Múltiplos olhares -...

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1Múltiplos olhares

Múltiplos olhares

Organizadores

Paulo Roberto Padilha Sheila Ceccon

Priscila Ramalho

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3Múltiplos olhares

Múltiplos olhares

Organizadores

Paulo Roberto Padilha Sheila Ceccon

Priscila Ramalho

São Paulo, 2010

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Alexandre MunckÂngela Antunes

Francisca PiniMoacir Gadotti

Paulo Roberto PadilhaJanaina Abreu

Lina RosaCarlos Coelho

André Rodrigues de OliveiraIgor Arrais Padilha e Paula Santos

Marcela WeigertRenato PiresEliza Mania Brasilgrafia

Município que educa : múltiplos olhares / organizadores Paulo Roberto Padilha, Sheila Ceccon, Priscila Ramalho. -- São Paulo : Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2010.

Bibliografia.ISBN 978-85-61910-70-9

1. Cidadania 2. Educação 3. Municípios -Governo e administração - Brasil 4. Planejamento educacional - Brasil 5. Sociologia educacional I. Padilha, Paulo Roberto. II. Ceccon, Sheila. III. Ramalho, Priscila.

10-12380 CDD-370.981

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Gestão educacional municipal 370.9812. Brasil : Municípios : Gestão pública : Melhoria na educação 370.981

Editora e Livraria Instituto Paulo FreireRua Cerro Corá, 550 | Lj. 01 | 05061-100 | São Paulo | SP | Brasil

T: 11 [email protected]@paulofreire.org

www.paulofreire.org

Diretor FinanceiroDiretora de Gestão do ConhecimentoDiretora PedagógicaPresidente do Conselho DeliberativoDiretor de Desenvolvimento InstitucionalCoordenadora Gráfico-EditorialPreparadora de OriginaisRevisorPesquisa BibliográficaIdentidade Visual Capa, Projeto GráficoDiagramação e Arte-FinalProdução Gráfico-EditorialImpressão

Instituto Paulo Freire

Precisamos demonstrar que respeitamos as crianças, suas professoras, sua escola, seus pais, sua comunidade, que respeitamos a coisa pública, tratando-a com decência.

Só assim podemos cobrar de todos o respeito também às carteiras escolares, às paredes da escola, às suas portas. Só

assim podemos falar de princípios, de valores.

Mudar a cara da escola implica também ouvir meninos e meninas, sociedades de bairro, pais, mães, diretoras de

escolas, delegados de ensino, professoras, supervisoras, comunidade científica, zeladores, merendeiras etc. Não se

muda a cara da escola por um ato de vontade do secretário.

Paulo Freire,A educação na cidade, p. 34-35

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Município que Educa: caminhos percorridos,itinerários sonhados (Apresentação)Paulo Roberto Padilha .......................................................... 09

Povo soberano, povo que educaMoacir Gadotti ...................................................................... 17

Educação como direito no Município que EducaPaulo Roberto Padilha .......................................................... 23

Articulações em rede: a educação como elo entre asinstituições e os sujeitos na municipalidadePriscila Ramalho ................................................................... 31

A participação social no Município que EducaReginaldo Ronconi ................................................................ 37

Espaço da educação e espaço da vidaLadislau Dowbor ................................................................... 45

Educação integral e comunitária: o remirar-se da cidade e da escolaJaqueline Moll Gesuína de Fátima Elias Leclerc ......................................... 51

Crianças e adolescentes/juventudes no Município que EducaFrancisca Pini Roberta Scatolini ................................................................... 59

Município que Educa e diversidade cultural: uma questão de direitoMarilândia Frazão ................................................................ 67

SUMÁRIO

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9Múltiplos olhares

Município que Educa: ação cultural por umanova cultura política Luana Vilutis ......................................................................... 73

A paisagem do município como território educativo Euler Sandeville Júnior ........................................................ 81

A sustentabilidade no Município que Educa Sheila Ceccon ......................................................................... 87

Comunicação e mídias no Município que Educa Isabel Orofino ........................................................................ 93

O software livre no contexto de um Município que EducaAnderson Fernandes de Alencar........................................ 101

Plano Municipal de Educação Genuíno Bordignon ............................................................. 109

Governabilidade democrática no Município que Educa José Eustáquio Romão .........................................................115

Ubuntu: viver, conviver e aprender no município Carlos Rodrigues Brandão ................................................. 121

Escola, comunidade e família no Município que EducaÂngela Antunes.................................................................... 127

Povo que educa, Município que Educa: novos desafiosMoacir Gadotti .................................................................... 137

APRESEntAçãO

Município que Educa: caminhos percorridos, itinerários sonhados

Em 30 de janeiro de 2009, lançamos a Rede Município que Educa no contexto do Fórum Mundial de Educação (FME) e do Fórum Social Mun-dial (FSM), em Belém, Estado do Pará. Tive o prazer de propor e partici-par de uma mesa de diálogos coordenada pela professora Francisca Pini, na qual discutimos sobre alguns temas que, naquele momento, ajudavam-nos a fundamentar a criação de uma rede social que nascia no clima dos citados Fóruns, sempre na busca de outros mundos possíveis e de outras educações possíveis. Ali apresentei, originalmente, “A concepção da proposta Municí-pio que Educa: nova arquitetura da gestão pública”, que, logo depois, deu ori-gem a um Caderno de Formação publicado pela Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, intitulado Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública (2009, Cadernos de Formação, 2). Naquela mesa discutimos tam-bém os temas “Município, Educação e Sustentabilidade” (Moacir Gadotti), “Eixos da Educação Cidadã na perspectiva do Município que Educa” (Ân-gela Antunes), “Diversidade Cultural no Município que Educa” (Marilândia Frazão, representando a Secretaria Municipal de Educação de Osasco, SP), “Estado e Regime de Colaboração com o Município que Educa: uma experi-ência em Educação de Jovens e Adultos (EJA)” (Maria de Jesus Gaspar Lei-te, secretária de Projetos Especiais do Estado do Maranhão) e “Municípios Educadores Sustentáveis” (Carlos Rodrigues Brandão).

Criada a rede social www.municipioqueeduca.org, ainda com algu-mas imperfeições que, aos poucos, foram e ainda estão sendo superadas, começamos a ampliar as nossas reflexões sobre o aperfeiçoamento da ges-tão pública, visando à superação de todo e qualquer tipo de preconcei-to, de injustiça social e sugerindo processos cada vez mais democráticos, participativos, éticos e transparentes, para o melhor atendimento possível das necessidades das populações locais abrangidas pelas municipalida-des, sempre considerando a indispensável e inevitável interconexão com tudo o que acontece no planeta e no próprio município. Até por isso, a máxima pensar globalmente e agir localmente já nos parecia superada,

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pois tanto na dimensão local, como na global ou planetária, devemos agir, pensar, conviver, fazer e ser, exercendo plenamente a nossa vida e a nossa cidadania.

Importante destacar que a Rede Município que Educa é cria-da como um espaço de articulação e de intercâmbio de experiências para viabilizar o enfrentamento de desafios para questões estruturais da gestão pública municipal, favorecendo o desenvolvimento local e superando a realidade que muitas vezes ainda é injusta. E ela surge a partir das aprendizagens de importantes iniciativas e de inúmeros es-tudos, propostas e experiências, nacionais e internacionais, tais como as articulações da Educação Popular desde os anos sessenta do século 20; dos movimentos sociais na América Latina em reação às ditaduras militares da década de setenta; da Rede Cidades Educadoras, criada em Barcelona em 1990; da Escola Pública Popular que o educador Paulo Freire (1921-1997) inaugurou em São Paulo no final da década de oi-tenta, dando origem ao Movimento da Escola Cidadã que se fortaleceu até os dias atuais; da experiência do Programa Municípios Educadores Sustentáveis, do Ministério do Meio Ambiente (MMA); do Tratado de Educação Ambiental para Municípios Sustentáveis e Responsabilidade Global, criado desde a Conferência Mundial Eco-92, dentre outras.

Com o intuito de deixar mais claros os nossos objetivos, de ja-neiro a outubro de 2009, o Município que Educa passa a ser um Pro-grama, no sentido de ampliar o seu alcance e de poder vir a integrar, com o tempo, diferentes aproximações, parcerias, projetos, iniciativas e ações com intencionalidades educativas, intersetoriais e intermuni-cipais, oriundas da aproximação entre Estado e sociedade civil. Nesse momento, Priscila Ramalho passa a colaborar na coordenação deste Programa. Definimos princípios orientadores e objetivos mais claros do Município que Educa, num cenário mundial de crises sistêmicas nas esferas econômica, social, política, ética e ambiental, diante do qual ganham espaço propostas alternativas de sustentabilidade baseadas no fortalecimento da dimensão local e dos processos autônomos, inclusi-vos, democráticos e multidimensionais. Nas últimas décadas, fala-se cada vez mais em gestão municipal compartilhada e ascendente, com a participação ativa e organizada dos diversos segmentos sociais do Es-tado e da sociedade civil.

No Brasil, a autonomia dos municípios foi significativamente am-pliada com a Constituição Federal de 1988, que também abriu espaço para a cooperação da comunidade no planejamento municipal. Além disso, o poder local foi fortalecido com o crescimento dos movimentos sociais, das Organizações Não Governamentais (ONGs) e das experi-ências participativas dos governos democráticos e populares. O discurso em favor das ações integradas e intersetoriais é cada vez mais presente, apesar de continuar sendo um desafio fazer com que as pessoas e ins-tituições não apenas dividam a mesma mesa, mas entreguem-se a um diálogo efetivo e a ações verdadeiramente colaborativas.

Portanto, o Programa Município que Educa surge neste contex-to como uma iniciativa do Instituto Paulo Freire (IPF), da Universitas Paulo Freire (Unifreire) e da Casa da Cidadania Planetária, estas duas, instituições mantidas e afiliadas ao IPF.

O Programa Município que Educa busca potencializar as intencio-nalidades educativas dos diversos sujeitos sociais e fortalecer processos de gestão municipal integrada e participativa. Esta ênfase educativa fa-vorece um desenvolvimento mais sustentável e inclusivo da municipa-lidade, pois o intercâmbio de saberes, a sensibilização e a tomada de consciência criam as condições para uma cidadania efetiva.

O Município que Educa reconhece e potencializa a dimensão edu-cativa das iniciativas locais, incentiva a participação ativa da comuni-dade e integra os esforços dos diferentes setores de forma orgânica e democrática. Noutras palavras, é um município onde poder público e sociedade civil trabalham juntos, de forma colaborativa e parceira, viabilizando o exercício da cidadania ativa.

As possibilidades de construção de um Município que Educa são tão variadas quanto as realidades brasileiras. Mas, fundamentalmente, deve ser um projeto coletivo que tem como ponto de partida um pla-nejamento dialógico (comunicativo e crítico), compartilhado (com o envolvimento dos vários segmentos sociais) e ascendente (com atenção especial às demandas e à participação das bases da sociedade).

Vejamos, a seguir, um conjunto mínimo de características que podem funcionar como princípios para orientar os municípios que queiram caminhar nessa direção:

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1. O município reconhece e valoriza sua ampla dimensão terri-torial, social e cultural: o centro, a periferia, os setores rurais, incluindo as diversas culturas e realidades sociais ali presentes.

2. A intencionalidade educativa das iniciativas dos vários su-jeitos sociais é potencializada e considerada essencial para o desenvolvimento sustentável e inclusivo da municipalidade.

3. As ações locais – de iniciativa do Estado e/ou da socieda-de civil – devem também ser objeto de um planejamento educativo para a formação de todos os sujeitos envolvidos, direta e indiretamente.

4. O processo formativo incorporado pelas ações locais implica uma visão mais ampla de educação voltada para a constru-ção da cidadania ativa, não se restringindo ao desenvolvi-mento de capacidades técnicas.

5. O atendimento das demandas públicas, associado a processos formativos, promove a articulação entre as diversas áreas e setores para contemplar as múltiplas dimensões das questões do mundo contemporâneo. Essa integração evita a sobreposi-ção de ações e permite economia de recursos.

6. Os espaços da municipalidade devem ser mapeados, avaliados e fortalecidos como espaços educadores.

7. As ações locais têm de ser pensadas em suas relações com a região, o País e o mundo – contribuindo, assim, para o fortale-cimento municipal na perspectiva da cidadania planetária.

8. As redes sociais são elemento essencial ao desenvolvimento do município na medida em que possibilitam o intercâmbio e a colaboração entre os diferentes sujeitos sociais e contribuem para o exercício da participação cidadã.

Tendo como objetivo geral contribuir para o desenvolvimento das municipalidades, com base na identificação, fortalecimento e mo-bilização do potencial educativo dos seus espaços e tempos, das ações dos sujeitos que ali vivem ou atuam e das iniciativas articuladas entre Estado e sociedade civil, o Programa Município que Educa tem os se-guintes objetivos específicos:

Contribuir com a construção, o acompanhamento e o planeja-mento educativo das ações locais, bem como de seus espaços e tempos, abraçando a diversidade, a pluralidade e contribuin-do para o exercício da cidadania planetária.

Ampliar a articulação e a sinergia entre as diferentes áreas e setores da municipalidade, facilitando encontros e parce-rias entre eles.

Contribuir para a maior interconectividade dos municípios em nível regional, nacional e planetário, potencializando par-cerias em torno de ações nesses vários níveis.

Fortalecer os processos e práticas participativas, sistêmicas e organizadas, que garantam a inclusão das comunidades urba-nas, rurais, do centro, da periferia, das aldeias etc.

Construir e disponibilizar, em diálogo com as demandas pontuais do município, processos formativos de pessoas e instituições dos vários setores da municipalidade, na pers-pectiva freiriana, voltados à participação cidadã e à reali-zação de pesquisas prático-teóricas com o envolvimento da comunidade municipal.

Produzir materiais didáticos, paradidáticos e referenciais curriculares prático-teóricos que subsidiem os processos educativos, de acordo com as especificidades das demandas locais, possibilitando, ainda, processos formativos continu-ados de munícipes autores-escritores e sujeitos de suas pró-prias histórias.

Colaborar com os municípios no registro de suas experiên-cias – em textos, vídeos, audiovisuais etc. – como forma de melhor sistematizá-las e de lhes dar visibilidade pública, em cumprimento a uma gestão pública transparente, ética e efe-tivamente democrática.

Para alcançar os objetivos acima, este Programa prevê cinco es-tratégias básicas:

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1. Potencializar as relações humanas e sociais, facilitando ações articuladas entre diferentes áreas e setores, mediante processos de sensibilização e encontros formativos presenciais e em rede.

2. Ações locais com projeto educativo, ou seja, influenciar ações locais originárias das várias áreas e dos diversos segmentos so-ciais – visando a que elaborem projetos educativos, constituindo um processo de planejamento coletivo e participativo para a for-mação de todos os sujeitos envolvidos direta e indiretamente.

3. Potencializar espaços educativos e criativos – repensando e reestruturando os espaços da municipalidade, para transfor-má-los em ambientes mais educativos e criativos.

4. Potencializar os diferentes tempos do município, que significa incorporar a dimensão educativa nas atividades previstas nos ca-lendários de eventos e nas agendas dos municípios, de forma que cada um desses momentos seja também um tempo de educar.

5. Pré-cadastro e agendamento indicativo para futuros encon-tros entre IPF e representantes dos municípios, para que se viabilizem eventuais contatos e diálogos mais diretos com a equipe do IPF, pós-encontros presenciais, visando à definição conjunta de projetos locais, incluindo a constituição de gru-pos de trabalho como uma estratégia inicial e operacional do Programa, de forma a potencializar iniciativas já existentes, organizar levantamento de dados, criando uma base de dados local, definir um Plano de trabalho Articulado e estabelecer prioridades intersetoriais de curto, médio e longo prazos.

Em 28 de outubro de 2009, o Instituto Paulo Freire realizou o “I En-contro Intermunicipal do Programa Município que Educa”, no Casarão Vila Penteado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (Fauusp), na capital de São Paulo. Neste encontro, estiveram repre-sentados 16 municípios e 80 pessoas de diversos segmentos da sociedade paulista: gestores municipais, órgãos públicos, ONGs, movimentos sociais, institutos e fundações privadas, cidadãos e cidadãs. Discutimos os princí-pios e objetivos do Programa e mais uma vez incentivamos o debate e o intercâmbio de saberes e experiências municipais por meio da rede social. Tive o prazer de coordenar e de apresentar as linhas gerais desse Programa

e de contar com a participação do professor Moacir Gadotti, que falou sobre o tema “Conceitos e fundamentos do Município que Educa”; do professor Carlos Rodrigues Brandão, abordando o tema “Municípios Sustentáveis”; do professor Ladislau Dowbor, que desenvolveu sua reflexão em torno do tema “Desenvolvimento Local”; do professor Reginaldo Ronconi, que falou sobre “Processos de autogestão”; da professora Maria Aparecida Perez (ex-secretária de Educação do Município de São Paulo), desenvolvendo o tema “Educação com qualidade social”; da secretária municipal de Educação de Osasco-SP, professora Maria José Favarão, que falou sobre “Gestão Demo-crática no Município que Educa” e, finalmente, com a presença de Kátia Lima, então coordenadora do OP Guarulhos, que fez um relato de experi-ência sobre o “Orçamento Participativo” naquele município.

Nos meses de novembro e dezembro de 2009, oferecemos um cur-so gratuito sobre Município que Educa, a distância, com uma proposta teórico-prática, de forma que os participantes das cinco grandes regi-ões do País pudessem exercitar processos de levantamento de dados da realidade, intercambiar experiências de seus respectivos contextos, refletir e exercitar a elaboração de um Plano de Trabalho Articulado (Plantar). A partir daí, definiram, a título de exercício, prioridades para os seus respectivos municípios. Foi um curso altamente exitoso, bem avaliado, que incluiu a realização de dois vídeos chats e nos permitiu também aprender com a própria experiência.

Na esteira destes esforços de fortalecimento do Programa Muni-cípio que Educa, o Instituto Paulo Freire já desenvolveu alguns projetos de consultoria e assessoria a diferentes instituições e estabeleceu uma parceria com a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educa-ção – Seccional São Paulo (Undime/SP), cuja presidenta é a professora Suely Maia. Tivemos a oportunidade de lançar o Programa em todo o Estado de São Paulo. De janeiro a outubro de 2010, foram realizados sete grandes encontros regionais nas cidades de Marília, Presidente Prudente, São Carlos, São José dos Campos, Campo Limpo Paulista, Sorocaba e Mogi das Cruzes, sendo previstos mais dois grandes encon-tros no Município de Osasco no mês de novembro de 2010. Nestes en-contros, além do lançamento do Programa Município que Educa junto a dirigentes municipais de Educação de mais de 400 municípios que se fizeram presentes, organizamos também palestras temáticas escolhidas

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pelos próprios municípios, visando à qualidade sociocultural e socio-ambiental da educação. Foram todos encontros muito bem avaliados, que nos permitiram atualizar e aprimorar as bases deste Programa.

Este livro, intitulado “Município que Educa: múltiplos olhares”, é mais um esforço coletivo para aprimorarmos os fundamentos teórico-práticos deste Programa, a partir da experiência de diferentes pessoas e instituições que aqui se fazem presentes.

O leitor encontrará aqui 18 artigos, de diferentes áreas do conhe-cimento, escritos por autores de renome nacional e internacional, que nos brindam com suas abordagens filosóficas, políticas, pedagógicas, antropológicas, sociológicas, psicológicas, históricas, urbanísticas, ju-rídicas, culturais, arquitetônicas, midiáticas, tecnológicas, econômi-cas, ambientais, comunitárias, artísticas, poéticas, entre outras, que nos ajudam, de forma transdisciplinar, a compreender a gestão pública municipal como desafio estratégico de todos nós.

Fica aqui este convite: que durante e após a leitura deste livro, que te-nho o prazer de organizar na companhia de Sheila Ceccon e Priscila Ra-malho, coordenadoras deste Programa no Instituto Paulo Freire, possamos refletir sobre as nossas práticas como um desafio de nossa própria formação permanente, continuada e, nessa direção, abrir os nossos corações e as nos-sas mentes para novas possibilidades da gestão social do conhecimento.

Sejamos todos(as) autores(as) e sujeitos desta obra, deste Progra-ma Município que Educa, organizando ações municipais mais integra-das, mais intersetoriais e intersecretariais, potencializando a dimensão educativa das mesmas que, assim, tornam-se ainda mais humanizadas, vivenciais e “humanescentes”. Somemos as nossas experiências, forças, energias, saberes, tecnologias, sonhos, utopias e o nosso potencial so-cial e coletivo que, certamente, contribuirão para uma sociedade mais justa e feliz para todas as pessoas e para uma vida mais saudável para elas e para todo o planeta.

Paulo Roberto PadilhaDiretor de Desenvolvimento Institucional

Instituto Paulo Freire

POVO SOBERAnO, POVO QUE EDUCA

Moacir Gadotti1

O educador Paulo Freire (1921-1997) afirma em seu livro Políti-ca e educação que a cidade – e por extensão, o município – são edu-cadores educandos. A cidade e o município educam porque o povo educa educando-se.

Neste pequeno texto gostaria de retomar certas ideias de Paulo Freire e outras que tenho trabalhado em torno dos conceitos de escola cidadã e da cidade educadora, mas, agora, com uma nova ênfase: a do município educador e a do povo que educa. É impossível separar povo, cidade e município. Não há município e cidade sem povo, como não há município, por menor que seja, que não tenha algum núcleo urba-no. Quando nos referimos à cidade, muitas vezes, estamos falando do município. Quando dizemos que Paulo Freire foi secretário de Edu-cação na cidade de São Paulo, estamos afirmando que ele ocupou este cargo no Município de São Paulo. Ele mesmo escreveu o livro Educa-ção na cidade referindo-se à política educacional adotada por ele no Município de São Paulo.

Quando falamos em município educador, como no programa Município que Educa, é porque estamos querendo dar especial ênfase ao papel do poder local, do município, como ente federado, no trato das questões educacionais e na sua relação com o povo que faz parte da

1 Licenciado em Pedagogia e em Filosofia, doutor em Ciências da Educação pela Universi-dade de Genebra, é, atualmente, professor titular da Universidade de São Paulo e diretor do Instituto Paulo Freire (IPF). Foi chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo na gestão de Paulo Freire. Tem um grande número de livros publicados nos quais desenvolve uma proposta educacional orientada pelo paradigma da sustentabilida-de. Entre os livros publicados por Gadotti, traduzidos em diversas línguas, destacam-se: História das ideias pedagógicas, Pedagogia da Práxis, Paulo Freire: uma biobibliografia, Pedagogia da Terra, Um legado de esperança, Os Mestres de Rousseau e Educar para a Sus-tentabilidade (em português e inglês).

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municipalidade. É no município que o povo vive. E com isso também queremos realçar o papel dos dirigentes da educação na municipalida-de como gestores do conhecimento e grandes articuladores não só das escolas municipais, mas de toda ação educadora no município. O pre-feito, ao escolher um dirigente municipal de educação, está escolhendo um profissional qualificado política e tecnicamente para exercer esse papel de articulador com foco numa nova arquitetura da gestão muni-cipal que tem a educação como elo de união intersetorial.

Pensar o município nesses termos exige uma nova arquitetura da gestão pública, uma nova teoria, isto é, uma nova visão do município. Exige estudo e reflexão, intercâmbio de experiências, exige equipe técnica de planejamento, exige informação, formação específica, intencionali-dade, vontade política. O Programa Município que Educa tenta respon-der a essas questões buscando alcançar um novo patamar na governança pública, que supere o modelo de gestão pública puramente gerencial e voltado apenas para as necessidades do mercado (visão neoliberal). E se é para as pessoas que o prefeito governa, é a partir delas, da sua mani-festação, da sua participação, que a governança local deve organizar-se e estruturar-se e definir as prioridades do seu orçamento, em prol do bem da comunidade, do seu povo. O Programa Município que Educa propõe a educação em seu sentido amplo (não apenas a educação formal), como novo conceito de organização dessa governança local.

Não há dúvida de que a cidade, como dizia Paulo Freire, dispõe de inúmeras possibilidades educadoras. A vivência na cidade se constitui num espaço cultural de aprendizagem permanente por si só, espontane-amente; mas, a cidade, o município, pode ser, também, intencionalmente educador. Um município pode ser considerado como um Município que Educa quando, além de suas funções tradicionais – econômica, social, po-lítica e de prestação de serviços –, ele exerce uma nova função cujo, obje-tivo é a formação para e pela cidadania, quando ele se organiza para que o povo exerça o poder, para que o povo seja soberano.

No final das contas, é o povo que educa. O povo educa quando ele se torna protagonista da cidade, do município, quando passa de “subalterno”, como dizia Gramsci, de governado, a governante. Entre-tanto, para educar, o povo precisa ser educado, isto é, o povo também precisa ser formado para assumir a tarefa de educador.

A maneira como o povo educa, como exerce a sua soberania, depende do que pensa do local onde vive, depende de como ele enxerga esse local e como ele se enxerga nele, quais são seus sonhos. Antes de mais nada, ele precisa apropriar-se do território que é seu.

No município onde o povo educa, todos os seus habitantes usu-fruem das mesmas oportunidades de formação, desenvolvimento pessoal e de entretenimento que ele oferece. O Manifesto das Cidades Educado-ras afirma que a satisfação das necessidades das crianças e dos jovens, no âmbito das competências do município, pressupõe uma oferta de es-paços, equipamentos e serviços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras gerações.

Nesse contexto, o conceito de Escola Cidadã ganha um novo componente: a comunidade educadora reconquista a escola no espaço cultural do município, integrando-se a esse espaço, considerando suas ruas e praças, suas árvores, seus campos, seus pássaros, seus cinemas, suas bibliotecas, seus bens e serviços, seus bares e restaurantes, seus te-atros e igrejas, suas empresas e lojas... enfim, toda a vida que ali pulsa. A escola deixa de ser um lugar abstrato para inserir-se definitivamente na vida do município e ganhar, com isso, nova vida. A escola se trans-forma num novo território de construção da cidadania. Assim, o povo que educa precisa de uma escola verdadeiramente cidadã e de uma educação que seja integral, integradora, integrante e integrada.

Não se pode falar de Escola Cidadã sem compreendê-la como es-cola participativa, apropriada pela população como parte da apropria-ção do município a que pertence. Nesse sentido, a Escola Cidadã, em maior ou menor grau, supõe a existência de um Município que Educa. Essa apropriação se dá através de mecanismos criados pela própria es-cola, como o Colegiado Escolar, a Constituinte Escolar, plenárias pe-dagógicas e outros. Esse ato de sujeito do cidadão leva para dentro da escola os interesses e necessidades da população.

O movimento da Escola Cidadã, inicialmente muito centrado na democratização da gestão e no planejamento participativo, aos poucos, ampliou, na sua trajetória, outras preocupações, tais como a construção de um novo currículo (interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural, intertranscultural) e de relações sociais, humanas e intersubjetivas no-vas, enfrentando os graves problemas gerados pelo aumento da violência e da deterioração da qualidade de vida nas cidades e no campo.

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O papel da escola, nesse contexto, é contribuir para criar as condições que viabilizem a cidadania, através da socialização da informação, da discussão, da transparência, gerando uma nova mentalidade, uma nova cultura, em relação ao caráter público do espaço do município. Numa perspectiva transformadora, a escola educa para ouvir e respeitar as diferenças, a diversidade que compõe o município e que se constitui na sua grande riqueza. A escola precisa estar aberta para a diversidade cultural, étnica e de gênero e para as diferentes orientações sexuais. As diferenças exigem uma nova escola.

O grande desafio da escola de hoje é traduzir esses princí-pios em experiências práticas inovadoras concretas, em projetos para a capacitação cidadã da população, para que ela possa tomar em suas mãos os destinos do seu município. Diante dos novos espaços de formação criados pela sociedade da informação, ela os integra e articula. Ela deixa de ser lecionadora para ser cada vez mais gestora da informação generalizada, construtora e recons-trutora de saberes e conhecimentos socialmente significativos. Portanto, ela tem um papel mais articulador da cultura, um papel mais dirigente e agregador de pessoas, movimentos, organizações e instituições. Na sociedade da informação, o papel social da es-cola foi consideravelmente ampliado. É uma escola presente na municipalidade, que cria novos conhecimentos sem abrir mão do conhecimento historicamente produzido pela humanidade, uma escola científica e transformadora.

Nosso primeiro livro de leitura é o mundo. Para aprender no município precisamos saber ler o mundo. Em geral, nós ignoramos a cidade, estreitamos muito nosso olhar e não a percebemos, e algumas vezes até a escondemos; damos as costas para não vermos certas coisas que acontecem nela. Não queremos olhar certas coisas para não nos comprometermos com elas, pois o olhar nos compromete. Vejamos nosso comportamento nos semáforos quando somos abordados por meninos e meninas de rua. Nossa defesa é não olhar nos olhos deles e delas. Buscamos tornar muitos seres invisíveis; até em nossas próprias casas, quando, às nossas visitas, apresentamos toda a casa e não apre-sentamos a empregada ou a faxineira que aí trabalham. Passamos por elas como se fossem seres transparentes.

Precisamos de uma pedagogia do município para nos ensinar a olhar, a descobri-lo, para poder aprender com ele, dele, aprender a conviver com ele. O município é o espaço das diferenças. A diferença não é uma defi-ciência. É uma riqueza. Existe uma prática da ocultação das diferenças, também decorrente do medo de ser tocado por elas, sejam as diferenças sexuais, sejam as diferenças culturais, de gênero etc. Em geral, a nossa pe-dagogia dirige-se a um aluno médio, que é uma abstração. O nosso aluno real, contudo, o aluno concreto, é único. Cada um deles é diferente e preci-sa ser tratado em sua individualidade, em sua subjetividade.

Temos que aprender a nos locomover na cidade e no campo, ca-minhar muito por nossas ruas, vielas e trilhas. Deixar o carro em casa e caminhar. Não ver a cidade apenas através de fotos e vídeos. Para isso, uma educação cidadã para o trânsito e para a mobilidade é importante. Precisamos de mapas, de guias. Precisamos saber onde a gente se en-contra. Como cidadãos e cidadãs, precisamos nos sentir como sujeitos. A cidade, o município nos pertence; e porque nos pertence, participa-mos da sua construção e da sua reconstrução permanentemente.

Qualquer programa que tenta interconectar os espaços e equi-pamentos do município é fundamental, pois desconhecemos a nossa própria municipalidade e subestimamos as suas potencialidades. Pre-cisamos empoderar educacionalmente todos os seus equipamentos culturais. A educação é cultura. O município é o espaço da cultura e da educação. Existem muitas energias sociais transformadoras que ainda estão adormecidas por falta de um olhar educativo sobre elas.

Hoje, a questão da educação é menos uma questão de recursos, embora eles sejam reconhecidamente importantes. É muito mais uma questão de projeto, de inteligência, de vontade política, de integração governamental e articulação intersetorial, como sustenta o movimento Município que Educa. Há muito desperdício de dinheiro por falta de projeto, apesar de muita boa vontade. A escola e a educação são cam-pos privilegiados de trabalho. Nelas encontramos sujeitos que desejam transformar e construir um mundo melhor, fazer o melhor trabalho possível. Mas elas podem se perder se não souberem escutar. A escola que não se pergunta se perde. Para a escola achar seu caminho precisa perguntar, ser curiosa. Precisamos saber que não sabemos tudo. A es-cola não está sozinha.

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22 Múltiplos olhares

O sociólogo e professor Florestan Fernandes (1920-1995) costumava dizer que a escola não educava para a cidadania. Ele dizia que a estrutu-ra de poder no Brasil era arcaica e mantida pela classe dominante, que barrava a consciência crítica do povo. Essa estrutura político-social e econômica ainda é dominante. Mas a mesma sociedade que cria essa estrutura cria também a sua reação. O que foi socialmente construído pode ser socialmente desconstruído e reconstruído. A contradição so-cial existe. Por isso encontramos motivos para ser otimistas. Um deles é o surgimento de movimentos de renovação pedagógica como o da Escola Cidadã e o do Município que Educa. Eles apontam para o mes-mo projeto de futuro, para a construção de uma sociedade educadora-educanda, humanizada, emancipada e solidária, enfim, de um povo que é soberano e por isso educa.

EDUCAçãO COMO DIREItO nO MUnICÍPIO QUE EDUCAPaulo Roberto Padilha2

Aceitar o sonho do mundo melhor e a ele aderir é aceitar entrar no processo de criá-lo. Processo de luta contra qualquer tipo de violência. De violência contra a vida das árvores, dos rios, dos peixes, das montanhas, das cidades, das marcas físicas de memórias culturais e históricas. De violência contra os fracos, os indefesos, contra as minorias ofendidas. De violência contra os discriminados não importa a razão da discriminação. De luta contra a impu-nidade que estimula no momento entre nós o crime, o abuso, o desrespeito aos mais fracos, o desrespeito ostensivo à vida. […] Luta contra o desrespei-to à coisa pública, contra a mentira, contra a falta de escrúpulo. E tudo isso, com momentos, apenas, de desencanto, mas sem jamais perder a esperança. (FREIRE, 2000, p. 133-134).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo sexto, estabelece que “São direitos sociais a educação, a saú-de, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Talvez por vivermos tempos de “crise civilizatória”, nem sempre o que está na lei e o que é de direito é cum-prido, nem mesmo por quem as escreve e deveria defendê-las. Mas isso precisa mudar.

Lendo os jornais, assistindo aos telejornais e observando o que acontece na nossa vida cotidiana, temos até a impressão de que a ética se tornou figura de retórica e que a barbárie prevalece sobre a “civi-lidade”. Isso porque as condições básicas e estruturais para uma vida

2 Mestre e doutor em educação pela FE-USP. Pedagogo, bacharel em ciências contábeis e músico. Diretor de Desenvolvimento Institucional do Instituto Paulo Freire e autor dos livros Planejamento dialógico (2001), Currículo Intertranscultural (2004), Educar em To-dos os Cantos (2007), Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública (2009) e Educação Cidadã, Educação Integral (2010), entre outros. É precursor do Programa e do conceito “Município que Educa”, pelo Instituto Paulo Freire, onde trabalha há 16 anos.

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24 Múltiplos olhares 25Múltiplos olhares

minimamente digna não estão dadas para a maioria das pessoas, o que justificaria o “salve-se quem puder” e o próprio desrespeito às normas de convívio social. Mas é justamente neste contexto de naturalização do que não é natural – de desesperança, de falta de consciência social, de violação aos direitos humanos, de desrespeito às árvores, aos ani-mais e ao meio, de fragmentação do conhecimento, de individualida-des extremadas que justificam os privilégios de toda ordem, de busca do lucro a qualquer preço e de gestões públicas centralizadoras, sem participação social, que pensam mais no privado do que no público –, é exatamente por tudo isso e muito mais que se torna relevante pra-ticarmos a educação como direito: um direito ampliado e estendido a todas as pessoas, de todas as idades, durante toda a vida e em todas as dimensões e instâncias da vida social. Como escreveu Bertolt Brecht, “nada é impossível de mudar”.

A educação como ato político, produtivo e de conhecimento (Freire) tem uma dimensão crítica e, ao mesmo tempo, utópica, que alimenta e atualiza as nossas possibilidades de ação e a força dos nos-sos sonhos de um mundo e de uma sociedade melhores. Ao educarmos e nos educarmos, exercitamos a “esperança sem espera”, ao mesmo tempo em que, com os pés no chão, aprendemos a importância de pautarmos o nosso trabalho de forma dialógica, planejada, estratégica, sistemática e organizada, sempre a partir do estudo da realidade e do contexto sociocultural que nos cerca. Decorre daí o poder transforma-dor da educação.

Quando falamos em educação – e pensamos também em educa-ção integral, que é fundamento para projetos educacionais de tempo ou de horário integral –, referimo-nos a processos de formação hu-mana que nos sensibilizam para diferentes possibilidades de ensino e de aprendizagem nos diversos espaços e tempos em que vivemos. Isso exige que estejamos abertos a ressignificar as nossas práticas, a atuali-zar as nossas teorias e a lidarmos com diferentes saberes, conhecimentos e formas de aprendizagem, elaborando projetos integrados e integra-dores na escola, na comunidade e na municipalidade, a partir das ex-periências acumuladas de diversas gerações, das diferentes culturas e dos diferentes setores da sociedade. Para tanto, além de revisitarmos

a literatura disponível sobre o assunto3, faz-se necessário respeitar a experiência feita e valorizar o que tem sido condizente com uma ação pedagógica emancipadora e transformadora, superadora de um currí-culo formalista, que valoriza apenas o acúmulo de conteúdos progra-máticos da ciência, organizados de forma burocrática e hierárquica.

O que se busca nos processos de educação integral é a valorização de todas as formas de conhecimento, de saber e o desenvolvimento integral da pessoa nos aspectos biológicos, psicológicos, cognitivos, comportamentais, afetivos, relacionais, valorativos, sexuais, éticos, es-téticos, criativos, artísticos, ambientais, políticos, tecnológicos e profissio-nais. Educar integralmente o cidadão e a cidadã significa prepará-los para uma vida saudável e para a convivência humanizada, solidária e pacífica, o que deve acontecer em todos os espaços da vida social, na municipalidade e, diríamos mesmo, “em todos os cantos”. Tanto mais êxitos teremos quanto mais intensos forem os esforços conjuntos e es-tratégicos do Estado e da sociedade civil, que resultem em políticas públicas inclusivas, condizentes com o compromisso de se promover mudanças concretas na municipalidade para superar a desigualdade e a injustiça social.

O município pode potencializar e criar condições concretas para que as mudanças aconteçam, atualizando, inclusive, quando ne-cessário, a legislação vigente, adaptando-a a uma nova ordem social – mais participativa e inclusiva – e fomentando a captação de recur-sos e o estabelecimento ético e transparente de parcerias e alianças que podem ser processuais, sem que se queira tudo mudar de uma hora para a outra, respeitando as sinergias locais, sejam elas pessoais ou institucionais.

Estamos falando de um Município que Educa e que valoriza os es-forços de cada pessoa que vive, que trabalha e que acessa o município. Va-loriza e respeita os esforços das pessoas e das instituições governamentais, não governamentais, os movimentos sociais, as igrejas, os sindicatos, as escolas, as universidades, os clubes, as bibliotecas, os teatros, os espaços públicos e privados etc. Todos devem saber que o seu município, além

3 Ver GADOTTI, 2009; ANTUNES; PADILHA, 2010. Estes livros podem ajudar e indicam várias obras sobre o tema.

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26 Múltiplos olhares 27Múltiplos olhares

de atender as demandas de sua população, aproveita esse atendimento para também educar as pessoas, o que deve se fazer de forma organizada, mediante processos educacionais intencionais e continuados de todos que ensinam e aprendem, atendem e são atendidos. Nesse sentido, um Município que Educa é responsável pela educação integral e cidadã de seus munícipes e de quem por ele passa, educando-os individual e coletivamente e, com eles, educando-se.

A comunicação, a transparência e a veiculação de informações sobre tudo o que se passa na gestão pública municipal, favorecidas hoje com o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação, é exigência para dar visibilidade ao que se fez, ao que está se fazendo e ao que se pretende fazer no município. Até porque, se não se sabe o que está acontecendo, como podem as pessoas e instituições se associarem e defenderem algum projeto ou programa? A comunicação é essencial-mente educativa.

O Município que Educa amplia os tempos e os espaços de educa-ção das pessoas e das instituições da municipalidade quando organiza Grupos de Trabalho e Comissões Intersetoriais, por exemplo, para que a base da sociedade e os representantes do Estado e da Sociedade Ci-vil – e não apenas as suas lideranças – possam efetivamente participar, influenciar, decidir, acompanhar e avaliar as políticas públicas muni-cipais. Este processo é altamente educativo. Mas como não contamos, ainda, com as condições concretas para viabilizar este sonho coletivo de garantirmos o direito à educação na perspectiva do Município que Educa, é preciso entender que estaremos dando passos importantes se, a curto, médio e longo prazos, exigirmos de nós mesmos e de nossas instituições mais rigor, organização democrática e maiores esforços para superarmos os modelos de gestão pública e privada burocráticos, centralizadores e pouco participativos, que pensam apenas em resul-tados, quando deveriam pensar também nos processos e nas pessoas que deles participam.

Trata-se de criarmos uma nova arquitetura da gestão pública, permeada por processos educacionais que criem espaços para uma vida em sociedade mais pacífica, valorizando o direito à vida digna e cidadã a todas as pessoas e uma relação cuidadosa e respeitosa com todas as formas de vida existentes no planeta. É aqui que o Município

que Educa ganha seu maior significado: ele educa com base nos princí-pios de uma convivência sustentável, nos vários sentidos e significados que esta palavra possui na contemporaneidade: econômica, cultural, política, ética, ambiental, estética, educacional, cultural etc.

Mas como se faz isso? Já demos, acima, algumas indicações nessa direção. Mas, de forma simples, podemos criar no município um ou mais grupos de trabalho e, associadas a eles, comissões temáticas, para realizar, inicialmente, um Plano de Trabalho Articulado (Plantar), que parte da identificação das demandas, dos recursos, das potencialidades e dos limites da municipalidade, levantando os projetos que já aconte-cem, os principais problemas, identificando prioridades, analisando os programas estratégicos que já foram exitosos, os que não deram certo, os que estão em andamento e aqueles que são realizados por diferentes setores, que estão sendo executados isoladamente, mas buscando re-conhecer sinergias e aproximações entre diferentes ações, procurando identificar os pontos de contato e as possibilidades de uma atuação mais conjunta, intersetorial, que possa potencializar, principalmente, processos educacionais associados e integrados ao atendimento das demandas. Trata-se de:

a) criar grupos de trabalho intersetoriais, com pessoas da base da comunidade e com representantes do Estado e da So-ciedade Civil, sempre com a preocupação de incluir e de escutar segmentos sociais historicamente alijados desses processos participativos;

b) levantar os problemas, os dados da realidade e conhecer com mais detalhes as potencialidades, os desafios do município, as dificuldades existentes para a garantia de uma vida mais feliz, mais saudável e mais justa para a população que nele vive ou que por ele passa (leitura do mundo);

c) reconhecer o que já tem sido feito na direção da garantia dos direitos civis, sociais e políticos das pessoas e levantar todo este histórico, bem como as novas demandas. Nesse sentido, levantar a legislação municipal, estadual, federal e estudá-la;

d) conhecer o Plano Diretor do município, seus planos, progra-mas e projetos estratégicos;

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28 Múltiplos olhares 29Múltiplos olhares

e) definir os princípios de convivência do grupo coordenador local, definindo atribuições claras e os papéis de cada pessoa/instituição, sempre de forma colaborativa, solidária e com abertura para o diálogo, para a mudança, para o fazer coleti-vo, mas entendendo que isso se constrói e se aprimora com a própria convivência;

f) enfrentar desafios históricos e projetos às vezes em andamen-to, que muito anunciam e pouco fazem de efetivo para mudar as práticas e, antes delas, as mentalidades;

g) definir prioridades e um plano de trabalho intersetorial, po-tencializando o atendimento das demandas públicas associa-das a processos educacionais em paralelo;

h) estabelecer claramente os objetivos, metas, prioridades, indi-cadores de processo e de resultado, bem como a metodologia de registro de como foi o processo de planejamento interseto-rial no Município que Educa, buscando dar visibilidade públi-ca às suas propostas, ações e encaminhamentos.

O Município que Educa incentiva as abordagens multissetoriais com ênfase às ações articuladas, intersetoriais, participativas (demo-cracia direta), representativas (democracia indireta), buscando agre-gar intencionalidade educativa nas diferentes políticas do município.

É evidente que é difícil realizar novos projetos e criar nova cultura edu-cacional se contarmos apenas com as estruturas sociais existentes, muitas vezes resistentes às mudanças ou insuficientes para viabilizá-las. Por isso, há que se educar para mudar mentalidades, enfrentar resistências e buscar no-vas alternativas de gestão pública, lutando para superar práticas reacionárias que, consciente ou inconscientemente, defendem privilégios econômicos, sociais e culturais. Não basta dizer que a educação é um direito. É necessário garantir a realização dos direitos, arregaçando as mangas e escrevendo a his-tória a cada dia, em cada um dos espaços e tempos da municipalidade.

Para enfrentar estes e outros desafios, o Município que Educa se propõe a trabalhar com processos educativos continuados, diferencia-dos, mais sensíveis e humanizadores, que mobilizam ao mesmo tempo a racionalidade e a afetividade, a técnica e a sensibilidade, a ética, a estética e a política, as ciências e as artes, a economia e a ecologia, trabalhando

com a diversidade cultural, com as diferentes diferenças e com as múlti-plas semelhanças entre as pessoas e as próprias instituições sociais. Esta é uma possibilidade concreta de contribuirmos para educar cidadãos e cidadãs integrais e, principalmente, tornar as pessoas mais felizes porque mais justas e conscientes de que, como dizia Paulo Freire, os seus direitos começam onde também começam os direitos das outras pessoas.

Referências

ANTUNES, Ângela; PADILHA, Paulo Roberto. Educação Cidadã, Educação Integral: fundamentos e práticas. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.

GADOTTI, Moacir. Educação Integral no Brasil: inovações em proces-so. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.

PADILHA, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos: reflexões e can-ções por uma educação intertranscultural. São Paulo: Cortez/Ins-tituto Paulo Freire, 2007.

______. Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. (Cadernos de Formação, 2).

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ARtICULAçÕES EM REDE: A EDUCAçãOCOMO ELO EntRE AS InStItUIçÕESE OSSUJEItOS nA MUnICIPALIDADEPriscila Ramalho4

O discurso em favor das ações integradas e intersetoriais é cada vez mais pre-sente na gestão pública e nos movimentos sociais, como forma de dar respos-tas às questões de um mundo cada dia mais complexo e multidimensional. Essa tendência ganhou espaço com a ECO-92 – onde foi apresentada como estratégia para alcançar o desenvolvimento sustentável –, extrapolou a seara ambiental e desde então vem aparecendo e prevalecendo em fóruns de dis-cussão dos mais variados campos. “As comunidades precisam quebrar os mu-ros que separam as organizações, instituições, setores, jurisdições, bairros ou pessoas. No lugar de paredes que dividem [...] deveriam construir pontes que conectam” (KANTER, 1995, p. 379).

A proposta do Programa Município que Educa é que o fio condu-tor que conecta os sujeitos sociais da municipalidade e inspira essas ações integradas seja a educação.

A ideia de “educar a várias mãos” certamente não é nova. Hoje já faz parte do senso comum a visão de que o processo de formação acon-tece apenas em parte na escola, sendo complementado em tantos outros momentos de interação social do dia a dia, seja em casa ou em outros espaços (físicos e virtuais) da comunidade. O que o Município que Educa traz de novo é a possibilidade de potencializar as intencionalidades edu-cativas dos sujeitos e instituições envolvidos nesse processo, a partir de uma articulação mais orgânica e continuada entre eles.

Trata-se de um movimento no sentido de consolidar o compromisso

4 Cientista social e comunicadora, com mestrado em Estudos do Desenvolvimento pelo Institute of Social Sciences em Haia, na Holanda. Atua há 11 anos nas áreas de Educação, Comunicação e Desenvolvimento Local, tendo colaborado com projetos no Brasil, nos Camarões, na Etiópia e em Angola. No Instituto Paulo Freire, trabalhou no Projeto Bairro-Escola de Nova Iguaçu e, desde 2009, faz parte da equipe de Coordenação do Programa Município que Educa.

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32 Múltiplos olhares 33Múltiplos olhares

com a educação em toda a sociedade, cada um na sua área de atuação – desde os gestores das mais diversas áreas do governo até o líder co-munitário que organiza as festas do bairro – e a partir dessa correspon-sabilidade e da soma dos esforços ir consolidando uma rede local pela Educação, reunindo representantes do poder público e da sociedade civil. O economista Ladislau Dowbor (2006) fala na formação de uma comunidade gestora do conhecimento que tenha como centro uma escola articulada com as universidades, com as ONGs que trabalham com as mais diversas questões locais, com as organizações comunitárias e com os vários setores do poder público. “A qualidade de vida numa cidade depende cada vez mais da capacidade inteligente de organização das si-nergias no interesse comum” (DOWBOR, 2006, p. 4).

tecer a rede

Uma rede se refere a um conjunto de pessoas ou instituições que se organizam de forma autônoma e não hierárquica, unindo ideias e recursos em torno de valores e interesses compartilhados. Repre-senta “uma confiança no coletivo; uma aposta radical na democracia que se expressa nas relações cotidianas” (FUGIMOTO, 2005). Entre as principais características dessa forma de organização estão a hori-zontalidade, o poder desconcentrado, a soma de esforços (em oposi-ção à duplicação das ações), a corresponsabilidade entre os sujeitos, a ênfase no fluxo livre de informação, a relação de troca e reciproci-dade, a valorização da diversidade, a participação livre e consciente. Além disso, vale destacar o espaço que se abre ao compartilhamento de saberes e experiências.

Profundamente inspirado nos referenciais freirianos, o Progra-ma Município que Educa vê as redes como espaços privilegiados de diálogo em que representantes dos vários setores do poder público e da sociedade civil refletem coletivamente (e de forma crítica) sobre a realidade local e elaboram propostas de intervenção com propósito educativo: “Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade” (FREIRE, 1987, p. 123).

Nesse sentido, o Programa aposta na articulação entre os sujeitos sociais para atuar de forma mais sistêmica e sinérgica por uma mu-dança na realidade local, pelo viés da educação. Atua-se, assim, na

perspectiva de Schlithler (2004), segundo a qual o propósito das redes é mobilizar e desencadear ações conjuntas com objetivo de provocar transformações na sociedade, ou seja, realizar um projeto coletivo.

Articular pessoas e instituições pela construção de um Município que Educa não deveria ser tarefa árdua, já que, como vimos, há hoje uma tendência à formação de redes, que se torna ainda mais favorável quando a causa em questão é a educação. Na realidade, porém, é ainda um desafio colocar em prática o discurso em favor das ações colabora-tivas e integradas. Os representantes do poder público ou da sociedade civil, não diretamente ligados à educação, veem seu tempo e recursos serem consumidos com outras demandas imediatas e acabam deixan-do para segundo plano as ações educativas, mesmo que a princípio reconheçam sua importância.

Para que a articulação seja bem sucedida, portanto, é preciso um real entendimento e vivência do objetivo comum que move o grupo. Todos os envolvidos na rede devem acreditar que serão fortalecidos com a ação coletiva. Isso não significa deixar de lado suas causas ou interesses particulares, mas perceber que estes estão ligados às causas de outros sujeitos e instituições que têm dimensões complementares, e que a soma de esforços em torno de um projeto educativo impacta positivamente a missão de todos.

Imaginemos, por exemplo, um projeto coletivo para a criação de uma praça-escola. Não se trata apenas de uma intervenção para am-pliar os espaços educadores do município, mas que também pode ter efeitos positivos sobre o meio ambiente do bairro, a saúde dos mo-radores, o planejamento urbano, a segurança pública, as políticas de esporte, lazer e cultura etc. Tudo vai depender de quais setores foram representados no planejamento da ação.

Dar os laços

A consolidação da rede (PADILHA, 2009b) proposta pelo Mu-nicípio que Educa é sutil e se dá aos poucos, na medida em que os sujeitos forem percebendo os resultados positivos das primei-ras ações coletivas e, incentivados por eles, sintam-se motivados a colaborar em novas iniciativas. Mas uma questão permanece: por onde iniciar esse processo?

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34 Múltiplos olhares 35Múltiplos olhares

Em geral, o primeiro passo é criar laços de confiança mútua e ins-tituições que promovem a cooperação e as articulações entre os mem-bros de uma comunidade.

Ao estudar o que leva os sujeitos a colaborarem e se envolve-rem em iniciativas conjuntas, o cientista político norueguês Jon Elster (1989) argumenta que há um conjunto variado de motivações racio-nais e irracionais que pode incluir, por exemplo, altruísmo, respeito às regras sociais e interesses particulares. Segundo ele, as motivações dos participantes de uma rede tendem a se aproximar conforme o senti-mento de grupo for sendo criado.

Buscando incentivar desde cedo essa sintonia, o Programa Muni-cípio que Educa propõe que a sensibilização dos sujeitos comece pela realização de um mapeamento coletivo da realidade, incluindo uma análise crítica da situação educacional do município, dos principais in-dicadores, das leis, políticas e programas, da dinâmica dos Conselhos Municipais, dos principais sujeitos atuantes na área etc.

Esse estudo deve estimular um novo olhar dos sujeitos sobre suas próprias ações, identificando potencialidades e formas de contribuir para o fortalecimento educativo local. Além disso, a partir do ma-peamento, todos poderão se enxergar como parte de um grupo que compartilha a mesma realidade e condição (FREIRE, 1987). Esse senso de identidade e pertencimento dá as bases para o trabalho em rede e desencadeia um ciclo virtuoso de construção de relações mais coope-rativas, conjuntas e comunicativas.

Apertar os nós

Mesmo sendo a rede uma instituição de natureza não hierárqui-ca, é necessário, principalmente no início, que alguém assuma o papel de animador, criando momentos estratégicos para os participantes se encontrarem, compartilharem saberes e experiências e planejarem in-tervenções concretas.

Essa mediação pode ser assumida pelo governo local (por exem-plo, pela Secretaria de Educação, de Governo ou uma coordenadoria criada para esse fim), por uma ONG ou um grupo de líderes comuni-tários, ou ainda por uma empresa local. O importante é que quem ficar responsável por essa função mantenha sempre uma postura dialógica,

buscando ser inclusivo, valorizar a diversidade do grupo e encorajar, nos outros, o espírito de liderança.

Uma alternativa sugerida pelo Programa Município que Educa é a criação de um Conselho Gestor, um núcleo de coordenação formado por representantes dos diferentes setores realmente comprometidos com a causa. Este grupo de trabalho deverá tomar a frente do processo de arti-culação, estimulando os demais participantes, garantindo o fluxo de in-formação, delegando responsabilidades e fomentando o sentimento de pertencimento e união. Quanto mais heterogêneo for o Conselho Gestor, maior seu potencial de transformação social, visto que a pluralidade de olhares possibilita uma melhor identificação das potencialidades edu-cativas locais. Por isso, é importante incluir outros órgãos do poder pú-blico, para além da Secretaria de Educação e organizações da sociedade civil, que a princípio não trabalham diretamente na área.

Para manter a rede viva, cabe a quem estiver responsável pela me-diação encorajar, desde o início, a realização de projetos concretos. São os próprios resultados positivos das iniciativas coletivas que vão conta-giar os envolvidos e fazê-los valorizar cada vez mais a colaboração. Por isso, o ideal é começar por intervenções menos complexas (por exem-plo, uma ação mais pontual numa escola ou numa comunidade espe-cífica) e ir, aos poucos, ampliando para outras mais engenhosas. Essas conquistas, mesmo que pequenas, renovam a energia, a confiança e o compromisso do grupo. É preciso lembrar que as pessoas se unem em rede porque buscam transformar a realidade, e ações concretas nesse sentido são fundamentais para manter vivo o entusiasmo.

Além das redes de articulação local, o Programa Município que Educa valoriza a formação de redes virtuais que utilizem as novas tecno-logias de informação e comunicação para facilitar o compartilhamento de experiências e o debate entre sujeitos de diferentes municipalidades. Com este propósito, foi criada a Rede Social Município que Educa <www.municipioqueeduca.org>, na qual pessoas e instituições interessadas em fortalecer o potencial educativo de suas municipalidades podem divul-gar suas práticas, conhecer iniciativas de outras localidades, acessar documentos e publicações sobre o tema e participar de um fórum per-manente de debates. Assim como as redes presenciais, essa rede virtual é um importante instrumento de mobilização. Com ela, busca-se ampliar

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36 Múltiplos olhares

cada vez mais a discussão sobre o Município que Educa, criando aos poucos um movimento universal por um mundo onde a educação está presente, intencionalmente, nas ações de todos os sujeitos.

Referências

DOWBOR, Ladislau. Educação e Desenvolvimento Local. 2 abr. 2006. Disponível em: <http://dowbor.br>. Acesso em: 10 jan. 2010.

DURSTON, John. ¿Qué es el capital social comunitario? Santiago de Chile: Cepal, 2000. (Políticas Sociales, 38).

ELSTER, Jon. The Cement of Society: a Study of Social Order. New York: Cambridge University Press, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FUGIMOTO, Gilberto. Redes e capital social. Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/16820948/-Tilberto-Fugimoto-Redes-e-Capital-Social>. Acesso em: 10 jan. 2010.

KANTER, Rosabeth. World Class: Thriving Locally in the Global Eco-nomy. New York: Simon and Schuster, 1995.

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RAMALHO, Priscila. External intervention for the strenghthening of community organizations: The case of Vale do Curu, Brazil. Artigo apresentado no Congresso da Associação de Estudos Latino-Ame-ricanos (Lasa), Montreal, set. 2007.

SCHLITHLER, Célia. Redes de desenvolvimento comunitário: iniciati-vas para a transformação social. São Paulo: Global; IDIS – Instituto para o Desenvolvimento de Investimento Social, 2004.

A PARtICIPAçãO SOCIAL nO MUnICÍPIO QUE EDUCA

Reginaldo Ronconi5

A proposta do Município que Educa ressalta que a educação está presente em todas as atividades. Acredito nisso e também quero lem-brar que a educação é um processo cotidiano e permanente. Ou seja, educamos e somos educados todos os dias. É importante considerar a educação também fora da escola, envolvendo crianças, jovens e adul-tos, agindo em diversos níveis de complexidade. Habilitando para a cidadania ativa.

Vamos procurar evidenciar essa possibilidade refletindo sobre a questão da moradia. E para isso vamos lembrar-nos de quando a mo-radia é obtida por meio de processos participativos.

A participação deve ser reconhecida como um princípio presente na estrutura democrática. É um direito que, quando exercido, revela o compromisso com o desenvolvimento humano. Possuiu um impacto social que é rejuvenescedor, permite à sociedade ver-se e rever-se a partir da discussão de diversos pontos de vista.

Por outro lado, participar confere ao indivíduo maior percepção das próprias possibilidades, de articulação, de realização. Reconhecer-se participante de algo é reconhecer-se mais forte, mais livre. Mais so-cialmente integrado. Formador da própria comunidade.

Por exemplo (pensando na educação formal), quanto mais uma escola recebe a participação dos estudantes, de seus pais, da vizinhança onde se localiza, maior será sua ação cultural e social. Uma escola não

5 Arquiteto, professor na Universidade de São Paulo na graduação e pós-graduação. Foi um dos responsáveis pela implantação do programa de mutirões autogeridos na Prefeitura Municipal de São Paulo (gestão 1989-1992).

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é o edifício batizado com esse nome; a escola representa o envolvimen-to da comunidade com a sua própria educação.

Portanto a necessidade da participação é importante na organiza-ção social porque qualifica o seu desenvolvimento. É a possibilidade de inserir uma ideia, uma visão de mundo, uma vontade própria dentro do processo histórico de construção social. E inserir não é adaptar-se, como esclarece o professor Paulo Freire:

Na adaptação há uma adequação, há um ajuste do corpo às condições materiais, históricas, sociais, geográficas, climáticas etc. E na inserção o que há é a tomada de decisão no sentido da intervenção no mundo.6

A inserção exige a reorganização do espaço, exige o diálogo, e este possibilita a formação de novas percepções, novos conhecimen-tos. Novas possibilidades.

Por sua vez, participar dá trabalho. É preciso analisar um tema, organizar uma crítica, elaborar uma proposta, argumentar em sua de-fesa, convencer, escutar, dialogar... E na maioria das vezes ainda é pre-ciso conquistar um espaço para fazer tudo isso.

Mas, sempre, a participação possibilita ao indivíduo impactar uma decisão social. Portanto é vital.

Os movimentos sociais urbanos organizaram-se por meio dessa evolução da capacidade de participação de seus membros, que supera a condição individualista e imobilizadora.

A partir de necessidades específicas, transporte, carestia, saúde, habitação etc., desenvolveram uma visão integrada sobre a problemáti-ca urbana. Podemos ver os movimentos como uma rede social, abran-gente e capaz de mobilizar-se para atingir suas metas.

Cada vez mais nos convencíamos ontem e estamos convencidos hoje que, para tal, teria o homem brasileiro de ganhar sua responsabilidade social e política, existindo essa responsabilidade. Participando, ganhando cada vez maior inge-rência nos destinos da escola do seu filho. Nos destinos do seu sindicato. De sua empresa, através de agremiações, clubes, conselhos. Ganhando ingerência na vida do seu bairro, de sua igreja. (FREIRE, 1981, p. 92).

6 Paulo Freire, em entrevista para a TV PUC, em 17 de abril de 1997.

Esses movimentos pressionam o Estado, obrigando as estruturas convencionais de atendimento à interação com a demanda explícita.

Vejamos o exemplo dos movimentos sociais por moradia na ci-dade de São Paulo.

Desde a década de 1970 existiu uma crescente ampliação na ca-pacidade de entendimento das questões naturais dessa área. A or-ganização social evoluiu abrindo caminhos que sensibilizassem os governos municipais.

Trabalhando com projetos-piloto,7 elaborados por assessorias in-dependentes do poder público e vinculadas diretamente ao movimento social, as associações aprofundaram discussões sobre o tamanho dos lotes, área das moradias, durabilidade das casas, custo por mutirão, custo por empreiteira, modelos de financiamento etc. Ficou claro que o movimento ultrapassava o estágio da reivindicação primitiva e se colocava como proponente qualificado.

É impossível deixar de perceber a dimensão educadora exis-tente nesse processo. Aprender a ler desenhos, escalas diferentes; compreender a estrutura de relacionamento urbano existente no lote, arruamento, áreas de lazer, serviços; refletir sobre o desem-penho das áreas construídas; considerar o efeito da passagem do tempo sobre as construções; analisar previamente os custos e suas modalidades de composição; compreender as estruturas de finan-ciamento; e, sobretudo, utilizar todo esse instrumental como ba-lizador de decisões.

Mas também é verdade que nem sempre essas propostas fo-ram compreendidas como uma evolução da qualidade do diálogo. A estrutura municipal via, na maioria das vezes, essas propostas como uma impertinência, apresentada nas mobilizações e eventu-ais negociações.

O Movimento Popular amadurecia, mas a estrutura municipal ainda não.

7 Vila Nova Cachoeirinha (1982), Recanto da Alegria (1983), Vila Comunitária de São Ber-nardo do Campo (1985).

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Era necessário que o poder público estivesse preparado para aceitar e trabalhar com a parceria que se esboçava. O município pre-cisava conscientizar-se da sua responsabilidade educadora plena.

Vale lembrar que essa responsabilidade está presente na proposta do Município que Educa, pois ela estimula práticas solidárias e eman-cipatórias; porém, é preciso ressaltar que essa visão deve ser desven-dada também dentro das estruturas administrativas do município. É preciso que a estrutura municipal transforme seus procedimentos e fluxos administrativos, prevendo e incorporando a participação do munícipe/usuário.

E foi justamente caminhando nessa direção que encontramos a administração eleita na cidade de São Paulo, em 1988, permitindo maior abertura aos processos que incluíssem a participação popular.

Naquele momento, várias das propostas trabalhadas no movi-mento por moradia foram incorporadas às discussões formadoras das políticas públicas. Por exemplo, foram implantados programas que ad-mitam a população como gestora de empreendimentos.

Claro que a tensão entre poder público e movimento conti-nuou existindo.

A demanda reprimida era (e ainda é) tão grande que, impossível de ser totalmente satisfeita, mantinha a pressão por mudanças mais amplas.

Ou seja, podemos dizer que alguns dos setores envolvidos nesse processo iniciaram uma relação dialógica entre a obrigação do poder municipal e as necessidades de moradia dos cidadãos. Iniciaram um movimento em direção a um novo conceito, a uma nova percepção do seu dever social: entender o cidadão como parceiro. Esse processo foi majoritariamente educador e ultrapassou os espaços formais da edu-cação, fortalecendo, emancipando, estimulando o desenvolvimento cultural pleno.

E é sobre a necessidade de realizarmos mudanças culturais am-plas que precisamos refletir. Educar para a liberdade significa educar para a visão crítica, para não engolir definições apenas porque existem; significa evoluir culturalmente.

Vejamos o conceito da habitação de interesse social. Será que o

interesse da sociedade aponta com 30m2 para abrigar uma família de cinco pessoas? Será que é interesse social pensar em meia casa para as pessoas? Será que o interesse da sociedade é o de construir conjuntos habitacionais nos extremos das áreas urbanas, sem transportes, prati-camente isolados da vida na cidade? Será que é interesse social pensar em abrigos iguais, com desenhos medíocres; sempre implantados em malhas ortogonais que ignorem a topografia dos terrenos?

Será que o interesse social é tão pequeno assim?

Certamente, não. Precisamos, então, recuperar a qualidade desse conceito.

Os interesses da sociedade devem expressar a luta por uma real promoção das condições de vida. Ganhar qualidade nas cidades. Esta-belecer padrões de excelência para o desenvolvimento da saúde, edu-cação, habitação, transportes.

É preciso resgatar o real significado a partir daquilo que interessa à sociedade.

O adjetivo popular que demonstra sempre o orgulho do povo, quando usado em expressões como música popular, ou classificando o futebol como o esporte mais popular, ou lembrando a importância das festas populares, por que não reflete a mesma sensação positiva quando usado na expressão casa popular?

Por que a habitação popular deve ser a pintura da tristeza?

Precisamos assumir uma mudança cultural sobre o direito à qualidade.

O poder público historicamente age como um grande senhor que dispõe sobre a vida de seus súditos. Mudar culturalmente essa visão exige a participação dos diversos processos educadores existentes, for-mais ou não.

O potencial que existe nessa mudança pode ser observado no cur-to período em que existiu o programa do Fundo de Atendimento à Po-pulação Moradora em Habitações Subnormais (Funaps Comunitário).8

8 Programa municipal desenvolvido em 1990, em São Paulo, na superintendência de habitação

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Naquele programa, a população organizada em associações deveria contratar uma equipe técnica, sem fins lucrativos, para o desenvolvi-mento do projeto das casas, da sua implantação e para atuar na obra orientando e fiscalizando a qualidade dos trabalhos.

Essa responsabilidade imensa sobre o empreendimento fez com que a população, que não possuía experiência nesse tipo de organiza-ção, enfrentasse os problemas decorrentes com criatividade e ousadia.

E o mais importante: o fez com absoluta competência. Aprenden-do e se educando para operações cada vez mais complexas.

Materialmente foi uma experiência muito bem sucedida; as ca-sas tinham o tamanho maior que aquelas realizadas por empreiteiras e o custo significativamente menor. Foram projetados e construídos edifícios de quatro andares, casas térreas, casa com dois pisos, centros comunitários e arruamentos. A qualidade dos espaços da implantação foi, em muitos casos, exemplar.

Mas outros ganhos, talvez imensuráveis de tão importantes, se fizeram presentes.

A organização popular evoluiu muito na discussão sobre a questão da habitação. Incluiu nos projetos a necessidade de escolas, transportes e creches. O movimento organizado participou de diversas reuniões em diversos âmbitos: municipal, estadual e federal. Propostas de políticas públicas foram encaminhadas para essas instâncias. Foram defendidas em encontros e reuniões, foram modificadas, evoluíram. Impactaram programas em diversas prefeituras, mesmo após o término da gestão paulista. Os programas federais na área de habitação ainda guardam lembranças desses conceitos, no crédito solidário, minha casa minha vida, entidades etc.

Exercendo seu direito de participar, lutando por ele, as pes-soas transformaram situações totalmente desfavoráveis e abriram novos caminhos.

Esforços como esses colaboram para a mudança cultural necessária,

(Habi). Financiava a construção de casas por associações de moradores que se encarrega-vam da gestão do empreendimento.

mostram que ao mesmo tempo em que o interesse social quer casas de maior qualidade, quer também um Estado que trate o cidadão com responsabilidade e compartilhe com ele os processos de decisão.

É claro que, naquela gestão, o poder municipal acompanhou esse esforço ativamente. A política habitacional previa e contava com a participação das associações de moradia. Treinamentos com o pes-soal técnico de carreira foram realizados para aumentar as chances de desenvolvimento da proposta. Normas e procedimentos foram criados para regular esse novo relacionamento com as comunida-des. Material informativo foi preparado e distribuído para as demais áreas do governo municipal. As jornadas de trabalho foram revistas, adaptadas aos novos programas.

A situação descrita nos mostra que o município que se compro-meter com processos amplos de educação poderá aplicar esse olhar em todas as áreas. Das mais complexas até as mais simples normativas. Mas, necessariamente, deverá construir espaços na estrutura munici-pal para acolher os resultados desse processo.

Conforme Paulo Freire (2001, p. 38), “A democracia demanda estruturas democratizantes e não estruturas inibidoras da presença participativa da sociedade civil no comando da república”.

O que vejo aproximar-se, nessa experiência, dos pontos levanta-dos pela proposta do Município que Educa, é a forte presença de uma onda educadora fora dos espaços tradicionais e formais da educação.

Uma onda que abrange desde os primeiros passos da organi-zação da comunidade e que continua envolvendo os espaços de dis-cussão com o poder público, a elaboração dos projetos junto com os arquitetos, a organização da situação de obra, o arranjo da situação mais adequada no canteiro para receber os mutirantes, o desenvol-vimento dos processos de compra de material, adaptações na estru-tura municipal, enfim, é a educação presente nesse cotidiano que contribuiu para o amadurecimento de todos os envolvidos.

Parece-me muito interessante considerar um mergulho nessa onda.

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Referências

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______. Política e Educação: Ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educa-tiva. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

ESPAçO DA EDUCAçãO EESPAçO DA VIDA

Ladislau Dowbor9

No município de Pintadas, na Bahia, pequeno município distante da modernidade do asfalto, todo ano, quase a metade dos homens via-java para o Sudeste para o corte de cana. A parceria de uma prefeita di-nâmica, de alguns produtores e de pessoas com visão das necessidades locais permitiu que os que buscavam emprego em lugares distantes se voltassem para a construção do próprio município. Começaram com uma parceria entre a secretaria da educação local e uma universidade de Salvador, para elaborar um plano de saneamento básico da cidade, o que reduziu os custos de saúde, liberou terras e verbas para a produção e assim por diante. A geração de conhecimentos sobre a realidade local e a promoção de uma atitude pro-ativa para o desenvolvimento fazem parte evidente de uma educação que pode se tornar no instrumento científico e pedagógico da transformação local.

Hoje se ensina o semiárido nas escolas de Pintadas. É natural que este ensino, que permite às crianças a compreensão da sua região, das dificuldades dos seus próprios pais nas diversas esferas profissionais, estimule as crianças e prepare cidadãos que verão a educação como instrumento de transformação da própria realidade.

Em Santa Catarina, sob orientação do sociólogo e professor Jacó

9 É doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de Democracia Econômica, A Re-produção Social, O Mosaico Partido, Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação, todos pela editora Vozes, além de O que Acontece com o Trabalho? (editora Senac) e coorga-nizador da coletânea Economia Social no Brasil (editora Senac). Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org

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Anderle (1936-2005), foi desenvolvido o programa “Minha Escola, Meu Lugar”. Trata-se de uma iniciativa sistemática de inclusão da re-alidade local nos currículos escolares, envolvendo a formação de pro-fessores – que, em geral, pela própria formação, também desconhecem as suas regiões –, a elaboração de material didático, a articulação dos currículos de diversas disciplinas e assim por diante. No Paraná, estão desenvolvendo a experiência de Arranjos Educativos Locais.

A ideia da educação para o desenvolvimento local está direta-mente vinculada à necessidade de se formar pessoas que amanhã pos-sam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas. Hoje, quando se tenta promover iniciativas deste tipo, como é o caso do Programa Município que Educa, constata-se que não só as crianças, mas inclusive os adultos desconhecem desde a origem do nome da sua própria rua até os po-tenciais do subsolo da região onde se criaram. Para termos cidadania ativa, temos de ter uma cidadania informada, e isto começa cedo. A educação não deve servir apenas como trampolim para uma pessoa escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos necessários para ajudar a transformá-la.

Há uma dimensão pedagógica importante neste enfoque. Ao es-tudarem de forma científica e organizada a realidade que conhecem por vivência, mas de forma fragmentada, as crianças tendem a assi-milar melhor os próprios conceitos científicos, pois é a realidade delas que passa a adquirir sentido. Ao estudar, por exemplo, as dinâmicas migratórias que constituíram a própria cidade onde vivem, as crianças tendem a encontrar cada uma a sua origem, segmentos de sua identi-dade, e passam a ver a ciência como instrumento de compreensão da sua própria vida, da vida da sua família. A ciência passa a ser apropria-da, e não mais apenas uma obrigação escolar.

O objetivo da educação não é desenvolver conceitos tradicionais de educação cívica com moralismos que cheiram a mofo, mas permitir aos jovens que tenham acesso aos dados básicos do contexto que regerá as suas vidas. Entender o que acontece com o dinheiro público, quais são os indicadores de mortalidade infantil, quem são os maiores poluidores da sua região, quais são os maiores potenciais de desenvolvimento – tudo isto é uma questão de elementar transparência social. Não se trata de

privilegiar o prático relativamente ao teórico, trata-se de construir ca-pacidade teórica a partir do concreto conhecido. A criança que passa a entender o seu entorno descobre a mágica da explicação científica: “isto funciona”.

Uma educação que insira nas suas formas de educar uma maior compreensão da realidade local terá de organizar parcerias com os di-versos atores sociais que constroem a dinâmica local. Em particular, as escolas, ou o sistema educacional local de forma geral, terão de articu-lar-se com universidades locais ou regionais para elaborar o material correspondente, organizar parcerias com ONGs que trabalham com dados locais, conhecer as diferentes organizações comunitárias, inte-ragir com diversos setores de atividades públicas, buscar o apoio de instituições do sistema S, como Sebrae ou Senac, e assim por diante.

O processo é de duplo sentido, pois, por um lado, leva a escola a formar pessoas com maior compreensão das dinâmicas realmente existentes para os futuros profissionais e, por outro, leva a que estas dinâmicas penetrem o próprio sistema educacional, enriquecendo-o. Assim, os professores terão maior contato com as diversas esferas de atividades, tornar-se-ão, de certa maneira, mediadores científicos e pe-dagógicos de um território, de uma comunidade. A requalificação dos professores, que isto implica, poderá ser muito rica, pois serão natural-mente levados a confrontar o que ensinam com as realidades vividas, sendo de certa maneira colocados na mesma situação que os alunos, que escutam as aulas e enfrentam a dificuldade em fazer a ponte entre o que é ensinado e a realidade concreta do seu cotidiano.

O impacto em termos de motivação, para uns e outros, poderá ser grande, sobretudo para os alunos a quem sempre se explica que um dia entenderão porque o que estudam é importante. O aluno que terá aprendido em termos históricos e geográficos como se desenvolveu o seu município, o seu bairro, terá maior capacidade e interesse em con-trastar este desenvolvimento com o processo de urbanização de outras regiões, de outros países, e compreenderá melhor os conceitos teóricos das dinâmicas demográficas em geral.

Envolve ainda mudanças dos procedimentos pedagógicos, pois é diferente fazer os alunos anotarem o que o professor diz sobre Dona Car-lota Joaquina e organizar, de maneira científica, o conhecimento prático,

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mas fragmentado, que existe na cabeça dos alunos. Em particular, seria natural organizar, de forma regular e não esporádica, discussões que envolvam alunos, professores e profissionais de diversas áreas de ativi-dades, desde líderes comunitários a gerentes de banco, de sindicalistas a empresários, de profissionais liberais a desempregados, apoiando es-tes contatos sistemáticos com material científico de apoio.

Na sociedade do conhecimento para a qual evoluímos rapidamente, todos – e não só as instituições de ensino – se defrontam com as di-ficuldades de se lidar com muito mais conhecimento e informação. As empresas realizam regularmente programas de requalificação dos trabalhadores, e hoje trabalham com o conceito de “knowledge organi-zation”, ou de “learning organizations”, na linha da aprendizagem per-manente. Em cada município, podemos evoluir para uma estratégia integrada de adensamento de conhecimentos disponíveis, gerando um “knowledge territory”.10

Acabou o tempo em que as pessoas primeiro estudam, depois trabalham, e depois se aposentam. A relação com a informação e o conhecimento acompanha cada vez mais as pessoas durante toda a sua vida. É um deslocamento profundo entre a cronologia da educação formal e a cronologia da vida profissional. Neste sentido, todas as orga-nizações, e não só as escolas, se tornaram instituições onde se aprende, se reconsidera os dados da realidade. A escola precisa estar articulada com estes diversos espaços de aprendizagem, para ser uma parceira das transformações necessárias.

Aparecem, como parceiros necessários, as universidades regio-nais, as empresas, o sistema S, diversos órgãos da prefeitura, as ONGs ambientais, as organizações comunitárias, a mídia local, as represen-tações locais do IBGE, Embrapa e outros organismos de pesquisa e desenvolvimento. No plano da implantação local de tecnologias a ser-viço da educação, o exemplo de Piraí, pequena cidade do Estado do Rio, é importante, bem como o de Nova Iguaçu. O movimento Nossa

10 Isto envolve também que se reduzam drasticamente os “pedágios” sobre circulação do conhecimento que hoje cobram os mais variados intermediários, em nome da “luta contra a pirataria”. Sobre este assunto ver o nosso Da propriedade intelectual à sociedade do conhe-cimento, artigo disponível em http://dowbor.org/09propriedadeintelectual7out.doc

São Paulo, ao mobilizar as comunidades para a elaboração de um sistema de informações sobre a cidade, gerou uma rica matéria-prima para estudar tanto a cidade como metodologia de pesquisa e instrumentos quantitativos.11

Enfim, há um mundo de conhecimentos dispersos e subutiliza-dos, que podem se tornar matéria-prima de um ensino diferenciado. O que visamos é uma escola um pouco menos lecionadora, e um pouco mais articuladora dos diversos espaços do conhecimento que existem em cada localidade, em cada região. E educar os alunos de forma a que se sintam familiarizados e inseridos nesta realidade.

Há um potencial de democratização radical do apoio aos profes-sores, e de nivelamento para cima do conjunto do mundo educacional no País, que as tecnologias hoje permitem, e a luta por esta demo-cratização tornou-se essencial na mudança sistêmica, que ultrapassa o nível de iniciativa do educador individual ou da escola isoladamente. Não há dúvida que o educador frequentemente ainda se debate com os problemas mais dramáticos e elementares. Mas a implicação prática que vemos, frente à existência paralela deste atraso e da modernização, é que temos que trabalhar em dois tempos, introduzindo melhorias no universo tradicional que constitui a nossa educação, mas criando ra-pidamente as condições para uma transformação que se aproprie dos novos potenciais que surgem. Há que melhorar o sistema que existe, mas também organizar a transição para a sociedade do conhecimento e o novo tipo de demanda para o universo escolar que isto implica.

O que temos hoje é uma rápida penetração das tecnologias e uma lenta assimilação das implicações que estas tecnologias trazem para a educação. Convivem assim dois sistemas pouco articulados, e fre-quentemente vemos escolas que trancam computadores numa sala, o “laboratório”, em vez de inserir o seu uso em dinâmicas pedagógicas repensadas. Superar tais práticas é o desafio permanente da socieda-de contemporânea, o que contribui para a compreensão de que um Município que Educa integra e considera os espaços da educação e os espaços da vida.

11 O sistema, hoje em construção em dezenas de cidades no Brasil, está disponível em www.nossasaopaulo.org.br

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EDUCAçãO IntEGRAL ECOMUnItÁRIA: O REMIRAR-SEDA CIDADE E DA ESCOLA

Jaqueline Moll12

Gesuína de Fátima Elias Leclerc13

A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia contemplam-se. Qual delas falará pri-meiro? Quem tem a dizer ou a esconder uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea capital? Por que Brasília resplandece ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia, filhos da majes-tade de Brasília? E pensam-se, remiram-se em silêncio as gêmeas criações do gênio brasileiro. (ANDRADE, 2001, p. 1.270)

O crescente conteúdo de ciências, técnicas e informação que mar-ca as configurações territoriais na atualidade, no contexto de profun-das desigualdades sociais e de exclusão que caracterizam a sociedade brasileira, serve de pano de fundo para a temática educação integral no Município que Educa14. O presente recorte está relacionado à partici-pação na implementação do Programa Mais Educação, instituído por

12 Jaqueline Moll é graduada em Pedagogia, especialista em Alfabetização e Educação Po-pular, mestra e doutora em Educação, tendo realizado parte dos estudos na Universida-de de Barcelona. É professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora colaboradora da Universidade de Brasília e Diretora de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania do Ministério da Educação. Sua formação, produção e ação pedagógica vem sendo construída no campo das políticas públicas de educação com ênfase em alfabetização, educação de jovens e adultos, fracasso escolar, pedagogias urbanas e relações entre escola e cidade.

13 Gesuína de Fátima Elias Leclerc é Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Gros-so, Consultora da Unesco e OEI com atuação na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC. Atualmente é Professora Visitante Nacional da Uni-versidade Federal do Ceará.

14 Aplicamos ao município que educa o mesmo uso do conceito cidade educadora: possibi-lidade de converter o território urbano em espaço educador, por meio de intencionali-dades pedagógicas dos diferentes atores que vivem a cidade (MOLL, 2004).

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meio da Portaria Interministerial nº 17/2007, tendo como signatários os Ministérios da Educação, da Cultura, do Esporte e do Desenvol-vimento Social e Combate à Fome; e regulamentado pelo Decreto nº 7.083/2010, para ampliar o tempo de permanência de crianças, ado-lescentes e jovens na escola e em outros espaços educativos, com o fomento de atividades de educação integral15. Nesse sentido, o desafio maior é participar da aproximação do Ministério da Educação em rela-ção ao chão da escola, em diálogo cotidiano com os sistemas de ensino estaduais e municipais, conforme as ações do Plano de Desenvolvi-mento da Educação. Essa aproximação é tensionada, mediante a força da crença compartilhada de que o chão da escola é espaço de produção de conhecimento, saberes e vivências, no qual, historicamente, se tem boas razões para desconfianças em relação às decisões emanadas desde Brasília (LECLERC, 2010). Nos casos em que os projetos e programas dialogam com essa produção e se deixam remodelar, então, os projetos e programas são promissores quanto à conversão em políticas públi-cas. O Programa Mais Educação é uma aposta nessa direção e oferece o repertório de práticas que inspiram esta reflexão. Na expressão de Milton Santos (2008, p. 41):

A configuração territorial é formada pelo conjunto de sistemas de engenharia que o homem (sic) vai superpondo à natureza, verdadeiras próteses, de maneira a permitir que se criem as condições de trabalho próprias de cada época. O desenvolvimento da configuração territorial na fase atual vem com um desen-volvimento exponencial do sistema de transportes, do sistema de telecomunica-ções e da produção de energia.

15 O Programa Mais Educação oferece dez macrocampos de atividades de educação inte-gral: acompanhamento pedagógico: matemática, letramento, ciências, história e geografia, línguas estrangeiras, filosofia e sociologia; meio ambiente: Agenda 21 na escola/com-vida, horta escolar e/ou comunitária; esporte e lazer: recreação e lazer, voleibol, basquete, basquete de rua, futebol, futsal, handebol, tênis de mesa, judô, karatê, taekwondo, yoga, natação, xadrez tradicional, xadrez virtual, atletismo, ginástica rítmica, corrida de ori-entação, ciclismo, tênis de campo e o Programa Segundo Tempo; direitos humanos em educação: direitos humanos no ambiente escolar; cultura e artes: leitura, banda, fanfarra, canto coral, hip-hop, danças, teatro, pintura, grafite, desenho, escultura, percussão, ca-poeira, iniciação musical por meio da flauta doce, cineclube, práticas circenses, mosaico; cultura digital: software educacional, informática e tecnologia da informação, ambiente de redes sociais; prevenção e promoção da saúde: atividades de prevenção e promoção da saúde; educação e uso de mídias: jornal escolar, rádio escolar, histórias em quadrinhos, fotografia e vídeo; investigação no campo das ciências da natureza: laboratórios e proje-tos científicos; educação econômica: atividades de educação econômica.

O desenvolvimento da produção material e formas de produção não material, sua circulação e consumo, também participam da con-figuração territorial. Nela, emergem as tecnologias sociais para desen-volvimento de políticas públicas, como um arranjo de sistemas, objetos e ações. Uma tecnologia social “compreende produtos, técnicas ou me-todologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social” (RODRI-GUES; BARBIERI, 2008, p. 1.070). É preciso enfatizar o processo de produção dessa tecnologia, em relação aos atores sociais, à proposição e à vivência da gestão democrática. Uma tecnologia social com essas características emerge da práxis dos sistemas de ensino, movimentos sociais, sindicais, organizações não governamentais, universidades e promove arranjos educativos locais16.

Falemos de dois papéis do Ministério da Educação (MEC) em relação ao exposto. Um deles é o de possibilitar o intercâmbio das tec-nologias sociais, contribuir para sua replicabilidade e escala, mediante o financiamento e a indução de políticas públicas. Esse papel se torna consequente com o reconhecimento do enorme contingente de crian-ças, adolescentes e jovens fora das ações de educação integral, prin-cipalmente em razão das poucas horas diárias de escola. A variável tempo é necessária na formulação do problema da oferta de educação integral no Brasil, mas está longe de ser suficiente para seu equacio-namento. É preciso que essa variável esteja associada à integralidade do desenvolvimento humano; às práticas que facilitam a convivência e tornam a escola um lugar atraente, por exemplo. Outra variável é a reinvenção do espaço, considerando-se o desafio imperativo da rein-venção da escola, como fruto do diálogo entre Estado e sociedade, entre escola e comunidade e como resultado da imaginação institucio-nal propulsora de “inéditos pedagógicos e administrativos viáveis”.

16 Uma referência de arranjo educativo local é a constituição de Comitês Locais e Metro-politanos. O Comitê é o espaço de participação sistemática das Secretarias de Educação, Universidades e dos diferentes atores sociais que implementam ou apoiam as ações de abertura de escolas públicas, aos finais de semana e do Programa Mais Educação. Des-taca-se o esforço para coordenar as participações dos profissionais da educação, saúde, esporte e lazer, assistência social, gestores, professores, estudantes e suas famílias, volun-tários e parceiros.

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Estamos diante de uma possibilidade histórica da construção de po-líticas permanentes e sustentáveis de educação integral, em tempo inte-gral, vinculadas à replicabilidade e escala de tecnologias sociais. Não se pode pensar em educação integral por meio da formatação de “ilhas-mo-delo de excelência” ou “vitrines”, que isolem algumas escolas, dando-lhes condições inimagináveis para o conjunto das redes e sistemas públicos de ensino (MOLL, 2010). Por sua vez, os processos educativos, na contem-poraneidade, embora passem impreterivelmente pela escola, transcendem a instituição escolar. O monitoramento das tarefas diárias atribuídas aos estudantes, seu engajamento em atividades de cultura e arte, esporte e la-zer, manejo de mídias, acesso à internet, sua participação em atividades de prevenção aos agravos da saúde, promoção da saúde, educação para os direitos humanos, educação ambiental, práticas de economia solidária e compreensão crítica do funcionamento das finanças, e assim por diante, na lista imaginária sempre crescente das demandas contemporâneas; tudo isso demanda a oferta de educação integral, sob coordenação da própria escola, mas nem sempre em suas instalações. E não apenas porque falta espaço nas instalações escolares. Sob coordenação da escola, porque essa representa o principal espaço de acesso aos direitos sociais para os setores populares. A política educacional deve articular-se a uma ampla rede de políticas sociais e culturais, de atores sociais e de equipamentos públicos. Nisso reside a importância de se considerar as políticas para um muni-cípio educador, articulando-se as relações entre município, comunidade, escola e os diferentes agentes educativos, de modo que a própria cidade se constitua como agente educativo.

O outro papel do MEC é o de promover a intersetorialidade das po-líticas governamentais e a mobilização da família e da comunidade. Desta-cam-se as ações intersetoriais entre os campos da proteção ocial, prevenção a situações de violação de direitos da criança e do adolescente, educação para os direitos humanos, sustentabilidade ambiental e os campos da pro-posição da melhoria do desempenho escolar, com a permanência na es-cola. Tal articulação se torna consequente nas interfaces que os atores da ação pública, dos diferentes campos, estabelecem entre si, a serviço e em diálogo com as demandas das pessoas que vivem nos territórios marcados pelas vulnerabilidades sociais. O Município que Educa supera a visão do território como algo linear, homogêneo, organizado desde um centro irradiador de decisões, saberes e vontades, em oposição às periferias; em

favor de uma visão do território traduzido em seus hibridismos17, sobre-posições de sentidos, linguagens não hegemônicas, modus vivendi, em múltiplas e heterogêneas geografias, culturas, traços identitários, rela-ções geracionais, de gênero, de classe e de etnias.

As possibilidades de se traduzir essa nova visão, proposições e desejos, em projetos educativos intersetoriais, desde a escola, passam pela mudança do olhar acerca do lugar que crianças, adolescentes e jovens ocupam na configuração territorial. Tal problema se converte em indagações, com base no que sugere Francesco Tonucci:

Até agora, e com maior destaque nas últimas décadas, se pensou, projetou e avaliou a cidade tomando como parâmetro um cidadão médio, com as caracte-rísticas de um adulto, homem, trabalhador e que corresponde ao eleitor forte. Deste modo a cidade perdeu aos cidadãos não adultos, não homens, não traba-lhadores, cidadãos de segunda categoria, com menos direitos ou sem eles [...] a proposta é, então, substituir esse parâmetro pela criança. [...] Trata-se de fazer com que a Administração abaixe seus olhos para a altura de uma criança de modo a não perder ninguém de vista e, desse modo, de aceitar a diversidade intrínseca da criança como garantia de todas as diversidades (1998, p. 33-34)18.

Como construir políticas públicas em favor dessa inscrição nas configurações territoriais, a começar pelas cidades? Que alcance pode ter a ação da escola em um Município que Educa? Como esse alcance desejado se converte em currículo? Essas reflexões e indagações expli-citaram-se ao longo da implementação do Programa Mais Educação, no encontro entre a escola e a comunidade, entre saberes populares e acadêmicos, entre aspectos formais e informais que transitam no espaço da

17 Este uso de hibridismo refere-se à capacidade de combinar vivências de uma determi-nada população com informações de outras populações, a fim de produzir resultados nas políticas públicas, de auxiliar a produção de conhecimento pelos grupos de menor poder e a recepção de vozes marginalizadas pelas culturas dominantes.

18 Hasta ahora, y con mayor acento en las últimas décadas, se ha pensado, proyectado y evaluado la ciudad tomando como parámetro un ciudadano medio con las caracterís-ticas de adulto, hombre y trabajador, y que corresponde al elector fuerte. De este modo la ciudad ha perdido a los ciudadanos no adultos, no hombres y no trabajadores, ciuda-danos de segunda categoría, con menos derechos o sin ellos.[…] la propuesta es, pues, sustituir al ciudadano medio, adulto, hombre y trabajador por el niño. Se trata, en cam-bio, de conseguir que la Administración baje sus ojos hasta la altura del niño, para no perder de vista a ninguno. Se trata de aceptar la diversidad intrínseca del niño como garantía de todas las diversidades.

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escola, entre a oferta de disciplinas e novas atividades, linguagens e atores sociais. Nas palavras de Sennett, trata-se da “compaixão cívica que pro-vém do estímulo produzido por nossa carência, e não pela total boa vonta-de ou retidão política” (2001, p. 300). Como possível resposta, encontra-se em curso a formulação de um componente integrador da política pública educacional. É nela que situamos o remirar-se da escola e da cidade, como gêmeas criações, à maneira como fala Drummond. Trata-se da construção e do aprofundamento da agenda de educação integral; como tarefa refe-renciada na gestão, operacionalização e na perspectiva de sustentabilidade em ações como as que o Programa Mais Educação mobiliza. Essas ações se desdobram na promoção da intersetorialidade das políticas públicas, para evitar a pulverização dos esforços institucionais; em favor do currículo, da superação dos turnos escolares; da formação dos profissionais da educa-ção na perspectiva da educação integral e do professor em tempo integral; e da qualificação do ambiente escolar para favorecer a permanência na escola e a aprendizagem dos estudantes. Essa agenda de educação integral pode converter-se em elemento dinamizador do Município que Educa e se educa para (re)encontrar-se com suas crianças, adolescentes e jovens.

Referências

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LECLERC, Gesuína de Fátima Elias. Desafios para a gestão escolar em contextos de implementação de programas federais. In: SEMI-NÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO EDUCACIONAL, 2., 2010, Santa Maria. Anais... Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2010. Trabalho apresentado também na IV Semana Acadêmica do Curso de Especialização em Gestão Educacional na Universidade de Santa Maria, 2010.

MOLL, Jaqueline. Educação Integral na perspectiva da reinvenção da escola. Elementos para o debate a partir do Programa Mais Educação. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 15., 2010, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.

______. A cidade educadora como possibilidade. In: TOLEDO, Leslie; FLORES, M. L. Rodrigues; CONZATTI, Marli (Org.). Cidade Edu-cadora. A experiência de Porto Alegre. São Paulo: Cortez, 2004, p. 39-46.

RODRIGUES, Ivete; BARBIERI, José Carlos. A emergência da tecnolo-gia social: revisitando o movimento da tecnologia apropriada como estratégia de desenvolvimento sustentável. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 6, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v42n6/03.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2010.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2008.

SENNETT, Richard. O corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: Record, 2001.

TONUCCI, Francesco. La ciudad de los niños. Um modo nuevo de pensar La ciudad. Madri: Fundación Germán Sánchez Rui-pérez, 1998.

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CRIAnçAS, ADOLESCEntES/JUVEntUDES nOMUnICÍPIO QUE EDUCA

Francisca Pini 19

Roberta Scatolini 20

Para refletir sobre a participação das crianças e dos adolescentes/das juventudes no Município que Educa, elaboramos esta reflexão em três momentos: o primeiro, que compreende a concepção de crianças, adolescentes/juventudes e a relação jurídico-social formulada pela so-ciedade brasileira; o segundo, a relação do município com as crianças, adolescentes e juventudes; e, o terceiro, os avanços e desafios para o re-conhecimento dos sujeitos no processo de construção do município.

Diversos autores, como Melo (2009) e Abramo (1994), concei-tuam crianças e adolescentes/juventudes como parte de um processo socialmente construído. Para as crianças este processo ocorre por meio das aprendizagens estabelecidas com o mundo que as rodeia, o que lhes possibilita desenvolver-se como ser humano, com a organização das sensações sob a forma da percepção, o pensamento, a fala, as dife-rentes formas de expressão, a memória, a imaginação, que constroem as habilidades, os valores, os hábitos, as formas de relacionar-se com os outros e os sentimentos. Esse conjunto de fatores possibilitará o seu desenvolvimento pleno e o seu reconhecimento como sujeito social, desde que os percursos trilhados com os adultos possam lhes favorecer uma educação voltada para a autonomia.

No que se refere aos adolescentes/juventudes, há diferentes formas

19 Assistente social, mestre e doutora em políticas sociais e movimentos sociais pela PUC/SP. Diretora Pedagógica do Instituto Paulo Freire, professora de Movimentos Sociais da Faculdade de Mauá e sócia fundadora do Cedeca Paulo Freire.

20 Psicóloga, coordenadora de Projetos do Instituto Paulo Freire e mestranda em Psicologia da Educação pela PUC/SP.

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de conceituá-los, tendo em vista a complexidade dessa fase da vida. É consenso entre os teóricos que os aspectos biológicos, jurídicos, psicológicos e sociológicos precisam considerar as dimensões só-cio-históricas, para compreender as diversas adolescências/juventudes. Elas podem se expressar por meio das diferentes manifestações cul-turais urbano-rurais, que são traduzidas pela música, roupa, pos-tura, comportamento e os espaços que ocupam. Estes fatores estão ligados a diferentes vivências, que variam de acordo com a condi-ção socioeconômica.

As adolescências/juventudes brasileiras, desde a década de 1990, tornaram-se alvos da mídia, e as matérias veiculadas sobre elas centra-ram-se na questão da violência e do consumo. É importante salientar que, em 2007, o Brasil tinha cerca de 50 milhões de pessoas na faixa etária de 15 a 29 anos (IBGE). Sendo que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, 29,8% destes jovens poderiam ser considerados pobres porque viviam em famílias com renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Entre 15 e 17 anos, apenas 47,9% cursavam o ensino médio e 4,8% milhões de jovens eram desempregados, correspondendo a uma taxa de desemprego três vezes maior que a dos adultos. Esse dado nos revela que a população brasileira é composta de um percentual significativo jovem e em sua maioria empobrecida. Situação que nos convoca a pensar como estão sendo formuladas as respostas às demandas apresentadas por esta fai-xa etária, de modo a assegurar o seu pleno desenvolvimento, em face da situação peculiar de desenvolvimento.

É importante compreender a formulação do ponto de vista jurídi-co-social, subjacente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, a qual reconhece criança a pessoa até doze anos incompletos e adolescentes os que estão na faixa etária entre doze e dezoito anos (Art. 2º).

A Organização Mundial da Saúde amplia a compreensão de ado-lescências/juventudes e considera a fase da vida que tem como base:

[...] a passagem das características sexuais secundárias para a maturidade sexual, a evolução dos padrões psicológicos, juntamente com a identificação do indivíduo que evolui da fase infantil para adulta, e a passagem do estado de total dependên-cia para o de relativa independência [...] Ser ou não adolescente está diretamente relacionado com as condições sociais e econômicas, ou melhor dizendo, ao lugar que cada um ocupa em relação a estrutura social (ABRAMOVAY, 2004, p. 404).

Estes conceitos ganharam repercussão social, política e acadê-mica a partir dos anos de 1990, quando são colocadas em evidência as problemáticas sociais e relacionadas com esse segmento. A con-tradição presente nesta questão é que as crianças, adolescências/juventudes, em sua maioria, pobres, são apresentadas como pro-blema, em um contexto social em que se conquistaram os direitos sociais no Brasil.

Outras garantias foram conquistadas para ao segmento crianças, adolescências/juventudes com a Doutrina da Proteção Integral, dentre elas, os direitos fundamentais: o direito à vida e à saúde, o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, o direito à convivência familiar e comunitária, o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer e o direito à profissionalização e à proteção no trabalho.

Cabe salientar que o processo de mobilização social decorrente dos movimentos sociais contribuiu com a criação, no ano de 2005, da Secre-taria Nacional da Juventude, do Conselho Nacional da Juventude (Conju-ve), bem como do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem). Estas conquistas apontam para uma necessidade de adensar o debate e a formulação de políticas públicas, em torno das demandas dos jovens.

Neste sentido, tanto o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) quanto o Conselho da Juventude são avanços jurídico-sociais que devem representar as vozes dos sujeitos na agenda da política pública, em nível federal, estadual e municipal.

A relação do município com as crianças e os adolescentes/ juventudes

Considerando a relação do município com as crianças e ado-lescentes/juventudes podemos afirmar que houve uma conquista do ponto de vista institucional estatal e não estatal, a qual vem se desen-volvendo de forma articulada com as demais esferas em algumas ações e em outras de forma isolada.

Desde 1990, diversos órgãos públicos foram criados para atuar em prol da política para a infância e adolescência/juventude. Iremos destacar três: o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, criado e implementado nas três esferas – municipal, estadual e nacio-nal –, cuja atribuição é a de formular e deliberar políticas de forma in-tersetorial, articulada e transversal; o Conselho Tutelar, órgão zelador

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pelo cumprimento do direito da criança e do adolescente, o qual deve assegurar a defesa, a promoção e a garantia dos direitos, existente apenas no município; e o Conselho Nacional da Juventude, órgão deliberativo cuja atuação tem favorecido a criação de conselhos municipais e esta-duais. Em abril de 2008, em Brasília, realizou-se a Primeira Conferência Nacional de Políticas Públicas para a Juventude, cujo debate pautou-se nos seguintes temas: trabalho, ensino superior, educação profissional e tecnológica, educação básica – ensino médio e elevação da escolaridade, cultura, sexualidade e saúde, segurança pública, meio ambiente, política e participação, tempo livre e lazer, esporte, drogas, comunicação e inclu-são digital, cidades, família, povos e comunidades.

Em nossa compreensão, o município é o principal ente da federação em que o exercício da cidadania pode ser ampliado desde a infância. É nele onde as pessoas moram, relacionam-se e podem promover sua participação efetiva, desde que os órgãos governamentais, como a escola, a Unidade Básica de Saúde, o posto policial, os espaços de lazer e cultura, e os não go-vernamentais, como as empresas, os sindicatos, as igrejas e as diversas or-ganizações, envidem esforços para que os cidadãos tenham assegurado o direito efetivo da participação cidadã. Não estamos afirmando que não exis-tam contradições, mas pelo fato do município oferecer uma maior proximi-dade do cidadão com as pessoas que coordenam suas estruturas pode haver maior diálogo na construção do bem comum e as crianças, adolescentes/juventudes terem mais vozes nos processos relacionados com suas vidas.

Fortalecer o exercício da cidadania desde a infância significa envolver crianças, adolescentes e jovens na vida cotidiana da escola e de suas comuni-dades mediante a palavra dialogada. Esse exercício promove o diálogo inter-geracional tão necessário às relações sociais e ao aprendizado das culturas.

Esta construção implica em reconstruir o papel do Município e torná-lo educativo (PADILHA, 2009). Desse modo, Freire nos diz:

[...] porque não discutir com os alunos a realidade concreta que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a cons-tante e a convivência das pessoas é mais com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamental aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?” (1997, p. 33-34).

A educação que Paulo Freire nos convida a realizar é voltada para a vida, e seus princípios são pautados na ética, na estética, na politici-dade, no diálogo, na democracia e em conteúdos comprometidos com a construção de relações humanizadoras. Desse modo, o compromisso de educar não é somente da escola, mas de todos os espaços que com-preendem este ato como uma construção de uma nova sociabilidade no âmbito do município/nação.

Avanços e desafios para o reconhecimento das crianças e adolescen-tes/juventudes no processo de construção do município

Reconhecer apenas do ponto de vista legal e teórico que as crian-ças e adolescentes/juventudes são sujeitos de direitos, por isso preci-sam participar com direito a voz e vez nos processos participativos, tem sido insuficiente para ampliar os espaços de cidadania ativa.

Na história dos direitos da infância e juventude, a Convenção In-ternacional dos Direitos da Criança de 1989 marca no mundo a refle-xão da criança como sujeito de direitos;isso significa assegurar-lhes a participação na luta por direitos humanos.

No Brasil, diversas ações foram criadas para assegurar à criança, ao adolescente e a juventude, sua participação ativa, reconhecendo suas opi-niões e expressões. Podemos citar as conferências, que, desde 1999, têm assegurado a participação delas no processo de elaboração, realização e sistematização. É possível afirmar que tais mecanismos de participação têm influenciado na cultura e tradição de como elas eram tratadas, o que exige na atualidade mudanças e abertura a essa nova forma de educá-las.

Esses avanços demonstram o reconhecimento de que as crianças, adolescentes e juventudes são partes importantes da sociedade e cons-truir a cidadania com elas, significa romper com a visão adultocêntrica e vivenciar novos tempos em que todos ensinam e aprendem.

A experiência do Programa Cultura Viva também é um exemplo de política pública para juventudes que tem se efetivado nos municípios. Atu-almente, existem mais de 700 iniciativas culturais da sociedade civil, conve-niadas ao Ministério da Cultura (Minc), que oferecem espaços formativos e de apoio a grupos de jovens no acesso e participação de manifestações culturais, que estimulam a criação e disseminação da cultura. Além dessa característica geral, o Programa oferece uma ação específica, que é o Agente

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Cultura Viva, da Secretaria de Cidadania Cultural, onde, por meio de edital, 90 Pontos de Cultura contam com 360 jovens bolsistas. É uma alternativa para que os jovens de classe trabalhadora também tenham a oportunidade de vivenciar essas experiências socioculturais e educativas, exercendo o pro-tagonismo juvenil, inclusive na discussão da Política Pública de Juventude e da Política Nacional de Juventude.

Diversos municípios, por meio das Secretarias de Educação, cuja concepção de gestão democrática é compartilhada, têm ampliado os espaços de participação da cidadania desde a infância. Este movimen-to tem trazido para a comunidade educativa uma nova cultura políti-ca, a qual reconhece a criança e o adolescente/jovem como sujeitos da história. Este reconhecimento promove no município uma inversão no olhar e na prática dos adultos em relação às crianças e delas em relação aos diversos grupos que se relacionam.

Para Chauí (2005), Isso significa que a democracia não se limita a garantir direitos, mas tem como ca-racterística principal a criação de direitos novos, postos pelas condições históricas e pelas lutas sociopolíticas. Única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou surgem como novos pela ação das classes populares [...] Isso significa, portanto, que a cidadania se constitui pela e na criação de espaços sociais de lutas (os movimentos sociais, os movimentos popu-lares, os movimentos sindicais) e pela instituição de formas políticas de expressão permanente (partidos políticos, Estado de direito, políticas econômicas e sociais) que criem, reconheçam e garantam direitos. (p. 24-25).

Desse modo, o desafio posto ao Município que Educa é compre-ender o seu papel de promotor de acesso a novos direitos, em que a criança e o adolescente/jovem façam parte dessa conquista e que o convívio e o respeito com a diversidade contribuam com a construção de relações sustentáveis e de cooperação e as expressões das crianças e adolescentes/juventudes estejam presentes na vida do município.

Referências

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetácu-lo urbano. São Paulo: Página Aberta, 1994.

ABRAMOVAY, Miriam (Org.). Juventudes e sexualidade. Brasília, DF: Unesco Brasil, 2004.

BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria C. de; ANDRA-DE, Carla Coelho (Org.). Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: Ipea, 2009.

CHAUI, Marilena. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. In: TEIXEIRA, Ana Cláudia Chaves (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Polis, 2005. p. 23-30. (Caderno Polis, 47).

MELO, Suely. Algumas implicações pedagógicas dos estudos de Vygotsky para a educação das crianças de 0 a 10 anos. In: Caderno de Formação da Reorientação Curricular da Educação Infantil e do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Osasco. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2010.

PADILHA, Paulo Roberto. Município que educa: nova arquitetura da Gestão Pública. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Frei-re, 2009. (Caderno de Formação, 2).

SPOSITO, Marília Pontes. Considerações em torno do conhecimento so-bre juventude na área da educação. In: ESTADO do Conhecimen-to. Juventude. Brasília: Inep, 2001.

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MUnICÍPIO QUE EDUCA EDIVERSIDADE CULtURAL:UMA QUEStãO DE DIREItO

Marilândia Frazão21

O estabelecimento de um único padrão civilizatório é a negação daquilo que seria a mais importante característica humana e cultural, a sua capacidade de se construir de forma diferente, em tempos diversos e em espaços múltiplos para afrontar a diversidade de problemas, obstáculos impostos pelos eventos histó-ricos de forma variada e própria em um processo contínuo de reinventar-se e superar-se (RISCAL, 2009, p. 23)

Um dos princípios do Município que Educa é a articulação dos diversos atores locais do município: poder público, sindicatos, empre-sariado, associações, ONGs, movimentos sociais, universidades, asso-ciações de bairro, líderes comunitários, secretarias municipais, magis-tério público, escola, legislativo municipal, líderes religiosos, conselhos gestores, Ministério Público, entre outros. Em uma construção con-junta, eles devem elaborar um plano de trabalho que dê conta de po-tencializar as ações educativas e promover a articulação entre elas. Esse plano deve ser canalizado na direção de políticas públicas afirmativas, visando a combater, entre outros desafios, o quadro de desigualdade e discriminação de gênero e raça.

Nesse contexto, uma articulação entre justiça social e educação, levando em consideração a inclusão, a diversidade e a igualdade, pre-cisa ser, além de uma frase retórica, algo que se cumpra por meio da vivência cotidiana do exercício da democracia e da cidadania. Deve

21 Marilândia Frazão é professora psicopedagoga e estudiosa das questões etnicorraciais na educação/gestão pública. Coordenadora Geral do Fórum Estadual Educação e Di-versidade Etnicorracial/SP, membro da coordenação estadual da Comissão de Assuntos Educacionais (Caed) do Partido dos Trabalhadores e da coordenação estadual da Coor-denação Nacional de Entidades Negras de São Paulo (Conen-SP).

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garantir a um número cada vez maior de pessoas, de forma equânime, os direitos sociais e humanos. Uma democracia que não nega e nem se opõe à diversidade, antes a incorpora como constituinte das relações sociais e humanas e se posiciona na luta pela superação do trato desigual dado à diversidade ao longo da nossa história econômica, política e cultural (CONAE, 2010).

É fundamental que as ações do Município que Educa sejam subsidia-das pela formação de todos os envolvidos e contem com ampla participação e apoio de todos os atores do município. Só assim será possível uma política local capaz de identificar e reduzir as desigualdades sociais que assolam a so-ciedade brasileira. Nesse sentido, faz-se necessário estabelecer, na contramão da história, um novo elo entre o sujeito, a sociedade e o município, descons-truindo a lógica da exclusão e criando um novo vínculo a partir da ética, da solidariedade e da consciência das relações existentes entre etnia, gênero e classe; isto é, desenvolver a capacidade de perceber o outro como um outro legítimo e não como um estranho. Trata-se, na verdade, de entender a di-versidade humana como riqueza e parte imprescindível da biodiversidade; entender as diferenças étnico-culturais, de gênero e religiosas como elemen-tos basilares para a pluralidade humana e multiculturalidade. No entanto, o reconhecimento das diferenças não pode levar a extremos de desigualdade, visto que esta é um conceito ético, relativo à dignidade coletiva, e, por essa razão, mulheres, homens, ocidentais, negros e brancos, indígenas, brasilei-ros, palestinos, árabes, somos todos diferentes, mas nunca desiguais.

Nessa direção, o Município que Educa tem um grande desafio a enfrentar, que é considerar a diversidade como um conceito estrutu-rante na garantia da universalidade dos direitos humanos, na supera-ção das desigualdades sociais, de gênero, etnia, geracional, identidade sexual e das pessoas com deficiências. É preciso garantir políticas pú-blicas que afirmem os direitos de todos os sujeitos e que sejam mais democráticas nas relações de poder.

Um município que desconhece a diversidade pode tratar as di-ferenças de maneira discriminatória, correndo o risco de aumentar as desigualdades sociais. A partir desse enfoque é preciso fomentar a estruturação de objetivos educacionais que potencializem, inclusive, iniciativas de novas políticas públicas e, consequentemente, de novas ações sociais.

Assim, o Município que Educa, dentro de suas ações, tem que estabelecer uma nova visão plural de mundo, que divulgue um novo modelo de sociedade que respeite, valorize e incorpore a diversida-de humana e cultural na sua especificidade. Esse município terá como tarefa contribuir com as gerações futuras e garantir a participação de novos sujeitos sociais que possam atender o cidadão e a cidadã, no campo social e no campo individual. A fusão desses dois campos gera os preceitos fundamentais que orientam a elaboração dos novos cur-rículos, do fazer pedagógico e de suas práticas, além das relações da escola com a comunidade e com o mundo, frente às necessidades de todas as pessoas mas, especialmente, de uma grande parcela da popu-lação, ou seja, as camadas populares e empobrecidas.

Para o Município que Educa, a discussão sobre educação democrá-tica transcende a esfera escolar, envolvendo a questão afetiva e as condi-ções de igualdade entre homens e mulheres em todos os espaços e tempos da comunidade. Entendemos, dessa forma, que esta questão, mais do que pedagógica, é política. E consideramos, portanto, que a educação pode e deve ter um papel político: o de contribuir na organização de uma nova ordem social, mais justa, mais igualitária e popular.

O cidadão social busca, na educação, a garantia de sua identidade e a sua manutenção cultural. No campo individual, almeja a (re)construção de sua capacidade humana e de seu desenvolvimento intelectual e afetivo, buscando, por exemplo, no cotidiano escolar, uma ação interdisciplinar que incorpore a diversidade humana e cultural, os diferentes saberes, sem-pre em uma perspectiva de se relacionar com o outro, ou seja, com base no respeito e na valorização das contribuições científicas de cada povo.

O Município que Educa tem que garantir a todas as cidadãs e a todos os cidadãos o direito de satisfazer suas necessidades de conti-nuamente aprender e, portanto, acompanhar e interferir na educação escolar, entendida como um processo mais amplo e imprescindível à formação de homens e mulheres. Cabe aí a inserção da diversidade, com todas as suas especificidades, histórica, social, política e cultural, no processo de construção da política educacional, legitimando as par-ticularidades culturais e fortalecendo iniciativas que desconstruam o modelo ocidental hegemônico que marginaliza as diferentes matrizes, impossibilitando a interação entre o sujeito e o conhecimento.

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Nas ações integradas propostas pelo Município que Educa, em conjunto com os diferentes setores, a transversalidade não aparece ao acaso, mas sim pelas exigências e demandas dos movimentos sociais (negros, mulheres, indígenas e outros). Propostas que contemplem a diversidade humana e cultural podem ajudar a quebrar o padrão mo-nolítico e eurocêntrico da educação brasileira.

Discutir currículos, hoje, significa pensar um novo fazer peda-gógico, que transcenda o espaço da escola, onde o modo de pensar e de agir seja modificado, onde se estabeleçam relações democratizantes entre os diferentes saberes e fazeres dos diferentes setores populacio-nais do município, e que compõem o país, que não estão contemplados nos currículos escolares.

Nesse sentido, a Lei 10.639/2003 e o Plano Nacional de Imple-mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana garantem, no âmbito dos diversos sistemas de en-sino, a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, desde a educação infantil até o ensino superior. Vai no mesmo sentido a Lei 11.645/2008, no que concerne ao estudo dos diferentes povos indígenas nas escolas de educação básica, superior, pública e privada, corrigindo as discrepâncias e desigualdades educacionais, visando à ampliação da oferta de educação básica e superior intercultural, mul-tirracial e multicultural.

Referências

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CONAE (Conferência Nacional de Educação). Documento Referência da CONAE-2010. Brasília, de 28 de março a 1º de abril de 2010

FRAZÃO, Marilândia. Educação: um novo fazer pedagógico, numa vi-são que contemple a diversidade humana. In: SÃO PAULO. Sec-retaria Municipal de Educação. Coordenadoria Especial da Mulher. Gênero e Educação. São Paulo, 2003. p. 61-64.

RISCAL, Sandra. Diversidade (Módulo 1). In: BELELI, Iara; MISKOL-CI, Richard; RISCAL, Sandra; SILVÉRIO, Valter Roberto. Marcas da Diferença no Ensino Escolar. São Carlos: UFSCar virtual, 2009.p. 10-45.

SILVA, Maria José Lopes da. As ideias racistas, os negros e a educação. Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros, maio 1997.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Espaços para a educação e rela-ções interétnicas: contribuição da produção científica e da prática docente, entre gaúchos, sobre negro e educação. In: SILVA, Luiz Heronda. Escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 381-396.

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MUnICÍPIO QUE EDUCA:AçãO CULtURAL POR UMAnOVA CULtURA POLÍtICA

Luana Vilutis22

Não é uma coincidência que o Programa Município que Educa nasce no século 21: ele constitui expressão dos desafios e aprendiza-gens desta época. Acreditamos que um olhar sobre a dimensão cultural desta iniciativa pode nos ajudar a desvelar seus enlaces e potencialida-des, pois, de forma crescente, no mundo atual, a cultura ganha centra-lidade na vida social.

Reconhecemos que a dimensão integradora da cultura no mun-do contemporâneo perpassa o direito básico de cidadania cultural e conecta a esfera política, simbólica e econômica da cultura. Essa com-plexa teia de relações, sentidos, significações e práticas está na base da gestão política e metodológica da Rede Município que Educa e é sobre ela que refletiremos aqui.

A cultura só pode ser compreendida na sua relação com outras culturas, em uma relação dialética de contraposição, contágio e con-traste. Isso envolve a identificação das semelhanças e o igual reconhe-cimento das diferenças, o que pressupõe a equidade como princípio e premissa básica. É interessante notar que, se hoje a diversidade tem valor universal e constitui expressão da dignidade das culturas, isso nem sempre ocorreu.

No século 16, por exemplo, surge no Brasil a língua geral, o

22 Educadora, socióloga e pesquisadora, graduada em Ciências Sociais e mestre em Edu-cação, Cultura e Organização Social pela Faculdade de Educação da USP. Atua como colaboradora e coordenadora pedagógica de projetos na área de cultura, educação, mo-bilização social e economia solidária. É colaboradora do Instituto Paulo Freire nas áreas de educação popular e relações internacionais. Contato: [email protected]

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nheengatu, introduzida como língua civilizadora pelos jesuítas, per-manecendo após sua expansão como fala comum no País. Adotada como idioma de comunicação dos europeus com os Tupinambás e lín-gua materna dos mamelucos, a língua geral foi predominante no Brasil até 1940 (RIBEIRO, 1995). Enquanto naquela época havia esforços no sentido de criação de uma língua universal para diminuir os conflitos, hoje o desaparecimento de idiomas, dialetos, expressões e práticas cul-turais é extremamente problemático.

Vivemos um momento em que a apreensão dessas identidades é cada vez mais diversa, e sua diferenciação, cada vez mais valoriza-da. Hoje, o Estado não detém o monopólio definidor da identidade nacional e isso representa um campo de disputa. Tanto a produ-ção de obras culturais quanto a ação pública na gestão da cultura precisam garantir sua independência e preservar a autonomia face às exigências do mercado e da privatização do que é público. Esse exercício da cultura democrática, experimentado pela prática so-cial da cidadania cultural, aponta para a democracia cultural e se opõe à mercantilização da cultura.

O sentido político da cultura é concebido como direito de todos os cidadãos, sem exclusões ou privilégios, direito por meio do qual eles se expressam, manifestam-se nas suas diferenças, e também entram em conflito. Esse direito dinamiza o processo cultural e permite criar novas formas culturais no cenário democrático; é dessa brecha à qual nos referimos ao refletirmos sobre os fundamentos e potencialidades de programas de políticas públicas na área cultural, dentre os quais inserimos o Município que Educa.

A cultura, como dimensão expressiva do espaço público, tem papel fundamental na formação de valores e na atuação coletiva. O exercício do direito à cultura reforça a prática política que se realiza como espaço público do debate e da decisão coletiva. Acre-ditamos na importância de alargar esse espaço público de fruição cultural e de exercício das ações culturais baseadas em relações criativas de sociabilidade e em ações socioeducativas que ofere-çam, por sua vez, condições para impulsionar o trabalho coletivo autogestionário e a experimentação de diversas expressões cultu-rais e linguagens estéticas.

Compreendida como prática social e simbólica do processo de criação cultural, a cultura também contempla a divisão de classes so-ciais, de identidades étnicas, de especificidades históricas e geográfi-cas, o que reforça a necessidade de respeitar a diversidade dos sujeitos envolvidos na prática cultural e suas diferenças. Essa pluralidade do campo da criação cultural traz à tona a importância e o papel do sujeito agente, produtor, criador de cultura como sujeito de sua própria práti-ca, autor de sua própria narrativa, criador de sua memória e expressão de sua identidade.

A cultura, enquanto direito de cidadania, reconhece os sujeitos para além de sua condição de empreendedores individuais, consumi-dores, espectadores ou contribuintes, mas os considera sujeitos políti-cos, trabalhadores da cultura, cidadãos responsáveis pelo trabalho de criação cultural e sujeito de direitos. É nesse contexto que situamos o processo de democratização do acesso aos bens, serviços e equipa-mentos culturais para garantir o direito à produção e fruição cultural. A expansão dos meios de difusão cultural deve ocorrer no sentido de garantir a liberdade de apropriação e criação de novos espaços de ex-pressão cultural.

O Município que Educa prevê estimular o êxito da gestão pública municipal com base no fortalecimento da participação dos sujeitos e comunidades na execução de políticas públicas. O acompanhamento processual e aproximativo dos cidadãos e das cidadãs, de forma crítica e criativa, aos assuntos do mundo público, potencializa aprendizagens e estimula o desenvolvimento de uma nova cultura política. O mun-do público é aqui compreendido enquanto mundo comum, de iguais, onde se compartilham experiências e significações, lugar em que se preserva as tradições e onde irrompe a novidade.

Essa nova cultura política que o Programa Município que Educa se propõe a estimular prevê a conexão direta entre participação, cida-dania e sustentabilidade. No entanto, é preciso reconhecer que esses valores já tiveram seu sentido apropriado de diversas maneiras e, em-bora sejam característicos do olhar do presente para o futuro, temos que explicitar a necessidade de uma transformação estética dessas prá-ticas, que incorpore a criação coletiva autogestionária e a inovação da linguagem da mobilização social.

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É na perspectiva desse desafio que situamos a fruição das artes e sua relação com a educação e a cultura. O conhecimento sensível, crítico e criativo deve ser cada vez mais estimulado por meio de prá-ticas fundamentadas na integralidade do ser e na complexidade das relações sociais. A convivência democrática e solidária que promova a celebração do lugar, a vivência do sentido comum das práticas sociais e a liberdade de expressão são propostas educativas que podem ser in-corporadas pelo Município que Educa com a intenção de transformar a cultura do controle e do dirigismo em uma cultura política do diálogo e da confiança.

Por acreditar no potencial disruptivo e transformador da cultura, queremos atentar à singularidade da ação cultural que fomenta o di-reito de participar do processo de criação cultural e dos resultados de sua transformação. Além de voltar-se à ampliação do acesso à cultura, a ação cultural também se foca no desenvolvimento metodológico de ações educativas por meio de um processo de conscientização e mobi-lização social. A ação cultural deve apostar e investir nas condições ne-cessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem, assim, sujeitos da cultura.

A ação cultural, portanto, requer um trabalho de problematização e teorização da prática social. Esse processo provoca um adentramento do sujeito no contexto social, uma superação da visão focalista da rea-lidade e a assunção crítica de sua presença no mundo, de sua atuação com o mundo e em relação com os outros (FREIRE, 2007).

Paulo Freire vincula diretamente a ação cultural de caráter liber-tador ao processo educativo, à educação libertadora. O caráter utópico da ação cultural para a libertação compõe a pedagogia da utopia pro-posta por Paulo Freire. A utopia, neste caso, é compreendida como a unidade dialética entre a denúncia e o anúncio: “Denúncia de uma re-alidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais. Denúncia e anúncio não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico.” (FREIRE, 2005, p. 42).

É nesse compromisso histórico que situamos o Programa Município que Educa e suas práticas educativas em rede, cuja base metodológica prevê espaços virtuais e presenciais para fortalecimento recíproco das relações humanas, institucionais, governamentais e sociais. Conectar a

gestão pública à formação política orientada pela educação popular e edu-cação integral é um desafio que contribuirá muito para o diálogo interse-torial e inter-regional, mobilizando diversos sujeitos para colocarem suas necessidades comunitárias e locais na pauta e na agenda governamental do município. Na ação cultural, a educação fortalece a capacidade criado-ra dos sujeitos envolvidos, construindo novos símbolos e expressividades, além de desenvolver sua organização social e a práxis.

Segundo Paulo Freire, a teoria dialógica da ação cultural pre-vê que os sujeitos transformem o mundo em colaboração e tenham compreensão de que a transformação de uma realidade social ou o desenvolvimento de uma comunidade local só pode ocorrer dentro do contexto total de que faz parte, em interação com outras parciali-dades, o que implica na consciência da unidade na diversidade (FREI-RE, 2005). Podemos destacar, então, alguns valores e princípios da ação cultural que contribuem para o desenvolvimento de uma nova cultura política, como a confiança, a comunicação, o associativismo, a integração entre o universo cognoscitivo e o afetivo, a livre adesão, a comunhão e a intimidade.

Um bem simbólico é simultaneamente um produto cultural, cria-do em um determinado contexto social, com valor econômico e político. Essa concepção situa a formulação de políticas públicas na perspecti-va da cultura como direito de cidadania e economia. Coerentemente com essa abordagem, as potencialidades da política cultural são pro-jetadas em sua capacidade distributiva e equitativa, com investimento de recursos, serviços e distribuição da infraestrutura cultural no país, orientadas pela melhoria da qualidade de vida e pela apropriação do sentimento de pertencimento.

A problemática do descompasso entre produção e distribuição de bens e serviços culturais representa hoje um dos principais gargalos da cadeia produtiva da cultura. A concentração de canais de distribuição e fomento à cultura ocorre tanto em termos institucionais quanto ge-ográficos e não difere de outros setores de produção em áreas diversas como transporte, alimentação, logística, tecnologia etc. Essa desigual-dade na área cultural é um fenômeno mundial e se expressa por meio do controle de poucas empresas transnacionais e na concentração geográfica da distribuição de bens culturais nos grandes centros.

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O Estado tem um papel muito importante na institucionalização e consolidação de políticas públicas que fomentem a diversidade da produção cultural e desenvolvam mecanismos efetivos e permanen-tes para sua distribuição. A economia da cultura aponta para a ne-cessidade de políticas integradas que incorporem o pacto federativo e ofereçam as bases de estruturação de processos de criação, produção, fruição, formação, reconhecimento e preservação dos bens simbólicos, tangíveis, intangíveis, tradicionais e contemporâneos.

Não cabe ao Estado executar, produzir ou criar cultura, mas expe-rimentar novas culturas políticas por meio da formulação e execução democrática de políticas públicas. Estas devem ter o papel genérico de estimular as criações culturais com ampla participação da sociedade civil e forte integração das políticas culturais e sociais.

Na administração municipal, também é importante garantir a centralidade da dimensão cultural e podemos observar isso na caracte-rização do órgão gestor da área cultural. Conforme os dados do IBGE de 2009, vemos que, no Brasil, apenas 9,4% dos municípios dispõem de secretarias exclusivas de cultura. Temos que reconhecer que houve um avanço significativo em relação aos dados de 2006, cujo registro era de apenas 4,2% de municípios com órgão exclusivo de cultura. No entanto, ainda chama a atenção o fato de 85,4% dos municípios bra-sileiros terem os seus órgãos públicos de cultura acoplados a outras políticas, como educação, esportes e turismo (IBGE, 2010).

Outro desafio que o Programa Município que Educa terá para se voltar a garantir a democratização da cultura no município refere-se à existência e ao funcionamento de Conselhos Municipais de Cultura. Em 2009, o IBGE identificou 24,7% dos Municípios brasileiros com Conselhos Municipais de Cultura, dos quais apenas 18,1% são delibe-rativos (IBGE, 2010). Isso não só revela uma limitação no avanço da política cultural, como expressa a importância da conscientização e do exercício democrático da política de cultura ocorrer a partir do muni-cípio para criar enraizamento e consolidar as bases para uma transfor-mação efetiva.

A política cultural apresenta-se, assim, como um conjunto de iniciativas, tomadas por diferentes agentes, Estado, instituições civis, entidades privadas e grupos comunitários que incidem na organização

do espaço público e no exercício dos direitos, o que implica dialogar com o contexto social, considerar os seus limites e necessidades para atuar de forma integral e abrangente. Essa relação dialética de dinami-zação da cultura no espaço público e do exercício político do direito à cultura deve também fazer parte da abordagem do Programa Municí-pio que Educa.

Referências

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CHAUI, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: EFPA, 2006.

COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 1989.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

______. Pedagogia do oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pes-quisa de informações básicas municipais/Perfil dos municípios bra-sileiros: 2009. Rio de Janeiro, 2010.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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A PAISAGEM DO MUnICÍPIO COMO tERRItÓRIO EDUCAtIVO

Euler Sandeville Júnior23

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-mo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (FREIRE, 2005, p. 79).

O município é uma construção político-administrativa e histó-rica, mas também é lugar, espaço vivido, percebido e conhecido. Nes-se sentido, reúne eixos importantes para pensar projetos educativos. Como unidade territorial e de gestão, possibilita recursos institucio-nais e de políticas públicas, e complexas interações com organizações civis. Como espaço socialmente produzido24, sobretudo a partir do lugar, permite atuar pedagogicamente na profunda relação que exis-te entre espaço vivido e educação. O município viabiliza estratégias e programas de gestão, e sugere adotar o espaço experienciado como inspirador de projetos educativos locais e sua articulação com outros locais enquanto entendimento de mundo.

Dizia Heidegger (2008) que “habitar é o modo como os mortais são na terra”. O plural – os mortais – sugere que habitar implica conviver. No entanto, geralmente pensamos a habitação não como uma condição do ser entre e com outros, mas como uma coisa singular, desistoricizada,

23 Arquiteto e Urbanista (PUCC, 1981), Arte Educador (BA, 1984), Pós-Graduação em Ecologia (STJ, 1996), mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas (1993, 1999, USP). Poeta (http://arte.arq.br). Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, vice-coordenador da Área de Concentração Paisagem e Am-biente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP), coor-denador do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam), coordenador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Lab Cidade, FAU USP, http://labcidade.net.br). Grupos de Pesquisa: Paisagem, Cidade e História; Paisagem, Cultura e Participação Social (http://espiral.net.br)

24 LEFEBVRE, 1991; SANTOS, 2006.

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esvaziada de sua produção como espaço social. Ao contrário, habitar é fazer parte de uma história que nos antecede e nos ultrapassa. O ato de habitar, essencial e solidário para os viventes, é o depositário de todos os nossos saberes, das contradições que engendramos em sua construção, apropriação e transformação. Penso que o fruto material e imaterial do nosso fazer, do nosso trabalho, é um registro contundente de nosso aprendizado. É também o modo como nos representamos. Habitar é, portanto, habitar valores, representar o mundo, escolher, aprender, ser, conhecer, partilhar, amar. Propriedades que também queremos ver na educação como formação criativa.

Entretanto, o modo como habitamos tem sido problemático. Po-demos reconhecê-lo como uma partilha tensa e contraditória do nosso saber-fazer em um espaço comum, ao nos apropriarmos dele de modo desigual e violento. Nosso habitar tanto tem sido indiferente ao outro, desrespeitoso, brutal, desleal, quanto tem sido afetivo, solidário, cria-tivo, celebrativo. No fluxo cotidiano não nos damos conta de que esta-belecemos entre nós uma partilha conflitiva e contraditória ao realizar nossas ambições e sonhos.

As contradições, entretanto, podem se tornar um estímulo para aprender com a nossa “incompletude”, como dizia Paulo Freire (1996, p. 50), e, ao fazê-lo de modo ativo, constituímos a linguagem conti-nuamente, e aprendemos que podemos transformar. Se habitar é o modo de ser dos homens no mundo, nossas obras, em contínua trans-formação pelo trabalho, acabam sendo como uma linguagem social materializada desse estar historicamente no mundo. Essa linguagem não verbal construída no espaço conta-nos sobre os nossos valores co-muns, ensina-nos sobre a apropriação que fazemos deles, explicitando o sentido dos nossos atos.

Habitar é existir e, portanto, também aprender a existir, em uma paisagem em trânsito contínuo. O espaço habitado, urbano ou rural, nos abriga e, na nossa imaginação, memória, experiência, criamos flu-xos da subjetividade com o estar com outros, constituindo então paisa-gens conhecidas. Que tipo de educação sustenta essas paisagens? Que educação necessitam para sua qualificação? O que ensinam sobre nós mesmos e nossas práticas as paisagens e os projetos de educação?

A paisagem25 é tanto uma experiência partilhada como é uma construção social, tensa e contraditória, vivenciada em um presente, herdada de longos processos naturais e do trabalho humano. “A paisa-gem é sempre uma herança”, diz Aziz Ab’Saber (2003, p. 9). Mas não é uma herança passiva, conclusiva. Por ser tanto experiência quanto herança, história, tempo, a paisagem, a cidade, o espaço rural, o habi-tar são decisões. Decisões que vão expondo e ocultando no espaço as lutas pelo poder e pela civilidade. Assim, a paisagem abriga narrativas veladas das decisões que nos precederam, construindo nossas possi-bilidades de estar aqui por meio de conflitos, desejos, racionalidades, demarcando inúmeros contornos sutis da transformação que o nosso estar aqui engendra. É a expressão material, simbólica e sensível do nosso modo de habitar o mundo. É ativa, ao oferecer ou negar possibi-lidades. Está sempre prenhe de novas formas e possibilidades. Fecun-didades que ainda não se veem, que ainda não se definem mas que, em potência, já estão se movendo ante nossos olhos distraídos.

O futuro se realiza na decisão, na inclusão, na seleção e na ex-clusão do possível. E com base em que selecionamos esse futuro? Este lugar que vivemos não nos pertence, é de uma amplitude espaço-tem-poral fabulosa. Com base em que decidimos seu destino? Com qual finalidade? Como decidimos que as paisagens devem ser essas e não outras também possíveis? Como decidimos que isto e não aquilo está em gestação no nosso partilhar o mundo, prestes a se tornar nosso legado, muitas vezes involuntário, para um amanhã que, mais cedo ou mais tarde, nos escapa?

Dizer que a escola, a família, os amigos, as mídias, os brinquedos, os divertimentos e as obrigações nos ensinam já é há muito sabido. Mas é pre-ciso atentar também que o espaço, como processo e produto do trabalho e do desejo humano na transformação da natureza, também nos ensina. A espacialidade, a temporalidade e as formas de convivência são educadoras no sentido lato da palavra. Porém, nem sempre o são no mesmo sentido que desejamos que tenha a ação educativa em nossas práticas.

25 Para a abordagem de paisagem que adoto, e seus desdobramentos em programas de educação-pesquisa-aprendizado em ação, ver SANDEVILLE JÚNIOR (2005, 2010); dis-ponível em http://espiral.net.br, seção biblioteca.

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A paisagem de um município, uma região, ou do entorno de vizi-nhança, seja ela urbana ou periférica em área de expansão, considerada de valor histórico, rural ou natural, é um espaço educativo por excelên-cia. Thoureau, no século 19, criou uma escola que suprimia a punição física e tinha na vivência da paisagem, no espaço externo, um tema pri-vilegiado da formação de seus alunos. Na época, foi visto com estra-nheza e hostilidade, e ficou insustentável! Os anarquistas adotavam em suas escolas populares o estudo do meio como uma estratégia à formação libertária de um cidadão autônomo e independente. A paisagem, o terri-tório, são locais privilegiados do aprendizado, revelando e ocultando as formas de ser e os valores que os suportam efetivamente.

Trata-se de pensar a educação em processo, em vivência, em ex-periência, aberta ao mundo. A questão é se a educação, tal como é pra-ticada, é mesmo a que queremos e precisamos. O que ensinaria sobre nós, a um viajante distante de nossa cultura, percorrer quilômetros de periferias, desigualdades, preconceitos tornados comuns, quando não alardeados como uma espécie de valor sem valor ou ética, sem soli-dariedade? O que lhe diria sobre o projeto humano contemporâneo a educação que é oferecida às crianças que as habitam?

Em relação a uma experiência espacial que reconheça sua dimen-são educativa, estamos deseducados para a paisagem, que por sua vez não está desenhada para ser um espaço educativo dos valores que de-fendemos em nossas salas de aula, igrejas, associações, nem na nossa produção de conhecimento e informação. Tamanha distância é sur-preendente, mas não iludirá futuras gerações sobre a natureza brutal e brutalizante do projeto social e humano que tem imperado em nossa época, malgrado tantos esforços para conduzi-lo noutra direção e as conquistas sociais já alcançadas nesses embates.

Percebe-se que o destino das paisagens, como locais de expe-riência e de aprendizagem, e o das escolas como locais de formação para essa experiência e aprendizagem contínuas, estão relaciona-das. O fracasso de uma repercute no fracasso da outra, assim como a melhoria de uma promove a melhoria da outra. Indo além, a pai-sagem oferece à escola muitos territórios educativos a serem em comum percebidos, construídos e transformados de acordo com princípios humanísticos. Não haveria aí um excelente programa de

convergência dos nossos saberes disciplinares e existenciais, propondo o desafio de desenhar em ação um saber de qualidade sócio-am-biental-cultural? Como construir esse processo? Que oportunida-des temos diante de nós?

Entendo26 que compreender o espaço socialmente produzido como lugar de experiências, significações, intersubjetividades e con-tradições, torna-o um tema privilegiado no processo de aprendizagem, reflexão, ação criativa e da educação como construção da liberdade, do afeto e da alegria27. Estudar as paisagens é estabelecer uma discus-são da cultura, de implicações políticas, ou não percebê-las. Discuti-las é discutir como nos vimos, como nos vemos, como gostaríamos de ser vistos. É reconhecer, antecipadamente, como seremos vistos como sociedade. Nesse sentido, por vezes, a paisagem incomoda (e muito), pois evidencia nossas práticas para além dos discursos que a camuflam, mas também aponta para um desejo e capacidade possível de mudança.

O Programa Município que Educa contribuirá nessa dire-ção. Propõe aos municípios o reconhecimento e a valorização das diferentes culturas e realidades sociais, considerando o centro, a periferia e os setores rurais; a potencialização da intencionalidade educativa das iniciativas dos diversos sujeitos sociais; a incorpo-ração de um planejamento participativo às ações locais; a articu-lação entre as diversas áreas e setores envolvidos nesse processo; a potencialização dos espaços da municipalidade como espaços educadores; o estabelecimento de inter-relações entre as ações lo-cais, a região, o País e o mundo; e a criação de redes sociais que possibilitem o intercâmbio e a colaboração, visando o exercício da participação cidadã28. Não podemos abrir mão de nenhum esforço nessa direção.

26 Algumas das experiências didáticas e de pesquisa decorrentes desse entendimento po-dem ser seguidas no portal http://espiral.net.br (Grupo de Pesquisa Paisagem, Cultura e Participação Social).

27 Apresento os princípios de trabalho que adoto em O sentido da espiral indaga a alma no espaço virtualmente coletivo (Memorial Espiral 2003) e Manifesto Espiral, disponíveis em http://espiral.net.br, página de abertura.

28 . Ver PADILHA (2009) e http://municipioqueeduca.org

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Referências

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A SUStEntABILIDADE nO MUnICÍPIO QUE EDUCASheila Ceccon29

O olhar crítico à sociedade mundial contemporânea, à forma como homens e mulheres vivem e se relacionam, entre si e com sua casa comum (o planeta), provoca-nos a repensarmos nossa relação com a vida e com o mundo. Os sistemas educacionais do mundo todo têm sido provocados a assumirem sua responsabilidade frente à necessidade de formação de cidadãos e cidadãs com uma nova postura em relação à sociedade e à na-tureza, com valores e atitudes diferentes daqueles que levaram o planeta à situação atual de grandes desigualdades sociais e intenso desequilíbrio am-biental. A escolha de um novo futuro, de um destino diferente para a Terra e todas as espécies que nela vivem – entre elas, a humana –, está intrinse-camente ligada à formação de sujeitos guiados por novos valores, menos predatórios, mais sustentáveis. Sustentabilidade compreendida aqui como oposição a tudo o que sugere desequilíbrio, competição, conflito, ganância, individualismo, domínio, destruição, expropriação e conquistas materiais indevidas e desequilibradas, em termos de mudança e transformação da sociedade ou do ambiente.

Em seu sentido mais amplo, a sustentabilidade é uma nova maneira igualitária, livre, justa, inclusiva e solidária de as pessoas se unirem para construírem os seus mundos de vida social, ao mesmo tempo em que li-dam, manejam ou transformam sustentavelmente os ambientes naturais onde vivem e de que dependem para viver e conviver (GADOTTI, 2008).

29 Engenheira agrônoma, com mestrado em Ensino e História de Ciências da Terra pela Unicamp. Atua desde 1999 na área de meio ambiente e educação, tendo elaborado e coordenado projetos e programas de educação ambiental neste período. Em 2010, pas-sou a atuar no Instituto Paulo Freire, onde é pesquisadora do Programa Educação para Cidadania Planetária. Coordena o Programa Município que Educa.

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Educar para a sustentabilidade é um imenso desafio. Mas será que a formação destes cidadãos é responsabilidade exclusiva dos sis-temas educacionais?

Em um Município que Educa, a formação de cidadãos e de cida-dãs que veem a sociedade sob uma nova ótica é assumida por diferentes setores da sociedade, que, em diálogo, passam a realizar um grande es-forço coletivo no sentido de formar sujeitos guiados por valores como o respeito, a ética, a igualdade, a solidariedade, a tolerância, a liberda-de. Diferentes segmentos do município assumem a responsabilidade compartilhada de formação das crianças, dos jovens e dos adultos que habitam aquele território.

A viabilização de um município comprometido com a sustenta-bilidade socioambiental depende de consciência ecológica e compro-misso social. Não é possível estarmos no mundo de luvas nas mãos, descomprometidamente. Ninguém pode estar no mundo, com o mun-do e com os outros de forma neutra, como se nada tivesse a ver com o mundo (FREIRE, 000). A Declaração do Rio (1992)30 defende que todos os programas voltados à sustentabilidade devem considerar três esferas: a sustentabilidade ambiental, referente aos recursos e à fragili-dade do ambiente físico; a sustentabilidade social, que inclui a cultura, a participação, a opinião pública e a mídia; e a sustentabilidade econô-mica, abrangendo o crescimento econômico e o impacto que promove no meio ambiente. Estes três aspectos da vida em sociedade precisam estar claros para um número cada vez maior de pessoas, possibilitando que impregnem de intencionalidade suas ações, sabendo qual futuro estão contribuindo para construir.

Por outro lado, não se constrói responsabilidade socioambiental apenas lendo livros sobre o tema. A experiência própria é fundamental.

30 A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorreu no Rio de Janeiro em junho de 1992. Teve como objetivo estabelecer uma nova e jus-ta parceria global mediante a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chaves da sociedade e os indivíduos, trabalhando com vistas à conclusão de acordos internacionais que respeitem os interesses de todos e protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo a natureza integral e interdependente da Terra, nosso lar. Neste sentido, proclamou 27 princípios conhecidos como “Declaração do Rio”.

A formação de sujeitos éticos, criativos, críticos e participativos, cons-cientes e responsáveis social e ambientalmente, impõe repensar a edu-cação no município como um todo.

É preciso estreitar a relação da escola com o bairro e com a co-munidade onde está inserida. É preciso que o compromisso com a educação da população seja assumido por toda a sociedade, estando presente, por exemplo, nas relações observadas no comércio local, cujo tratamento ético e respeitoso é praticado sem distinções de qual-quer tipo; na acessibilidade constatada nas calçadas em respeito aos idosos e às pessoas com dificuldade de locomoção; no cuidado ob-servado nas praças e espaços públicos, onde bancos e jardins convi-dam à convivência harmoniosa e ao respeito; na preocupação com a valorização da cultura popular e no incentivo às suas manifestações; na consideração observada pela população quando utiliza o sistema público de saúde e educação; no cuidado com os remanescentes de florestas e com a preservação dos rios que cortam o município, entre tantas outras atitudes que compõem o extenso processo de educação da população de um território.

O Município que Educa “educa em todos os cantos” (PADI-LHA, 2007, 2009). Busca construir o compromisso com a educação para a sustentabilidade junto aos mais diversos segmentos da socie-dade, colocando-os em diálogo na busca por soluções criativas para situações específicas de sua realidade. A ideia de todo o município educar intencionalmente sua população está em sintonia com Guat-tari (2006), quando afirma que é preciso buscar uma existência mais humana nos novos contextos históricos que vivemos. O autor afir-ma que seria inconcebível pretender retornar a fórmulas anteriores, correspondentes a períodos da história onde a densidade demográ-fica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte do que hoje. Segundo ele, o desafio está literalmente em reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo e, nesse sentido, propõe práticas efetivas de experimentação.

Transformar posturas, construir novas formas de ver o mundo e de se posicionar em relação à vida em sociedade exige ousadia em ex-perimentar novos processos educativos nas cidades, nas suas periferias e no campo.

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A soma de esforços na busca pelo comprometimento de um nú-mero cada vez maior de cidadãos com a construção de ações que contribuam para a sustentabilidade socioambiental tem sido marcada pela elaboração de diferentes documentos e movimentos, entre eles, a instituição da Década das Nações Unidas da Educação para o De-senvolvimento Sustentável (2005 a 2014), a elaboração do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global e a redação da Carta da Terra31, com contribuição de povos de diferentes lugares do planeta. São iniciativas importantes em nível mundial, instrumentos que podem despertar inúmeras outras práticas na localidade, se um trabalho capilar, intenso e efetivo for desenvolvi-do no âmbito municipal.

O desenvolvimento de um Plano Municipal de Educação Socioam-biental que coloque em diálogo as escolas e os diferentes segmentos da comunidade é um exemplo de trabalho capilar e intenso a ser assumido por municípios comprometidos com a educação para a sustentabilida-de. Nesse sentido, é necessário desenvolver um currículo que contribua para a formação de jovens éticos, colaborativos, que valorizam a cultura do lugar onde vivem e participam ativamente da construção de solu-ções para os problemas que percebem, defendem seus pontos de vista e escolhem o futuro que querem construir. Um currículo assim faz-se na relação da escola com a realidade do lugar onde está inserida, faz-se na relação do território de vida das crianças com o planeta, casa comum de toda a humanidade. O conhecimento torna-se assim algo vivo, faz sentido, instiga a pesquisa, a reflexão e a ação.

Sendo assim, torna-se fundamental a elaboração de Planos Mu-nicipais de Educação Socioambiental que ultrapassem os limites das Secretarias Municipais de Educação, sensibilizando também pessoas

31 A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no século 21, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca inspirar todos os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade comparti-lhada voltado para o bem-estar de toda a família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. O projeto da Carta da Terra começou como uma iniciati-va das Nações Unidas, mas se desenvolveu e finalizou como uma iniciativa global da sociedade civil. Em 2000, a Comissão da Carta da Terra, uma entidade internacional independente, concluiu e divulgou o documento como a carta dos povos.

que atuam nas Secretarias de Meio Ambiente, Urbanismo, Cultura, Obras, Infraestrutura, Agricultura e Saúde, por exemplo, a atenderem as demandas das crianças que surgem a partir do estudo da realidade e da busca por intervenção no meio.

Um Município que Educa torna realidade programas que dia-logam com cidadãos e cidadãs que atuam em Associações de Bairro, ONGs, Conselhos Municipais e empresas privadas buscando estabe-lecer parcerias na formação de crianças, jovens e adultos do municí-pio com o objetivo de educar para a sustentabilidade. A articulação de toda essa população convidada a participar da formação dos sujeitos do seu território contribui para o repensar de atitudes e valores de to-dos os envolvidos. Compartilhando a responsabilidade de educar os mais jovens, todos os envolvidos também se educam.

O preâmbulo da Carta da Terra afirma que, para seguir adiante, de-vemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos nos juntar para gerar uma sociedade sustentável global fundada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Diz ainda que, para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade de vida e com as futuras gerações (GADOTTI, 2010).

Esta união proposta pelo documento para “gerar uma sociedade sustentável global” precisa, com urgência, ser construída nas relações cotidianas, nos lugares onde vivemos e nos formamos. O sentimento de impotência frente à grandiosidade do desafio deve dar lugar à cora-gem de enfrentá-lo. Neste sentido, Paulo Freire nos ensina que:

Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético insiste no direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo à razão de que faz a História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de puro objeto. (FREIRE, 2000, p. 119)

A intencionalidade educativa em busca da sustentabilidade so-cioambiental praticada por Municípios que Educam, em diálogo com outros Municípios que Educam, é, certamente, uma forma de compa-recer à História, como sujeitos de intervenção no mundo.

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Referências

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COMUnICAçãO E MÍDIAS nO MUnICÍPIO QUE EDUCA

Isabel Orofino32

Introdução

A mídia é, sem dúvida, um sistema complexo muito importante no conjunto das dinâmicas do mundo contemporâneo. Na medida em que buscamos uma educação emancipadora e libertadora, parece-nos fundamental inserirmos a presença da mídia – seus modos de con-trole, suas possibilidades de liberdade de expressão e construção de visibilidade para as comunidades silenciadas – em nossas práticas de leitura do mundo para a construção de redes de cooperação, como o Município que Educa. Paulo Freire nos ajudou a compreender que: “Linguagem e realidade prendem-se dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre texto e contexto” (1992, p. 12).

A presença da mídia em nossas vidas e sua importância para as relações que se tecem nas sociedades contemporâneas é um tema que permite uma pluralidade de debates sobre pontos de vista conflitantes. Não daremos conta de cobrir todo este escopo, e este também não é o nosso objetivo. Porém, há duas questões que desejo destacar, sobre as quais irei discorrer nas páginas que se seguem:

a) a sociedade de redes (como é denominada por alguns autores,

32 Doutora em Comunicação Social pela ECA/USP, mestre em Comunicação e Jornalista pela UFSC. Atua no Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM/SP com pesquisa crítica voltada para a infância, mídias e consumo. Atua também na área de comunicação e educação em parceria com o Instituto Paulo Freire desde 1994. É autora de Mídias e Mediação Escolar: pedagogia dos meios, participação e visibi-lidade (Cortez e IPF, 2005) e Mediações na produção de TV: um estudo sobre o Auto da Compadecida (EdiPUC-RS, 2006).

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como Manuel Castells) exige de nós, educadores e educado-ras, o repensar dos paradigmas críticos sobre a mídia. Esta so-ciedade emergente é uma nova realidade que comporta uma participação muito maior da sociedade civil nos usos sociais das mídias;

b) a mídia-educação precisa ser uma prática aliada aos múltiplos esforços na construção de uma gestão para o Município que Educa, pois ela pode cooperar em dimensões como: a constru-ção do sentimento de pertença, a maior mobilização dos sujei-tos envolvidos, o protagonismo da comunidade, a visibilidade para as práticas culturais e ambientais, a inclusão digital.

Com esta proposta, quero reiterar o que nos ensinou Paulo Freire em

sua obra A importância do ato de ler. Ao concluir, ele nos fala que:

A leitura crítica da realidade, dando-se num processo de alfabetização ou não e associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de mobilização e de organização, pode construir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica. [...] A importância do ato de ler implica sempre percepção crítica, interpretação e reescrita do lido (FREIRE, 1992, p. 21).

Numa perspectiva freiriana de educação, realizar uma leitura crítica da mídia significa, também, reescrever a mídia dominante em múltiplos novos e outros discursos, vindos das comunidades. E isso pode ser realiza-do com as práticas de mídia-educação. É sobre isso que vamos tratar.

A mídia sob suspeita: os elementos da denúncia e o anúncio da mudança

Ainda hoje, em muitos círculos ligados aos estudos da educação escolar, quando se coloca a mídia em discussão, parece o mesmo que acender uma fogueira. O debate incendeia. As opiniões divergem, po-rém em grande medida, quando o debate assume um tom crítico, é co-mum ouvirem-se opiniões que acusam a mídia de ser o principal vetor de alienação na sociedade de consumo. Ou ainda, localiza-se a mídia como um aparato tecnológico submetido aos interesses da sociedade de mercado, cujo conjunto das textualidades nada mais faz senão re-produzir a ideologia individualista própria das sociedades capitalistas. Em grande medida, os meios de comunicação de massa têm, de fato, desempenhado tal papel.

Mas, hoje, esta crítica encontra-se sob duro ataque, por vários motivos, dentre os quais eu irei destacar apenas dois:

a) para compreendermos a sociedade de redes precisamos supe-rar os modelos de análise que recorram às metáforas do deter-minismo tecnológico e econômico, isto é, aqueles que veem a mídia como uma totalidade monolítica cujo poder e controle os cidadãos não têm capacidade de contrapor;

b) precisamos estar atentos ao fato de que vivemos hoje um trân-sito de uma sociedade de comunicação de massas (quando um único agente difundia a informação para uma ampla au-diência) para uma nova realidade: a da comunicação em re-des, quando múltiplos agentes interagem em tempos e espaços diversificados.

E estas duas questões estão intimamente ligadas, pois, no mode-lo de comunicação em redes, os monopólios e vultuosas transações econômicas realizadas pelas empresas do setor não conseguem con-trolar os usos sociais que as comunidades de receptores fazem dos conteúdos veiculados pela mídia. E estes novos usos desafiam as visões deterministas que colocam a mídia como o único centro gerador das dinâmicas socioculturais.

A nova realidade midiática da organização em rede oferece um grande número de possibilidades de usos das novas tecnologias de in-formação e comunicação (TICs) por parte das comunidades de recep-tores. Hoje, usar os recursos tecnológicos da comunicação a serviço da educação pode resultar em ações que não irão determinar, em hipótese alguma, as transformações que desejamos. Mas irão atuar como coad-juvantes em múltiplos processos em que diversos atores devem estar engajados a partir da escola e do município, com vistas à construção da cidadania planetária.

Mudanças no cenário midiático, mudanças na teoria da mídia

A chamada sociedade de redes é definida por muitos autores como uma nova realidade em que as tecnologias de base microeletrô-nica têm provocado mudanças em muitos segmentos da vida social, em setores diversos da produção da riqueza, do desenvolvimento das ciên-cias da saúde, dos modos de produção, consumo e lazer. Mas, sobretudo,

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mudanças significativas no tratamento e trânsito da informação e na ampliação da produção da cultura. Para autores, como Manuel Cas-tells, sem dúvida, estamos vivendo uma revolução. Aquela que é tam-bém chamada de a terceira revolução tecnológica (sendo a primeira provocada pela criação do motor a vapor e a segunda, o elétrico).

Na esteira das transformações provocadas pela nova sociedade de redes podemos identificar como algo muito positivo e que interessam ao programa Município que Educa, pelo menos três fatores:

a) os canais de comunicação se amplificaram superando o mode-lo autoritário do broadcasting (isto é, um agente emissor para uma gama de receptores);

b) as novas tecnologias de comunicação tornaram-se mais aces-síveis com relação aos seus custos, o que possibilita a criação de centros de produção nas escolas e outros locais de interesse de divulgação e construção de visibilidade para comunidades historicamente silenciadas;

c) os consumidores (em geral as crianças e adolescentes) torna-ram-se prossumidores, isto é, eles são consumidores e também produtores de conteúdos e têm grande agilidade e conheci-mento sobre os usos e funcionamento dos dispositivos tec-nológicos, o que pode tornar os momentos educativos mais participativos e menos autoritários como as práticas de uma pedagogia tradicional verticalizada.

Neste novo contexto, também as teorias da comunicação ganham novas formulações que nos ajudam a superar os paradigmas reflexivos da sociedade de massas para a sociedade de redes. Enquanto educado-res críticos, nós precisamos renovar nossos olhares sobre os fenômenos da cultura e sociedade, sob o risco de estarmos repetindo teorias que já não dão conta de captar a complexidade da nova realidade que vive-mos. Alguns autores nos alertam para o fato de que na contempora-neidade, com o crescimento no fluxo das informações, tem-se verificado a ampliação da reflexividade social. No conjunto geral da circulação da informação há um maior espaço – substantivo e significativo – para a mediatização de outros discursos para além da ideologia dominante. Outros segmentos da sociedade passam a conquistar novas plataformas

de ação cultural, seja por dentro da própria mídia comercial, seja fora dela, com a criação de rádios, sites, blogs, reportagens, webnovelas, vídeos, entre outros, e que são produzidos pelas próprias comunidades de receptores.

Na América Latina, a partir dos anos 80 do século passado, pu-demos verificar uma produção teórica em mídia e comunicação que se tornou grande referência para a pesquisa internacional: a chamada teoria das mediações (Martín-Barbero; Néstor Garcia Canclini; Guil-lermo Orozco, entre outros). As reflexões desenvolvidas por estes au-tores buscaram evidenciar, pela primeira vez, no conjunto da teoria crítica da mídia em nosso continente, os modos como as comunidades de receptores negociam e ressignificam as mensagens veiculadas pelas mídias e como a escola, o bairro, o município são de fato lugares onde os interesses da indústria cultural se deparam com as resistências, a recusa e a negociação na produção de sentidos por parte das comuni-dades de receptores.

De certa forma, a teoria latino-americana das mediações encon-tra profunda afinidade com a pedagogia da libertação freiriana. Pois, assim como Paulo Freire chamou a nossa atenção para o fato de que os educandos possuem sua memória social e histórica e sua bagagem cultural, e que, portanto, não são sujeitos vazios, desprovidos de co-nhecimentos, também os leitores, receptores da mídia, possuem o seu repertório de interpretação, o que potencialmente pode levar à produção de significados diferentes daqueles de interesse da indústria cultural. Esta articulação – das mediações e da educação libertadora – tem sido objeto de reflexão do campo da educomunicação no Bra-sil (campo da comunicação e educação) e conta com a contribuição do trabalho de vários autores, dentre eles destacam-se Adilson Citelli, Maria Aparecida Baccega e Ismar de Oliveira Soares, por exemplo.

A escola e o município como agentes da produção cultural

O que interessa salientar nesta breve reflexão é que vivemos um novo momento em nossa relação com as mídias. As propostas de educo-municação (em alguns países, denominada mídia-educação) tornam-se a cada dia mais viáveis, sob o ponto de vista da sua produção. Os compu-tadores são hoje lugares da interação social via uma ampla diversidade de redes de relacionamentos. Recursos como os blogs e internet facilitam

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a divulgação de ações locais para uma audiência de caráter planetário. Os telefones celulares tornaram-se câmeras de vídeo e de fotografia, o que possibilita o seu uso para a realização de produções de repor-tagens fotográficas ou até mesmo videográficas. As câmeras de vídeo também estão mais acessíveis, o que permite que a comunidade ou a escola possam ter seus próprios equipamentos, o que até bem pouco tempo atrás era inviável.

Com a socialização dos meios de produção (tecnologias) de co-municação social, ampliam-se as possibilidades de construção de no-vas narrativas, sobre os mais variados temas: meio ambiente, saúde, educação, cultura, esporte, economia, política e lazer. Usando os dispositivos tecnológicos no seu melhor sentido: o de meios. Meios para a construção de novos processos de reflexividade, agora, vindo das comunidades locais, dos municípios como os verdadeiros agentes da utopia da transformação planetária. A mídia enquanto meio, e não como um fim em si mesma. A mídia enquanto processo, e não apenas produto. As novas mídias a serviço das comunidades receptoras que agora, nesta nova lógica da sociedade de redes, se transformam em protagonistas e autoras de respostas aos discursos ininterruptos da comunicação de mercado.

Existem muitas possibilidades de desenvolvimento de ações cul-turais em favor da consolidação do Programa Município que Educa com o uso criativo e reflexivo das novas mídias pelos agentes transfor-madores. Uma questão que temos defendido é a criação de grupos de mídia na própria escola, centros culturais ou outros locais de interesse. Tomamos como exemplo as iniciativas que emergem a partir da escola, com o objetivo de oferecer subsídios que possibilitem a criação de no-vas práticas que levem em conta a pluralidade dos agentes envolvidos em um programa como este.

Na escola, as ações mídia-educação têm sido coordenadas de modo conjunto e participativo por grupos de alunos interessados, professores de diferentes disciplinas e agentes da comunidade ligados a diferentes setores de atuação (grupos ligados à cultura, meio ambiente, saúde, entre outros). Porém, o educador ou educadora responsável pelo laboratório de informática torna-se peça-chave para este novo projeto de educação. Uma experiência recente de produção de um blog tem possibilitado uma

grande participação de diferentes interesses disciplinares e a emergência de novas práticas de debate, reflexão e produção.

As possibilidades são muitas. Precisamos compreender que as novas mídias podem ser grandes aliadas na construção de novos pro-cessos de transformação. O mundo de hoje parece reservar um espaço mais socializado para a polifonia que é própria das culturas humanas.

Referências

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O SOFtWARE LIVRE nO COntEXtODE UM MUnICÍPIO QUE EDUCA Anderson Fernandes de Alencar33

Vivemos em um mundo de profundas transformações tecnológi-cas e a administração pública federal, estadual ou municipal não pode estar alheia a este movimento. Este estreitamento, neste caso específi-co, não é motivado pela concorrência ou pela busca de maximização dos lucros, mas, sim, para qualificar o serviço público.

As tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm uma penetração inequívoca em nosso cotidiano. Falamos em celulares, computadores, telefones, TVs, rádios e as tecnologias da inteligência que potencializam a capacidade intelectual.

A administração pública pode ser frutuosamente beneficiada pelo uso de tecnologias em suas práticas cotidianas. Neste texto, partindo dos princípios constitucionais da própria administração pública, defi-nidos pela Constituição Federal no artigo 37 – legalidade, impessoali-dade, moralidade, publicidade e eficiência –, trataremos de apresentar subsídios teórico-práticos para o uso da tecnologia nas municipalida-des no contexto de um Município que Educa.

Fundamentando o princípio da legalidade, a Constituição, no in-ciso II do art. 5º, declara: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A legislação internacional e brasileira, por meio dos processos

33 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB, 2005), mes-trado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2007). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Sistemas de Informação e Tecnologia Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Pedagogia da migração, software livre, GNU/Linux, conhecimento livre, educação a distância, copyleft, liberdade do conhecimento. Doutorando em Educação na Universidade de São Paulo (Feusp desde 2008), é coordenador da Universi-tas Paulo Freire (UniFreire), instituição mantida pelo Instituto Paulo Freire.

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de digitalização, do advento da informática e internet, tornaram-se fa-cilmente acessáveis. A dificuldade que poderíamos ter para localizar uma lei específica, ou mesmo sua emenda, foi dissipada com as possi-bilidades da world wide web (www), que nos garante, de modo visual e fácil, localizar, não somente as legislações, mas também palavras ou parágrafos nesses textos. Na própria construção deste texto, localizei, com extrema facilidade, a versão digital da Constituição Federal e as palavras e trechos que me interessavam, graças à existência da inter-net e dos processos citados. A administração pública, além de poder acessar toda a legislação disponibilizada na rede pelas três esferas de governo – municipal, estadual e federal –, pode, por meio do processo de digitalização, disponibilizar (em relação direta com o princípio da publicidade) suas legislações na internet, oferecendo a todos os cida-dãos e cidadãs o acesso à informação. Essas leis podem ser projetadas e/ou impressas, qualificando as práticas educativas, por exemplo, como aquelas de professores das redes públicas quando venham a discuti-las ou nas universidades, nos cursos de Direito e afins. Esta é uma ativida-de importante na constituição de “e-governo” ou governo eletrônico.

O princípio da impessoalidade é definido por Seresuela (2010) como

[...] aquele que determina que os atos realizados pela Administração Pública, ou por ela delegados, devam ser sempre imputados ao ente ou órgão em nome do qual se realiza, e ainda destinados genericamente à coletividade, sem conside-ração, para fins de privilegiamento ou da imposição de situações restritivas, das características pessoais daqueles a quem porventura se dirija34.

A garantia do anonimato na internet, que está sob intensa dis-cussão e sendo levado a cabo pelo Marco Civil da Internet, é uma das ferramentas para a viabilização do princípio da impessoalidade. Garan-tir acesso não identificado às informações das administrações públicas é uma forma de sua realização. A informação, por ser pública, deve ser acessível a qualquer cidadão e, por meio da internet, pode sê-lo em qualquer tempo e espaço. Garantir o acesso virtual aos conteúdos da instância governamental possibilita minimizar quaisquer proble-mas que a “pessoalidade” poderia trazer ao atendimento aos cidadãos.

34 SERESUELA, Nívea Carolina de Holanda. Princípios constitucionais da Administração Pública. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3489>. Acesso em: 22 ago. 2010.

Não queremos, com isso, encobrir preconceitos ou desrespeitos, mas aproveitar-nos das tecnologias para criar outros espaços de interlocu-ção, ao mesmo tempo que nos educamos para o respeito e a tolerância, qualificando o atendimento presencial. O cuidado com a linguagem e com o atendimento, seja no presencial ou virtual, não são autoexcluí-veis e devem ser cuidados.

Quanto ao princípio da moralidade, Cardozo (1999, p. 158) define:

Entende-se por princípio da moralidade, a nosso ver, aquele que determina que os atos da Administração Pública devam estar inteiramente conformados aos padrões éticos dominantes na sociedade para a gestão dos bens e interesses pú-blicos, sob pena de invalidade jurídica35.

Quando nos debruçamos sobre o tripé moralidade, adminis-tração pública e tecnologia, chegamos à conclusão de que o software livre é uma das sínteses possíveis por quatro razões36:

1) O software proprietário não nos permite estudar ou alterar o software. O direito a conhecer os softwares e como estes fun-cionam em cada município é um direito do cidadão. Além disso, é direito do gestor público alterar o software, como bem o quiser, para qualificar o serviço público. Inviabilizar o estu-do ou alteração do software não é ético.

2) O software proprietário gera uma cadeia de aprisionamento entre uma empresa desenvolvedora e a administração pública, graças ao monopólio desta empresa sobre o software, deixan-do o gestor sem alternativas no mercado para suporte, a não ser a própria empresa que vendeu a licença de uso do software. Esta prática não é ética.

3) O software proprietário, além de não permitir a alteração, não permite à administração pública compartilhar as alterações ou correções de problemas que tenham custeado. Nem mesmo

35 CARDOZO, José Eduardo Martins. Princípios constitucionais da administração pública (de acordo com a Emenda Constitucional n. 19/98). In: MORAES, Alexandre de (Coord.). Os 10 anos da Constituição Federal: temas diversos. São Paulo: Atlas, 1999, p. 149-183

36 Mais informações: OLIVA, Alexandre. Da preferência constitucional pelo Software Livre. Disponível em: <http://www.fsfla.org/svnwiki/texto/pref-const-br-swl.pt.html>. Acesso em: 22 ago. 2010.

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com outras administrações públicas. Bloquear o compartilha-mento do resultado de investimento público não é ético.

4) O software proprietário, usualmente, é pago (a licença de uso). Quando não é cobrada a licença, o software faz parte de um pacote, por exemplo, uma manutenção mensal daquela em-presa, em caráter de exclusividade. O software livre, ao con-trário, nos permite, a custo zero no que se refere a licenças de uso, não ter limitada a quantidade de vezes que venha a instalá-lo, bem como utilizá-los para quaisquer finalida-des que necessitar. Essas licenças pagas, em especial aquelas de sistemas operacionais ou pacotes de escritórios proprie-tários, são revertidos a empresas estrangeiras em forma de royalties, ferindo a soberania nacional e a possibilidade de in-vestimento público em cooperativas e empresas brasileiras. Esta prática não é ética.

[...] exige, nas formas admitidas em Direito, e dentro dos limites constitucio-nalmente estabelecidos, a obrigatória divulgação dos atos da Administração Pública, com o objetivo de permitir seu conhecimento e controle pelos órgãos estatais competentes e por toda a sociedade.

As TICs são ferramentas eficazes de publicização e, sem som-bra de dúvidas, a internet é a principal aliada neste processo. Temos uma ampla variedade de gerenciadores de conteúdos em software livre (Joomla, Drupal etc) que permitem a criação de sites sem qualquer tipo de conhecimento técnico específico, como o de programação. Es-ses sites podem disponibilizar desde notícias da gestão à disponibiliza-ção da prestação de contas públicas como faz o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (http://www.tce.ce.gov.br).

Além de atender fins jornalísticos, estes sites podem servir de canal de avaliação das ações correntes, criar espaços efetivos de participação da po-pulação na gestão pública por meio de orçamentos participativos ou, ainda, garantir canais para críticas, sugestões e denúncias.

Destaco que a publicação do a fazer, do em curso e do feito, deve ser uma preocupação constante destas administrações. Diversas gestões mu-nicipais dão início às suas atividades ignorando todo o acúmulo das gestões anteriores ou de outras gestões. Aquelas que procuram fazer esse resgate, contudo, têm dificuldade em localizar a informação, e nos

casos em que é encontrada, em alguma medida é insuficiente. Temos aqui um problema de registro, de sistematização e compartilhamento da informação. O município não registra as suas ações, portanto não tem elementos para socializar.

Tecnologias de fácil acesso e de baixo custo, como câmeras digi-tais, filmadoras e computadores, podem apoiar estas administrações na realização de registro de projetos das diversas secretarias. Estes re-gistros vão sendo sistematizados em relatórios de campo ou de traba-lho, sendo a estes anexados os registros audiovisuais e, por fim, podem ser disponibilizados na íntegra nos sites dos próprios municípios com licenças de uso abertas e flexíveis tais como a Creative Commons.

No Município que Educa seria interessante a criação de um espa-ço público digital que, gerido pela sociedade civil, armazenaria todos estes registros, uma espécie de grande repositório público de iniciati-vas e projetos das administrações públicas, evitando quaisquer perdas de dados na passagem entre diferentes gestões públicas.

Por fim, o princípio da eficiência é definido por Seresuela (2010) como aquele que “orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dis-põe e a menor custo”.

Junto ao princípio da publicação, o da eficiência (e da economici-dade) pode ser efetivado em diversos campos da administração pública com o apoio da tecnologia. Entre estes campos, podemos mencionar:

Software livre/público: • o uso prioritário de softwares livres nas administrações garante grande economia de recursos públicos in-vestidos em licenças de uso e que se revertem em royalties a empresas estrangeiras. A licença de uso do software MS Windows 7 Professional tem custado, na média, de R$ 600,00 a R$ 700,0037 e o MS Office 2010 (com Access e Publisher) na faixa de R$ 1.300,0038. Em uma rápida con-ta para 1.000 computadores de uma secretaria de estado, por exemplo,

37 Disponível em: <http://preco2.buscape.com.br/procura?id=9365&kw=windows+7+professional> Acesso em: 22 ago. 2010.

38 Disponível em: <http://compare.buscape.com.br/procura?id=6480&kw=office+2007+professional>. Acesso em: 22 ago. 2010.

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chegamos a um gasto de R$ 1.900.000,00 pagos na aquisição de licen-ças de software. Todo este valor pode ser economizado por meio da im-plantação de sistemas operacionais como o Debian e Ubuntu e pacotes de escritório livres como o Open/BrOffice.org. O investimento de R$ 180.000,00 do valor citado seria capaz de sustentar uma equipe de 10 profissionais de suporte (helpdesk) no valor de R$ 1.500,00 pelo período de um ano, que garantiriam o bom funcionamento do parque tecnológi-co e a formação dos novos migrantes advindos do software proprietário, isto é, este valor não iria mais ao exterior, mas seria revertido em con-tratação ou qualificação técnica dos quadros internos e em adequações nos softwares que venham a ser necessárias no processo. Estas melhorias seriam devolvidas à comunidade como responsabilidade do ator público no processo colaborativo de desenvolvimento destes softwares.

Digitalização/virtualização:• o processo de digitalização/virtu-alização dos processos administrativos garantem economia em papel (impressão/cópia) para as entidades públicas. Boa parte da-quilo para o qual a prova material era imprescindível. Hoje, com as ferramentas de certificação, assinaturas e a criptografia digital, é possível atestar a sua veracidade. Essas ferramentas oferecem a segurança contra fraudes ou quaisquer outros crimes que deixa-vam os técnicos receosos de sua implementação.

Governo eletrônico:• com a digitalização e virtualização dos processos, gera-se uma economia de tempo e de trabalho, por-que parte daquilo que se deveria recorrer pessoalmente a car-tórios, correios, bancos, agências, escolas, prefeituras, receita e polícia federal, pode ser realizado com alguns cliques de mouse via internet. Formulários podem ser preenchidos pela rede; as taxas, pagas em bancos online; a documentação recebida via correio ou retirada rapidamente de modo presencial. O ganho qualitativo de iniciativas como estas é imenso tanto para a ges-tão pública quanto para a população.

tecnologias sociais/conhecimento livre:• efetivar o princí-pio da publicidade nos garante a eficiência. Se um municí-pio desenvolve um livro didático, como é o caso do Projeto

Folhas39 da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, e o compartilha na rede com licenças flexíveis que possam permi-tir o uso sem fins lucrativos, atribuindo a autoria e permitin-do ou não a sua alteração para novas versões, apoiará outras administrações que tenham a mesma iniciativa seja partindo do material já pronto adequando-o à realidade local seja apro-veitando a metodologia utilizada. De um modo ou de outro, teremos economizado tempo de trabalho, evitando a reinven-ção da roda. Iniciativas de democratização da criação públi-ca estão se tornando cada vez mais comuns e transparentes pela rede. Destaque-se a iniciativa do Software Público que tem buscado, junto aos entes públicos, a socialização de sof-twares, desenvolvidos com recursos públicos, para com outras administrações. Esta iniciativa evita, por exemplo, que uma prefeitura do interior da Bahia custeie um novo software para gestão escolar quando este já foi desenvolvido pela prefeitura de Itajaí e disponibilizado no Portal40.

Concluindo este texto, destaco as iniciativas do 4CMBr, o 5CQua-liBr e o CDTC.

O 4CMBr é uma plataforma colaborativa para os municípios bra-sileiros que tem como objetivo “o desenvolvimento da informatização no setor público municipal, estimulando uma nova tendência de oferta de softwares de gestão para prefeituras, incluindo informações impor-tantes para a administração”41.

O 5CQualiBr é um “ecossistema digital que trabalha para evoluir a qua-lidade do Software Público Brasileiro e o conhecimento em TI no país”42.

O Centro de Difusão de Tecnologia e Conhecimento (CDTC) oferece cursos a distância na área técnica, gratuitamente, para servido-res públicos e ao público em geral.

39 Disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/projetofolhas/modules/conteudo/con-teudo.php?conteudo=3>. Acesso em: 22 ago. 2010.

40 Disponível em: <http://www.softwarepublico.gov.br>. Acesso em: 22 ago. 2010.41 Disponível em: <http://www.softwarepublico.gov.br/4cmbr/xowiki/Sobre>. Acesso em:

22 ago. 2010.42 Disponível em: <http://www.neodream.com.br/5cqualibr/flash>. Acesso em: 22 ago. 2010.

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O uso de softwares livres assegura a efetivação dos cinco prin-cípios constitucionais da administração pública: legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade e eficiência no contexto de um Município que Educa. Com o apoio da informática, de uma opção política clara pelo público e pelo respeito a estes princípios: é possível fazer muito!

PLAnO MUnICIPAL DE EDUCAçãOGenuíno Bordignon43

O Programa Município que Educa concebe uma nova arquitetura na gestão do Sistema Municipal de Educação, fundada nos pilares da escola cidadã e na dimensão da cidadania planetária. Essa nova arqui-tetura busca a construção da identidade institucional do município, pelo registro, sistematização e análise de suas práticas para a constru-ção de novos saberes. Poderíamos falar em epistemologia da práxis, do processo dialético da reflexão-ação, releitura da reflexão-ação, da aprendizagem com a experiência, que leva os munícipes a reconhece-rem-se de modo orgânico e articulado e se identificarem territorial e culturalmente.

Nesse processo, o Plano Municipal de Educação (PME) se cons-titui como principal instrumento de gestão da nova arquitetura do Sis-tema Municipal de Educação. Caracterizado como plano de Estado, deve representar a vontade da cidadania municipal que, em seu caráter mais permanente, ultrapassa os tempos transitórios dos mandatos dos governos. E, como Plano da Educação no município, assume dimensão sistêmica, abrangendo a totalidade das demandas educacionais, articu-lando as diversas áreas da ação pública necessárias à sua realização.

Com essa dimensão, o PME se constitui em fonte geradora e orientadora dos planos e ações governamentais, entre os quais se des-taca o Plano de Trabalho Articulado (Plantar) proposto pelo Programa Município que Educa. O Plantar se constitui numa importante estra-tégia para realizar os objetivos e metas do PME, na medida em que articula as ações dos diferentes setores e mobiliza os diferentes atores

43 Professor aposentado da Universidade de Brasília, assessor e membro fundador do Ins-tituto Paulo Freire. Formado em Filosofia pela Unijuí (RS) e Mestre em Educação: Ad-ministração de Sistemas Educacionais, pelo Iesae/FGV (RJ).

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municipais na promoção da qualidade social da educação. Qualidade que será social na medida em que incluir a todos os munícipes no exer-cício pleno da cidadania.

O Sistema Municipal de Educação, baseado nos princípios e fins educacionais, define a organização formal, legal, do conjunto das ações educacionais do Município. A instituição do Sistema por lei mu-nicipal explicita e afirma o espaço da autonomia do Município e as responsabilidades educacionais próprias. O Sistema tem um caráter de afirmação de princípios e valores mais permanentes na construção da cidadania e da sociedade que se deseja.

O Plano Municipal de Educação define o projeto de educação e se constitui no instrumento de gestão do Sistema, para tornar efetiva a cidadania e a sociedade preconizada nas bases e diretrizes da educação municipal. Neste sentido, sem o Sistema, o Plano ficaria sem a refe-rência dos fundamentos mais permanentes, sem a orientação de sua finalidade, sem o rumo do futuro, portanto, sem contextualização.

Uma analogia nos ajuda a simplificar a compreensão do signifi-cado e da importância do Plano para o Sistema Municipal de Educa-ção. Podemos compará-lo a uma estrada, com um arco-íris ao longe. O arco-íris representa nossa utopia, e a estrada, o caminho para an-dar em sua direção. A analogia ganha significado com uma poesia de Eduardo Galeano.

“A utopia está lá nohorizonte. Me aproximo

dois passos, ela seafasta dois passos.

Caminho dez passos e ohozizonte corre dez

passos. Por mais que eucaminhe, jamais

alcançarei. Para queserve a utopia? Servepara isso: para que eu

não deixe de caminhar”. (E.Galeano)

E para que serve o Plano Municipal de Educação? Para definir o caminho, o modo de caminhar e o horizonte da chegada. O Plano não só define o caminho a seguir, mas quantos passos dar em determinado tempo. O caminho é dado pelas diretrizes, as orientações dos rumos a seguir. Os passos representam as metas, determinadas pelas possibili-dades e limites oferecidos pela realidade.

De forma bem simples, Ferreira (1983) afirma que “planejar sig-nifica não improvisar”. E não improvisação requer olhar para o futuro – uma utopia no horizonte –, definir objetivos e etapas da caminhada em sua direção. Sem plano não há um caminho traçado a percorrer, nem estratégias da caminhada, mas passos dados ao sabor das cir-cunstâncias, em geral sem direção. Os objetivos se fundamentam em princípios e intencionalidades indicando o rumo do futuro. As ações requerem a definição do como e com o quê caminhar nessa direção. Se o planejamento é inerente a toda a atividade humana, seja individual ou coletiva, torna-se essencial à gestão educacional para a promoção da qualidade social da educação.

A elaboração do Plano Municipal de Educação abrange três mar-cos, ou momentos articulados sinergicamente, constituindo processo de ação/reflexão/ação/reflexão, orientados pela intencionalidade polí-tica da melhoria da qualidade da educação no município.

Análise da situação: onde estamos?• O bom diagnóstico re-quer mais do que a simples e factual descrição da realidade, com base em dados estatísticos. Requer a percepção das ra-zões que geraram essa realidade, das forças e fraquezas e das oportunidades e ameaças que a realidade contém. É a consci-ência de onde estamos e porque estamos onde estamos, da ne-cessidade e dos limites e possibilidades de alterar a situação.

Definição do caminho a seguir, dada pela concepção da •educação, pela nossa utopia: que cidadania queremos? É a definição das políticas, entendidas como as intencionalidades frente às expectativas e demandas do ambiente, e das dire-trizes orientadoras do curso da ação. Os referenciais para a definição do caminho a seguir são dados: pela concepção de pessoa e sociedade, que determinam a concepção de educação adotada; pela missão própria do Município, definida pela sua

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situação particular referida às responsabilidades prioritárias a ele atribuídas pela Constituição e pela LDB; pelos princípios e diretrizes nacionais, pelos objetivos e metas do Plano Nacio-nal de Educação e do Plano Estadual de Educação; e pelo prin-cípio do regime de colaboração entre os sistemas de ensino.

Definição da caminhada: da situação para a utopia• . É a de-finição das metas, etapas – passos rumo ao horizonte sonha-do – e estratégias da caminhada (do modo de caminhar) para realizar as transformações desejadas e promover a cidadania idealizada. O modo de caminhar é dado pela definição dos processos de gestão, dos atores e recursos, das articulações necessárias, incluindo atores além do sistema municipal (re-gime de colaboração). A garantia da caminhada no rumo cer-to requer, ainda: a definição de responsabilidades (quem faz o quê); a definição de indicadores (marcos de realização de cada etapa); e processos de acompanhamento e avaliação do Plano (um fórum de acompanhamento, que pode ser o pró-prio Conselho Municipal de Educação).

Para que o PME seja percebido como o plano da comunidade municipal, gerando compromisso de todos com sua realização, deve ser elaborado com e para ela. A construção participativa do PME tem como fundamento a busca da congruência (o contrário de discrepân-cia) entre seus objetivos e metas e as aspirações e demandas da comu-nidade. Para isso, é necessário que todas as vozes, desde os diferentes pontos de vista, sejam ouvidas. A participação permite a visão do todo e gera compromisso e responsabilidade com o planejado, não só do governo, mas também da sociedade.

O processo formal de construção participativa do PME, assim como de seus desdobramentos no Plantar, deve contar com os dife-rentes sujeitos que vivem no município e representam, de um lado, a organização do Estado e de outro, a sociedade civil organizada. Essa participação deve ser formalizada em ato oficial constituindo Comis-são Coordenadora e comissões temáticas, contemplando, por meio de representações: Poder Executivo (todas as secretarias); Ministério Pú-blico; Poder Legislativo; Conselhos (Municipal de Educação, da Saúde, Tutelar, CMDCA e outros); profissionais da educação; educandos e

seus familiares; entidades organizadas da sociedade civil. As comissões não dispensam audiências e consultas abertas a toda a comunidade, nas suas diferentes formas de mobilização social.

A realidade não se apresenta de forma uniforme e nem é interpre-tada de forma sincrônica. Cada ator vê e interpreta a realidade a partir de sua situação, de seu ponto vista, de sua particular visão de mundo (idiossincrasia). O todo só pode ser captado, interpretado desde ou a partir dos diferentes pontos de vista, ou seja: dos atores situados nas diferentes posições e papéis sociais.

Carlos Matus, em seus cursos, alertava para a necessidade da superação de algumas cegueiras, que limitam a participação, como: o foco de atenção limitado a uma parte da realidade (um ponto de vista); a incapacidade de colocar-se no lugar do outro; a visão limitada do tempo (ausência de perspectiva histórica, insti-tuinte); e preconceitos (segundo Einstein, mais difíceis de desin-tegrar do que um átomo).

Para caracterizar a participação e a importância de considerar cada ator social, Carlos Matus utilizava a analogia da mesa de jogo, na qual cada ator tem suas cartas a jogar (poderes e exercício de cida-dania): uns podem blefar, outros passar cartas por debaixo da mesa, outros ainda jogar o jogo do soma zero, ou seja, do ganha-perde.

Para que o jogo jogado na elaboração do PME seja o jogo do ga-nha-ganha, é preciso superar as cegueiras da participação. Talvez este seja o maior desafio da elaboração do PME, assim como das ações do Plantar: mobilizar a comunidade para a participação, com visão sis-têmica, de totalidade, do projeto de educação no município. Por falta de compreensão do significado da participação, por descrença ou por inércia histórica, muitos educadores ainda a consideram mero discur-so retórico ou oportunidade de afirmação de interesses corporativos. A participação requer capacidade de colocar-se no lugar do outro e su-peração de resíduos inconscientes de preconceitos. A participação não é apenas um bonito desejo baseado no princípio da democratização das decisões, mas uma necessidade essencial para que o plano repre-sente as aspirações da totalidade da sociedade e gere compromisso de todos na sua implementação.

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Para isso, é essencial que, na fase inicial e ao longo de todo o proces-so de elaboração do plano, sejam dedicados espaços de divulgação voltados para a sensibilização dos munícipes para a participação e realizados momen-tos de formação sobre o significado do plano, seus princípios orientadores e sua abrangência. Na verdade, todo o processo de elaboração do plano deve constituir-se em rico processo de formação e exercício de cidadania.

Como princípios orientadores, destaco:

Visão sistêmica – • o PME deve representar a visão do projeto educacional do município no seu todo, articulando as partes em vista dos fins da educação. Assim, duas dimensões se des-tacam: as ações de responsabilidade direta do município (o atendimento às diferentes etapas e modalidades de ensino da rede municipal e da educação infantil da rede privada, os pro-cessos de gestão e o financiamento); e as ações no município, de responsabilidade do Estado e da União (objetivos e metas municipais que demandam ações de articulação com o Estado e a União, em regime de colaboração). De certa forma, o plano estabelece a negociação de responsabilidades para o atendi-mento de todas as demandas educacionais do município.

Governabilidade• – os limites e possibilidades da ação, a ca-pacidade de gestão e controle do governo sobre as ações pla-nejadas. É essencial que o planejado seja realista e exequível, embora forçando os limites do possível. Metas irrealizáveis se tornam pesadelos, desencantando o sonhar bons sonhos.

Flexibilidade• – possibilitar alternativas para enfrentar as incertezas e corrigir rumos diante das surpresas da realidade. O plano precisa considerar as circunstâncias da realidade, ser flexível para acompa-nhar os movimentos da realidade sob pena de perder seu objetivo em curto espaço de tempo. O caminho apresenta obstáculos, uns podem ser removidos, outros precisam ser contornados.

Sistema e Plano estruturam a visão sistêmica do todo da educação no município. O PME define para cada década os rumos a seguir e o Plan-tar estabelece as estratégias dos passos a dar pelos governos. SME, PME e Plantar concretizam a nova arquitetura do Município que Educa, na cami-nhada dos munícipes rumo à utopia da cidadania plena para todos.

GOVERnABILIDADE DEMOCRÁtICAnO MUnICÍPIO QUE EDUCAJosé Eustáquio Romão44

Introdução

A visão burguesa eurocêntrica e norte-americana de governa-bilidade tem suas origens em Platão, para quem a Política era a arte de governar por aqueles que têm mais competência ou expertise na condução dos seres humanos com seu consentimento. Dizia que os passageiros de um navio submetem-se totalmente à competência do comandante, assim como os doentes aceitam, sem maiores questio-namentos, a maestria dos médicos e os soldados confiam plenamente, salvo raras exceções, no comando do general. Em suma, inspirada na antiga Grécia, os colonizadores desenvolveram uma concepção indivi-dualista de governabilidade.

No entanto, esta concepção foi contestada no próprio Ociden-te, a partir de 1215, quando a nobreza inglesa submeteu o rei João Sem Terra45 aos princípios da Carta Magna, que criou a governa-bilidade compartilhada (pela elite, é claro). Estávamos no limiar da Modernidade que criou o direito burguês e sua objetivação, o Estado liberal burguês.

44 Graduado em História, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1970); Doutorado em História Social (1978) e em Educação (1996) pela Universidade de São Paulo. Atualmen-te, é o Diretor do Programa de Pós-Graduação em Educação (Doutorado e Mestrado) e professor na Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, onde coordena o Grupo de Pesquisa “Culturas e Educação”. É autor de vários livros, dentre os quais se destacam: Poder local e educação (1992), Avaliação dialógica (1998); Dialética da dife-rença (2000); Pedagogia dialógica (2002).

45 Apelido revelador de um soberano que não tinha a principal base de legitimação da autoridade no medievo europeu, que era a terra.

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Em todas as sociedades pré-burguesas, os seres humanos eram divididos, por natureza, em, no mínimo, duas categorias: os que são capazes de atos de vontade e os que não o são; os que nascem para ser livres e autônomos (capazes de autodeterminação) e os que, não tendo as faculdades para as escolhas, nem para a determinação de seus próprios destinos, são propriedade dos primeiros, são bens se-moventes, como diziam as normas do direito pré-burguês brasileiro, por exemplo, em relação aos escravos. O direito burguês introduziu um espetacular avanço, na linha do processo civilizatório e de hu-manização, na medida em que considerou todos os seres humanos como competentes para a prática dos chamados atos de vontade e, portanto, como capazes de escolher e de serem escolhidos para o exercício da soberania.

Entretanto, a outra face da modernidade foi a colonialidade46, ou seja, a submissão de povos de outros continentes não somente às pautas da empresa colonial europeia, mas, também, aos cânones da maneira europeia de pensar, ou seja, ao eurocentrismo. Em suma, não somente a infraestrutura foi subalternizada, como também, a su-perestrutura política e simbólica. E esta última subalternização é tão poderosa que, mesmo se afastando a dominação colonial econômica e política, a simbólica é tão poderosa que se estende por séculos e séculos pós-coloniais, dificultando a busca de saídas econômicas e políticas próprias.

Assim, numa perspectiva libertadora, ao tratar da governabilida-de no município que educa, não se pode esquecer este passado co-lonial, pois a educação terá papel fundamental na ultrapassagem do eurocentrismo e da colonialidade.

O município enquanto instância educadora

A partir dos referenciais de Paulo Freire, um município pode ser considerado educador, em duas dimensões:

46 Conceito desenvolvido pelos pensadores latino-americanos, especialmente por Aníbal Quijano (2005), por volta de 1992 e por Walter Mignolo (2003). Ele foi denominado por Enrique Dussel como transmodernidade (2002).

1) Dimensão mediadora (curricular)

Neste caso, o município passa a ser encarado, com todos os seus contextos, como tema gerador da mediação pedagógica. Para melhor se compreender esta dimensão, é necessário retornar ao próprio Paulo Freire: “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão mediatiza-dos pelo mundo” (FREIRE, 1978, p. 79). Em outras palavras, não é a escola, nem o currículo, nem muito menos o educador, a mediação; mas é a própria realidade, o próprio mundo concreto que oferece as condições para que os educandos sejam “mediatizados”. E a mediação – “mediatização” como a chama Paulo Freire – é realizada pelo pró-prio educando, que se autoeduca, coletivamente, “em comunhão”, sig-nificando, com isso, a superação de seu conhecimento imediato pelo mediato. Portanto, não é mediação no sentido de intermediação, de ligação, de ponte entre duas realidades, mas o próprio movimento de superação, no sentido dialético do termo. Com estas considerações, não faz sentido, numa perspectiva freiriana, falar-se de “didática” en-quanto “arte de ensinar”, já que ninguém ensina a ninguém.

Em síntese, o Município que Educa, na sua dimensão curricular, significa tomá-lo em seus elementos estruturais, suas comunidades, seus bairros, seus monumentos, sua história, seus habitantes e as suas singularidades e transformá-los em palavras, temas e contextos gera-dores, no sentido freiriano da expressão.

“Palavra geradora”, para Paulo Freire, era todo e qualquer termo de uma língua nativa dotado de riqueza fonêmica e significativa im-portância simbólica para os(as) alfabetizandos(as). “Temas geradores” são verdadeiras “unidades epocais”, como as chamava Paulo Freire, isto é, problemáticas que marcam determinadas épocas e que atravessam os sistemas simbólicos de todas as classes sociais – é bem verdade que cada uma na sua própria perspectiva. O fenômeno da globalização ou da mundialização poderia ser um exemplo deste último. Certamente os contextos geradores participam da natureza das conjunturas impac-tantes dos diversos grupos que compõem a sociedade e que, por isso mesmo, constituem verdadeiros processos da “média duração”, como a chamou Fernand Braudel (1972). Poder-se-ia considerar ainda os “uni-versos geradores”, de longa duração, e que constituiriam verdadeiros eixos

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estruturantes das formações sociais. Como exemplo, o sistema mundial moderno, no sentido que lhe conferiu Immanuel Wallerstein (1974) poderia constituir um exemplo ilustrativo de “universo gerador”. Um bom exemplo de projeto de município que educa nesta dimensão foi o de Curitiba que, na década de 1990, desenvolveu um projeto em que a cidade e seus elementos constitutivos passaram a ser tema de livros para os alunos da Educação Básica. Vários textos e roteiros de estudo foram elaborados coletivamente pelos educadores daquela cidade do sul do país, juntamente com os consultores especialistas, e estes textos foram transformados em dez livros didáticos (três para a 1ª série do Ensino Fundamental, três para a 2ª, dois para a 3ª e dois para a 4ª), com o título de Lições curitibanas.

2) Dimensão educadora

Nesta dimensão, o município, com toda a sua gente, com toda a sua infraestrutura e com todos os seus equipamentos, transforma-se em espaço e em instrumento de educação.

O processo educacional não se reduz ao ambiente escolar, mas espalha-se por todo o território municipal e cada cidadão se transfor-ma em um educador – aliás, todos já o são, mas, a partir da assunção dessa dimensão, há uma intenção deliberada, consciente e organizada de assunção do papel de educador. Todos os recursos são mobilizados em função de um plano, programa ou projeto educacional.

Alguns exemplos podem ser dados quando esta dimensão foi as-sumida pelo município:

Biblioteca ambulante – Um veículo, adrede preparado para acondicionar determinado acervo, percorre as ruas e as estradas de um município, parando em determinados bairros ou comunidades para estimular a leitura por meio de empréstimos de obras de ficção ou de não ficção, de acordo com os interesses das pessoas que podem ser atraídas por um sistema de som.

Os livros podem ser expostos em praças e, ao mesmo tempo em que os adultos leem, as crianças podem ouvir estórias lidas por uma mãe, um pai, uma avó, um avô etc.

Bairro ou rua de lazer – Com a equipe de Educação Física e

Esportes, pode-se desenvolver uma série de atividades educacionais em uma rua, em um bairro e pode-se dar à iniciativa uma certa periodi-cidade, sendo que as edições subsequentes podem ser coordenadas e desenvolvidas pela própria comunidade, desde que se a dote dos equi-pamentos necessários.

Ônibus educativo – Com uma turma inteira dentro de um meio de transporte público coletivo, pode-se desenvolver com as crianças a educação para a cidadania no trânsito, discutindo, no campo real das ruas, as questões de segurança, direção preventiva etc.

Sumaríssimas considerações finais

O conceito de “governabilidade” quer dizer, segundo o Dicioná-rio Houaiss, a “qualidade do que é governável”, a “conjuntura de esta-bilidade política, social e financeira, em que o poder executivo pode exercer plenamente as suas atribuições”.

Ora, neste sentido, é evidente que a governabilidade deixa de existir quando a civilização cede lugar à barbárie. A primeira é produto do diálogo entre os seres humanos, a segunda é resultante da violência física ou simbólica, que emerge nas sociedades todas as vezes que al-guma pessoa ou classe social quer impor sua maneira de apreender o mundo a todos os demais.

A resistência a esta pretensão hegemônica só é eficaz pela educação democrática, libertadora, que propicia a autonomia de todos, pois tanto os pretendentes à hegemonia quanto as vítimas de sua dominação só se libertam por meio de um processo educacional emancipador. E um dos projetos pedagógicos mais consequentes e oportunos que surgiram nas últimas décadas foi a concepção freiriana, conforme comprovam as experiências em várias partes do mundo, concepção esta que também fundamenta as práticas e os projetos de um Município que Educa.

Referências

BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Tradução Carlos Bra-ga e Inácia Canelas. Lisboa: Presença, 1972.

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CURITIBA. Prefeitura Municipal. Lições curitibanas. Curitiba: PMC/SME, 1994-1995. 10 v.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Tradução Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

______. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, sa-beres subalternos e pensamento liminar. Tradução Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e Améri-ca Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Tradução Júlio César Casarin Barroso Silva. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – Clacso, 2005. p. 227-278.

WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System: Capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. New York: Academic Press, 1974.

UBUntU: VIVER, COnVIVER E APREnDER nO MUnICÍPIO

Carlos Rodrigues Brandão47

Na África existe um conceito conhecido como ubuntu – o sentimento profundo de que somos humanos somente por intermédio da humanidade dos outros; se vamos realizar qualquer coisa neste mundo, ela será devida em igual medida ao trabalho e às realizações dos outros. (Nelson Mandela)48

Vivemos uma vida plural, coletiva e solidária. Aprendemos ao longo de muitos milhares de anos a nos fazermos seres humanos, por-que bem ou mal aprendemos a conviver. Aprendemos uns com os ou-tros a vivermos juntos, a partilhar entre nós uma vida que, sem esses exercícios de partilha em comum, seria impossível. Em tempos como os de hoje em dia, em que muitas coisas parecem apontar para os dese-jos e as promessas do individualismo, do particular, do privê, devemos reaprender que a felicidade humana é a coragem cotidiana de sair de si-mesmo em direção ao outro.

A proposta do Município que Educa traz como elemento-chave o reaprendizado de que somos todas e todos nós não somente morado-res de um lugar, mas cocriadores do mundo de saberes, valores, prin-cípios e direitos em que vivemos. E também autores-atores do mundo de interações (com a natureza, entre pessoas e entre grupos humanos) do mundo que habitamos.

Querendo ou não (mas é melhor estar querendo), no conviver

47 Carioca, formado em Psicologia e mestre e doutor em Antropologia e em Ciências Sociais. Educador popular desde um dezembro de 1963. Professor aposentado da Unicamp, mas ainda na ativa, coordenando equipe de pesquisadoras de comunidades tradicionais do Rio São Francisco. Integrante do quadro de assessores do Instituto Paulo Freire. Autor de livros de Antropologia, com foco em cultura popular e em mundo rural, de educação e de poesia.

48 STENGEL, Richard. Os caminhos de Mandela – lições de vida, amor e coragem. São Paulo: Globo, 2010.

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com outros e com o mundo estamos de uma maneira ou de outra nos ensinando e aprendendo: uma única vez, de vez em quando, quase sempre, todos os dias, sempre, ou seja lá como e quando for. Toda a vida é um contínuo, perene e multivariado aprender-ensinar-aprender. Ou, como queria Paulo Freire, um ensinar aprendendo em um apren-der ensinando sem fim. Porque, entre os humanos, a aventura do saber está sempre podendo recomeçar.

Daí a ideia fecunda de que ninguém ensina ninguém, porque o aprender é sempre uma aventura interior e pessoal. Mas também nin-guém se educa sozinho, pois o que eu aprendo ao ler ou ao ouvir pro-vém sempre de saberes e de sentidos vindos de outras pessoas. Provém de conjuntos de informações, conhecimentos, saberes, valores, ideias e imaginários; de símbolos, sentidos de vida, significados de mundo, memórias de passado, projetos de presente e de futuro.

Temos o costume de imaginar que apenas pessoas treinadas para tan-to são capazes de ensinar e de educar. Entretanto, ao revisitarmos a nossa própria vida passada e presente, damo-nos conta de que não é sempre e nem é bem assim, mesmo quando parece ser. A começar pelos nossos pais e por outras pessoas mais velhas da família, com quem aprendemos boa parte do que sabemos. E daí ao círculo mais amplo dos vizinhos; dele aos pequenos grupos sociais em que vivemos a nossa vida-de-todos-os-dias – desde um pequeno time de futebol a uma igreja, a uma equipe de tra-balho, a uma banda municipal de música, a um círculo de leitura, a uma associação de moradores do bairro – estamos sempre envolvidos em e par-ticipando de pequenas e médias comunidades de vida e de destino. Todas elas são lugares-de-conviver onde a vida de todos os dias ganha, além de um sentido, um tom de afeto, um valor de sociabilidade.

Pensamos que criar sentido é obra de filósofo, criar sentimento é obra de ator e criar beleza é obra de artista. Em algumas dimensões, sim. Em várias outras, não. Viver em uma cidade e entre círculos de entre nós – os da afiliação, os da profissão, os da vocação, os do desejo – são formas múltiplas de viver coletiva e solidariamente a experiência de criar a vida. E qual outra obra se compara a esta? E em cada uma das dimensões e contextos que outros escritos deste mesmo livro esta-rão tratando, ao conviver a experiência do criar-com-o-outro, estamos mutuamente nos ensinando e aprendendo.

Quando leio para uma turma de alunos – que prefiro chamar de comunidade aprendente – um texto de um cientista ou um poema, lembro a eles que um teorema de matemática, um capítulo de livro de filosofia, um poema, uma epopeia, depois de prontos e escritos, e pos-tos em um livro ou, em termos mais atuais, em um suporte eletrônico, passam de cultura viva de seu momento original de criação a cultura morta (prefiro: adormecida). Quando, de novo, alguém toma aquilo entre as mãos e lê, a teoria ou o poema voltam à vida. Retornam ao círculo vivo do saber. Retomam seu estado original de cultura viva. Quem lê um poema faz renascer um poeta. Quem canta uma música acorda um músico. Quem filosofa enquanto caminha por um parque mistura aos sons de grilos e de pássaros toda a sabedoria da humani-dade. Assim, um município vive de seus seres que – sabendo ou não – reacendem em qualquer lugar, a qualquer momento: um saber com sentido, ou um sentido com sabor.

No dia a dia de um município nos vemos às voltas com peque-nas e grandes tessituras e trocas de afetos e de saberes, momentos de entre nós ou de unidades sociais, de comunidades aprendentes. Nessas unidades de associação e partilha da vida, além do motivo principal do grupo – jogar futebol, reunir-se para viver uma experiência reli-giosa, trabalhar em prol da melhoria da qualidade de vida no bairro, lutar pela natureza de nosso lugar-de-vida –, de um modo ou de outro, as pessoas estão também inter-trocando saberes, mesmo que este não pareça ser o objetivo mais essencial do estar ali Por diferentes que pos-sam ser em seus objetivos e nas suas áreas de atuação, em todas elas há uma vocação a serem também educativas. Tanto é assim que todos que participam dessas unidades sociais de participação e serviço um dia reconhecem: “o tanto que eu aprendi ali”.

Assim, ao lado das instituições de educação formal, convivemos todos os dias e ao longo de toda a vida com várias comunidades de trabalho, de serviço, de participação e de mútuo ensino-aprendizagem. Dentro e fora da escola, estamos sempre envolvidos com diferentes ti-pos de comunidades aprendentes. Quando quero lembrar o que aprendi ao longo de minha vida, preciso colocar, ao lado das escolas onde estu-dei, as rodas de parentes; as minhas diferentes e inesquecíveis turmas (saudade da Turma da Rua Cedro!); a patrulha de minha tropa de

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escoteiros (uma das melhores escolas de vida que conheci); as equi-pes de excursões e, mais tarde, de escalada de montanhas (outra escola inesquecível de vida); as equipes de militância entre a Juven-tude Universitária Católica e as de trabalhos de Cultura Popular dos anos 60 (a década que não acabou); as equipes de estudos e de pesquisas de quando estudante, de quando professor (coordeno uma delas até hoje); as outras e várias unidades de ação social junto a movimentos populares, dedicadas quase sempre à formação de pessoas... muitos anos antes da invenção da formação de formado-res, e assim por diante. E sem esquecer as mesas dos bares da vida, em lembrança de Milton Nascimento. De um modo ou de outro, estamos sempre trabalhando em, convivendo com ou participando de unidades sociais de vida cotidiana onde pessoas aprendem ensi-nando e ensinam aprendendo.

Um princípio que a educação de hoje tardiamente reconhece é o fundamento de que, em qualquer grupo humano, todas as pessoas são sempre fontes originais de saber. Cada uma delas trabalha, convive e/ou participa com o que traz do repertório único e irrepetível de seus saberes, suas sensibilidades e seus sentidos de vida, originados de suas experiências, também únicas, pessoais e irrepetíveis.

Podemos ir além. O município em que vivemos pode ser também considerado como uma ampla sociedade educadora, como cenário de múltiplas e interativas comunidades aprendentes. E um Município que Educa, entre o saber e o sabor, se atribui um sentido a mais ao ser ci-dadão: o de alguém que, entre outros, aprende todos os dias e se forma e transforma com e através dos múltiplos aprendizados que vive. Ele é também aquele que por morar, viver e aprender a ser alguém dali, se reconhece como um corresponsável pelo lugar de onde é: a sua e nossa casa, para além do portão da minha casa.

Claro, na municipalidade existem vários locais onde esta voca-ção educativa nos aparece de uma maneira mais evidente, mais visível. Uma biblioteca pública, um museu, um parque destinado a pesquisas e a experiências de educação ambiental, um teatro, uma grande concha acústica. Mas não são apenas estes equipamentos sociais que trazem uma dimensão cultural e educativa a uma cidade ou a um município. Não são apenas os grandes acontecimentos públicos ou patrocinados

por empresas, em fins de semana ou em semanas especiais, que dão o tom cultural e educativo à vida de um lugar. Uma das formas mais ativas neste campo das relações solidariamente educativas vividas en-tre as pessoas está nos pequenos grupos, nas cooperativas, nas orga-nizações não governamentais e em outras associações civis dedicadas a algum tipo de estudo, trabalho social ou qualquer outra forma de participação solidária.

Se quisermos ser coerentes com o que foi escrito linhas acima, devemos levar em conta que o educativo da vida de um município está também no que nós – as mulheres e os homens da vida de todos os dias – aprendemos a criar e a fazer entre nós e por nossa conta.

Há um ponto em tudo isto a que precisamos estar atentos. Te-mos muitas vezes uma tendência a pedagogizar demais a educação e tudo o que ela envolve. O aprender nos aparece como um duro e difícil trabalho e o ensinar como uma penosa vocação. Podemos pensar a experiência do aprender-e-ensinar em diferentes situações de diálogos entre nós, como algo bem diverso. Podemos partir de uma ideia que nos vem dos gregos e que se perdeu pelo caminho – apesar de estar sempre presente entre as(os) educadoras(es) mais clarividentes de to-das as épocas – e que retorna agora, em tempos em que descobrimos que estamos abrindo as portas de uma era do conhecimento. De uma era humana que os mais tecnocratas preferem chamar de era da infor-mação, mas que nós, herdeiros de Paulo Freire, preferimos denominar era da consciência.

Não aprendemos a conhecer para nos tornarmos instrumentos servis de um mundo maquinal. Aprendemos a saber e compreender para nos tornarmos sujeitos criadores de nossas próprias vidas, des-tinos e dos mundos sociais onde vivemos interativa e solidariamente. Aprendemos para sabermos semear entre nós o que há em nós e entre nós de mais humano: a verdade (de Sócrates a Gandhi), o bem e a beleza. Aprendemos para fazermos de nós mesmos a obra de arte do ser de uma pessoa. Eis o momento em que partimos em busca das mais diferentes experiências em que aprender torna-se um centro perene de nossas próprias vidas. Para além da informação que nos capacita a fa-zer; para além do conhecimento que nos torna especialistas em algum ramo do saber-fazer humano, está o aprendizado do saber, que nos

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aproxima, poética e poieticamente (em termos de Humberto Matura-na), do próprio destino de nossa aprendizagem em um mundo educa-dor: a experiência da sabedoria. Por que não? Porque sábios, poetas e pensadores dos mistérios da vida deverão ser sempre os outros que não nós? Quem? Em que momento decretou que assim deveria ser?

Aprendemos, enfim, para ativa e transformadoramente compre-endermos que a vida – que a ideologia do mercado quer tornar uma arena entre competentes-competitivos – pode e deve ser, em outra direção, a realização crescente e perene do Ubuntu com que Nelson Mandela nos convida a imaginar um outro mundo possível.

ESCOLA, COMUnIDADE E FAMÍLIA nO MUnICÍPIO QUE EDUCA

Ângela Antunes 49

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, re-ceitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história. [...] A escola deve ser também um centro irradiador da cultura popular, à disposição da comunidade [...] um centro de debate de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. A escola não é só um espaço físico. É um clima de trabalho, uma postura, um modo de ser. (FREIRE, 1991, p. 16).

O Município que Educa “chama o povo à escola” para se assumir como “sujeito de sua própria história”. Nele, a escola torna-se um “cen-tro de debate de ideias, reflexões e soluções”; um espaço de construção coletiva do saber e de organização popular para construir sociedades mais justas e sustentáveis.

Busca-se o aprendizado com sentido e o desejo permanente de apren-der. Querer aprender e aprender com sentido exige conexão com a vida dos alunos, dos familiares, da comunidade. Para isso, a escola,

49 É doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração Es-colar pela mesma Universidade (USP). Possui graduação em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e em Letras pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Foi professora da escola pública das redes do Município e do Estado de São Pau-lo. Atualmente é diretora de Gestão do Conhecimento do Instituto Paulo Freire (IPF), atuando principalmente nos seguintes temas: educação, escola cidadã, gestão democrá-tica, exercícios de cidadania desde a infância, pedagogia da sustentabilidade, carta da terra. Participou como colaboradora dos livros Paulo Freire: uma biobibliografia Cortez, (1996), Educação de Jovens e Adultos: a experiência do MOVA-SP (MEC/IPF, 1996) e Autonomia da Escola - Princípios e Propostas (Cortez/IPF, 1997). É autora dos livros: ANTUNES, A. (Org.) Conselhos de Escola: formação para e pela participação, 2005; ANTUNES, A. (Org.) Orçamento Participativo Criança - Exercendo a cidada-nia desde a infância. São Paulo: IPF, 2004; ANTUNES, A. ACEITA UM CONSELHO? Como organizar os colegiados escolares. São Paulo: Cortez, 2002. v. 8. 224 p.

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antes protagonista da fala, sempre definindo quando e o quê dizer a esses segmentos, revê seu papel e reorienta sua prática. Os escassos espaços de escuta e de diálogo, os encontros pontuais (seja nas reu-niões de pais a cada dois meses, totalizando quatro encontros no ano, somando, no máximo, em geral, 12 horas de convivência, seja nas reuniões do Conselho de Escola, que também são poucas e insu-ficientes), vão cedendo lugar à interação, ao diálogo, à convivência, à escuta, a uma rotina de encontros e conhecimento mútuo mais intenso e processual. A participação de pais, familiares e comunidade vai para além do fazer parte. Eles tomam parte nas decisões. Sua presença na escola não se dá apenas para opinar sobre questões administrativas ou financeiras, ou para participar de eventos, mutirões de limpeza e de reforma. A escola deixa de ser lecionadora, informacional e transmis-sora de conteúdos, e assume o papel de articuladora e mediadora da construção de um conhecimento que permite aos educandos e à po-pulação local conhecerem o seu estar sendo no mundo, a realidade onde vivem, e construírem, juntos, de forma articulada, iniciativas que vi-sam à transformação social. As situações de aprendizagem vividas nas salas de aula pautam-se na realidade local, em seus sujeitos, em suas identidades, em seus contextos, buscando uma educação de qualidade sociocultural e socioambiental.

No Brasil, as estatísticas educacionais revelam que o acesso ao Ensino Fundamental está praticamente universalizado. Mas não basta garantir o acesso. O educando precisa permanecer na escola. Perma-necer e aprender. Para garantir o direito de aprender, e aprender com sentido e com significado, uma nova interação entre escola, família e comunidade se faz necessária, assim como uma nova gestão da escola é imprescindível.

Pesquisas e estudos sobre gestão democrática vêm comprovan-do que a participação das famílias e da comunidade na escola me-lhoram a qualidade do ensino. Quando professores, coordenadores pedagógicos, direção e equipe escolar aprofundam seu conhecimento sobre as famílias dos alunos, sobre os próprios alunos e sobre o con-texto em que eles estão inseridos, há uma expressiva melhora na comu-nicação, na relação e na integração entre esses diferentes segmentos e, também, melhor adequação didático-pedagógica no processo de

ensino-aprendizagem. Os professores encontram caminhos mais bem sucedidos para o aprendizado das crianças e para o envolvimento dos familiares no acompanhamento do estudo dos filhos. E este não é um movimento de mão única. Os pais, familiares e comunidade, com essa interação, também aprendem muito com a escola. Se a escola escuta mais, se os professores abrem espaços de diálogo com os familiares e com a comunidade, um universo de possibilidades se abre. Muitas situações vividas e, na maioria das vezes, invisibilizadas, e que, efetiva-mente, interferem no aprendizado das crianças, têm chances de sair do anonimato e do silêncio e passam a ser consideradas no currículo da escola, fazendo uma enorme diferença no trabalho pedagógico. Desta-camos, por exemplo, o trabalho de uma escola relacionado à questão do preconceito racial. Uma das professoras de uma escola de educação infantil, na sua reunião bimestral com os pais, organizada dialógica e participativamente, de forma a acolher os pais e a deixá-los à vontade, ouviu de uma das mães que sua filha estava resistindo a ir à escola porque estava cansada de ser chamada de “beirada de pizza”, “pixe”, “macaca”. A professora pediu para que explicasse um pouco melhor. A mãe, meio sem jeito, contou que pegou sua filha passando pomada, do irmãozinho mais novo, nas pernas e nos braços e, diante da cena, ques-tionou a criança: “Por que está passando pomada no corpo todo?” Para sua surpresa, ouviu a explicação da filha: “Porque só a palma da minha mão é branca. E eu quero ficar branca no corpo todo. Quando eu vou ficar branca, mamãe? Por que só a palma da minha mão é branca? As pessoas na escola me chamam de macaca. Eu não quero ser igual a macaco.” Disse isso e começou a chorar.

Diante do relato da mãe, houve reação de outras pessoas que es-tavam na reunião, dizendo que seus filhos já haviam reclamado de serem maltratados por coleguinhas também por causa do preconceito. A pro-fessora tomou a iniciativa de conversar com outras professoras e com a diretora, de forma a criar um espaço de escuta junto às famílias para identificar situações de discriminação racial na escola. Esta questão passou a ser objeto de estudos e reflexões dos professores e destes com os pais. Foram organizados debates com a comunidade e com os fa-miliares. A escola, os professores e os próprios familiares passaram a prestar atenção nas brincadeiras e nas falas das crianças, não ficando indiferente a essas situações, e orientando-as, de forma a não admitir e

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muito menos incentivar práticas discriminatórias. A partir desse episódio, outras situações de discriminação (contra crianças obesas, por exem-plo) passaram a ser objeto de atenção dos professores e interferiram no planejamento das atividades pedagógicas (contar histórias infantis com personagens negros, com pessoas com deficiência, com persona-gens obesos; ler poesias; estudar aspectos da cultura africana; trazer os pais e familiares para contarem histórias para as crianças ou apresenta-rem brincadeiras, canções e músicas da cultura africana); enfim, numa interação entre família e escola, o ambiente pedagógico tornou-se mais propício ao acolhimento e à aprendizagem das crianças. Houve um importante aprendizado para todos os segmentos escolares.

Mas essa prática ainda é insipiente em nosso País. A escola faz parte de um sistema ou rede de ensino, que está sob coordenação de um órgão governamental, uma Secretaria, um Departamento ou uma Coordenadoria de Educação, cuja atuação se dá sob a determinação de um conjunto de normas, leis, decretos etc. em âmbito municipal, esta-dual e nacional. Ela tem que dar conta dessas determinações. Tradicio-nalmente, da escola, espera-se que cumpra os dias letivos, que ensine os alunos, que avalie o desempenho deles, que registre seu histórico escolar, que faça reuniões de pais para que estes acompanhem o estudo dos filhos; enfim, da escola espera-se que cumpra o que está estabeleci-do em lei e previsto nas políticas educacionais. Ao preparar seu plane-jamento, historicamente, os estabelecimentos de ensino se referenciam nessas determinações e, no geral, ainda não têm dado a necessária im-portância ao que acontece fora e antes de a criança chegar ao espaço educacional. Esta prática – a de não dar importância ao que acontece fora e antes de a criança chegar ao espaço educacional – fundamenta-se, entre outras razões, numa concepção de educação, ainda hegemô-nica, que entende que o papel da escola é transmitir conteúdos, ou na compreensão de que a escola já está sobrecarregada de problemas, que ela não pode assumir um papel assistencialista, que as condições das crianças, às vezes, são tão adversas que pouco a educação pode fazer, pois se trata de intervenções mais amplas. Acontece também de a es-cola se abrir à comunidade e, ao se aproximar, ao conhecer os alunos e seus contextos, ela ficar chocada e se sentir impotente diante de tantas adversidades. Aumenta o sofrimento dos professores e estes se sen-tem frustrados, pois seus esforços são insuficientes frente aos desafios.

A escola, ela mesma já assoberbada de responsabilidades, vendo-se incapacitada de dar conta do básico que lhe é atribuído, esquiva-se de assumir mais responsabilidades, afirmando que, mesmo sensível aos problemas, não possui pernas para tantos afazeres.

É necessário chamar a atenção para o fato de que, se a escola pen-sa que, fechando as portas para esta realidade, ela realizará de forma satisfatória os objetivos que estão no seu projeto político-pedagógico – formar alunos críticos, participativos, democráticos, preparando-os para exercer plenamente a sua cidadania e garantir o direito de apren-der –, ela comete um grande equívoco. A realidade educacional bra-sileira tem mostrado isso. O povo chegou à escola. Mas o direito de aprender na escola ainda é um grande desafio em nosso País.

Na sala de aula, a relação professor-aluno não se restringe à relação de um educador com um grupo de crianças. Junto com a criança vem o seu contexto. Cada educando reflete sua situação fa-miliar, com seus valores, suas histórias, seus costumes, suas práticas sociais. O professor pode, por exemplo, planejar um debate na classe. Ao realizá-lo, de repente, pode se deparar com a incapacidade de a grande maioria dos alunos não conseguir respeitar os tempos das falas e das escutas. Todos se manifestam ao mesmo tempo e, o que é pior, diante das divergências, partem para agressões verbais e, às vezes, até mesmo físicas. O professor fica desanimado e desiste de promover atividades desse tipo.

Ele planeja o debate e não se pergunta se faz parte do cotidiano dos alunos esse tipo de prática. Se seus alunos participam de atividades semelhantes. Se estão familiarizados, nos seus contextos, com ações desse tipo. Se aprenderam a escutar e a falar. A estratégia pedagógica desconsidera se já houve um aprendizado para este tipo de atividade. Ela parte do pressuposto de que o aluno tem que trazer isso de casa e não percebe que, na verdade, esses saberes, o de escutar e o de falar, muitas vezes, precisam ser construídos, pois as crianças não necessa-riamente tiveram a oportunidade de vivenciá-los em seus grupos so-ciais. Ele parte do pressuposto que o aluno traz esse aprendizado do seu convívio familiar e social e nem sempre isso é verdadeiro. Este é apenas um dos muitos exemplos de os contextos sociais interagindo na classe. O professor não está lidando só com o aluno. De forma explícita

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ou indireta, esses variados contextos se fazem presentes e interferem no processo de ensino-aprendizagem. O professor pode planejar seu trabalho pedagógico, contando com o apoio dos pais e familiares.

Para conseguir bons resultados em sua sala de aula, ele pressu-põe o envolvimento da família. Fazem parte das suas estratégias para alcançar o aprendizado do educando, as lições de casa, os trabalhos extraescolares, as pesquisas... Para alcançar os objetivos a que se pro-põe, ele necessariamente precisa da participação familiar. E quando não vem, e quando a família não corresponde às suas expectativas, ele vê seu esforço se esvair e os resultados esperados não aparecerem, e fica desanimado. Ele planeja tendo em mente uma situação que não é a real. Ele planeja para um aluno ideal e, mais uma vez, o desânimo se instala. O aluno pode fazer parte de uma família cujos pais trabalham fora e não têm condições de apoiá-lo na realização das tarefas escola-res; o aluno pode estar inserido em contextos em que não há condi-ções para pesquisas em enciclopédias, dicionários ou Internet; o aluno pode ser filho de pais analfabetos que, mesmo desejando ajudar mais profundamente os estudos do filho, não tenham condições de fazê-lo; o aluno pode conviver com familiares que não estimulam os estudos e não têm condições de dar apoio pedagógico. O professor espera que as famílias cumpram seu papel de também educar e espera que os pais apoiem os estudos dos filhos. Mas se esquece de confirmar as condi-ções para isso. Tomam-nas como algo dado. E, na maioria das vezes, a realidade é bem diferente da esperada.

Dessa falta de conhecimento mútuo e de diálogo, tem surgido conflitos, acusações e cobranças. O que fazer, então? Empobrecer o processo de aprendizagem já que a realidade é limitadora? Antes de fazer cobranças aos pais e ou familiares ou prescrever uma lista de pro-vidências para o bom desempenho do filho, a escola precisa conhecer a vida dos educandos e suas respectivas famílias e construir, com elas e a partir da realidade delas, caminhos possíveis. O planejamento da ação pedagógica da escola como um todo e de cada professor não pode continuar sendo construído ignorando os contextos.

Experiências inovadoras têm mostrado que, se é verdade que a escola, ao se abrir para o conhecimento do seu entorno, dos seus alunos, ela se aproxima de problemas, é mais verdade ainda que ela

tem mais chances de contribuir com a busca de solução e da inclusão social. No movimento de articulação, a escola pode contribuir para encontrar caminhos para ampliar os tempos e os espaços de formação dos educandos e também da própria comunidade e dos familiares. Ela pode identificar e convocar novos atores e sujeitos sociais e políticos, articulando políticas educacionais com políticas setoriais capazes de apoiar as famílias dos alunos para que elas possam exercer suas fun-ções e, juntos, oferecer mais oportunidades às crianças, principalmen-te, das famílias mais empobrecidas. Segundo Vitor Paro

[...] a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer aprender precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a escolar, buscando formas de conseguir a adesão da família para sua tarefa de desenvolver nos educandos atitudes positivas e duradouras com relação ao aprender e ao estudar. Grande parte do trabalho do professor é facilitado quando o estudante já vem para a escola predisposto para o estudo e quando, em casa, ele dispõe da companhia de quem, convencido da importância da escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para aprender. É aqui que entra o tema da participação da população na escola, pois dificilmente será conseguida alguma mudança se não se partir de uma postura positiva da insti-tuição com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos estudantes, oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente humana, em suma, de participação na vida da escola. Levar o aluno a querer aprender implica um acordo tanto com educandos, fazendo-os sujeitos, quan-to com seus pais, trazendo-os para o convívio da escola, mostrando-lhes quão importante é sua participação e fazendo uma escola pública de acordo com seus interesses de cidadãos. (PARO, 2000, p. 66-67).

A escola reconhece, valoriza e demanda a participação da famí-lia ou dos responsáveis na educação dos filhos, mas, tradicionalmen-te, não tem sido capaz de dar respostas acertadas para a construção dessa interação. Consolida expectativas e desencadeia processos sem fazer o que Paulo Freire (1921-1997) chamava de “Leitura do Mun-do”. As políticas educacionais atuais têm acentuado a preocupação com a interação escola-família. E uma das ações fundamentais que vêm ganhando relevância está relacionada com o conhecimento do educando, da suas características, da sua identidade, da sua situação familiar e do seu respectivo contexto social. Inúmeras iniciativas vêm sendo implementadas nessa direção e apresentando resultados posi-tivos. A Leitura do Mundo, ou seja, o conhecimento do contexto do educando, das suas condições de vida, das suas expectativas, pode contribuir, de forma decisiva, para a (re)definição do currículo, do

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projeto político-pedagógico e das práticas educacionais, aproximando mais a escola das famílias e ampliando sua rede de relações e parce-rias, aumentando o leque de possibilidades na busca de soluções para os problemas com os quais depara.

No contexto em que vivemos, vem se intensificando os processos de territorialização das políticas sociais, articulando-os a partir dos es-paços escolares, por meio do diálogo intragovernamental, com comuni-dades locais, fortalecendo a prática pedagógica que afirma a educação como direito. “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, já nos ensinava Paulo Freire. A esco-la vem sendo chamada a assumir o papel de articuladora dos diversos espaços do conhecimento que existem em cada localidade, em cada re-gião. A governabilidade social passou a depender, cada vez mais, da par-ticipação dos diversos sujeitos do fazer social: o Estado, a sociedade civil, a comunidade e o próprio público para o qual a ação pública é dirigida. Há um reconhecimento, cada vez maior, da incompletude e necessária complementaridade entre serviços e sujeitos sociais.

Na atualidade, vem sendo fortalecida uma arquitetura de gestão pú-blica fundamentada na lógica da cidadania, da participação, da democra-cia que promove ações integradoras em torno do cidadão e do local. Esse movimento vem ao encontro de uma melhor interação entre escola-famí-lia-comunidade. Aprendem professores. Aprendem pais, familiares e comunidade. Na escola, aprende-se a agir em rede, de forma colaborativa, cooperativa e complementar. Os alunos aprendem a conhecer e a compre-ender a realidade onde vivem e onde serão chamados a participar como cidadãos e como profissionais. Todos aprendem a promover articulações e a estabelecer uma convivência mais orgânica entre programas e serviços públicos estatais e não estatais, de iniciativa da comunidade e sociedade civil. Aprende-se a superar a visão tradicional dicotômica, onde, de um lado, fi-cavam as iniciativas individuais ou de pequenos grupos isolados e, de outro, as organizações, estatais ou privadas. Aprende-se a construir iniciativas co-laborativas no território, envolvendo a sociedade civil organizada, as ONGs, as associações comunitárias; todos mobilizados na construção de uma so-ciedade que gradualmente aprende a articular interesses diferenciados e complementares. A cidadania e o poder local saem fortalecidos. E o que é mais fundamental: aumentam consideravelmente as chances de o direito de aprender ser respeitado e garantido.

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POVO QUE EDUCA, MUnICÍPIO QUE EDUCA: nOVOS DESAFIOSMoacir Gadotti

O paradigma emergente hoje na educação está associado à infor-malidade. Aprende-se fora da escola, ou melhor, o planeta tornou-se uma escola. Aprendemos o tempo todo. Mas, como se aprende fora da escola? Do mesmo jeito que se aprende nela? O que se pode aprender fora da escola? O que a escola pode aprender da sociedade?

O foco atual das teorias da educação, buscando a qualidade, está na aprendizagem. Isso está ocorrendo por vários motivos. En-tre eles, destaco dois: de um lado, porque, durante décadas, tem-se insistido na necessidade de melhorar a qualidade, ora privilegiando a docência, ora acentuando a autonomia do aluno; de outro lado, não se tem clareza em relação ao que é qualidade da educação e, muito menos, como se aprende. Enquanto as práticas educativas continuam relativamente estáveis e até estagnadas, as teorias desta aprendizagem se multiplicam.

Os currículos monoculturais do passado, voltados para si mes-mos, etnocêntricos, desprezavam o que se passava fora da escola como o não formal como extraescolar, ao passo que os currículos interculturais de hoje reconhecem a informalidade como uma carac-terística fundamental da educação. O currículo intercultural e “in-tertranscultural” (PADILHA, 2004, 2007) engloba todas as ações e relações da escola; engloba o conhecimento científico, os saberes da humanidade, os saberes das comunidades, as artes e as ciências, a experiência imediata das pessoas, as suas vivências e convivências; inclui a formação permanente de todos os segmentos que compõem a escola, a conscientização, o conhecimento e a sensibilidade huma-na, o sentir e o pensar “sentipensante” (FALS BORDA, 2009); con-sidera a educação como um processo sempre dinâmico, interativo, complexo e criativo.

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Por outro lado, também existem escolas que estão mais preocu-padas com a segurança do que com a aprendizagem. É certo, vivemos tempos violentos, mas, a solução não está em colocar mais vigilantes, mais câmeras ocultas ou guardas armados nas nossas escolas. Não se supera o desafio da violência no entorno escolar e, muito menos, da qualidade da educação, com um Batalhão Escolar, como defendem al-guns políticos, e nem por meio da construção de escolas de segurança máxima, como querem outros. Em vez de policiais na escola, é preciso colocar o povo na escola. A escola tem um potencial de mobilização social que não foi ainda suficientemente utilizado por ela.

No momento em que discutimos, no Instituto Paulo Freire (IPF), o programa Município que Educa aproximando-o de um novo concei-to, o de “povo que educa” (Gadotti, 2010), entendendo-o como “povo soberano” (Tamarit, 1996), gostaria de acrescentar mais uma pequena reflexão, posicionado-me sobre o tema da educação não-formal, im-plicado nesse conceito. Ao mesmo tempo, gostaria de refletir sobre a necessidade de uma revisão conceitual no que diz respeito à relação entre escola (pública) e sociedade e, consequentemente, entre estado e sociedade civil, buscando complementar a reflexão anterior. O Progra-ma Município que Educa implica uma completa reinvenção da relação entre a educação formal e não-formal e entre a relação entre Estado e Sociedade Civil onde se destaca a crescente presença das Organizações Não-Governamentais.

Define-se educação não formal como “toda atividade educacional organizada, sistemática, executada fora do quadro do sistema formal para oferecer tipos selecionados de ensino a determinados subgrupos da população” (LA BELLE, 1982, p. 2). Esta é uma definição que mos-tra a ambiguidade dessa modalidade de educação, já que ela se define em oposição (negação) a um outro tipo de educação: a educação for-mal. Usualmente, define-se a educação não formal por uma ausência, em comparação com a escola, tomando a educação formal como único paradigma, como se a educação formal escolar também não pudesse aceitar a informalidade, o chamado extraescolar. Na definição da edu-cação não formal predomina o paradigma formal.

Estudos recentes (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009, p. 27) procuram ir além do conceito de não formal, englobando no conceito de

“Pedagogia Social” a educação indígena, a educação em saúde, a educação em cidadania e direitos humanos, a educação ambiental, a educação no campo, a educação rural, a educação em valores, a educação para a paz, a educação para o trabalho, a educação política, a educação para o trânsito, a educação hospitalar, a educação alimentar e outras edu-cações. A educação não formal precisa ser definida por aquilo que ela é, pela sua especificidade e não por sua oposição à educação formal. É o que aponta essa visão da Pedagogia Social. Para os autores dessa concepção pe-dagógica (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009, p. 10), a noção de edu-cação não formal “soa profundamente incômoda”, mesmo reconhecendo que esse é o “campo preferencial de atuação da Pedagogia Social”. Por isso, eles se recusam a usar o termo educação não formal, considerando-o “não científico” e, em vez dele, utilizam o conceito de “Pedagogia Social”.

De qualquer forma, o que se convencionou chamar de “educa-ção não-formal” (TORRES, 1992), com respeitada tradição na história das ideias pedagógicas, ultrapassa os limites do ensino escolar formal e engloba as experiências de vida e os processos de aprendizagem não formais, que desenvolvem a autonomia, tanto da criança quanto do adulto. Como diz Paulo Freire,

[...] se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possí-vel ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (1997, p. 50).

Paulo Freire não chegou a utilizar o conceito de Pedagogia Social, embora ele seja considerado um de seus grandes inspiradores.

A educação formal tem objetivos claros e específicos e é representada principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz educacional centralizada, como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação. A educação não formal é mais difusa, menos hierárquica e menos burocrática. Exige mais autonomia do aprenden-te. Os programas de educação não formal não precisam necessariamente seguir um sistema sequencial e hierárquico de progressão. Podem ter du-ração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem. Isso não significa que a educação não formal seja menos “científica” do que a educação formal (SILVA, 2009, p. 179-193).

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Toda educação é formal, no sentido de ser intencional, mas o cená-rio pode ser diferente: o espaço da escola é marcado pela formalidade, pela regularidade, pela sequencialidade. O espaço da cidade (apenas para definir um cenário da educação não formal e da educação social) é marcado pela descontinuidade, pela eventualidade, pela informali-dade. A educação não formal é também uma atividade educacional or-ganizada e sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí também alguns a chamarem impropriamente de educação informal. A educação informal é outra coisa. Ela é mais diluída no espaço-tempo do que a educação não formal.

São múltiplos os espaços da educação não formal. Além das pró-prias escolas (onde pode ser oferecida educação não formal), temos as organizações não governamentais (também definidas em oposição ao governamental), as igrejas, os sindicatos, os partidos, a mídia, as asso-ciações de bairro etc. Na educação não formal, a categoria espaço é tão importante quanto a categoria tempo. O tempo da aprendizagem na educação não formal pode ser mais flexível, respeitando as diferenças e as capacidades de cada um, de cada uma. Uma das características da educação não formal é sua flexibilidade tanto em relação ao tempo quanto em relação à criação e recriação dos seus múltiplos espaços.

Trata-se de um conceito amplo, muito associado ao conceito de cul-tura. Daí ela estar ligada fortemente à aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos e à participação em atividades grupais, sejam adultos ou crianças, aproximando-se muito dos objetivos da cha-mada Pedagogia Social. Segundo Maria da Glória Gohn (1999, p. 98-99), a educação não formal designa um processo de formação para a cidadania, de capacitação para o trabalho, de organização comunitária e de apren-dizagem dos conteúdos escolares em ambientes diferenciados. Por isso ela também é muitas vezes associada à educação popular e à educação comu-nitária. A educação não formal estendeu-se de forma impressionante nas últimas décadas em todo o mundo como “educação ao longo de toda a vida” (conceito difundido pela Unesco), englobando toda sorte de apren-dizagens para a vida, para a arte de bem viver e conviver.

Em qualquer espaço de aprendizagem é importante superar a di-cotomia entre o formal, o informal e o não formal. Este é, certamente, um dos desafios do Programa Município que Educa. Um outro desafio é superar a dicotomia entre Estado e sociedade civil.

A democracia participativa não substitui a democracia represen-tativa. Ela a enriquece. No Brasil, as administrações municipais pro-gressistas foram as primeiras a entender esse conceito e a implementar a democracia participativa, criando mecanismos de gestão pública não estatal, como o orçamento participativo. Como afirma Luiz Dulci, “a participação cidadã enriquece as instituições representativas, criando verdadeira corresponsabilidade social e evitando o risco de apatia civil e a negação autoritária da política que ameaça todas as democracias contemporâneas” (2005, p. 3). A gestão democrática é um dos pila-res do Programa Município que Educa. Como sustenta a professora da Universidade de Concepción (Chile), doutora em Currículo, Donatila Ferrada Torres,

[...] a escola só vai sobreviver se se abrir espaço para a participação das famílias e, principalmente, dos estudantes na discussão sobre o currículo […]. A socie-dade atual, constantemente conectada, exige que o conhecimento seja construí-do de forma colaborativa e ofereça os conteúdos de forma comunicativa e crítica (TORRES, 2010, p. A22).

Entretanto, é preciso reconhecer que o conceito de sociedade civil é ambíguo, polissêmico. Ele foi criado pelos iluministas que o contrapunham à noção de Estado. Ele foi retomado por Hegel, Marx, Alexis de Toqueville, entre outros. Gramsci e Habermas o empregaram largamente em suas teorias. Gramsci distingue “sociedade política” – constituída pelo aparato legal e institucional do Estado – e “sociedade civil”, constituída pela esfera privada não estatal, que inclui associa-ções religiosas, esportivas, educativas, meios de comunicação etc. Ele descreve a sociedade civil como uma esfera pública não estatal, de-nunciando o fascismo, que controlava a sociedade civil para manter a sua hegemonia. Jürgen Habermas também fala de uma “esfera pública cidadã”, de um “mundo da vida”, espaço existente entre o Estado (so-ciedade política) e o mercado (sociedade econômica). O fortalecimen-to da sociedade civil nas últimas décadas é amplamente reconhecido (NOGUEIRA, 2004).

Muitas coisas podem caber no conceito de sociedade civil. Nele podem-se incluir as organizações populares e movimentos sociais, as or-ganizações profissionais, as organizações religiosas e, inclusive, o mundo acadêmico. Como uma arena em luta, como uma esfera separada dos interesses do Estado e do mercado, em muitos casos, a sociedade civil serviu de abrigo, principalmente na América Latina, para a resistência

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contra regimes autoritários. No seio destas lutas, a sociedade civil surgiu e se fortaleceu como esfera pública não estatal, orientada

[...] para a representação de interesses de coletivos e minorias sociais, para a transparência e a participação nas decisões (em sentido democrático), para uma cultura popular e para o conhecimento construído fora dos grupos de poder econômico e político tradicionais e ainda para que o estado respeite a vontade majoritária (ARGENTINA, 2007, p. 71).

No seio da sociedade civil destaca-se, hoje, o papel das organizações não governamentais (ONGs). Elas passaram a ocupar, no Brasil, um es-paço específico, a partir dos anos de 1960, prestando assessoria aos mo-vimentos sociais de resistência ao regime militar. Em alguns casos, elas foram essenciais na intermediação entre o Estado autoritário e grupos so-ciais perseguidos pela ditadura, crescendo como atores e sujeitos políticos voltados para a defesa da democracia na perspectiva dos direitos sociais.

Mas foi a partir dos anos de 1990 que houve a grande explosão do número de ONGs, principalmente a partir do Fórum Global da Rio 92 e a crise dos partidos de esquerda. Militantes desses partidos, insatisfeitos ou decepcionados com a queda do comunismo no Leste Europeu, migraram para organizações da sociedade civil, mais flexíveis do que os partidos e, como defendiam causas vinculadas aos interesses dos cidadãos comuns e não a uma classe social, dividiram-se em miríades de advocacy groups, grupos de defensores de causas específicas (negros, quilombolas, indíge-nas, mulheres, jovens, deficientes...), em defesa do meio ambiente, dos di-reitos humanos etc. De lá para cá continuaram crescendo. É uma grande e auspiciosa novidade do final do século 20 e deste início de milênio. Traba-lhando em rede, sem hierarquias, essas organizações, associadas aos mo-vimentos sociais, lutam pela inclusão social através de campanhas, fóruns, marchas etc., radicalizando a democracia, conquistando novos direitos.

Superar essas dicotomias, atuar em rede e apostar em ações in-tertransculturais e intersetoriais, são desafios de programas como o do Município que Educa. Novos processos educativos, como os que se ins-tauram com esse programa, exigem abertura das mentes, superação de dualismos e muita vontade de aprender caminhando, em diálogo. Por meio dele, deseja-se criar as condições para a instauração de relações educacionais mais produtivas e de sociedades mais sustentáveis em busca de uma vida pessoal mais plena e feliz para todos e todas.

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