Multiculturalismo e Pluriculturalismo

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Multiculturalismo e Pluriculturalismo. VIANNA NETO, Arnaldo Rosa. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de Literatura e Cultura. Niterói: EdUFF, Juiz de Fora, 2010, p. 289 – 311. O multiculturalismo reúne vários sentidos que variam conforme o autor, a disciplina ou a abordagem epistemológica a partir da qual é estudado. O multiculturalismo problematiza questões complexas e contraditórias nas sociedades pós-industriais, que atuam como indicadores da crise do projeto de modernidade. A epistemologia cultural, como mostra Vianna Neto, ultrapassa a descrição da diversidade demográfica e cultural das sociedade humanas, assim como ultrapassa a noção de especificidades nacionais e inscreve-se como conceito civilizacional no discurso que as sociedades contemporâneas elaboram em contraposição às ideologias monoculturais. Se desde o romantismo e o relativismo cultural das ciências sociais do início do século XX instaurou-se uma tradição humanista de reconhecimento de alteridades e tolerância entre diferentes culturas habitando um mesmo espaço, o que se debate, atualmente, é a manutenção ou o congelamento, das diferenças, ou seja, uma divisão estática, compartimentalizada das construções culturais como discurso ideológico da globalização. Ante as mudanças em curso nas sociedades contemporâneas, plurais e complexas, o multiculturalismo busca um redimensionamento de fronteiras e fechamentos característicos da epistemologia monocultural e a problematização de conceitos, como o de identidade, diferença, justiça,

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Arnaldo Rosa Vianna Neto

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Multiculturalismo e Pluriculturalismo. VIANNA NETO, Arnaldo Rosa. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de Literatura e Cultura. Niterói: EdUFF, Juiz de Fora, 2010, p. 289 – 311.

O multiculturalismo reúne vários sentidos que variam conforme o autor, a

disciplina ou a abordagem epistemológica a partir da qual é estudado. O

multiculturalismo problematiza questões complexas e contraditórias nas

sociedades pós-industriais, que atuam como indicadores da crise do projeto de

modernidade. A epistemologia cultural, como mostra Vianna Neto, ultrapassa a

descrição da diversidade demográfica e cultural das sociedade humanas,

assim como ultrapassa a noção de especificidades nacionais e inscreve-se

como conceito civilizacional no discurso que as sociedades contemporâneas

elaboram em contraposição às ideologias monoculturais.

Se desde o romantismo e o relativismo cultural das ciências sociais do

início do século XX instaurou-se uma tradição humanista de reconhecimento de

alteridades e tolerância entre diferentes culturas habitando um mesmo espaço,

o que se debate, atualmente, é a manutenção ou o congelamento, das

diferenças, ou seja, uma divisão estática, compartimentalizada das construções

culturais como discurso ideológico da globalização. Ante as mudanças em

curso nas sociedades contemporâneas, plurais e complexas, o

multiculturalismo busca um redimensionamento de fronteiras e fechamentos

característicos da epistemologia monocultural e a problematização de

conceitos, como o de identidade, diferença, justiça, relativismo, racionalismo,

universalismo, cidadania, ética, etc, inscritos no projeto de modernidade das

democracias liberais. É necessário frisar que mesmo com a instituição de

igualdade prometida dentro da constituição, esta não é garantida a todos,

sendo, portanto, difícil concluir que a integração real segue automaticamente a

integração formal ou legal. Ainda é necessário observar que a pedagogia

integracionista promovida pelas políticas do multiculturalismo provoca e

desenvolve, muitas vezes, durante o processo, movimentos separatistas e a

“guetoização” de várias comunidades, tornando cada vez mais complexa a

gestão da diferença nas sociedades contemporâneas ante a crise do

universalismo e o advento da diversidade como valor ethoetnocultural.

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O filósofo Will Kymlicka, por sua vez, diferencia minorias nacionais de

grupos étnicos, sendo os primeiros um grupo egresso de um progresso de

conquista ou incorporação e a elas se deve uma autonomia político-

administrativa passível de evoluir até a autodeterminação. Já o segundo grupo

resulta de um processo de imigração, e, tomando-se como referência critérios

geográficos, étnicos ou religiosos, constituem comunidades relativamente

homogêneas.

A uma abordagem política do multiculturalismo interessa não apenas

uma análise de todo esse continuum, mas também, um estudo sobre a perda

progressiva de referências de numerosos grupos sociais e a constituição de

minorias nacionais e étnicas como causa de reivindicações identitárias e

multiculturais, de direitos administrativos e políticos específicos no seio de um

Estado nacional.

Incidindo sobre realidades em torno da problemática do pluralismo

cultural e identitário, o multiculturalismo envolve, também, formas de

mobilização política e cultural de grupos cujos membros, ao fazerem parte, por

exemplo, de minorias sexuais, comportamentais, étnicas ou religiosas,

inserem-se ideologicamente como multiculturalistas em práticas sociais com o

objetivo de reivindicar direitos particulares ou tratamentos preferenciais. Tais

grupos caracterizam-se pela articulação de movimentos reivindicatórios de

aceitação como entidades sociais distintas. No âmbito dessa questão, surge a

ameaça à primazia do Estado, reconhecendo-se grupos que constituem

identidades abertas, favoráveis ao diálogo, enquanto outros se fecham em

verdadeiros guetos culturais-identitários. Alguns grupos são pacíficos,

enquanto outros possuem práticas de violência.

Vianna Neto afirma em seu texto que a proliferação de minorias e grupos

tão diferenciados requer uma contextualização política, econômica e social das

realidades em que se inserem e a partir das quais organizam suas

reivindicações. É impossível não se referir ao processo de globalização e suas

consequências; um mundo que antes era dividido dicotomicamente entre

capitalismo e comunismo precisa aceitar a derrota desta última instância e

seguir rumo a incertezas e instabilidades políticas e econômicas que surgiram

pós guerra-fria. O autor traz o exemplo da Iugoslávia, que constituída por

grupos étnicos e minorias nacionais, viu surgir dos conflitos novos Estados a

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reivindicar uma homogeneidade nacional e cultural. Desta forma, no contexto

da sociedade pós-industrial, definida por uma economia cada vez mais

globalizada de serviços, tecnologia e informação, os conflitos sociais parecem

caracterizar-se antes por reivindicações de pertenças étnicas e culturais

distintas que por uma consciência de classe como na sociedade industrial.

Pode-se dizer, de certa forma, que os conflitos de étnicos e culturais

representam na sociedade pós-industrial o que os conflitos de classe

representavam na sociedade industrial.

Se por uns a diversidade cultural é vista como uma ameaça à unidade

nacional, por outros ela é comemorada. Essa parcela da população, muitas

vezes, adota alguns hábitos de vida oriundos dos povos imigrados e consome

produtos culturais dados como exóticos, traduzindo-se antes como uma

atração pelo exótico do que por uma reflexão profunda ou uma política sobre o

multiculturalismo.

Uma das principais causas da problematização da diversidade cultural-

identitária reside no fato de que a globalização da economia capitalista, ao

invés de privilegiar o poder construtivo das novas tecnologias para tornar

possível uma nova era de bem-estar generalizado, agravou ainda mais a

diferença entre a minoria capitalizada e a maioria de baixa-renda, acentuando a

polarização social e o aumento da exclusão. Assim, grupos e indivíduos

excluídos ou desprivilegiados procuram refúgio em identidades e culturas

exclusivistas nas quais se sentem mais protegidos seja pelas leis das políticas

multiculturalistas ou pelos mecanismos de reivindicações cuja eficácia muitas

vezes representa uma maior tranquilidade para os que sofrem com as formas

de exclusão.

A razão de alguns países adotarem uma política multiculturalista deve-se

à dinâmica das migrações e às reivindicações por parte de grupos, cuja

identidade emerge de ideologias ou costumes diferentes dos que são

normatizados pela definição de identidade nacional construída pelo processo

de homogeneização cultural-identitária característico do Estado-Nação. O

multiculturalismo ganhou evidência desde que passou a ser tratado como

questão política, quando a problematização da diferença desenvolveu tensões

e resistências sociais e políticas, gerando conflitos pela redistribuição do poder,

recursos econômicos, meios de produção e controle social.

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A reinserção cultural de sujeitos históricos excluídos, que, entretanto,

continuam a sobreviver em uma relação assimétrica de poder e de

subordinação, torna imprescindível ao reconhecimento teórico a adoção de

políticas, que possibilitem o exercício de uma democracia plena, manifesta na

garantia da aquisição de uma cidadania não só de direitos políticos e legais,

mas, também, cultural. Tem-se investido, desta forma, em práticas sociais

multiculturalistas que visam à conjunção ativa de uma pedagogia cultural e

política de identidades voltadas para grupos excluídos ou que sofram

discriminação, como as populações indígenas, as afrodescendentes, as

mulheres, entre outros, que tiveram suas oportunidades de acesso aos bens

culturais negadas ao longo da história.

O autor apresenta o exemplo das minorias muçulmanas imigradas, por

exemplo, em países da Europa, Canadá e Estados Unidos, que lutam para

receber, em termos de ajuda financeira, o mesmo tratamento dado a outras

religiões quanto a locais de culto, parcelas nos cemitérios ou ainda, cursos de

religiões em escolas públicas. Esses imigrados buscam uma afirmação nos

espaços públicos tendo em vista a recusa de uma total invisibilidade cultural e

identitária.

Outro tema abordado no texto é a questão das quotas raciais e étnicas,

uma prática implantada nas Universidades para reparar uma injustiça histórica,

mas que criou problemas jurídicos e sociais que agravaram os embates da

questão.

Não deve ser deixada de lado a forte problematização do autor sobre a

concepção naturalista e essencialista adotada por alguns multiculturalistas , e

que, desemboca em formas extremas de relativismo cultural. Para eles todas

as culturas e práticas culturais devem ser reconhecidas, pois são equivalentes

e legítimas. No entanto, a prática de amputação sexual de mulheres que é

seguida em algumas culturas não seria vista como uma mutilação, violência e

sim como um costume cultural que deve ser respeitado.