? Para enriquecer este debate,

    alm de outros autores, dialoguei com Max Weber e os autores Marcus Andr de

    Melo, Marcelo Baumann, Rose Compans, Laura Mancini, entre outros.

    Nas consideraes finais, retomo o debate, com diversos autores, acerca das

    dificuldades encontradas pelos governos Leonel Brizola e Moreira Franco, na

    implementao dos Programas Cada Famlia, Um Lote e o projeto Reconstruo-

    Rio, e seus respectivos programas de infra-estrutura. Para isso, desenvolvo um

    dilogo entre os autores sobre a produo da habitao, observando os entraves

    burocrticos e institucionais, destacando em quais pontos os programas falharam,

    tanto em sua concepo quanto em sua implementao, sugerindo algumas

    mudanas.

    A metodologia aplicada foi levantamento da bibliografia em diferentes

    bibliotecas e universidades; levantamento dos principais programas de habitao

    entre os anos 1902-1985; levantamento dos Planos de Desenvolvimento Econmico

    e Social do Estado do Rio de Janeiro 1980-1983: Governo Chagas Freitas, 1984-

    1987: Governo Leonel Brizola, 1988-1991: Governo Moreira Franco; pesquisa

    histrica sobre a evoluo urbana da cidade do Rio de Janeiro; extensa pesquisa de

    autores em diferentes revistas na internet; entrevistas em jornais e revistas; e

    coleta de dados no inventrio da ao governamental da Financiadora de Estudos e

    Projetos - Finep.

  • Captulo 1

    Uma breve viagem histria e literatura sobre os processos de urbanizao e favelizao no municpio do Rio de Janeiro

    (1902-1982)

    No incio do sculo XX, a industrializao autrquica, de carter urbano1, teve de

    garantir as condies de reproduo de uma parcela da fora de trabalho via

    construo de vilas operrias, assegurando uma fora de trabalho cativa. A

    industrializao, no Brasil, teve de ser inteiramente urbana com taxas de

    urbanizao alm das necessidades de preenchimento dos postos de trabalho. A

    interveno do Estado foi fundamental na redefinio do padro de acumulao e

    industrializao, pela incapacidade da burguesia nacional em dar conta das novas

    necessidades antepostas acelerao do processo de acumulao. A

    regulamentao das relaes capital-trabalho pelo Estado, levou ao surgimento de

    um novo urbano e criou um novo mercado de fora de trabalho, antes cativa.

    Atravs da articulao do novo processo de acumulao pelo Estado permitiu o

    surgimento de novas relaes de produo, reforando a interao entre a indstria

    e o urbano e elevando as taxas de urbanizao. 2

    A evoluo urbana da cidade do Rio de Janeiro no decorrer do perodo 1906-

    1930 reflete claramente as contradies existentes no sistema poltico e econmico

    do pas naquela poca. possvel constatar que, neste perodo, os governos da

    Unio e do Distrito Federal, representantes da classe dominante, atuavam

    preferencialmente na esfera do consumo, incentivando a continuidade do processo

    de renovao urbana da rea central e de embelezamento da Zona Sul da cidade,

    enquanto, sem qualquer apoio do Estado, as indstrias se multiplicavam na cidade,

    expandindo-se para os subrbios, criando novas reas, dotando-as, precariamente,

    1 Devido inexistncia de uma rede urbana e uma diviso territorial e social do trabalho diversificada que a ligasse ao campo como na Europa do sculo XVIII e XIX, dado o carter auto-suficiente da produo agrcola voltada para a exportao (CLAVAL, 1979; OLIVEIRA, 1982). 2 LIMONAD, Os lugares da urbanizao: o caso do interior fluminense, 1996: 117.

  • de infra-estrutura e gerando empregos. Estes empregos atraem mo-de-obra

    numerosa, que tanto se instala nos subrbios, como tambm acaba por originar as

    favelas prximas a essas reas. 3 A partir da, Centro, Zona Sul e subrbios

    comearam a se desenvolver de forma diferente, porm com a mesma

    necessidade: a acumulao de capital. Desta forma, a cidade se justaps, se

    aglomerou, multiplicando quartos em cima de quartos, trabalhadores e patres na

    mesma vizinhana. Foras divergentes cresciam no mesmo espao, acentuando as

    contradies de tal forma que se tornara imperativa a interveno do poder poltico

    sobre o processo de crescimento da cidade como um todo, moldando-o de acordo

    com seus interesses. 4 A proximidade entre diferentes estratos sociais

    caracterstica da cidade desde a fundao. Alm da falta de solo edificvel, o Rio

    sofria da falta de polticas pblicas voltadas s populaes de baixa renda, levando

    os mais pobres a se aglomerarem.

    A Reforma Passos (1902-1918)

    A cidade do Rio de Janeiro passou por um primeiro projeto de reestruturao

    urbana: a Reforma Passos, em vigor nos anos de 1902 a 1906, porm, seu desenho

    inicial foi elaborado em 1874. O rascunho do primeiro plano urbanstico do Rio de

    Janeiro foi feito ainda no II Reinado, pela Comisso de Melhoramento da Cidade,

    nomeada pelo Imperador, em 27/05/1874. Esta Comisso foi encarregada de criar

    a Carta Cadastral. A cidade do Rio de Janeiro era a mais desenvolvida do pas,

    devido ao sucesso da lavoura do caf. Um dos seus idealizadores foi o engenheiro

    Francisco Pereira Passos. Seu principal objetivo era fazer uma "cirurgia" em toda a

    cidade, a fim de higieniz-la, acabando com a epidemia de febre amarela e, ao

    mesmo tempo, traar um novo alinhamento das praas, ruas e casas, em diversos

    bairros da cidade, para facilitar a circulao de mercadorias e de pessoas e o

    embelezamento da cidade. Devido ausncia de um financiamento para um

    3 ABREU, M. Polticas Pblicas, estrutura urbana e distribuio de populao de baixa renda na rea metropolitana do Rio de Janeiro, 1987: 72. 4 Idem: 73.

  • investimento, este projeto fracassou. Aps a Proclamao da Repblica, no governo

    Rodrigues Alves, ocorreu a primeira reforma urbana do Rio de Janeiro, sob a

    interveno do Estado. Neste perodo, Pereira Passos foi escolhido prefeito do Rio

    (1902-1906). Seu primeiro ato foi reorganizar a antiga Comisso da Carta

    Cadastral, da qual fez parte, e aproveitar a maioria das propostas deste projeto de

    1874 para o plano de remodelao, na sua gesto. A populao pobre foi retirada

    dos cortios no centro e levada para lugares afastados da cidade. 5

    A Reforma Passos representa uma alterao substancial do padro de

    evoluo urbana que seria seguido pela cidade no sculo XX. Tal Reforma

    representa tambm um momento de corte na relao entre estado e urbano, onde

    o primeiro passa a intervir diretamente sobre o segundo levando transformao

    acelerada da forma da cidade, tanto em termos de aparncia, ou seja, morfologia

    urbana, como de contedo, isto , a separao de usos e classes sociais no espao.

    Contudo, a longo prazo, as conseqncias foram graves. O Estado agora atua sobre

    um espao cada vez mais dividido entre bairros burgueses e proletrios, e ao

    privilegiar o primeiro grupo, acelera o processo de estratificao espacial,

    contribuindo para a consolidao de uma estrutura ncleo/periferia que perdura at

    os dias de hoje. 6

    O perodo entre 1917 e 1918 foi extremamente benfico ao crescimento

    industrial do Rio de Janeiro. Conseqentemente, observa-se uma intensificao da

    atividade fabril, beneficiada principalmente pelo novo porto do Rio de Janeiro.

    Nesta fase, houve um primeiro fluxo de grande capital industrial em direo aos

    subrbios. O desenvolvimento industrial da cidade, nessa poca, ocorre sem apoio

    do Estado, e em pouco tempo o ndice de migrao para os novos bairros aumentou

    consideravelmente. Em decorrncia deste fato, as freguesias suburbanas onde

    5 Ver FERRAZ, Joana DArc Fernandes. As reformas do espao urbano e o lugar da pobreza. XXIII Simpsio Nacional de Histria. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 17 a 22 de Julho de 2005: 2-3. 6 ABREU, M. Polticas Pblicas, estrutura urbana e distribuio de populao de baixa renda na rea metropolitana do Rio de Janeiro, 1987: 74.

  • atravs da iniciativa de inmeros loteadores, vendiam-se terrenos e moradias a

    preos mdicos apresentaram uma taxa de crescimento maior do que aquela das

    freguesias urbanas. 7

    Os anos 1920 e 1930 para a cidade do Rio de Janeiro.

    Em decorrncia destes fatos, na dcada de 1920 surge a idia de se ter um plano

    urbanstico para a cidade. O plano fora elaborado, mas nunca implementado,

    devido ao novo momento de organizao social da cidade e do pas, iniciado em

    1930.

    Na dcada de 1920 intensifica-se a primeira expanso das favelas na cidade.

    A partir desta dcada a favela problematizada, assumindo os contornos de uma

    questo social, embora envolvida ainda com a questo higienista. O

    desenvolvimento dos setores secundrio e tercirio da economia, aliado a um

    processo de industrializao bastante incipiente, suscita novos contornos urbanos.

    A fim de abrir o acesso para mercadorias e servios, iniciam-se as grandes obras

    pblicas. Neste contexto, surge o Plano Agache, elaborado por um grupo de

    tcnicos e urbanistas estrangeiros, chefiados pelo urbanista francs Alfred Agache,

    a pedido do prefeito Antonio Prado Junior (1926-1930). 8

    Este plano constitui o exemplo mais importante da tentativa da classe

    dominante da Repblica Velha de controlar o desenvolvimento da forma urbana

    carioca, j por demais contraditria. 9 A partir deste Plano foi elaborado o Cdigo

    de Obras da Cidade, de 1937. Este documento tinha como objetivo principal a

    erradicao das favelas, e o impedimento construo de novas moradias nas

    reas das favelas ou impossibilidade da melhoria das existentes. O Plano se

    constitui, na verdade, no documento oficial a tratar explicitamente dessa nova

    7 Idem: 79-80. 8 Nunca foi cumprido em sua totalidade. Seu projeto s foi concludo em 1930, ano do golpe. Ver REIS, Jos de Oliveira. O Rio de Janeiro e seus Prefeitos. Evoluo urbanstica da cidade. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1977: 90. 9 ABREU, M. Polticas Pblicas, estrutura urbana e distribuio de populao de baixa renda na rea metropolitana do Rio de Janeiro, 1987: 86.

  • forma de habitao popular, que proliferava na cidade. 10 O Plano Agache pretendia

    transformar o Rio de Janeiro segundo critrios funcionais e de estratificao social

    do espao. Apesar de o Plano sugerir que o Estado assuma um papel mais ativo na

    reproduo da fora de trabalho industrial dos subrbios, atravs do barateamento

    dos custos via programas habitacionais e adoo de polticas setoriais especficas,

    pretende, na verdade, controlar este processo de reproduo, assegurando a

    separao espacial das classes sociais. 11

    Jaime Benchimol descreve que at os anos 20 do sculo passado, toda a

    poltica relacionada s habitaes das populaes de baixa renda (seja os antigos

    cortios, as recentes favelas ou as habitaes precrias nos morros e encostas)

    resume-se busca pela sua eliminao ou transferncia dos pobres para longe,

    onde no pudessem ser vistos. Prevalecia a viso de que pobreza era sinnimo de

    doena e de fraqueza moral. 12

    Nos anos 20 e 30 deste sculo, as favelas so consideradas como manchas

    na paisagem urbana da cidade, sendo invariavelmente recomendada a sua

    extino. Os planos e regulamentos urbansticos as colocavam fora da legalidade

    urbana, recomendando a sua remoo, sob argumentos inspirados, principalmente,

    no sanitarismo, mas tambm em aspectos estticos e funcionais.

    A carncia habitacional do Estado do Rio de Janeiro, nesta poca, espelha

    um problema de carter mundial dos mais caractersticos: o rpido crescimento dos

    grandes centros urbanos, face transferncia da mo-de-obra do setor primrio

    para os setores secundrio e tercirio da economia, resultante do processo de

    industrializao. No Brasil, este fenmeno fez-se sentir mais agudamente em

    decorrncia de sua economia encontrar-se em estado de mudana, crescimento e

    adequao capacidade produtiva de sua populao. claro que a urbanizao no

    10 Idem: 87.

    11 Idem: 90. 12 Ver BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical, 1992: 137-141.

  • Brasil no foi deflagrada apenas com o advento da industrializao. Vale salientar

    que nos primeiros anos da dcada de 1930 a industrializao decorreu,

    indiretamente, de medidas adotadas em defesa do setor cafeeiro. Porm, este

    processo contribuiu para a redefinio qualitativa do urbano, e comandou as

    modificaes na diviso social e territorial do trabalho, adequando o espao s suas

    necessidades e, conseqentemente, redefinindo o carter da urbanizao e das

    relaes entre a cidade burocrtico-comercial e o campo agro-exportador. 13

    Como foi dito anteriormente, a Revoluo de 30 impediu que a

    implementao do Plano se concretizasse. O Plano teria que se adequar s novas

    contradies decorrentes do novo momento de organizao social que se

    implantava no pas, superando as contradies da Repblica Velha. Contudo, o

    Cdigo de Obras colaborou para tornar a favela juridicamente ilegal.

    Em suma, este perodo caracterizou-se pela expanso notvel do tecido

    urbano do estado do Rio de Janeiro, processo esse que se efetuou de maneira

    distinta. De um lado, a ocupao das Zonas Sul e Norte pelas classes mdia e alta

    intensificou-se comandada pelo Estado e pelas companhias concessionrias de

    servios pblicos. De outro, os subrbios cariocas e fluminenses se solidificaram

    como local de residncia do proletariado, sem qualquer apoio do Estado ou das

    concessionrias de servios pblicos, o que resultou em uma paisagem

    caracterizada pela ausncia de benefcios urbansticos. 14

    Segundo Lucia Lippi de Oliveira 15, o Plano Agache serviu de orientao para

    todos os projetos urbansticos at a dcada de 60 do sculo XX quando este foi

    substitudo por um novo plano para a cidade, o Doxiadis16, na gesto Carlos

    13 LIMONAD, E. Os lugares da urbanizao: o caso do interior fluminense, 1996: 116-118. 14 ABREU, M. Polticas Pblicas, estrutura urbana e distribuio de populao de baixa renda na rea metropolitana do Rio de Janeiro, 1987: 82. 15 OLIVEIRA, L. Cidade, hHistria e desafios, 2002: 162. 16 O Plano Doxiadis propunha a descentralizao urbana a ser realizada a partir de uma estrutura polinucleada, desenvolvida em relao a dois eixos dominantes: o eixo norte-sul, de penetrao metropolitana, e o eixo leste-oeste, que acompanhava a linha frrea coincidente no plano com a linha do metropolitano preposto. Ver SANTOS, A.P. Economia, espao e sociedade no Rio de Janeiro, 2003: 48.

  • Lacerda e se constituiu inclusive na mola mestra do novo regime que Getlio

    Vargas implanta no pas, conforme ser analisado a seguir.

    Presidncia de Getlio Vargas e o Golpe do Estado Novo (1930-1945)

    A atuao do Estado Novo representar uma inflexo importante em relao aos

    primeiros anos que se seguiram Revoluo de 1930. Abandonou-se tanto o

    liberalismo econmico quanto o poltico. A partir do Estado Novo, a poltica

    econmica favoreceu sistematicamente a empresa industrial que vai

    transformando-se na unidade mais rentvel do sistema econmico. Vale destacar

    que o Estado Novo constitui-se na ditadura pessoal de Getlio Vargas, que passa a

    desempenhar o papel de moderador da ordem social, contemporizando e

    manipulando habilmente os movimentos sociais, conciliando os interesses

    divergentes e evitando choques entre vrios setores da burguesia. 17

    Com a crise de 1929 e a Revoluo de 1930, que conduziram Getlio Vargas

    ao poder, houve uma transformao no padro de acumulao vigente. Foram

    criadas bases para o desenvolvimento de uma estrutura produtiva urbano-

    industrial, de substituio de importaes, alterando a postura do poder pblico em

    relao indstria e acentuando a concentrao de investimentos na rede urbana

    no Rio de Janeiro. Este perodo foi marcado por um intenso deslocamento campo-

    cidade, que estimulou de forma contraditria, particularmente no Rio de Janeiro, as

    presses da classe operria urbana por assistncia-mdico-hospitalar e

    habitacional. O surgimento de novas classes sociais, isto , a constituio de um

    proletariado urbano e a configurao de classes mdias18, a partir de 1930,

    estimulou o crescimento da cidade, intensificando as migraes rurais e urbanas.

    relevante destacar que aps o ciclo cafeeiro do sculo XIX, a

    industrializao da capital imps uma nova diviso social e territorial do trabalho no

    17 FINEP. Habitao popular: inventrio sobre a ao governamental, 1985: 53. 18 Ver F. Oliveira. A economia brasileira: crtica razo dualista., 1975; F. Weffort. O populismo na poltica brasileira, 1980.

  • incio do sculo XX, estimulando a migrao do capital comercial e cafeeiro para

    empreendimentos imobilirios no Distrito Federal.

    Pode-se ver na Revoluo de 1930 a aglutinao de diferentes grupos como

    a burguesia industrial e financeira, o proletariado, a pequena classe mdia, as

    foras armadas, a burguesia agrria no cafeicultora. Diversas tentativas frustradas

    de coalizo destes grupos, nos primeiros anos do perodo revolucionrio, levaram

    ao Estado Novo e ao regime ditatorial. Em 1930, a cidade j se encontrava

    bastante estratificada e a variedade de classes sociais que deram origem

    Revoluo de 1930, implicou a necessidade do governo alternar perodos de

    favorecimento de uma classe com pocas em que privilegiava as demandas de

    outros setores sociais.19 Segundo Maria Lais Pereira da Silva20, neste momento, o

    proletariado urbano e os movimento operrios estavam em parte nucleados em

    associaes de vrios tipos e suas aes passam ao largo da vida poltica

    institucional.

    O perodo entre Revoluo e instituio do Estado Novo engloba a

    administrao municipal de Pedro Ernesto e o decreto que instituiu o primeiro

    cdigo de obras da cidade, onde as favelas so oficialmente reconhecidas e

    regulamentadas. O primeiro prefeito eleito, de forma indireta, foi o mdico e

    poltico Pedro Ernesto do Rego. Sua trajetria poltica inicia em 1922, apoiando o

    movimento tenentista e, por imposio dos tenentes, o presidente Getlio Vargas o

    nomeou prefeito-interventor do ento Distrito Federal. Com a fora conquistada por

    uma administrao popular e humanista, funda o Partido Autonomista, que vence

    as eleies municipais de 3 de maio de 1935, conquistando a esmagadora maioria

    de 18 dos 20 vereadores eleitos. Conforme a legislao da poca, Pedro Ernesto,

    como vereador mais votado, foi aclamado prefeito (1931-1936), dando

    continuidade a sua gesto como interventor. Segundo Maria Lais Pereira da Silva,

    19 ABREU, M. Polticas Pblicas, estrutura urbana e distribuio de populao de baixa renda na rea metropolitana do Rio de Janeiro, 1987: 94. 20 SILVA, M. Favelas Cariocas, 1930-1964, 2005: 34.

  • em sua gesto, as favelas assumem importncia como fato poltico inserido na

    questo social.

    No campo da habitao este perodo se caracteriza por uma primeira

    tentativa de registro de habitaes ilegais existentes, a Estatstica Predial do

    Distrito Federal, assim como de registro das primeiras informaes mais

    consistentes sobre a intensificao da atuao da prefeitura do Distrito Federal (RJ)

    no programa de erradicao de favelas.

    Do final da dcada de 1920 at as proximidades do golpe que implantou o

    Estado Novo em 1937 destacam-se, no plano poltico institucional, duas

    importantes tentativas de ordenamento e controle urbanos: a elaborao do

    primeiro plano diretor da cidade do Rio de Janeiro, o Plano Agache, e o decreto

    600021 de 1937, que expressava a regulamentao e o direcionamento que o poder

    pblico desejava para a cidade, j considerada problemtica no que se refere s

    favelas.

    possvel considerar que o incio das polticas pblicas em favelas da cidade

    do Rio de Janeiro remonta dcada de 40. A partir dos anos 40, inicia-se uma nova

    etapa para as populaes de baixa renda, marcada por intervenes pontuais,

    desarticuladas, como a proposta dos chamados Parques Proletrios Provisrios,

    numa viso autocrtica de reeducar, reajustar e recuperar o morador, com o

    propsito de abrigar provisoriamente a populao de algumas favelas da cidade do

    Rio de Janeiro. Em 1942 o programa realizou a transferncia de um grande nmero

    de pessoas para os Parques Proletrios. A deciso de construir conjuntos

    habitacionais constituiu uma nova orientao construtiva. 22

    Neste perodo, preciso salientar a acelerao do desenvolvimento do setor

    industrial e o crescimento da concentrao espacial nas grandes cidades e em suas

    21 O Decreto 6000 foi promulgado em 1 de Julho de 1937, definia as zonas industriais da cidade, influindo nas formas futuras de apropriao do espao. 22 FINEP. Habitao popular: inventrio sobre a ao governamental, 1985: 54.

  • periferias. A favela ganhou importncia como representao nacional do problema

    habitacional, numa ntida projeo da realidade do Rio de Janeiro para todo o pas.

    Neste perodo, quanto questo da moradia popular, nota-se que a

    interveno do Estado se expressa em nvel nacional em trs direes: a

    interveno do mercado privado de habitao por meio da Lei do Inquilinato23

    (Decreto-lei 4598/42),24 a estruturao das carteiras prediais dos Institutos de

    Aposentadorias e Penses IPAs e , a criao de rgos encarregados de polticas

    nacionais mais abrangentes , como a Fundao da Casa Popular, em 1946. Neste

    perodo, destaca-se tambm a mudana de status da questo habitacional,

    desencadeando uma proliferao de rgos estaduais e municipais. 25

    Os governos democrticos de 1945-1964: reflexos sobre a cidade do Rio de Janeiro.

    Na segunda metade da dcada de 1940, no plano poltico local, surgem novas

    condies polticas com a liberalizao poltica havida no final do Estado Novo,

    iniciando um processo de reorganizao de movimentos associativos com

    caractersticas basicamente urbanas. Nesta mesma poca, Hildebrando de Gis

    assume a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

    Empossado o presidente Eurico Gaspar Dutra, em Janeiro de 1946, o Estado

    passara a criar condies institucionais e econmicas para o desenvolvimento da

    economia urbana e industrial voltada para o mercado interno, mantendo as

    condies que permitiam ao setor agrrio expandir-se horizontalmente com baixos

    coeficientes de capitalizao. Para a economia urbano-industrial, o setor rural

    fornecia, pela migrao da mo-de-obra abundante, matrias-primas e alimentos

    baratos, alm de supri-la com equipamentos e materiais importados via confisco

    23 Nos anos de guerra, a partir de 1942, com esta Lei, houve uma tentativa de controlar os aluguis e manter a oferta de imveis. 24A Lei do Inquilinato representou o congelamento dos aluguis, com a justificativa emergencial do perodo de Guerra. Contudo, a Lei desestimulou a construo de novas moradias por parte do capital rentista , motivando o aumento de despejos judiciais e a reduo da oferta de habitao no mercado urbano, estimulando um intenso mercado negro nas transferncias de imveis. Ver SILVA, M. Favelas cariocas, 2005: 42. 25 SILVA, M. Favelas cariocas, 1930-1964, 2005: 40.

  • cambial. Tem incio, assim, a acelerao do processo de urbanizao brasileiro e as

    presses populares sobre o governo para a soluo dos novos problemas

    decorrentes do desenvolvimento industrial de ps-guerra. Neste contexto, criada

    a Fundao da Casa Popular. 26

    Este perodo caracteriza-se principalmente por ser uma poca de transio

    na evoluo social brasileira. Aps o final da Segunda Guerra Mundial, em 1946, foi

    criada a Fundao da Casa Popular, rgo especificamente habitacional que

    privilegiava o atendimento s camadas de menor poder aquisitivo, incorporando

    funes ligadas a intervenes de cunho urbano. A Fundao se propunha a

    proporcionar a aquisio ou construo de moradia prpria, em zona urbana ou

    rural. Destinava-se tambm a financiar estabelecimentos industriais que

    construssem residncias para os respectivos trabalhadores.

    Atravs do decreto-lei n 9.777 de 06 de Setembro de 1946, as funes da

    Fundao foram ampliadas27, dentre elas: financiar, na zona rural, a construo,

    reparao ou melhoramento de habitaes para os trabalhadores; financiar as

    construes de iniciativas, ou sob responsabilidade de Prefeituras Municipais,

    empresas industriais ou comerciais, de residncias de tipo popular, destinadas

    venda ou locao a trabalhadores, sem objetivo de lucro; financiar obras

    urbansticas, de abastecimento de gua, esgotos, suprimento de energia eltrica,

    assistncia social e outras que visem melhoria das condies de vida e bem-estar

    das classes trabalhadoras; estudar e classificar os tipos de habitaes denominadas

    populares; proceder a estudos e pesquisas de mtodos e processos que visem ao

    barateamento da construo quer isolada, quer em srie, de habitaes do tipo

    popular; preparar normas ou cadernos de encargos, tendo em vista, especialmente,

    a mxima ampliao possvel da rea social de seus benefcios; financiar as

    indstrias de materiais de construo; estudar, projetar ou organizar planos de

    26 FINEP. Habitao popular: inventrio sobre a ao governamental, 1985: 61.

    27 Idem: 65.

  • construo de habitaes de tipo popular a serem executadas pela prpria

    Fundao ou por terceiros; cooperar com as prefeituras dos pequenos municpios

    que no dispuserem de pessoal tcnico habilitado; e realizar todas as operaes

    que digam respeito melhor execuo de suas finalidades.

    Apesar de representar um avano, a Fundao apresentava fragilidade

    financeira e institucional e inviabilidade poltica e tcnica. De acordo com Maria Lais

    Pereira da Silva, os problemas estavam ligados ao contexto populista, que dava

    margem a uma grande ambigidade poltico-institucional, s dificuldades de

    negociao dos recursos, a inmeras presses clientelsticas e, dificuldade de

    sustentar um subsdio quase integral habitao numa economia que sofria uma

    alta inflacionria. Logo, a produo da Fundao da Casa Popular foi muito

    dispersa. Construiu somente 18.132 unidades em todo o Brasil. No Rio de Janeiro

    foram construdos apenas 3% do total de conjuntos (cinco), mas eles totalizavam

    cerca de 24% das habitaes, isto , 3.993 unidades, repetindo-se o padro dos

    IAPs.28 Este perodo, por outro lado, fora marcado pela criao de uma grande

    quantidade de instituies criadas para a habitao popular em vrias cidades,

    mostrando que a questo da habitao tornava-se cada vez mais um problema

    governamental. No Rio de Janeiro destaca-se a construo de parques proletrios

    provisrios e a criao de rgos como a Fundao leo XIII,29 em 1947, bem

    como a presena do Departamento de Habitao Popular DHP, da Prefeitura do

    Distrito Federal, que construram conjuntos habitacionais, visando o

    desfavelamento da capital da Repblica. 30 A Fundao desenvolveu um trabalho

    at 1955, quando ento reduz o ritmo de construes at paralisar praticamente

    suas atividades no incio dos anos 1960.

    28 Idem: 43. 29 Fruto da articulao entre o cardeal dom Jaime de Barros Cmara e o prefeito Hildebrando de Gis, tendo como motivao principal neutralizar e eliminar a influncia dos comunistas nas favelas por outros mtodos que no os da represso policial. Foi um ator importante por sua ao continuada nas favelas e por ser um projeto disseminador de um trabalho social autnomo, apesar de sua ligao com o poder pblico. 30 SILVA, M. Favelas cariocas, 1930-1964, 2005: 44.

  • O mandato do prefeito Hildebrando de Gis (1946-1947) ocorreu em meio a

    uma crise no Poder Executivo e grande instabilidade no Legislativo. Em decorrncia

    desta crise este foi demitido, e o general Mendes de Morais assume a prefeitura em

    24 de Abril de 1947. 31 Em sua gesto, a questo social e urbana passou

    novamente para primeiro plano, com propostas e tentativas de interveno na crise

    habitacional, que girava em torno da Lei do Inquilinato e de sua principal

    conseqncia expressa no crescimento descontrolado das favelas na cidade.

    Durante seu mandato, os projetos e intervenes urbanas se voltam para a

    consolidao e abertura de novos espaos para o capital imobilirio, atravs do

    parcelamento fundirio e a valorizao dos terrenos, procurando estimular e

    consolidar tambm o acesso e o transporte rodovirio para determinadas reas do

    Rio de Janeiro. Nesta mesma poca, assumiu particular visibilidade o crescimento

    das favelas da cidade. Em torno desta questo, as aes institucionais ocorreram

    atravs de importantes projetos habitacionais que se desenvolveram no

    Departamento de Habitao Popular, mas que foram pouco implementados. No

    plano poltico-assistencial, as aes giraram em torno das propostas da Prefeitura

    contidas no Plano de Extino das Favelas. Porm, a ao realmente se

    desenvolveu no plano policial-repressivo. 32

    Neste perodo, ocorre uma multiplicao de favelas no Rio de Janeiro. De

    acordo com Mauricio Abreu33 , a regio da Leopoldina passou por duas grandes

    melhorias: o saneamento do rio Faria-Timb (em 1942) e a inaugurao da Avenida

    Brasil (em 1946). O objetivo destas obras incentivar o processo de

    industrializao na Regio. Porm, a ausncia de obras de infra-estrutura nesta

    rea, impossibilita a implantao regular das indstrias. Ocorre uma ocupao

    desordenada de pequenas indstrias, e os bairros cortados pela Avenida Brasil 31 Mendes de Morais foi o prefeito com maior tempo de gesto no perodo imediatamente anterior transferncia da capital, governando a cidade at 1951. Ver SILVA, M. Favelas cariocas, 1930-1964, 2005: 63.

    32 Idem: 65. 33 Ver ABREU, Mauricio de Almeida. EvoluouUrbana do Rio de Janeiro, 1987.

  • empobrecem, sofrem com as inundaes e com a falta de saneamento bsico. A

    impossibilidade do estabelecimento de importantes indstrias ao longo da Avenida

    Brasil, como era previsto, criou nesta rea, grandes vazios, possibilitando o

    processo de favelizao em seu percurso. Como foi visto anteriormente, em 1947

    criou-se uma comisso especfica para a erradicao das favelas, fracassada devido

    falta de recursos e de poder. Tem incio, assim, o processo de urbanizao

    brasileiro e as presses populares sobre o Governo para a soluo de novos

    problemas decorrentes do desenvolvimento industrial de ps-guerra. Neste

    contexto, enquadra-se o Plano Salte Sade, Alimentao, Transporte e Energia

    e a criao da Fundao da Casa Popular.

    Embora, na dcada de 50, ainda houvesse um discurso que relacionava os

    males fsicos aos males morais da populao, trs fatores, conjugados,

    redirecionam o problema favela para outro eixo de discusso: o aparecimento de

    lideranas mais amadurecidas politicamente, j organizadas em partidos polticos; o

    assustador avano das favelas e, finalmente, a dificuldade das remoes. Incluiu-se

    ao discurso da remoo, o da urbanizao de algumas favelas, principalmente

    quanto ao saneamento da rede de esgoto.

    O Segundo mandato de Getlio Vargas (1951-1954).

    Eleito em 1950, Getlio Vargas retorna Presidncia da Repblica em 1951. Vargas

    iniciou o governo com postura conservadora, mantendo a transferncia de renda do

    setor exportador para o industrial, via poltica cambial. Desde o fim do governo

    Dutra, o setor operrio sofrera algumas modificaes que tiveram importantes

    repercusses polticas no governo Vargas. O governo era pressionado pelos

    sindicatos, que desejavam realizar a escolha de seus representantes entre os

    operrios, contra o controle do Ministrio do Trabalho. Nesta conjuntura, perdendo

    suas bases populares, Vargas resolve mudar a poltica e remodelar seu Ministrio

    colocando Joo Goulart na pasta do Ministrio do Trabalho, o que desencadear

  • uma drstica mudana na poltica trabalhista anterior, substituindo o velho

    populismo por alianas do Estado com o movimento operrio.

    Dentre as realizaes mais notveis do perodo destaca-se a construo, em

    1952, pelo Departamento de Habitao Popular da Prefeitura do Distrito federal

    (RJ), do Conjunto Habitacional do prefeito Mendes de Moraes, com 328 unidades.

    Conhecido como Conjunto do Pedregulho34 tornou-se exemplo por incorporar

    criativamente os princpios da arquitetura e urbanismo modernos soluo de um

    conjunto habitacional para camadas populares.

    Desde 1953, a crise exacerbava-se provocando o esvaziamento poltico e

    militar do governo. Vargas, devido a suas medidas nacionalistas, logo foi acusado

    pela oposio de pretender implantar no pas uma Repblica Sindicalista, nos

    moldes do peronismo argentino. O atentado ao jornalista Carlos Lacerda, principal

    autor de ataques ao Governo, faz com que a presso militar se intensifique,

    culminando na exigncia de renncia de Getlio Vargas, que se suicidou logo em

    seguida, no ano de 1954. Neste ano, as contnuas manifestaes populares

    continuaram garantindo a sobrevivncia do populismo, e asseguraram a eleio de

    um continuador de Vargas, o candidato Juscelino Kubitscheck de Oliveira.

    No contexto das condies poltico-institucionais da crise habitacional,

    permanece o debate em torno das freqentes prorrogaes da Lei do Inquilinato,

    que se repetiam, a cada dois anos, particularmente a partir de 1950. As

    repercusses na cidade se agravavam principalmente por causa da maior presso

    dos fluxos migratrios. No caso da questo da habitao, a imprensa noticiou a

    onda de despejos, entre 1950 e 1954, sendo o motivo principal a falta de

    pagamento, gerando uma categoria somente de inquilinos. 35

    34 FINEP. Habitao popular: inventrio sobre a ao governamental, 1985: 66.

    35 SILVA, M. Favelas cariocas, 1930-1964, 2005: 68.

  • Os prefeitos que assumiram a cidade com o segundo Governo de Getlio

    Vargas, Joo Carlos Vital (1951-1952) e Dulcdio do Esprito Santo Cardoso (1952-

    1954), mantiveram estreita ligao com as linhas nacionalistas, no quadro do

    trabalhismo da poca, e com relaes polticas populistas. Nesta poca, a crescente

    crise habitacional fortaleceu movimentos sociais e polticos, reforando mais uma

    vez a continuidade das caractersticas conjunturais do segundo perodo Vargas.

    Uma breve passagem pela presidncia de Juscelino Kubitscheck (1956-1965).

    Juscelino Kubitscheck foi o ltimo presidente da Repblica a assumir o cargo no

    Palcio do Catete, na cidade do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1956. Em seu

    mandato presidencial, Juscelino lanou o Plano Nacional de Desenvolvimento,

    tambm chamado de Plano de Metas, que tinha o clebre lema "Cinquenta anos em

    cinco". O plano tinha 31 metas distribudas em seis grandes grupos: energia,

    transportes, alimentao, indstria de base, educao e a meta principal

    Braslia, inaugurada em Abril de 1960. Visava a estimular a diversificao e o

    crescimento da economia, baseado na expanso industrial e na integrao dos

    povos de todas as regies com a capital no centro do territrio brasileiro. Com JK

    ocorreu considervel acelerao do desenvolvimento econmico e do processo de

    urbanizao, em decorrncia, principalmente, da implantao das indstrias de

    bens de produo e a automobilstica, assim como a expanso de infra-estrutura de

    estradas de rodagem e energia eltrica.

    Em sua gesto, uma parcela crescente da alta burguesia estava convencida

    da necessidade de uma poltica econmica de estabilizao e austeridade, mesmo

    que isto custasse uma parada temporria do desenvolvimento. Contudo, o

    problema habitacional ainda no havia assumido o status de crise que ir ocorrer

    no incio dos anos 1960, tanto que no Plano de Metas no h qualquer referncia

    expressa habitao.36

    36 FINEP. Habitao popular: inventrio sobre a ao governamental, 1985: 62.

  • No governo Kubitscheck (1956-1961), a pouca ateno dada questo

    habitacional aprofundou a crise da habitao. A questo a partir deste momento

    estava relacionada com o destino do campo e da cidade, vale dizer, com problemas

    de reforma agrria e urbana, e com o prprio desenvolvimento do pas.

    O estado da Guanabara: a conjuntura da metrpole carioca nos anos 1960

    Em 1834, a cidade do Rio de Janeiro foi transformada em "municpio neutro",

    permanecendo como capital do Imprio do Brasil, enquanto que Niteri passou a

    ser a capital da provncia do Rio de Janeiro. Em 1889, a cidade transformou-se em

    capital da Repblica, o municpio neutro em Distrito Federal e a provncia em

    estado. Com a mudana da capital para Braslia, em 21 de abril de 1960, a cidade

    do Rio de Janeiro tornou-se o estado da Guanabara, de acordo com as disposies

    transitrias da Constituio de 1946 e com a Lei n 3.752, de 14 de abril de 1960.

    A transferncia da capital do pas para Braslia, realizada por Juscelino

    Kubitschek, provocou grande especulao sobre o futuro poltico-administrativo da

    cidade do Rio de Janeiro. Os debates versaram sobre a possibilidade de transformar

    o Distrito Federal em um estado semelhante s demais unidades da federao,

    idia j preconizada nas constituies de 1891, 1934 e 1946. Em 14 de abril de

    1960, o Congresso Nacional decretou e Juscelino sancionou a lei n 3.752,

    conhecida como Lei San Tiago Dantas37, que estabelecia normas para criao do

    estado da Guanabara (o 21 estado da Unio) e convocao de sua Assemblia

    Constituinte. Na mesma data da mudana da sede do governo, em 21 de abril de

    1960, foi instalada a Assemblia Legislativa do Estado da Guanabara - ALEG.

    A eleio do candidato Jnio Quadros em fins de 1960, respondia aos

    anseios da sociedade nacional, ao combinar uma poltica interna conservadora

    37 De acordo com a Lei Santiago Dantas os vereadores da Cmara do Distrito Federal, eleitos em 03 de outubro de 1958, tornavam-se deputados constituindo o Poder Legislativo at que fosse promulgada a Constituio do novo estado. Desta forma, a Cmara de Vereadores do Distrito Federal funcionou como Assemblia Legislativa at a promulgao da Constituio estadual em 27 de maro de 1961.

  • deflacionista com uma poltica externa independente, atrativa para os setores

    populares de esquerda. Aps sua posse em 1961, obstculos comearam a surgir

    em decorrncia destas polticas de governo, causando descontentamento tanto da

    classe trabalhadora, quanto do Congresso, levando ao encaminhamento de sua

    renncia presidncia, apenas sete meses aps a posse. Com a renncia de

    Quadros, em Setembro deste mesmo ano, o Congresso Nacional aprova uma

    Emenda Constitucional adotando o Parlamentarismo, que viabilizava a posse de

    Joo Goulart, deflagrando ainda mais a instabilidade do regime, trazendo tona a

    luta poltica sobre a volta do Presidencialismo. Neste perodo, sob o impacto dos

    processos de industrializao, de urbanizao e de maior liberdade das camadas

    operrias e rurais, o problema habitacional foi transformado em uma questo mais

    complexa do que a simples construo de casas ou conjuntos habitacionais.

    Associado prpria discusso do modelo de desenvolvimento, diante da escala e

    velocidade que adotara, o equacionamento do problema habitacional passa a

    envolver questes como reforma agrria e urbana (propriedade da terra), captao

    e manuteno do valor real dos recursos financeiros.

    Do final do perodo Kubitscheck ao curto governo Quadros, fatos externos ao

    pas vo transformar a compreenso da questo habitacional no continente latino-

    americano. Suas origens podem ser encontradas na Revoluo Cubana de 1959, na

    promessa de Fidel Castro de reforma social para o proletariado urbano e, mais

    especificamente, em sua Reforma Urbana. Para combater a possvel repercusso

    dessas medidas, a Agncia para o Desenvolvimento Internacional AID decidiu

    dinamizar o Fundo de Emprstimos para o Desenvolvimento DFL, autorizando

    emprstimos e garantias para fins habitacionais, aos pases da Amrica Latina, em

    1961. O Brasil, includo no grupo de pases que se beneficiariam do emprstimo,

    procura, no governo Jnio Quadros, instrumentar-se para responder ao desafio

    habitacional, atravs de tentativas como o Instituto Brasileiro de Habitao e

    criao do Conselho Federal de Habitao em 1961. Nesta poca, o Instituto dos

    Arquitetos do Brasil alertava o povo e as autoridades para as imperfeies do plano

  • para enfrentar a crise residencial, pois este visava construo de casas destinadas

    somente venda.

    Com a posse de Joo Goulart os problemas relacionados moradia, em

    particular nos grandes centros urbanos, sero objeto de mensagem especial ao

    Congresso Nacional, na qual se dar o primeiro passo para a formulo de uma

    poltica habitacional capaz de disciplinar o vertiginoso e desordenado crescimento

    urbano. Neste contexto, a falta de uma legislao reguladora permitiu que a

    indstria de construo se transformasse em presa fcil de especuladores,

    impedindo o acesso residncia prpria das camadas mais pobres da populao.

    A partir da, o Conselho Federal de Habitao passa a ter um papel

    altamente significativo na execuo desta poltica, submetendo ao Congresso

    Nacional um projeto de lei de reforma urbana, que prope novas solues para o

    problema da habitao e para a questo da moradia popular. Portanto, o contexto

    que surge em decorrncia da mudana na situao poltico-institucional brasileira e

    da cidade, trouxe importantes tranformaes nas polticas habitacionais e sociais.

    A Histria recente do Rio de Janeiro pode ser dividida em trs momentos:

    Distrito Federal Republicano (1889-1960), Estado da Guanabara (1960-1975) e

    Municpio do Rio de Janeiro (a partir de 1975). Em um primeiro momento, o Rio de

    Janeiro era visto como o elo entre o pas e a civilizao Europia, tornando-se a

    vitrine dessa cultura para o resto do pas; como cidade-capital, o Rio de Janeiro

    deveria ser o baluarte da unidade e da centralizao, o que significava enfrentar o

    desafio de unificar uma vasta regio pontuada por ilhas econmicas e culturais,

    desejosas de emancipao poltica, suprema ameaa. Como sede do governo

    federal, e espao de representao poltica da cidade do Rio de Janeiro, a capital

    possua duas funes de carter dbio: administrativa, e, portanto, subordinada

    aos interesses federais; e poltica, na qual defendia sua autonomia poltica. Essas

  • duas propostas refletem e reforam a ambigidade do lugar que o Rio de Janeiro,

    na condio de Distrito Federal, ocupava na federao. 38

    No segundo momento, aps a aprovao pelo Congresso da transferncia da

    Capital para Braslia, o espao do Rio de Janeiro no pas mudou profundamente.

    Podemos separar esse perodo em alguns momentos distintos e bastante marcantes

    para o desenho poltico carioca.

    Em 1958, os jornais cariocas publicavam opinies de personalidades do

    Distrito Federal e do Rio de Janeiro sobre os destinos da cidade. As trs propostas

    que surgiram na poca apoiavam a criao do territrio da Guanabara; do estado

    da Guanabara; do municpio do Rio de Janeiro, incorporado ao Estado do Rio de

    Janeiro. No incio de 1960, intensificou-se o debate parlamentar, devido

    indefinio do futuro da cidade do Rio de Janeiro no cenrio poltico nacional. A

    capital seria transferida em 21 de Abril de 1960 e no havia sido definido ainda o

    arcabouo jurdico poltico. Na Constituio de 1891, estava previsto que, caso a

    capital se transferisse para o interior, a cidade do Rio de Janeiro se fundiria com a

    Velha Provncia. 39 No entanto, a falta de entendimento poltico postergou esta

    fuso por 15 anos.

    No processo de elaborao da Constituio da Guanabara, uma das

    principais questes levantadas na elaborao da Constituio era se o Estado da

    Guanabara deveria ter uma organizao municipal clssica, assim como os outros

    estados (com municpios, prefeitos e cmaras de vereadores), ou ser uma cidade-

    estado, sem diviso municipal. A deciso caberia ao novo Governador, Carlos

    Lacerda (1960-1965), primeiro governante eleito diretamente pelos cariocas. Nos

    dois primeiros anos de governo, Lacerda privilegiou a montagem do arcabouo

    jurdico-institucional do novo estado. Candidato presidncia em 1965, Lacerda

    investiu na transformao do Estado da Guanabara em um estado capital, onde a

    38 Ver MOTTA, M. O lugar da cidade do Rio de Janeiro na Federao Brasileira: uma questo em trs momentos, 2001.

    39 Ver Motta, M. & Sarmento, C. A construo de um estado: a fuso em debate, 2001.

  • cidade no perderia sua condio de vitrine da nao. No entanto, ao reafirmar o

    papel tradicionalmente exercido pela cidade, no por acaso chamada de Belacap, o

    governo Lacerda no conseguiu estabelecer os alicerces fundadores de um novo

    lugar para o Rio de Janeiro na federao, o de estado federado. 40 Eleito o

    governador e criado o corpo legislativo, o desafio seguinte foi organizar

    administrativamente o municpio do Rio de Janeiro, agora transformado em Estado

    da Guanabara. O Executivo e a Assemblia Legislativa foram contra a diviso do

    estado em municpios, tese vencedora no plebiscito popular realizado em 21 de

    abril de 1963.

    O Governo Lacerda dinamizou mudanas radicais na cidade, ao promover a

    remoo de favelas para outras regies (e a conseqente criao da Vila Kennedy e

    da Cidade de Deus), a construo da adutora do Guandu para o abastecimento de

    gua cidade, e implementou uma srie de modificaes paisagsticas. Dentre as

    principais obras realizadas na cidade nesse perodo, destacam-se a abertura do

    Tnel Rebouas, o alargamento da praia de Copacabana, e a construo da maior

    parte do Aterro do Flamengo, sobre o qual foi formada a mais extensa e completa

    rea de lazer da cidade, o Parque do Flamengo, hoje denominado oficialmente de

    Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, situado junto orla da Baa de Guanabara, com

    121,9 hectares e que se estende desde o Aeroporto Santos Dumont at o Morro da

    Viva, em Botafogo.

    No governo Lacerda, a dimenso habitacional foi largamente tratada, mas

    segundo parmetros modificados no incio do governo. Segundo Maria Lais Pereira

    da Silva, o Rio de Janeiro continuou sendo uma cidade de inquilinos: cerca de 50%

    dos domiclios eram alugados, com as favelas crescendo e uma situao de moradia

    considerada dramtica para os pobres da cidade. A autora constata que num

    primeiro momento, a poltica relacionava-se s propostas que vinham sendo

    construdas numa linha de urbanizao pela recm montada Coordenao do

    40 Ver MOTTA, M. S. O lugar da cidade do Rio de Janeiro na Federao Brasileira: uma questo em trs momentos, 2001.

  • Servio Social, sob a direo do socilogo Jos Arthur Rios, que baseava suas aes

    nas associaes de moradores, atribuindo-lhes um importante papel intermedirio

    na relao com o poder pblico.41 Contudo, quando o acordo entre o governo do

    estado e a United States Agency for International Development Usaid (organismo

    do governo dos Estados Unidos) foi firmado em 1962, desapareceram quase que

    completamente os recursos para a urbanizao das favelas, prevalecendo a partir

    da a ideologia da casa prpria, da remoo das populaes das favelas e a

    construo de conjuntos habitacionais na periferia.

    Nesse perodo, tambm foi organizada a Companhia Estadual de Telefones -

    Cetel, cuja misso foi a de instalar servio de telefones automticos nos afastados

    subrbios, como Iraj, Bento Ribeiro, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, na

    baixada de Jacarepagu e na Barra da Tijuca, assim como na Ilha do Governador e

    na ilha de Paquet. Anos mais tarde, a companhia estadual foi incorporada ao

    sistema telefnico fluminense que, atravs da agncia de Telecomunicaes do

    Estado do Rio de Janeiro Telerj, passou a atender o restante do estado aps a

    fuso.

    De 1960 a 1962 abrandaram-se as relaes entre o estado e os moradores,

    perodo em que foram criadas a maior parte das Associaes dos Moradores. Neste

    perodo, devido transferncia da capital da cidade para Braslia, a cidade perde

    vrias de suas funes e precisa reordenar o seu espao. 42 Encomendado por

    Carlos Lacerda, o Plano Doxiadis, plano de desenvolvimento urbano para a cidade,

    definiu as principais propostas para as vrias polticas, inclusive a habitacional, que

    somente ficar pronto em 1965, no final do seu governo. As enchentes ocorridas no

    Rio de Janeiro vo agravar a situao de crise da cidade e impedir a sua realizao.

    Caracteriza-se pela busca de modelos importados de cidade e tcnicas sofisticadas

    de trabalho. O planejamento fsico proposto visa a pensar o espao de forma

    41 SILVA, M. Favelas cariocas, 1930-1964, 2005: 73.

    42 OLIVEIRA, L. Cidade histria e desafios, 2002 : 265.

  • compartimentada, de acordo com as necessidades dos indivduos: espao para

    morar, espao para o trabalho etc., com base nas propostas dos Congressos

    Internacionais de Arquitetura Moderna CIAM.43

    neste contexto que o governo Negro de Lima e o Regime Militar (1965-

    1970), sero analisados na prxima etapa da pesquisa. A seguir, para a melhor

    visualizao do perodo, utiliza-se um quadro com a ao dos governos federal,

    municipal e estadual, de 1937 a 1964, na rea das polticas de habitao, com

    destaque para a cidade do Rio de Janeiro.

    Quadro 1. Histria da urbanizao da cidade do Rio de Janeiro:

    aes federais, estaduais e municipais.

    FEDERAL ESTADUAL MUNICIPAL OUTROS INICIATIVAS

    1937-1945 H. Dodsworth

    Parques Proletrios Provisrios: construo de novas habitaes para moradores de favelas, se possvel no prprio local ou prximo dali.

    01/05/1946

    O Presidente Dutra nomeia Comisso Interministerial para estudar e apresentar solues para as favelas e, ao mesmo tempo, cria a Fundao da Casa Popular. A Comisso apenas reforou medidas coercitivas semelhantes ao cdigo de obras de 1937.

    1946

    Criao do Departamento de Habitao Popular pelo Prefeito Mendes de Moraes.

    43 Idem: 266-267.

  • Autorizada por decreto presidencial N 22498 de 22/01/1947

    Criada pela

    Prefeitura do Distrito Federal

    1947

    Criao da Fundao Leo XIII, na busca por uma soluo a longo prazo, que priorizasse a promoo humana. Segundo analistas, sua criao tambm era motivada pelo combate a comunistas.

    1946-1950

    O Prefeito Mendes de Moraes cria o Servio de Extino de Favelas e desenvolve plano que deveria estimular o retorno a