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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(5):1379-1387, set-out, 2002

ARTIGO ARTICLE

Musculação, uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistasde um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil

Body-building, steroid use, and risk perception among young body-builders from a low-income neighborhood in the city of Salvador, Bahia State, Brazil

1 Instituto de Saúde Coletiva, UniversidadeFederal da Bahia.Rua Padre Feijó 29,Salvador, BA 40110-170, [email protected] Pós-graduação emMedicina e Saúde, Faculdadede Medicina, UniversidadeFederal da Bahia.Rua Pedro Lessa 123,Salvador, BA 40110-050, [email protected]

Jorge Alberto Bernstein Iriart 1

Tarcísio Matos de Andrade 2

Abstract Recent studies in different countries have shown an increase in anabolic steroid con-sumption among young people and the harm caused by indiscriminate use. In Brazil, researchon steroid abuse is scarce. The present study examines the risk perception of health problems as-sociated with anabolic steroid consumption among young working-class adults engaged inbody-building practices in a poor neighborhood in the city of Salvador, Bahia. The methodologyinvolved an anthropological approach based on qualitative research techniques consisting ofethnography, in-depth interviews, and a focus group with steroid users. The data describe themost common substances consumed and highlight the lack of information among intervieweesconcerning potential related health hazards, showing that for many steroid consumers the questfor muscle-mass development to achieve an idealized body supersedes the risk of harmful sideeffects. The results indicate the need for culturally sensitive measures to prevent steroid abuseamong youth.Key words Substance Abuse; Anabolic Steroids; Exercise; Risk Factors; Anthropology

Resumo Estudos recentes em diferentes países têm apontado o aumento do consumo de esterói-des anabolizantes entre jovens fisiculturistas e atletas, e os danos à saúde causados pelo seu usoindiscriminado. No Brasil, estudos sobre o uso de anabolizantes são escassos. No presente traba-lho, examina-se a percepção de risco à saúde, associada ao consumo de anabolizantes, entre jo-vens fisiculturistas de um bairro pobre da cidade de Salvador. A metodologia privilegiou méto-dos de coleta de dados qualitativos tais como etnografia, entrevistas semi-estruturadas e grupofocal com usuários de anabolizantes. Os dados produzidos descrevem as principais substânciasutilizadas e os padrões de uso, e apontam a falta de informação dos jovens entrevistados sobre aextensão dos danos à saúde decorrentes do consumo de anabolizantes, mostrando que para mui-tos, o desejo de desenvolver massa muscular e alcançar o corpo ideal se sobrepõe ao risco de efei-tos colaterais. Os resultados indicam a necessidade de se desenvolver ações culturalmente apro-priadas, voltadas para a prevenção do abuso de anabolizantes junto à essa população.Palavras-chave Abuso de Substância; Esteróides Anabólicos; Exercício; Fatores de Risco; Antro-pologia

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Introdução

A crescente valorização do corpo nas socieda-des de consumo pós-industriais – refletida nosmeios de comunicação de massa, que expõemcomo modelo de corpo ideal e de masculinida-de um corpo inflado de músculos – pode estarcontribuindo para que um número crescentede jovens envolva-se com o uso de esteróidesanabolizantes, na intenção de rapidamente de-senvolver massa muscular (Courtine, 1995). Oconsumo dessas substâncias, especialmenteentre jovens fisiculturistas e atletas, tem sidoregistrado com freqüência ascendente em vá-rios países (Lise et al., 1999; Nilson, 1995; Perryet al., 1992; Scott et al., 1996) e diversos estu-dos têm documentado os danos à saúde causa-dos pelo seu uso (Evans, 1997; Korkia & Stim-son, 1997; Rich et al., 1999).

Nos Estados Unidos, estudo populacionalrealizado em 1993 estimou em mais de um mi-lhão o número de usuários de anabolizantes(Yesalis et al., 1993). Em relatório recente, oNational Institute on Drug Abuse (NIDA, 2001)informa que a porcentagem de estudantes docurso secundário (high school) que utilizou es-tas substâncias cresceu 50% nos últimos qua-tro anos, passando de 1,8% para 2,8. O aumen-to do consumo de suplementos alimentares eanabolizantes nessa população (Durant et al.,1993; Yesalis, 1997) levou o governo norte-ame-ricano a lançar, no ano passado, uma campa-nha nacional para alertar os jovens dos perigosassociados à sua utilização (NIDA, 2001).

No Brasil, estudos que abordem o uso deanabolizantes são escassos, não existindo da-dos epidemiológicos que indiquem a extensãodo consumo dessas substâncias. Alguns indí-cios, no entanto, sugerem que o uso de anabo-lizantes pode estar crescendo entre os jovenspertencentes a diferentes classes sociais, po-dendo representar, em breve, um importanteproblema de saúde pública. Os meios de comu-nicação de massa têm noticiado com algumafreqüência o consumo dessas substâncias nasacademias de musculação, e chamado a atençãopara os casos de efeitos colaterais graves decor-rentes de seu uso abusivo (Folha de São Paulo,2000a, 2000b). Sabe-se ainda, segundo estimati-va do CEBRID (Centro Brasileiro de Informaçõessobre Drogas Psicotrópicas), que o consumidorpreferencial no Brasil está entre os 18 e 34 anosde idade e, em geral, é do sexo masculino.

Nossa atenção para o problema originou-seno trabalho de redução de danos que o CETAD(Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Dro-gas da Universidade Federal da Bahia), vem rea-lizando em bairros populares de Salvador, e que

sugere um elevado consumo de diversos tiposde anabolizantes entre jovens fisiculturistas. Otermo fisiculturista está sendo aqui utilizadopara designar os praticantes de exercícios físi-cos com pesos, que visam a modelagem docorpo através do desenvolvimento de massamuscular (body-building). Nos bairros popula-res, a prática do fisiculturismo se realiza fre-qüentemente em academias de musculação quefuncionam em espaços improvisados e equipa-das de forma precária. O alto consumo dessassubstâncias entre os fisiculturistas, é atestadopelo grande número de seringas usadas, quesão trocadas por esses jovens, junto aos agen-tes comunitários de saúde do CETAD, assimcomo pelos relatos dos cadernos de campo dosagentes que documentam o padrão de uso des-sas substâncias, e os efeitos colaterais que es-tão produzindo entre os usuários.

Este estudo, visa contribuir para a produ-ção de conhecimento sobre o uso de anaboli-zantes entre os jovens fisiculturistas das clas-ses populares de Salvador, buscando fornecersubsídios para projetos de prevenção – assimcomo para redução dos efeitos nocivos decor-rentes do seu uso – que sejam culturalmenteapropriados junto à essa população. Os objeti-vos específicos são: (1) analisar os significadosassociados à fisicultura e as razões do uso deanabolizantes entre jovens fisiculturistas; (2)descrever as principais substâncias utilizadas,o seu padrão de uso e os efeitos colaterais per-cebidos e (3) analisar a percepção de risco dosusuários.

Metodologia

O presente estudo aborda o problema do abu-so de esteróides anabolizantes com uma pers-pectiva sócio-antropológica utilizando-se, con-sequentemente, de métodos de pesquisa qua-litativos. A escolha metodológica deve-se aocaráter exploratório do estudo e à necessidadede produzir dados em profundidade sobre o usodessas substâncias, procurando compreenderos fatores sócio-culturais subjacentes à práticada musculação e ao uso de anabolizantes.

A pesquisa foi realizada em um bairro po-bre de Salvador, que tem aproximadamente 60mil habitantes, e cujo nome será omitido parapreservar a privacidade dos informantes. As-sim como outros bairros periféricos das gran-des cidades brasileiras, esse possui uma infra-estrutura urbana extremamente precária, ca-racterizada pela presença de esgotos a céu aber-to, ausência de unidades de saúde e áreas delazer. Somam-se à essa realidade, o alto índice

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de desemprego da população do bairro e a for-te presença do comércio ilegal de drogas, inti-mamente associada ao aumento da violênciaurbana.

Os dados aqui analisados, foram produzi-dos empregando-se as seguintes técnicas: (1)grupo focal, realizado com dez usuários de ana-bolizantes de uma academia de musculação dobairro; (2) entrevistas em profundidade (semi-estruturadas), realizadas com seis informan-tes-chave (cinco usuários de anabolizantes eum agente de saúde do CETAD), residentes nobairro; (3) relatos transcritos ao longo de doisanos nos diários de campo de dois agentes co-munitários de saúde do CETAD e (4) observa-ção sistemática realizada pelos pesquisadoresem uma academia de musculação do bairro.Trata-se de uma academia popular, equipadade forma precária, mas freqüentada regular-mente por cerca de 75 fisiculturistas. Os usuá-rios da academia são jovens das classes popu-lares, na sua grande maioria do sexo masculi-no, com idades que variam de 17 a 37 anos.Eles trabalham sobretudo, no mercado infor-mal como vigilantes, seguranças, guardadoresde carro, vendedores ambulantes ou biscatei-ros. Alguns são estudantes e ainda não estão nomercado de trabalho. Para se exercitar na aca-demia, cada fisiculturista paga uma mensali-dade de R$ 5,00.

Significados associados à musculaçãoentre fisiculturistas das classes populares

A prática da musculação – “malhação” na gíriautilizada pelos fisiculturistas – assume múlti-plos significados no discurso dos jovens entre-vistados. Em suas narrativas sobre as razõesque os levaram a começar o trabalho de fisicul-tura, os informantes freqüentemente fazemalusão à admiração neles suscitada pela visãode corpos fortes e musculosos, que passam a sertomados como modelo de corpo ideal, e ser-vem de estímulo para o início da musculação.

“Eu comecei a treinar com 14 anos. Comeceia gostar porque eu via... eu achava bonito a pes-soa com o corpo bem definido...” (fisiculturista,29 anos).

“Um camarada meu me emprestou uma re-vista, eu olhei, nessa revista tinha até ArnoldSchwarzenegger, então daí por diante, com me-nos de 18 anos, eu comecei a malhar. Como eu dis-se a você, né, a gente vê uma pessoa forte... e aí meinteressou a musculação” (fisiculturista, 33 anos).

“Uma vontade que eu tinha de querer ficarforte, criar muitos músculos, dividir o corpo”(fisiculturista, 22 anos).

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Os fisiculturistas utilizam com freqüênciaem sua narrativa, expressões que remetem ao“desejo de crescer”, “ficar grande”, “ficar forte”,de forma a chamar a atenção das pessoas, atra-vés de um corpo dilatado e com “músculosbem definidos”. Uma análise mais atenta dostermos utilizados pelos informantes sugere,porém, que esses transcendem a idéia de cor-po físico, remetendo a uma vontade de crescere se fortalecer subjetivamente. Em um contex-to de periferia urbana – marcado pela violên-cia, pelo tráfico de drogas e pelo desemprego –que não proporciona aos jovens muitas pers-pectivas de construir uma identidade positiva,a fisicultura surge como uma possibilidade deconstrução identitária. Através do trabalho so-bre o corpo, esses jovens buscam uma formade se destacar na comunidade e de compensaruma baixa auto-estima. Uma dimensão da iden-tidade positiva construída pelos fisiculturistasé a que enfatiza sua condição de atleta. Muitoreferida nas entrevistas, a percepção de si mes-mo, enquanto atleta, é elemento de sua identi-dade capaz de opor-se à condição de desempre-gados/desocupados em que muitos se encon-tram. O corpo torna-se então, um instrumentoprivilegiado, por meio do qual a pessoa buscareconstruir o Eu (Self), fortalecendo uma iden-tidade fragilizada. A repercussão externa daimagem corporal projetada, passa a ser extre-mamente valorizada pelos fisiculturistas, quese percebem como possuidores de um corpomodelo, símbolo de masculinidade, admiradoe invejado pelos homens, e desejado pelas mu-lheres.

“A importância (da musculação) é a gentechegar num lugar e poder botar uma camisinhadecotada, tá com os músculos trabalhado, tudoem dia, chegar numa praia e poder botar umasunga, que tá o corpo todo trabalhado, boniti-nho... (...) o pessoal começa a falar com a genteassim, tipo achar um ídolo, alguma coisa assim:‘Pô, tá forte, tá bonito, tá beleza’, e param maispra prestar atenção na gente (...)” (fisiculturis-ta, 22 anos).

O aumento dos músculos e a sua manuten-ção, tornam-se uma obsessão para os fisicultu-ristas, que competem entre si, comparandosuas medidas de braços e pernas e passando anão poupar esforços para atingir um corpoideal. O culto ao corpo se traduz em um inves-timento narcísico que aparece bem evidencia-do no discurso dos informantes, onde se enfa-tiza o prazer na admiração do próprio corpoem frente ao espelho:

“Rapaz, a gente passa a amar nosso corpo, agostar dele, se olha no espelho com... se achan-do.... você se gosta mais ainda. Porque você olha

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pra sua perna e vê sua perna grossa, você olhapra seu peito e vê seu peito grande, olha pra seusbíceps e vê eles aumentando, então você passaassim, não vou dizer adorar, mas a se amarmais ainda, se cuidar mais ainda” (fisiculturis-ta, 33 anos).

É presente no discurso dos informantes,uma freqüente insatisfação com suas medidascorporais, por maiores que essas sejam, o queremete à existência de uma dicotomia entre ocorpo real e o corpo ideal. Se o corpo represen-ta o envelope do sujeito subjetivamente cons-tituído, entre os nossos informantes, a hiânciaentre o somático e o psíquico parece aumenta-da. Esse fato está expresso no próprio ato demalhar, onde a relação não é mais com o corpocomo um todo, mas com partes do mesmo. Tra-balha-se individualmente os braços, as pernas,o peito e às vezes apenas determinados gruposmusculares; fala-se em corpo dividido, e se es-tabelece parâmetros para cada parte. O corpoé investido de uma função instrumental, tor-nando-se um corpo para ser visto e voltado pa-ra o consumo. Para muitos desses jovens fisi-culturistas, essa função instrumental do corpotoma a forma de um investimento profissional,no qual a posse de um corpo musculoso au-menta as chances de conseguir colocação nomercado de trabalho como seguranças e vigi-lantes. Para outros, a exibição do corpo malha-do nas festas populares da cidade, torna-se umaforma de atrair clientes homossexuais, que pa-gam aos fisiculturistas por seus serviços, exa-cerbando seu papel instrumental como fontede renda.

Substâncias utilizadas, padrões de uso e razões para o consumo de anabolizantes entre os fisiculturistas

Os esteróides anabólico-androgênicos, comu-mente chamados simplesmente de anaboli-zantes, são substâncias sintetizadas em labora-tório, relacionadas aos hormônios masculinos(androgênios). Essas substâncias aumentam asíntese protéica, a oxigenação e o armazena-mento de energia resultando em incrementoda massa muscular e de sua capacidade de tra-balho. Na gíria popular, os anabolizantes sãovulgarmente conhecidos pelo nome de “bom-ba” (em referência ao efeito de inchaço muscu-lar por eles produzido), e é também comum quefisiculturistas sejam chamados pejorativamen-te de “bombados”.

Cerca de 25 substâncias, a maioria esterói-des anabólico-androgênicos, foram menciona-das pelos sujeitos da pesquisa como sendo uti-

lizadas nas academias freqüentadas por eles.Essa relação também inclui hormônios femini-nos, usados de forma isolada ou em combina-ção com androgênios, e também produtos ve-terinários, a exemplo de complexos vitamíni-cos e antiparasitários. Entre os esteróides an-drogênicos, os mais utilizados são: Durateston(Testosterona), Stradon P (Testosterona + Es-tradiol) e Deca-durabolim (Nandrolona). Oshormônios femininos mais mencionados pelosinformantes foram os anovulatórios Uniciclo(Algestona e Estradiol) e Premarim. O baixo po-der aquisitivo dos fisiculturistas dos bairros po-pulares, leva à opção pelos produtos mais ba-ratos, incluindo nessa categoria os de uso vete-rinário. Entre esses, os mais freqüentementemencionados foram o ADE (vitaminas A, D e E),Potenai (complexo vitamínico à base de vitami-na B) e o antiparasitário Ivomec (Ivermectina).

Os dados coletados revelam que o consumode anabolizantes tem início logo após os pri-meiros meses de contato dos iniciantes com oscolegas de musculação na academia. A consta-tação de que companheiros, que iniciaram asatividades físicas na academia à mesma época,conseguiram desenvolver massa muscular con-sideravelmente maior, no mesmo tempo de prá-tica, leva os novatos a procurar informaçõessobre as razões desse fato. A escuta e participa-ção nas conversas entre os fisiculturistas vete-ranos, onde o uso de anabolizantes é um temamuito freqüente, cria a curiosidade e facilita ainserção do iniciante nos meandros de seu con-sumo.

P: “Como uma pessoa se inicia no uso deanabolizantes?”

R: “Primeiro é... tá vendo a pessoa que tá lá,com mais tempo de academia, aí vai se chegan-do, procurando saber como a pessoa tá forte...Aí, procura saber como é pra ficar forte rápido,em dois, três meses ficar... aumentar o peso ra-pidamente, aí o colega vai e ensina. Diz a ele.Ele procura saber o nome, a gente dá o nome, elevai lá e compra. (...) quando eles perguntam co-mo é que toma, tudo, a gente explica tudo direi-tinho a eles, como é que toma, como a gente to-mou né” (fisiculturista, 22 anos).

A impaciência com o tempo necessário pa-ra o desenvolvimento da massa muscular como exercício físico isoladamente, não se restrin-ge, no entanto, aos iniciantes. Os veteranos tam-bém referem não se contentar com a lentidãodo crescimento muscular, e com os minguadosresultados obtidos por meio de uma suada mus-culação destituída de ajuda química. O anabo-lizante é visto então, como uma droga podero-sa que permite ao organismo trabalhar mais ra-pidamente, proporcionando resultados quase

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mágicos, e recompensando imediatamente osuor despendido na malhação.

“É pra ter o resultado rápido, né, chegar rá-pido ao nosso objetivo, que é ficar forte, criarmassa muscular, ganhar peso. A gente toma prachegar rápido lá. Uma Decadurabolim mistu-rada com Estradon-P, ela dá um desenvolvi-mento corporal bastante excessivo, chega aoponto de aumentar um quilo e meio a dois qui-los por semana, certo?” (fisiculturista, 29 anos).

“O efeito positivo é que eu tava com mais oumenos 37, 38 centímetros de braço, né? Aí foi pra40, 42 centímetros. Aí fica todo mundo surpreso,aquele negócio, você nem acredita quando vocêse olha no espelho e você se vê forte” (fisicultu-rista, 22 anos).

As substâncias são usadas em dosagem efreqüência variáveis, determinadas pelo maiorou menor imediatismo dos fisiculturistas naaquisição de forma física desejada, pelo nívelde conhecimento dos mesmos sobre essas subs-tâncias, pelas experiências pregressas em rela-ção aos seus efeitos colaterais e pelos recursosdisponíveis para a aquisição dos produtos.

Os ciclos sistemáticos do tipo pirâmide des-critos na literatura, em que o usuário utiliza do-ses crescentes até o final da segunda ou tercei-ra semana, seguidas por doses decrescentes, porigual período, até o final do ciclo (NIDA, 2001),não foram observados nos dados coletadosneste trabalho. O uso referido acontece de for-ma irregular, algumas vezes contínuo, quasediário ou com intervalos maiores, com inter-rupções motivadas pelos efeitos colaterais, eretorno ao uso pela falta de motivação paramalhar e insatisfação com as formas corpóreasna ausência do uso de anabolizantes. Coque-téis à base de dois ou três esteróides androgê-nicos e ADE, são freqüentemente preparados ecompartilhados pelos atletas: “O ADE vem numfrasco de 50ml. A gente pega o frasco de ADE, ti-ra 25ml e guarda em outro frasco, e dentro da-quele 25ml de ADE a gente coloca 5ml de Dura-teston, coloca 10ml de Androgenol e coloca 5Primabolan, aí mistura tudo no mesmo frasco etoma” (fisiculturista, 26 anos).

Associado ao imediatismo de resultados,presente no discurso dos informantes, encon-tra-se a firme suposição da impossibilidade deatingir o “corpo ideal”, que se caracteriza nãoapenas pela massa muscular, mas também pe-lo delineamento dos músculos, sem o auxíliodos anabolizantes.

“Ver alguém ‘empenado’ naturalmente, sócom produtos naturais, ficar com o corpão enor-me, todo definido, todo gigante, tem condições?Não existe! Tem que ter muito produto químicodentro do corpo!” (fisiculturista, 27 anos).

Os informantes não referem limitação daoferta dos produtos utilizados, relatando serfácil a sua aquisição, tanto nas farmácias quan-to nas casas de produtos veterinários. Os pro-dutos importados, como o Winstrol (Stanazo-lol), por serem mais caros, são mais cortejadospelos fisiculturistas. A via de administraçãomais freqüentemente utilizada é a injetável,preferida pelos informantes por ser a mais ba-rata e produzir um efeito imediato, embora,entre os produtos mencionados na pesquisa,alguns são disponíveis no mercado apenas pa-ra uso oral.

“Praticamente, eu gosto mais de tomar é ainjetável. O efeito bate logo. Aqui, em geral, nin-guém tem condição de comprar o de uso oral,pois os melhores são a partir de vinte reais” (fi-siculturista, 33 anos).

O culto ao corpo musculoso, que estimula acompetição entre os freqüentadores da acade-mia pela escolha do mais forte, do que tem osmúsculos mais bem definidos ou de quem temo corpo que atrai mais atenção nas ruas, con-tribui para o aumento do consumo de anaboli-zantes. Esse consumo atinge seu ápice nos me-ses que antecedem o carnaval, mais precisa-mente a partir do mês de outubro, quando osfisiculturistas se preparam para o ciclo de fes-tas populares de verão. Nesse período, os atle-tas intensificam o treinamento e partilham oscustos dos coquetéis de anabolizantes. O obje-tivo é estar com o corpo bem desenvolvido pa-ra ser exibido no verão.

Efeitos colaterais e percepção de riscoentre os usuários de anabolizantes

Os múltiplos e freqüentes efeitos colaterais re-lacionados ao uso de anabolizantes têm sidoamplamente descritos na literatura. Esses vão,desde as alterações orgânicas provocadas pelaspróprias características farmacológicas dosprodutos utilizados – a grande maioria delesrelacionados com o hormônio masculino tes-tosterona – habitualmente em doses muitoalém das fisiologicamente manejáveis pelo or-ganismo; às infecções de transmissão sangüí-neas pelo uso de equipamentos não estéreis deinjeção, até os traumas locais relacionados comaplicação incorreta desses produtos. Emboraseja difícil comprovar a relação causal do usode anabolizantes e infarto agudo do miocárdio,fatores de risco como dislipidemia, alteraçãonos fatores da coagulação e hipertrofia do mio-cárdio relacionados ao uso desses produtos,têm sido registrados na literatura (Kennedy &Lawrence, 1993). Outros importantes efeitos

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colaterais, associados ao uso de anabolizantes,descritos na literatura são a atrofia testicular, aginecomastia e a hipertensão arterial (Korkia &Stimson, 1997). Entre as complicações decor-rentes do uso de equipamentos de injeção nãoesterilizados estão os abcessos cutâneos (Richet al., 1999), a infecção pelo HIV, pelos vírusdas Hepatites B e C e por outros agentes detransmissão parenteral.

De maneira geral, os fisiculturistas entre-vistados não demonstram bom nível de infor-mação sobre os danos causados à saúde pelosanabolizantes que utilizam. Os conhecimentosque possuem sobre esses produtos, muitas ve-zes, não guardam relação com as suas proprie-dades farmacológicas. As informações sobre osefeitos colaterais são sobretudo oriundas daexperiência pessoal, da observação de colegasda academia e dos relatos de casos vivenciadospor amigos ou conhecidos, nos quais o uso des-sas substâncias acarretou sintomas graves. Ossintomas menores e temporários tais como ce-faléia, náuseas, tonturas, irritabilidade, acne, fe-bre e aumento dos pêlos corpóreos, com o tem-po, passam a ser percebidos pelos usuários deanabolizantes como normais. Não transpareceno discurso dos entrevistados, preocupaçãocom os possíveis efeitos a longo prazo que o usocontínuo dessas substâncias possa produzir.

“A gente toma em uma segunda, quando éna terça a gente já sente febre, dor de cabeça,aqueles efeitos colaterais... a primeira vez queeu tomei eu fiquei com medo. Depois, todomundo dizia que dava febre mesmo, dava dorde cabeça, eu acabei me acostumando e achan-do normal quando eu tomava” (fisiculturista,29 anos).

Entre os iniciantes, que ainda não possuembagagem empírica no uso de anabolizantes, adesinformação quanto aos seus efeitos sobre asaúde é ainda maior. No afã de rapidamente hi-pertrofiar seus músculos e sem consciência dorisco que incorrem, eles muitas vezes exage-ram nas doses injetadas, na expectativa de po-tencializar seu efeito.

“Tem muitos caras (iniciantes) aí que a genteexplicou: ‘Tem que tomar tanto, tomar 1ml, 2ml’.Só que eles pensam que se tomar 5ml eles ficammais rápido ainda. Aí acaba tomando 5ml, co-mo tem um caso lá recente, que um colega to-mou parece que foi 10ml de ADE, um negócioque pra cada 50kg tem que tomar 1ml, o animal,um cavalo. Aí ele tomou 10ml e parou no hospi-tal, teve convulsão” (fisiculturista, 22 anos).

Muitos informantes fizeram referência àsalterações no desempenho sexual e redução dovolume de esperma provocado pelo uso dosanabolizantes. Esses sintomas, porém, são tra-

tados com aparente naturalidade e não levamà interrupção do uso das substâncias. Os fisi-culturistas veteranos demonstram ter maisconsciência dos riscos à saúde, presentes noconsumo de anabolizantes. Eles referem, emseu discurso, vários efeitos colaterais comocomplicações locais associados à aplicação dosprodutos, problemas renais, atrofia muscularatribuída ao uso de Ivermectina (Ivomec), ton-turas e desmaios secundários ao uso de ADE eaté mesmo infarto agudo do miocárdio.

O conhecimento do risco potencial e dosdanos sofridos por outrem, não se transformanecessariamente, porém, em ação preventiva,por diversas razões. Primeiro, o desejo de fazercrescer a massa muscular e alcançar o corpoideal, se sobrepõe ao risco potencial. Em se-gundo lugar, o fisiculturista percebe o risco co-mo uma “aventura”, assegurando-se, na ilusãodo pensamento mágico, de que o problemanunca irá acontecer com ele.

“Todo mundo que começa a tomar esses ne-gócios sabe que corre o risco de não dar certo né,de parar em um hospital, alguma coisa assim.Mas a gente acaba arriscando e tomando” (fisi-culturista, 22 anos).

P: “Qual o risco que você acha que corre?”R: “O risco que corre é da gente ter um abces-

so. Tem um colega que teve um abcesso, teve queabrir o braço pra tirar, teve um colega que per-deu a perna tomando injeção localizada naperna. Esses riscos todo a gente sabe que podeacontecer com um da gente. P: E como é que vo-cês lidam com esse risco? R: É aquele tipo, aven-tura. Você pensa: ‘Ah, vou aventurar. Comigonão acontece’. Aí você vê que todo mundo pensaassim” (fisiculturista, 22 anos).

A consciência do risco, presente no discur-so de nossos entrevistados mostra-se frágil efugaz. A ocorrência de algum caso de efeito co-lateral grave, decorrente do uso de anabolizan-tes na rede de relações dos usuários ou mesmonoticiado na mídia, causa um impacto apenastemporário na percepção do risco dos fisicul-turistas: “Logo quando acontece assim (algumcaso grave de efeito colateral) a gente fica commedo: ‘Não, eu vou parar, não vou tomar mais’,aquele negócio todo, pensa que se conscienti-zou, mas passa dois, três meses, a poeira baixa,aí todo mundo começa de novo” (fisiculturista,22 anos).

P: “Sempre correndo esse risco por causa docorpo, pra manter o corpo?”

R: “Com certeza. Corre esse risco pra mantero corpo forte, manter a massa muscular” (fisi-culturista, 22 anos).

A certeza de que problemas de saúde maisgraves, subseqüentes ao uso de anabolizantes,

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nunca acontecerá com o usuário se reafirma apartir de sua experiência pessoal. O fato delenunca ter percebido sintomas mais graves econhecer pessoas, que apesar do alto consu-mo, nunca manifestaram maiores problemasassociados ao uso dos esteróides anabolizan-tes, faz com que o usuário confie em que é pos-sível utilizar essas substâncias sem comprome-ter a saúde.

“Eu penso assim, eu sei o que eu tô fazendo,né, eu sei que aquilo ali prejudica minha saúde.Eu tô tomando, mais sei que eu posso morrernaquela hora ali” (fisiculturista, 29 anos).

P: “Mas você prefere continuar?”R: “Mas eu prefiro continuar... Eu acho que

com fé em Deus não vai acontecer nada comigo.Até agora eu tô tranqüilo. Até agora eu não sentinada. É até pra eu fazer uma lavagem no orga-nismo porque eu tô nessas drogas e nunca acon-teceu nada comigo” (fisiculturista, 29 anos).

É comum entre os fisiculturistas entrevista-dos, a referência a diferentes estratégias paralidar com risco associado ao uso de anaboli-zantes, de forma a minorá-lo. Alguns informan-tes afirmam que não se sentem muito em riscoporque seguem um padrão de utilização de ana-bolizantes que eles consideram mais seguro.

Esse padrão de uso apresenta algumas va-riações segundo cada usuário, e incorpora di-ferentes estratégias percebidas como proteto-ras. Entre essas, encontra-se a procura poraplicação da injeção de anabolizantes por ami-gos, parentes ou colegas que tenham algumcurso de enfermagem ou experiência nessaprática, o que diminuiria os riscos de uma apli-cação mal feita. Foi também citado como es-tratégia protetora por alguns, a precaução naingestão de coquetéis, onde diferentes tipos deanabolizantes são misturados, assim como adiminuição das doses e aumento do intervaloentre uma aplicação e outra.

“Eu mesmo tomo, mas eu tomo controlada-mente, tomo duas vezes por mês, eu não souigual aos outros colegas que tomam toda sema-na, duas, três por semana, não sabendo o efeitodepois” (fisiculturista, 27 anos).

É importante ressaltar, no entanto, que al-gumas dessas estratégias protetoras não pos-suem embasamento científico ou são realiza-das de forma incorreta ou pouco sistemática, oque reduz sua eficácia. É o caso, por exemplo,da muito citada prática de, periodicamente,realizar uma limpeza intestinal através da in-gestão de chás e purgantes que purificariam oorganismo e, supostamente, o prepararia paramelhor receber novas doses de anabolizantes.Todavia, isto não possui respaldo nas caracte-rísticas farmacológicas dos produtos utilizados.

“Eles tomam limonada Bezerra, Purgoleite.São medicamentos que eu acho que existem prálavar o organismo, o intestino. Eles acham quetá tirando a sujeira” (Agente comunitário doCETAD).

P: “Que influência isso tem depois, no uso doanabolizante?”

R: “Eles acham que tão aptos a usar mais,que limpou, lavou tudo, e aí começa a fazer no-vamente o uso. (...) Isso quer dizer que o corpotá preparado pra receber... vai fazer mal, mas elevai resistir”. P: “O corpo fica mais forte, então?”R: “Exatamente. Ficou com menos sujeira” (Agen-te comunitário do CETAD).

É importante também, para compreender apercepção de risco dos usuários de anabolizan-tes, levar em conta os seus possíveis efeitos psi-co-fármacológicos. Várias publicações científi-cas têm chamado a atenção para mudanças dehumor, aumento da agressividade e dependên-cia psíquica entre os usuários, durante o perío-do de utilização dessas substâncias (Choi & Po-pe Jr., 1994; Kleinman, 1990; Lise et al., 1999).No presente estudo, os informantes relataramdificuldade em deixar de usar anabolizantes,referindo sentir desânimo e falta de energia pa-ra malhar quando não estão sob o efeito dosmesmos. Em alguns usuários, a dependênciaparece se manifestar de forma semelhante àque ocorre com quem utiliza substâncias psi-co-ativas, produzindo comportamentos comoa “fissura” que se caracteriza pela necessidadepremente de consumo das substâncias.

P: “Se você parar de usar anabolizante, vocêsente falta?”

R: “No começo eu sentia. Quando eu pareiassim, uma, duas semanas, é tipo um vício, tipoum cigarro. Dizem que cigarro não tem jeito deparar de fumar e era assim, a gente pensava quenunca ia deixar de tomar” (fisiculturista, 25anos).

“Tem cerca de cinco usuários lá que todos osdias, o dinheiro que pegam é para comprar. Melembra muito aquele cara fissurado em cocaí-na, que pega qualquer dinheiro e vai comprarum papel seja de que qualidade for. É quase amesma coisa (...) usam todo dia e ficam naque-la fissura, pedem logo a seringa: ‘Vamos logo,vamos logo. Me dê logo aí que eu tomo essapancada’ (gíria usada pelos UDI para se referirà injeção de drogas)” (Agente comunitário doCETAD, notas de campo).

Por fim, o compartilhamento de seringasna aplicação do anabolizante, representa tam-bém um grande risco para a transmissão dedoenças entre os usuários. A maioria dos infor-mantes afirmou não compartilhar aparelhos deinjeção e utilizar o serviço de troca de seringas,

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IRIART, J. A. B. & ANDRADE, T. M.1386

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(3):1379-1387, set-out, 2002

implantado no bairro pelo programa de redu-ção de danos do CETAD. Entretanto, o risco docompartilhamento existe e pode encontrar ter-reno fértil na crença, manifesta no discurso deum informante, de que todos os fisiculturistas,pelo simples fato de investirem muito em seuscorpos, são necessariamente saudáveis. Subja-cente a este discurso está o imaginário, muitodisseminado, de que a doença é sempre trazidapelo outro, no presente caso, aquele que nãofaz parte do grupo de amigos fisiculturistas.

“Esse lance de dividir seringas, tens uns quedivide” (fisiculturista, 26 anos).

P: “Uma seringa para todo mundo?”.R: “Prá todo mundo não, mas um, dois, eles

dividem. Mas essa galera que malha é muito di-fícil de ver esse negócio de doença, de AIDS, issoé muito difícil. O cara que malha ele gosta mui-to dele, ele não divide seringa. Mas quando eledivide, ele sabe que não vai pegar nada. Quan-do ele divide é porque ele tá com o camarada,aparece assim: ‘Pô, vamos tomar’, e bota. É mui-to difícil, o cara que malha assim de ter doença.Porque todo mundo que malha usa camisinha,em qualquer relação. Aí não é muito fácil ele pe-gar essas doenças não” (fisiculturista, 26 anos).

Conclusão

Os dados produzidos neste estudo, documen-tam o uso indevido de anabolizantes e os da-nos à saúde causados por essas substâncias,entre jovens fisiculturistas das classes popula-res de Salvador. O estudo analisa o consumodessas drogas à luz do contexto sócio-culturallocal e das condições psicossociais dos fisicul-turistas, onde a construção do corpo musculo-so e a sua exposição pública, constituem-se emimportante instrumento de construção identi-tária, assumindo também uma função utilitá-ria relacionada à sexualidade e à inserção nomercado de trabalho. Os dados apontam a faltade informação dos jovens entrevistados sobrea extensão dos danos à saúde decorrentes douso de anabolizantes, mostrando que para mui-tos, o desejo de desenvolver massa muscular e

alcançar um suposto corpo ideal se sobrepõeao risco de efeitos colaterais.

Informações que começam a ser coletadaspelo Programa de Redução de Danos do CE-TAD, em bairros da periferia de Salvador, per-mitem supor que a realidade encontrada nobairro do estudo, provavelmente se repete emoutros locais populares da cidade. O culto aocorpo, extremamente disseminado na socieda-de brasileira e refletido na mídia, associado àdesinformação, pode criar condições favorá-veis ao abuso de anabolizantes tornando-o umsignificativo problema de saúde pública, comovem ocorrendo nos Estados Unidos. Há neces-sidade de estudos de prevalência que apontema magnitude do consumo dessas substâncias,sobretudo entre os jovens de cidades brasilei-ras de médio e grande porte. Existem indíciosde que o uso de anabolizantes possa estar ocor-rendo significativamente também, em acade-mias de musculação dos bairros de classe mé-dia, mas estudos qualitativos e quantitativossão necessários para verificar este fato.

Os resultados indicam a necessidade de sedesenvolver ações culturalmente apropriadas,voltadas para a prevenção do abuso de anabo-lizantes pelos jovens fisiculturistas, ou seja,ações que levem em conta o contexto sócio-cultural em que ocorre o consumo de anaboli-zantes e os significados que lhe são associadospelos usuários.

No que tange à prevenção junto à popula-ção de usuários no presente estudo, conside-rando-se o perfil dos fisiculturistas e os com-portamentos de risco relacionados ao consu-mo de anabolizantes descritos, sugere-se a ado-ção dos mesmos princípios e práticas que nor-teiam as políticas de redução de danos entre osusuários de substâncias psico-ativas.

Essas incluem, além da orientação e infor-mação preventiva, a provisão de preservativos,equipamentos estéreis de injeção e a criaçãode serviços de assistência à saúde para essa po-pulação. O aumento de consumo de anaboli-zantes nos meses que precedem as festas po-pulares de verão, aponta para a necessidade deintensificação das ações preventivas nesse pe-ríodo do ano.

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USO DE ESTERÓIDES ANABOLIZANTES E PERCEPÇÃO DE RISCO 1387

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(5):1379-1387, set-out, 2002

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Agradecimentos

A pesquisa foi parcialmente financiada pelo Ministé-rio da Saúde (Coordenação Nacional de DST-AIDS)/Organização Mundial da Saúde, e o primeiro autorcontou com bolsa do Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (DCR/CNPq) du-rante a realização do estudo. Agradecemos também àcolaboração de Jane Montes, Edward MacRae e Beni-mário Silva.

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Recebido em 13 de junho de 2001Versão final reapresentada em 20 de fevereiro de 2002Aprovado em 1 de abril de 2002