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Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu
Karla Fernanda Ribeiro Neves (UFGD)
Resumo: O presente resumo refere-se a uma pesquisa em andamento e tem como tema central
o discurso de si nos escritos autobiográficos de Patrícia Galvão (1910-1962). A pesquisa busca
aprofundar as relações entre literatura e performance, por meio do estudo de intertextualidades
e sua articulação com o estudo de gênero e composição de ações performativas. Na etapa em
que se encontra o trabalho procuro estabelecer alguns aspectos para análise: a escrita de si,
estudos de gênero, relações entre artista e obra, o lirismo de seus poemas e cartas
autobiográficas. Utilizo uma seleção de cartas publicadas sob o nome de “Paixão Pagu”, com
relatos de sua vida desde a infância até a década de 1940. Suas múltiplas personalidades,
expressas ao leitor, representam a ideia de persona, compreendida como a voz do autor em seus
pseudônimos, como a expressão de determinada vontade, desejo. No desempenho de seus
múltiplos papéis, a presença de pensamentos diversos, sua personalidade e discussões de
gênero. Na continuidade da pesquisa pretendo estabelecer o foco nas transições entre as
diferentes identidades assumidas pela autora, como forma de entrecruzar a temática das cartas
de Pagu ao campo performático de composição do sujeito feminino.
Palavras-chave: Memória, Literatura, Arte da performance, Pagu.
Abstract: The present summary referring to a research in progress and has as central theme of
the discourse of itself in the autobiographical writings of Patrícia Galvão (1910-1962). The
research seeks to deepen relations between literature and performance, through the study of
intertextualities and its articulation with the study of gender and composition of performative
actions. In the stage in which I find myself at work I search, there are some aspects for analysis:
self-writing, gender studies, artist-work relationships, lyricism of his poems and
autobiographical letters. Use a selection of letters published under the name of "Passion Pagu,"
with reports of his life from a childhood to a decade of 1940. Its multiple personalities,
expressed to the reader, represent an idea of personality, as a voice author their pseudonyms,
as an expression of will, desire. In the performance of their multiple roles, a presence of diverse
thoughts, their personality and gender discussions. In the continuity of the research, I intend to
establish the focus on the transitions between the different identities assumed by the author, as
a way of intersecting a thematic of Pagu letters to the field of composition of the female subject.
Keywords: Memory, Literature, Performance art, Pagu.
O presente trabalho pretende abordar pontos do projeto de pesquisa que venho
realizando como discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da FACALE/UFGD, sob
orientação da Profª Drª Alexandra Santos Pinheiro.
O objeto de minha pesquisa é centrado na obra de Patrícia Galvão (1910-1962), em que
pese a simplicidade de fontes como dicionários, é notável a inclusão do apelido Pagu como um
dos verbetes do Dicionário Mulheres no Brasil (Schumaher e Brazil, 2000), no qual a descrição
de sua obra tende a destacar o jornalismo, em detrimento dos demais gêneros literários. Ou
seja, esse verbete reflete a tendência de outros estudos, que minimizam a importância da
produção criativa de Patrícia Galvão. As pesquisas encontradas no banco de dados da CAPES,
em sua maioria, apontam para discussões sobre o romance Parque Industrial, textos
jornalísticos, e a biografia de Pagu.
Ao propor esta pesquisa sobre o ideário de Patricia Galvão, no que diz respeito a
condição da mulher na primeira metade do século XX, encontrei uma alternativa de aporte
teórico nas ideias de Paul Ricoeur sobre a memória e o “acerto de contas com o passado”,
segundo reflexões de Pinheiro (2014, p. 212) ao citar Henriques (2005). Por estabelecer pontos
de contato/afastamento com problematizações que envolvem os mesmos eixos temáticos no
século XXI, essa busca pode e deve envolver outros autores, em comparativos, análises e
ampliação de temáticas da mulher. Deste modo, estimo que a pesquisa proporcione não só a
apropriação de textos de Pagu na composição de atos performáticos, mas também a articulação
do conteúdo com aspectos da memória coletiva de literatura de autoria feminina.
O tema está sendo desenvolvido na linha de pesquisa Literatura e Estudos regionais,
Culturais e Interculturais, ambiente diretamente relacionado ao estudo de práticas sociais e
culturais, em uma abordagem que envolve literatura e teatro. O encontro entre a narrativa
textual e suas possibilidades de performatividade encontram vigor na ideia dos estudos
culturais, como práticas amplas, reflexões sobre a cultura de uma época ou sociedade
específica, elaboração de procedimentos culturais e novas abordagens de produção artística.
O contato com a obra de Patrícia Galvão se deu no ano de 2007, ao me deparar com o
livro Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão, organizado a partir de cartas
biográficas escritas pela artista. Do primeiro contato veio a imersão em outras obras, textos,
crônicas, que desdobraram-se em projetos teatrais, ações performáticas e visitas ao Centro de
Estudos Pagu, da UNISANTA, na cidade de Santos-SP, para maior contato com suas obras e
memórias.
Ao contemplar a vasta obra da artista, tenho interesse em construir conexões e relações
com temáticas da mulher na literatura, no teatro e na sociedade, paralelos entre a mulher na
primeira metade do século XX e na sociedade atual. Tenho como base a ideia de personas,
utilizada pela artista em suas diferentes escritas e áreas de atuação.
Diferente da repetida ênfase em Patrícia como musa da Antropofagia, uma das mulheres
de Oswald de Andrade, pretendo justapor as diversas personas que denominei: Mulher de ferro,
Zonas erógenas e Aparelho digestivo, articulando a complexidade da biografia: “Pagu [...]
desmistificou a figura feminina para além do espaço doméstico” (SCHUMAHER e BRAZIL,
p. 464). Foco, então, as contradições da mulher que, ao assumir um compromisso social vê-se
dividida entre os papeis de amante, mãe, militante, prisioneira e artista.
Em um primeiro momento utilizo como principal objeto de estudo o livro Paixão Pagu,
uma autobiografia precoce (GALVÃO, 2005), organizada conforme uma seleção de cartas
escritas por ela ao seu companheiro Geraldo Ferraz, com relatos de sua vida desde a infância
até a década de 1940. Pretendo estabelecer maior contato entre a literatura e as artes cênicas,
por meio do estudo de intertextualidades e sua articulação na composição de ações
performativas.
O projeto se justifica por buscar a ampliação do debate interdisciplinar sobre a obra de
uma importante escritora modernista brasileira, reconhecida por quebrar barreiras culturais,
vencendo estereótipos, preconceitos e diversos tipos de opressão, abrindo o caminho para uma
participação efetiva da mulher em todos os ambientes sociais. Reafirmar a importância
feminina na história da arte é algo a ser considerado porque a sua presença, historicamente,
sempre foi relegada ao segundo plano, tanto na literatura quanto no teatro:
A ligação das mulheres com a escrita íntima (cartas, diários, relatos, etc.) está
relacionada diretamente com a realidade opressora e cerceada, fruto de uma
criação voltada para o ambiente interno, para os cuidados com a casa, com os
afazeres domésticos e longe da realidade exterior e das decisões políticas e
sociais, cabíveis apenas aos homens (ROSA, 2014, p. 128).
A arte contemporânea tende a valorizar mulheres artistas, a performance como
linguagem modifica completamente as estruturas de produção artística (COHEN, 2002).
Assim, as afetações, debates e emanações oriundas da recepção e participação do público, se
colocam como fatores relevantes na justificativa do projeto. Compreender a sociedade atual e
a condição da mulher contemporânea é fundamental para que se amplie a reflexão sobre
igualdade de gênero. No Brasil, vivemos realidades muito distintas, que variam de acordo com
as regiões do país, dos locais mais sensibilizados com o tema, até locais em que a mulher ainda
vive sob condição cultural de oprimida, sem nenhum apoio, auxílio, reação. Utilizo na pesquisa
alguns textos base sobre a mulher na sociedade, mulheres no teatro e nas letras, tais como os
de Amorim (2013), Beauvoir (2009), Hollanda (1994), Muraro (1996, 2000, 2002), Perrot
(2005), Pontes (2008), Priore (1997), Souza (2001), Sussekind & Azevedo (2003).
Procuro abordar aspectos pouco estudados na biografia de Patrícia Galvão, o discurso
de si, as relações entre artista e obra, o lirismo de seus poemas e cartas autobiográficas
associados a realização de um processo criativo que envolve a arte contemporânea e a
performance como linguagem. Sua literatura não se descola de sua biografia, a autora expressa
inquietações, delírios, desejos, anseios em páginas literárias, poesias, cartas e escritos
jornalísticos.
Em História da literatura: questões contemporâneas Cecil Jeanine Albert Zinani,
discorre sobre a importância de autoras que contribuíram com seus escritos para o movimento
feminista. Escritoras como Virgínia Woolf, em Um teto todo seu, em 1928, como tema
principal a ausência de condições e acesso das mulheres à instrução formal, produção literária,
condições primárias para escrever. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, publicado em
1949, com a afirmativa de que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, fundamenta as
questões de gênero, afirmando que gênero é uma construção histórica, definida em relação ao
contexto sócio cultural. Conceito de gênero que possibilitou teorizar diferenças de papéis
sociais. Na obra de Simone a ideia de mulher como segundo sexo, a sobra do primeiro sexo,
apresentado na história, “o incessencial que não retorna ao essencial” (BEAUVOIR, 1980,
p.15). Zinani também comenta a contribuição dos estudos de Beauvoir para compreensão de
identidade, identidade de gênero. Desconstrução da palavra como indicações de papéis sociais.
Comenta sobre a mulher conquistar influência através da palavra, como pontua Perrot, a mulher
inicia escrevendo sobre coisas de mulher, onde o tipo de escrita jornalística feita por mulheres
possibilitou divulgar algumas lutas feministas de seu tempo, como o direito ao voto. A autora
contempla as pesquisas sobre identidades e mulheres, a relação do espaço público ser domínio
do masculino e o espaço da mulher ser restrito ao privado. Traz os apontamentos de Joan Scott
sobre a identidade e o corpo, corpo feminino e identidade feminina, o corpo feminino como
objeto, o gênero como representação construção de uma imagem de feminino e masculino.
As três ondas feministas e suas necessidades, como a importância de Lacan e Derrida
na teoria feminista a partir dos estudos sobre a posição do sujeito é questionada. Em gênero e
literatura a autora reflete a presença e ausência da mulher na história da literatura. Com Teresa
de Lauretis comentando em seu ensaio A tecnologia do gênero sobre a formação de outro tipo
de sujeito social, que não se pautem nas estruturas patriarcais, um sujeito múltiplo e não
dividido, não constituído apenas pelas diferenças sexuais. Segue ampliando a reflexão sobre o
gênero ser construído para representação. Em A história da literatura e gênero Cecil destaca
aspectos da história literária como a formação do cânone, onde critérios para seleção, se
misturam, a relação de poder do centro, excluindo as margens. Argumenta que é na inclusão
de mulheres, assim como, de outros grupos que estejam desprivilegiados é algo que implica
revisão do cânone literário.
Os dados biográficos de Pagu se encontram em seus próprios escritos (Galvão, 2005) e
diversas outras fontes, tais como Campos (1982) e Freire (2008) a partir das quais apresento
breves considerações.
Patrícia Rehder Galvão nasceu em São João da Boa Vista em São Paulo no ano de 1910
e sua rebeldia causou impacto já na adolescência. Estudou na Escola Normal em São Paulo e
por lá já era bastante criticada devido a suas atitudes nada comuns em relação a outras moças
da época, tais como: fumar, usar blusas transparentes, maquiagem em excesso, dizer palavrões
e usar cabelos curtos.
Sua primeira colaboração em jornais ocorre logo aos quinze anos, quando escrevia para
o Brás jornal, já utilizando pseudônimos, prática a que iria recorrer com frequência ao longo
de sua carreira. Pagu tende a ser tratada como musa da Antropofagia, mas também atuou como
escritora, desenhista, tradutora, crítica de Arte, revolucionária política, incentivadora das Artes
e diretora de teatro.
Ao estudar a obra de Patrícia estabeleço o foco nas transições entre as diferentes
identidades assumidas por Patrícia Galvão: Pagu, Patrícia e Mara Lobo. No desempenho de
seus múltiplos papéis, a presença de pensamentos diversos, sua personalidade, seu ideario
expresso em personagens e poesias, a artista que se expõe através de sua obra.
Colaborou em jornais da época e teve amizades com grandes filósofos e escritores
franceses e alemães, a vanguarda intelectual europeia. Sua trajetória inclui fortes ligações
políticas e uma militância que alterou profundamente os rumos de sua vida. Aborto, tentativas
de suicídio, desilusões amorosas e exploração de seu corpo, estão entre as consequências
sofridas neste desbravamento das possibilidades de a mulher inserir-se na sociedade, com dois
casamentos, dois filhos e muitas prisões, físicas e psicológicas. Acontecimentos e impressões
que Patricia relata em sua autobiografia precoce.
Após o período antropofágico e as desilusões com a revolução que não se concretizou,
ela abraçou o jornalismo e o estudo do Teatro. Na EAD, em São Paulo, dedicou-se à Direção
Teatral e acabou por estruturar o Teatro Amador em Santos onde realizou as primeiras
traduções e montagens de Arrabal e Ionesco no Brasil, bem como a promoção de jovens artistas
como José Celso Martinez e Plínio Marcos (CAMPOS,1982).
Ao estruturar a pesquisa nos três momentos denominados: Mulher de ferro, Zonas
erógenas e Aparelho digestivo, emprego um pensamento encontrado na autobiografia intitulada
Paixão Pagu:
Havia dor na separação. Muita dor. Havia o desconhecido à minha frente.
Atrás, Oswald, que já significava muito pouco, e meu filho. A necessidade de
luta surgiu ativando toda a revolta latente de minha vida insatisfeita. [...]
Grande confusão de materialismo com mecânica. Eu não devia estar de
acordo com minhas concepções. Mulher materialista. Mulher de ferro com
zonas erógenas e aparelho digestivo. O circulatório não tinha importância,
porque trabalhava automaticamente. (GALVÃO, 2005, p. 20).
Com essa justaposição de identidades, procuro articular o que a própria Patrícia Galvão
reconheceu como um fio condutor de sua vida, a manifestação de sentimentos de divisão
pessoal. As suas múltiplas personalidades, suas várias formas de se apresentar ao leitor,
representam a ideia de persona, compreendida como a voz do autor no personagem, como a
expressão de determinada vontade, desejo do autor, e, no caso da narrativa direta de suas cartas:
[...]potencializa no sujeito o contato com a singularidade e o mergulho na
interioridade do conhecimento de si, ao configurar-se como atividade
formadora que remete o sujeito para uma posição de aprendente e questiona
suas identidades a partir de diferentes modalidades de registro que realiza
sobre suas aprendizagens experienciais. (SOUZA, 2006, p.136).
Ao considerar os elementos presentes na escrita de Patrícia Galvão, a construção de sua
identidade encarnava bem o que propunham os antropofágicos, em termos do rompimento, da
quebra das barreiras culturais e de paradigmas importados na arte e na sociedade brasileira.
Sobre sua participação no meio cultural, Augusto de Campos em entrevista, afirma:
Tirando Oswald, porém, poucos dentre os modernistas da primeira ou da
segunda fase personificam tão completamente a imagem rebelionaria desse
movimento. Por isso mesmo, mais do que "musa" ou "inspiradora", ela parece
configurar o protótipo da mulher nova que emerge da visão transformadora
do Modernismo, em seu sentido mais autêntico (CAMPOS, 1982, p.84).
Em A aventura de contar se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade
Margareth Rago opera autobiografias, utiliza categorias como modos de existência e artes de
fazer microespaço, ressalta sobre as artes femininas de existência dialogando com Foucalt
sobre a governamentabilidade bio poder. Rago coloca as mulheres em rede e não em disputa,
a estética da existência, utiliza o conceito de acontecimento para Foucalt, onde, escrever de si
é o acontecimento como mutação uma ruptura.
No que diz respeito a performance arte, utilizo alguns autores como referencias
principais, é o caso de Cohen (2002), Bonfitto (2014), Fabião (2008), Santos (2008), Garcia
&Dias (2014), autores que tentam delimitar o campo de atuação da performance, situa-la
historicamente como uma linguagem artística.
Sobre a ideia de performance e do performer, afirma Cohen (2002):
A performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem
compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de público e nem com
uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação
com o anarquismo que resgata a liberdade na criação, está a força motriz da
arte.
[...]O trabalho do artista de performance é basicamente um trabalho
humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte,
dos lugares comuns impostos pelo sistema. (COHEN, p. 45).
Segundo Garcia&Dias (2014) a performance tem sua origem nas vanguardas artísticas
do início do século XX, nas manifestações utilizando o corpo dos artistas, nos movimentos
futuristas, dadaístas e surrealistas. As vanguardas romperam com as questões pictóricas,
avançou-se na busca por quebrar convenções, questionar a arte e suas funções, meios e técnicas.
No final da década de 1950, nos EUA, surgem os happening, segundo Cohen (2002):
“a tradução literal de happening é acontecimento, ocorrência, evento. Aplica-se essa
designação a um espectro de manifestações que incluem várias mídias, como artes plásticas,
teatro, art-collage, música, dança etc.” (COHEN, p.43). Uma série de experimentações
artísticas com a utilização de múltiplas linguagens, os artistas são de áreas distintas, músicos,
pintores, atores, escritores, bailarinos, etc.
Com as ideias de contracultura dos anos 1960 a performance arte se desenvolve em
diversas vertentes, e, na década seguinte com as ideias de action painting, das artes visuais,
refina-se o conceito de artista presente, em ação, em criação, como característica da
performance. O imprevisto, o espontâneo, dessacralizar a arte, retirá-la do seu lugar comum,
são propostas comuns à linguagem.
Nos anos 1970 e 1980 as performances tornam-se mais elaboradas, sofisticadas
tecnologicamente, e, demonstram novos caminhos traçados pelos artistas do período. No Brasil
as primeiras experiências registradas acontecem na década de 1970, por artistas vinculados as
artes visuais. Segundo Santos (2008), os artistas nacionais tinham uma preocupação em romper
barreiras, quebrar tabus, estabelecer novos espaços de inserção da arte, explorar a sensibilidade
do público em experiências compartilhadas, habitar as fronteiras que definem as linguagens
artísticas.
No Século XXI a performance segue como uma das linguagens artísticas mais
expressivas do período, novos artistas, novas experiências, questões políticas, ativismos,
identidade, corpo, sociedade estão em evidencia na arte.
Segundo Cohen (2000), alguns aspectos se repetem no que diz respeito a utilização do
texto em performance, de maneira geral as falas, discursos são realizados com a utilização de
microfones, voz gravada, com a intenção de reafirmar que vivemos em uma era tecnológica,
frases repetidas, palavras repetidas, estrutura do texto escrito que lembram a poesia concreta,
com uma arquitetura fragmentada, por vezes descontinuada.
Paul Ricouer em seu texto A memória, a história, o esquecimento analisa por três
aspectos, a memória é tratada sob a ótica da fenomenologia, a história a partir da epistemologia
e o esquecimento sob o olhar da hermenêutica.
O processo de memória para Ricouer passa pela memória artificial e memória natural,
comenta sobre os procedimentos da memória artificial e como esta articula com memorização,
aprendizagem, treinamento, a memória como armazém, memória, confissões, conversor de
Santo Agostinho. Analisa a memória exercitada a rememoração por três abordagens,
patológica, manipulada e ético-político. A memória impedida o nível patológico- terapêutico,
a psicanalise a resistência do recalque, o fato não vem em forma de lembrança, mas em forma
de ação. Luto e melancolia, o luto volta se ao outro a melancolia para si. O processo de
melancolia culmina no reconhecimento de nós mesmos, muitas vezes tratado como doença, a
memória feliz seria o resultado final do trabalho do luto, a memória ferida nos obriga a se
confrontar, memória e identidade, um aspecto fundamental para Ricouer no nível prático; a
memória manipulada é a identidade, passa a perceber no outro suas características de ser outro
e nisto percebe perigo. As questões da memória pessoal e da memória coletiva.
Busco relacionar Patrícia Galvão, seus escritos e sua vida, com as possibilidades de
discussão sobre a mulher do século XXI através da performance, linguagem artística hibrida,
que permite o cruzamento de múltiplas formas artísticas. Considero importante destacar
questões relacionadas a discussão de identidade tão evidenciadas na pós-modernidade, e, que
foram colocadas pela autora nas primeiras décadas do século passado, tornando-a uma
precursora nos apontamentos sobre a mulher na literatura brasileira.
A problematização das questões da mulher em Simone de Beauvoir gerou diversos
discursos sobre o corpo na história, filosofia, ciência e medicina. Como apresenta Ana Maria
Colling em seu livro Tempos diferentes, discursos iguais a construção histórica do corpo
feminino. A historiadora organiza uma linha temporal de Platão á Freud, discursos apresentados
ao longo da história da humanidade sobre o corpo feminino, que definem o lugar social, o
papel, a construção de representações com discursos hegemônicos e se afirmam na história
com transformações transculturais, mas, que, conservam vários elementos normatizadores, ao
estabelecer o lugar que deve ocupar o feminino e o masculino na sociedade, pautados em
conceitos de igualdade e diferença, parte de uma construção cultural, social e histórica. A
história das mulheres ser contada por homens que tinham o poder da palavra, da escrita, de sua
representatividade no espaço público é fato histórico registrado nos livros, sempre contados
para todos nós, quando Cecil traz a discussão para a literatura é possível perceber que este
entrelugar da mulher já estava sendo questionado na ausência e presença da mulher na
literatura. Quando Virgínia Woolf em Um teto todo seu aponta as necessidades e problemáticas
que a mulher tinha para escrever, a escrita da mulher não podia ser pública.
Ricouer (2007) analisa alguns teóricos e aponta, Santo Agostinho tece a sua teoria com
base na experiência da conversão, John Locke acrescenta o debate sobre a identidade e Husserl
aborda o olhar interior e a capacidade de reflexão, a memória coletiva. A questão do tempo a
relação entre passado e presente, memória, o tempo faz oposição ao tempo do mundo, Ricouer
levanta a questão, o tempo histórico seria o terceiro tempo?
John Locke aproxima-se da ideia de Descartes do “cogito”, penso logo existo, inventor
das três noções de identidade, consciência e self (si mesmo), a identidade como algo temporal,
alcançada pelo processo de memória, identidade enquanto relação ainda que por vezes culmine
no apagamento do que não sou eu. Husserl por fim traz a relação entre individual e coletivo,
onde Ricouer percebe a constituição simultânea entre a memória individual e memória coletiva.
Segundo Seligman-Silva:
Se o século XIX sofreu de “história demais”, a nossa pós-modernidade sofre
de “fim da história”, de “fim da temporalidade”, em suma, parafraseando
Vidal-Naquet, ela sofre do “inexistencialismo”. A tarefa da memória deve ser
compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como
também pelo registro (acadêmico) da historiografia. (SELIGMANN-SILVA,
2003, p.63).
Para Seligmann-Silva a historiografia é memória compartilhada, não controlamos a
memória, a dicotomia história e memória. Trabalha com a narrativa dos traumas, dos destroços,
compreender o relato do trauma, fontes orais através da psicanalise. História e memória
completam. Afirma a noção de memória e fragmento uma perspectiva, a construção dos traços,
a memória assim como a história é uma construção, reconstrução da realidade, memória
daquilo que nem é mais. Enfatiza três elementos, o político, o ético e o cientifico, historiografia
o sujeito político, literário ideológico. A memória partilhada a memória coletiva. A questão da
ética da representação está presente em seu texto fundamentando os limites do entendimento.
Afirma que a escritura do passado é uma reescrita, a desconstrução, elaborar e reelaborar, o
historiador como catador de trapos, relacionar passado histórico e trauma é tratar desse passado
de um modo mais complexo que o tradicional, se faz importante a necessidade de se trabalhar,
e não mais como um objeto de apoderamento.
Em uma nova arte da memória, pede atenção para os limites da representação nas obras
de arte que falam de atrocidades históricas, como o holocausto, por exemplo, Seligmann-Silva
aponta novamente para o político, ético e cientifico. No caso da América Latina o trauma é
uma ferida aberta exposta legitimando ou apagando a culpa nos processos de censura e
ditaduras presentes como Brasil, onde os torturadores têm direitos e se mantem impune graças
a anistia.
O processo de memória através de traumas, a relação entre memória e esquecimento
apresenta a relação da história do mundo, de sua própria história, a imersão em um ambiente
da narrativa seja através da história oral, romance de extração histórica as possibilidades de
trabalhar o processo de memória através das diversas narrativas.
Patrícia Galvão, escritora, artista brasileira que participou como ativista da ditadura de
Getúlio Vargas tem seus relatos sobre suas prisões e como isso a transformou sua vida, em
Paixão Pagu- A Autobiografia precoce de Patrícia Galvão, a narrativa autobiográfica em
forma de cartas ao seu companheiro Geraldo Ferraz, traz fatos, sentimentos, ressentimentos,
traumas de suas várias prisões. É possível apontar para o processo de memória que Pagu propõe
em sua autobiografia, demonstra na narrativa os fatos como recorda, as sensações, assim como
o que não lembra o esquecimento, estão contidas em uma obra onde é possível reconhecer os
elementos sobre processo de memória para Seligmann-Silva e Paul Ricouer utilizados no
processo de escrita de Pagu.
Múltiplas dores em seus relatos, a narrativa de seus traumas, suas memórias
denominadas como uma autobiografia precoce de Patricia Galvão, entregue a seu companheiro
Geraldo Ferraz e publicada muitos anos depois por decisão e apoio de seus filhos Geraldo e
Rudá. Nestes escritos de uma mulher com experiências e presença no espaço público e privado,
apresenta aflições, indignações contradições com uma severa autocritica na trajetória de Pagu.
Ao procurar relacionar escrita de si e ação cênica proponho realocar impressões e sensações
apresentadas a partir do texto de Pagu, utilizar o aporte teórico e especificidades da literatura
como a memória e autobiografia para compreensão de suas possibilidades de ressignificação
em ação performativa, e, nas relações que podem se estabelecer entre Performance e Literatura.
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