Mundo Muculmano o Introduc o

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    INTRODUO

    Nos ltimos quinze anos, dezenas de livros tm sido publicados em ingls, fran-cs e alemo sobre o mundo muulmano e seu complexo relacionamento com oOcidente. Desde os atentados terroristas contra as torres gmeas em Nova York, em11 de setembro de 2001, o que antes era um rio se transformou em cachoeira. Noentanto, at aqui, infelizmente pouco ou quase nada de relevante se publicou emportugus sobre o tema. Este livro espera contribuir para preencher to incmodalacuna. Seu objetivo proporcionar ao leitor brasileiro uma idia geral da civilizaodo isl, tornar compreensvel como e por que parcelas significativas do mundo mu-ulmano vm se radicalizando, politizando sua religio e agredindo o Ocidente uma violncia que, da perspectiva dos fundamentalistas, constitui apenas uma mere-cida e justificvel resposta s agresses recebidas.

    O futuro da humanidade depender, em ampla medida, do xito ou do fracassocoletivo em lidar com a dificuldade da coexistncia entre as diferenas. E poucasdiversidades colocam-nos um desafio mais urgente do que o fundamentalismo mu-ulmano. Acredito que possamos evitar o anunciado choque das civilizaes entre o

    Ocidente e o isl, uma guerra na qual todos ns sofreremos, desde que ambos os ladosfaam as concesses e os esforos necessrios. A primeira tarefa, imprescindvel, exercitar a compreenso. Ao Ocidente, cabe entender como a riqueza histrica domundo muulmano se vincula sua ira atual e como o prprio mundo ocidental cmplice, de certa forma, da crise contempornea do isl. Um entendimento da di-nmica interna do mundo muulmano, assim como de sua interao com os povosvizinhos, constitui o primeiro passo para desenhar polticas mais compassivas, e maisefetivas, frente a ele.

    O mundo muulmano abrange, nos dias de hoje, cerca de 1,3 bilho de seres huma-nos, um quinto da humanidade com o qual precisamos inevitavelmente repensar a con-vivncia. Eles se encontram concentrados num vasto arco, que se estende da frica oci-dental at a Indonsia, passando pelo Oriente Mdio e a ndia. Em muitos pases destavasta regio, os muulmanos constituem a maioria da populao local e, em outros, im-portantes minorias. Tal mundo naturalmente muito diverso quanto s suas histrias,naes e etnias, lnguas, maneiras de viver consigo mesmo, com seu meio ambiente e

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    com seus vizinhos. Em comum, porm, todos os povos do mundo muulmano tm umnico e decisivo fator: o isl. Muito embora a prpria religio seja para eles experienciadae praticada das mais diversas maneiras. H contrastes no apenas nas formas visveis,rituais e sociais, mas at no ncleo das crenas e na maneira de aplic-las sociedade.No poderia ter sido de outra forma. Como veremos na primeira das trs partes que

    compem este livro, o isl surgiu h mais de 1.400 anos e se espalhou por trs continen-tes e inmeras sociedades, encontrando condies vastamente diferentes entre si.

    Desde j, entretanto, faz-se necessrio esclarecer a grande confuso terminolgicaque cerca nosso tema. Em primeiro lugar, o termo muulmano refere-se a um fenmenosociolgico, enquanto islmico diz respeito especificamente religio. Desta maneira,por exemplo, pode-se afirmar que o Paquisto possui uma maioria muulmana; mas nempor isso um Estado islmico. Islamismo e islamista, por sua vez, so utilizados para definiro movimento religioso radical do isl poltico, inspirao do que tambm se chama po-

    pularmente de fundamentalismo muulmano. , portanto, confuso e incorreto usar otermo islamismo como sinnimo de isl, como acontece ocasionalmente em portugus.O termo isl usado ainda para definir determinadas reas geogrficas e civilizacio-

    nais, como a pennsula arbica ou o chamado Oriente Mdio, onde a religio islmica predominante. Na verdade, se a palavra rabe refere-se a um povo especfico, OrienteMdio diz respeito a uma regio geogrfica em particular e isl, como vimos, a uma re-ligio. Toda essa confuso tem origem no carter total do isl, que mais do que umsimples corpo de crenas, mas algo que influencia e determina (ou pelo menos pretendedeterminar) toda a vida social e mesmo as esferas da economia, da poltica e das relaesinternacionais. Ainda hoje h forte sobreposio dessas definies: afinal, raciocina-se,os rabes moram no Oriente Mdio e so majoritariamente muulmanos. Entretanto,existem no Oriente Mdio importantes naes muulmanas de povos no-rabes, comoos turcos e curdos, e mesmo naes no predominantemente muulmanas, como Is-rael, cuja populao majoritariamente judaica.

    Originalmente, os termos rabe e muulmano coincidiam: de fato, restritos pennsula da Arbia, os rabes se tornaram quase todos muulmanos. Num segundomomento, contudo, a expanso dessa populao criou a esfera cultural do Oriente

    Mdio, que adotou amplamente o idioma arbico e, em sua maioria, abraou o isl. Aessa altura, o mundo muulmano e o chamado Oriente Mdio que eram coinciden-tes. Em um terceiro momento, o isl conquistou adeptos em outras partes do planeta.Assim, o Oriente Mdio se reduziu a mais uma regio, entre outras tantas, do mundomuulmano ainda que aquela com o maior peso ideolgico, pelo fato da revelao eda atuao do profeta Maom terem ocorrido ali. E tambm por terem partido de l asprimeiras expanses e por ser o rabe a lngua sagrada do Alcoro1.

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    Alis, o prprio termo Oriente Mdio, usado para definir a regio geogrfica que hoje o lar de cerca de 400 milhes de muulmanos, comporta discusses. O termo (doinglsMiddle East) evidentemente de cunho eurocentrista e data, justamente, do s-culo XIX, poca em que o imprio britnico controlou os mares e um quarto da Terra.

    De todo modo, situado historicamente na encruzilhada de mltiplas influncias, o

    Oriente Mdio expresso que utilizaremos neste livro, uma vez que j foi consagradae incorporada ao uso geral foi durante sculos a plataforma giratria e o ponto de co-municao, mantido por caravanas terrestres e linhas martimas, entre a Europa e ascivilizaes mais orientais da ndia, da China e do sudeste asitico. Assim, no h dvi-das de que essa a regio mais complexa do mundo muulmano, em termos das suasidentidades coletivas, problemas polticos e conflitos tnico-religiosos. A interao his-trica com outros povos, que nos sculos mais recentes tomou a forma de intervenesocidentais mais diretas, fez da regio exatamente um dos centros mais expressivos do

    sentimento anti-ocidental. Nas ltimas dcadas, o Oriente Mdio (rabe em particu-lar), tem sido a rea de atuao da maioria dos pensadores e ativistas fundamentalistas.O Oriente Mdio continua funcionando, assim, como m de tenses internacionais.

    Por todos esses motivos, este livro dedica uma ateno especial a tal frao domundo muulmano. Contudo, sempre bom ter em mente que, numericamentefalando, menos de 30% de todos os muulmanos no planeta se encontram ali. Naverdade, o mundo muulmano se divide em quatro grandes blocos, geogrfica e cul-turalmente distintos. Alm do Oriente Mdio, ou seja, do bloco mdio-oriental, hainda o indiano, o malaio e o africano, todos devidamente detalhados e situadoshistoricamente na primeira parte deste volume. Essas quatro regies englobam maisde 95% de todos os muulmanos do mundo. Observam-se a, de antemo, dois ele-mentos cruciais. Por um lado, a citada interao com diferentes civilizaes cami-nhou no sentido contrrio teoria do isl, que prescreve a unidade de todos os fiisnuma nica umma (ummah, comunidade), o que tambm pressuporia uma unidadepoltica. Mas, ao contrrio, a diversidade das experincias fez com que o mundomuulmano tenha sempre sido, e continue a ser, muito dividido.

    Por outro lado, a grande maioria dos muulmanos vive no terceiro mundo. Em outras

    palavras, pobre. Num passado glorioso, as sociedades muulmanas foram ricas e po-derosas. Como veremos, sua decadncia a um estado de impotncia e explorao cons-titui parte integrante da histria da colonizao: a contrapartida da emergncia doOcidente. Com economias controladas por pequenas elites, regimes no-representati-vos e autoritrios, altas taxas de crescimento populacional e altos nveis de expectativas frustradas , vrias dessas sociedades muulmanas aprofundam sua crtica ao Oci-dente, acusado de manter as estruturas da desigualdade.

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    Este livro discorre mais sobre muulmanos do que sobre o isl, ou seja, mais sobregrupos humanos especficos, suas histrias e os desafios que eles enfrentam hoje do quesobre questes teolgicas. Sua abordagem , em primeiro lugar, antropolgica, histri-ca e poltica. Essa, contudo, uma diferenciao artificial, didtica, pois tanto as difi-culdades quanto as possveis opes para lidar com elas tm, pelo menos parcialmente,

    sua raiz na religio. Para verificar isso, basta pensar nos acirrados debates sobre o papeldas leis da religio (a chamada xaria) na vida pblica e privada em pases como Egito,Turquia ou Ir. Ou nos movimentos terroristas que, fundamentados na sua leitura doisl, esto violentamente desestabilizando regimes e Estados que consideram corruptosou hostis, chegando a ameaas prpria convivncia internacional. Ou ainda naquelesgrupos e pensadores menos conhecidos que, do Marrocos Malsia, inspiram-se na mes-ma religio para lutar em prol da democracia e do dilogo pacfico com outras civiliza-es. Em todos esses exemplos, a religio ponto de partida, ainda que para propostas

    e propsitos diferentes. Portanto, para entender o mundo muulmano hoje, assunto dasegunda parte deste volume, torna-se imprescindvel compreender sua religio.O isl, como o cristianismo, uma f expansionista e monopolista da verdade.

    Os consecutivos imprios rabes e muulmanos expandiram a f muulmana, a ln-gua rabe e padres culturais comuns. Hoje, perto de 95% da populao do OrienteMdio muulmana. No entanto, quando o isl ali chegou, possivelmente 95% eracrist. A diminuio do cristianismo na zona de seu nascimento gerou um conflitoduradouro entre essas duas religies rivais. Nos ltimos duzentos anos, a influnciado cristianismo tambm diminuiu na Europa, mas a relao antagnica com o Ori-ente Mdio s se exacerbou por fatores econmicos e geopolticos. Os Estados mu-ulmanos do Oriente Mdio se enfraqueceram; mas a regio cresceu em importnciaestratgica afinal, muito do petrleo do mundo est l e tornou-se espao privile-giado para as rivalidades com e entre as potncias europias.

    A justaposio de tantos fatores religiosos, estratgicos e econmicos explicapor que o Oriente Mdio capta tanta ateno de polticos, jornalistas e da opiniopblica internacional. As populaes muulmanas procuram reconquistar sua posio,outrora influente, no planeta. Tais reivindicaes desafiam os interesses vitais das po-

    tncias ocidentais e, por extenso, de todos os pases capitalistas desenvolvidos do pri-meiro mundo. O resultado que essa luta o drama central das relaes internacionaishoje. uma luta que assume cada vez mais uma cor religiosa e isso que ameaatransformar um mero confronto de interesses em um choque de civilizaes.

    O confronto do isl com a modernidade tambm ser tratado na segunda partedeste livro. A volta religio um fenmeno internacional que se observa entrecristos e judeus tanto quanto entre muulmanos. No h dvida de que o mundo

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    muulmano, no Oriente Mdio em particular, estava pouco preparado para os con-troles polticos e econmicos e para a invaso cultural que as potncias ocidentaisconseguiram impor graas sua supremacia militar. Tal supremacia, contudo, foi emsi mesma um efeito colateral da modernizao efetuada nas sociedades ocidentaispelas revolues polticas e industriais, iniciadas no final do sculo XVIII.

    Quando os muulmanos se viram confrontados pela superioridade ocidental, a hu-milhao foi provavelmente maior do que a sofrida por outras civilizaes, pois o islconsidera uma impossibilidade teolgica a tentativa de equiparar-se, nesses termos, aoOcidente. Houve dois tipos de reao: absorver a receita da modernidade do Ocidentee rejeitar o papel da religio; ou se refugiar num tradicionalismo religioso. Veremos comouma cadeia de derrotas militares, socioeconmicas e culturais tirou sistematicamente alegitimidade, no mundo rabe, dos regimes e projetos associados ocidentalizao. Abriu-se, ento, um vcuo ideolgico, que continua at hoje e est sendo preenchido pelos

    proponentes do projeto alternativo, o fundamentalismo muulmano. A lgica dessepensamento auto-referencial simples: perdemos no porque somos religiosos demaise no modernos o bastante; mas porque tentamos imitar o Ocidente e esquecemos areligio. Deus nos abandona porque ns abandonamos a Ele.

    A rejeio do modelo ocidental pelos pensadores islamistas abrangente, incluin-do no apenas uma crtica da injusta atuao das potncias crists, como tambmuma recusa de seus modos sociais dissolutos que infectam o mundo muulmano.Baseando-se numa leitura especfica das fontes religiosas, islamistas desenvolvem umprojeto para uma sociedade melhor, igual primeira sociedade islmica, estabelecidapelo fundador do isl, o profeta Maom. Trata-se na verdade de uma utopia aocontrrio. Contudo, o que mais surpreende e diferencia o islamismo dostradicionalismos anteriores principalmente a adoo seletiva de tecnologias ociden-tais, do rdio e tev at s armas de destruio em massa.

    O fundamentalismo no um movimento unificado (ainda que a unidade dosmuulmanos esteja sempre estampada em sua bandeira); difere de pas a pas, de umperodo a outro, mas s tem crescido. Os ltimos captulos deste livro analisam essadiferenciao e expanso e consideram suas possveis implicaes. O islamismo

    conquistou uma certa influncia em pases como o Egito ou a Sria nos anos 70, mass ganhou notoriedade internacional pela revoluo xiita no Ir e pelos primeirosseqestros e homens-bomba no Lbano. Desde os anos 80, desmentindo as previses,expande-se continuamente, e se torna cada vez mais extremista. Na dcada de 1990,assistimos a uma exploso de incidentes violentos provocados por grupos islamistas,desde a Nigria at a Indonsia. Quando o establishmentnas comunidades atingidasreage tentando restabelecer a ordem, muitas vezes com apoio ocidental, civis inocen-

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    tes sofrem as conseqncias, e os terroristas tendem a radicalizar ainda mais a suaao. De modo paradoxal, as polticas oficiais usadas para reprimir a violncia setornam instrumentos em favor dos fundamentalistas.

    Como ento o Ocidente precisa e pode reagir?H verdadeiramente perigo ous exageros sensacionalistas?O isl uma religio violenta ou os islamistas nos apre-

    sentam uma corrupo da bela tradio que no passado enriqueceu o Oriente e quepoderia voltar a faz-lo?As respostas dependero de mudanas internas no isl quepodem perfeitamente ser estimuladas por meio de um dilogo entre fs e civilizaes.A ltima parte deste livro observa os argumentos contra e a favor da coexistncia oude seu oposto, o choque dos mundos. Numa conjuntura to complexa, a conclusos pode ser ambgua. Podem haver, contudo, algumas lies.

    A primeira a de que o isl , em potncia, mais flexvel do que se pensa; permitee precisa do dilogo com o outro. Da mesma maneira, para no mergulhar numa

    guerra de religies sem sada, o Ocidente tambm precisa dessa comunicao. Porm,com um islamismo violento que preconiza uma guerra para estabelecer o reino deDeus na Terra, no existe dilogo vivel: ele constitui um crescente risco para a segu-rana de todos. A luta contra ele no somente um interesse do mundo ocidentalcomo tambm da grande maioria dos muulmanos, que seriam suas primeiras vti-mas. No entanto, sem transformaes profundas na estrutura da desigualdade globalque mantm essas populaes presas num ciclo de empobrecimento e isolamento,no se conseguir evitar a ampliao macia do extremismo. A tarefa, portanto, abrangente e da maior urgncia. A leitura deste livro pretende colaborar com ela.

    Pelas complexidades inerentes ao assunto, escrever este livro implicou um traba-lho rduo. Queria agradecer em particular o apoio inestimvel de meus alunos LviaOushiro e Orion Klautau e da minha esposa, Eliane Rosenberg Colorni, que torna-ram o texto final melhor e mais legvel. A leitura atenta dos originais por parte delesfoi, sem dvida, fundamental.