Museologia comunitária como ação de educação patrimonial ...
Transcript of Museologia comunitária como ação de educação patrimonial ...
Museologia comunitária como ação de educação patrimonial: o caso do Ecomuseu dos
Campos de São José, SP
MARIA SIQUEIRA SANTOS1
Resumo
Quintais, ruas, parques, praças, escolas, locais onde se manifestam os patrimônios
culturais de uma comunidade. O solo comum do povo de um lugar. É neste solo comum que
acontecem as atividades do Ecomuseu dos Campos de São José. Rodas de conversa, mostras de
artes e saberes, oficinas de comunicação para jovens, plantio em áreas de recuperação
ambiental, hortas comunitárias, campanha de separação de resíduos e construção de hortas
pedagógicas em escola pública são exemplos de ações realizadas desde 2015 no bairro Campos
de São José e, a partir de 2018, também no Jardim Diamante e no Jardim Americano, todos eles
na Zona Leste da cidade, pelo Centro de Estudos da Cultura Popular – CECP.
Em diálogo com a Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários –
ABREMC – e amparado nas reflexões do ‘museólogo’ francês Hugues de Varine, bem como
apoiado em uma série de métodos de pesquisa de manifestações culturais (Espelho, espelho
meu, de Julieta de Andrade; Questionários apresentados no livro Ciência do Folclore de Rossini
Tavares de Lima e material disponibilizado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN), o CECP objetiva, com este projeto, valorizar saberes e fazeres para
fortalecer os patrimônios culturais locais e, assim, dar sustentação às ações coletivas de
moradores e ao desenvolvimento do exercício de cidadania.
1 Centro de Estudos da Cultura Popular, mestre em História.
2
Sobre o conceito
Quase não cheguei à palestra do senhor Júlio Abe Wakahara que aconteceu em Jacareí
por ocasião do 4º Encontro Regional 2019 da Representação Regional do Vale do Paraíba –
Sistema Estadual de Museus (Sisem). Não tive tempo de pesquisar o trabalho desse mestre da
museologia paulista, mas o breve encontro com ele me fez encarar um problema que venho
enfrentando nos últimos anos: o de definir o que é um ecomuseu? E, por conseguinte, localizar
o chamado Ecomuseu dos Campos de São José neste conceito.
Pois eis que o senhor Wakahara, após meu amigo me apresentar a ele como “a pessoa
do Ecomuseu de São José dos Campos”, comentou: “Mas o Varine não gosta do termo
“ecomuseu”. [...] Por ele ser usado como uma marca”. Não sei se foi esse o comentário exato
do professor, mas são esses os signos que me ficaram e que me deram fôlego para começar este
texto. A ocasião não me era oportuna para responder filosoficamente e adentrar a conversa.
Gostei da provocação, porém, e cá estou eu às voltas com o conceito de ecomuseu. Este é,
todavia, um texto inicial, pois desvendar o contexto de gênese de um conceito, qualquer que
seja ele, é algo complexo e que demanda um grande envolvimento de tempo e espaço. Em
minha atual conjuntura, algo bem difícil de se empreender.
Existe uma anedota no campo da museologia que diz que o termo “ecomuseu” nasceu
numa mesa de restaurante, em 1971, numa conversa entre consultores do governo francês e
representantes civis do mesmo país, que também eram representantes internacionais dos
Museus. Hugues de Varine era um dos presentes, assim como seu predecessor na direção geral
do ICOM2, Georges Henri Rivière. Eles estavam discutindo a IX Conferência Geral do ICOM
(Conselho Internacional de Museus), que seria realizada na França naquele mesmo ano com o
tema “O museu a serviço do homem presente e futuro”. Discutia-se, além disso, maneiras de
enquadrar nas políticas públicas francesas uma ação museológica extensiva e que teria, como
primeiro protótipo, o Écomusée du Creusot Montceau-Les-Mines.
2 “Criado em 1946, o ICOM é uma Organização não-governamental que mantém relações formais com a
UNESCO, executando parte de seu programa para museus, tendo status consultivo no Conselho Econômico e
Social da ONU”. Georges Henri Rivière foi o primeiro diretor geral do ICOM, ocupando este cargo de 1946 a
1962. Hugues de Varine ficou como diretor da instituição entre os anos de 1965 e 1974. (Disponível em:
http://www.icom.org.br/?page_id=4. Acessado em: 20/07/2019.
3
Para além do parto francês do conceito, qual o contexto da museologia que fez surgir,
em 1971, a palavra ecomuseu? Recuperar o conceito implica fazer recortes na história da
museologia para entender a gestação e, posteriormente, o desenvolvimento de práticas, mais do
que o nascimento de uma palavra.
Naquele ano, segundo fontes digitais do Minom (Movimento Internacional para uma
Nova Museologia)3, os encontros do ICOM foram decisivos e marcaram uma trajetória que
buscava a integração dos museus nas comunidades aonde eles estivessem localizados, além de
outras demandas organizacionais e políticas. Diz o quadro sumarizado sobre a Conferência de
19714:
“Confrontação entre reformadores de pensamento livre e tradicionalistas. Adesão e
acesso livre individual ou associativo: um sócio, um voto. Discussão e Revisão de
estatutos com fortes discussões. Redefinição do conceito de museu. Realçada a
importância do meio ambiente. Analisada a dimensão política do museu.”5
Nota-se que os encontros realizados em Grenoble e Paris foram tensos. O ICOM, que
até o momento era um órgão consultivo da Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura) nos assuntos relativos ao Patrimônio Cultural e Museus,
tornou-se uma associação de profissionais de museus, revendo seus estatutos, ou seja, sua
missão, sua meta, suas estratégias, fazendo uma redefinição do conceito de museu e pontuando
a importância de conectar museus e meio ambiente. Em 1972 as discussões foram ainda mais
profundas e marcaram a Mesa Redonda de Santiago do Chile, promovida pela Unesco/ICOM,
sobre o papel dos museus. Nesta ocasião, foi redigida a Declaração de Santiago, em que os
membros dos países participantes elaboraram os Princípios do Museu Integral, ampliando as
possibilidades de ação e inserção dos museus nas comunidades, considerando que essas
3 O Movimento Internacional por uma Nova Museologia (Minom), já desenhado em 1972, veio ao mundo na
Conferência de Quebec, em 1984, porém seu registro só aconteceu no ano seguinte, em Lisboa, no II Atelier
Internacional Ecomuseu/Nova Museologia. 4 Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/list_all.php?order=data&by=ASC. Acessado em:
06/08/2019. 5 Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/list_all.php?order=data&by=ASC. Acessado em:
06/08/2019.
4
instituições deveriam desempenhar um papel decisivo na formação/educação permanente das
pessoas.
É sabido que não foi apenas a museologia que passou por uma crise epistemológica.
Outras ciências também foram marcadas, em variados momentos da história, mas sobretudo na
segunda metade do século XX, por releituras autocríticas. O Museu, a Casa das Musas, cujo
poder seria o de guardar a memória física dos acontecimentos passados, sofreu também, a partir
de meados de 1960-70, por parte de proeminentes museólogos, críticas e novas propostas de
atuação. Embora datada no início da década de 1970, a proposta de uma museologia
micropolítica já vinha sendo gestada em âmbitos internacionais algumas décadas antes, é o que
podemos perceber acompanhando o documento disponibilizado online pelo Minom6.
Implantado em 1946 como um órgão consultivo da UNESCO, o ICOM tinha o objetivo
de ajudar a construir uma política pública global (ocidental, ao menos) para assuntos relativos
ao patrimônio. Constituída por conhecedores da área dos Museus, o ICOM, assim como a
UNESCO, emanou da França em busca de criação de uma rede de pessoas ligadas aos museus
nos países signatários da ONU (Organização das Nações Unidas) para a construção de uma
agenda positiva no que diz respeito à preservação do patrimônio museológico da humanidade.
No caminhar de sua caminhada, porém, e isto logo nos primeiros passos, o órgão, que se tornou
organização não-governamental, se voltou a pensar o papel educativo dos museus e estratégias
de aproximação das instituições museológicas das pessoas a serem “educadas”. Este viés
aproximou os museus também da antropologia, dos estudos de folclore, da psicologia social,
dos saberes populares.
Em 1962, no México, um Seminário Regional realizado pela UNESCO/ICOM abordou
o Museu como Centro Cultural da Comunidade. Nesse encontro discutiu-se:
“Museu como instrumento de educação popular. Atividades do museu em
conformidade com as necessidades locais. Recomendações inovadoras: - museu
entidade dinamizadora do desenvolvimento da comunidade. Comunidade entidade
dinâmica com interesses e preocupações comuns. Criação de pequenos museus como
promotores culturais das comunidades”.
6 Disponível em http://www.minom-icom.net/. Acessado em 25/07/2019.
5
Da década de 1960 até 1971 e adiante, culminando com a organização do Minom, na
década de 1980, os profissionais e estudiosos de museus ligados ao ICOM foram estreitando
suas concepções e ideias, trazendo novidades para o campo da Museologia, inclusive criando
este campo do conhecimento, ampliando os objetos dos museus, repensando a linguagem
expográfica, incluindo novas temáticas, levando os museus a atuarem nos territórios e
incorporando espetáculos e conferências à grade de programação dos museus.
No Brasil, tem sido relevante a influência do pensamento museológico francês, não só
porque foi ali que o conceito de ecomuseu nasceu, mas porque foi dali que emanou uma grande
brasa de museologia comunitária que influenciou diversas iniciativas brasileiras, como o NOPH
– Ecomuseu de Santa Cruz, Ecomuseu da Serra de Outro Preto, Ecomuseu da Amazônia,
Ecomuseu de Maranguape, assim como o Ecomuseu dos Campos de São José.
“A temática da democratização cultural (ou “educação popular”) surge
especialmente relevante em França. Da apreciação crítica de que, até aí, o museu
tinha sido um instrumento ao serviço das elites sociais e intelectuais, é entendido que
a continuação da sua existência deve passar pela sua transformação em instituição
ao serviço de todos e utilizada por todos. O museu pode e deve ser um instrumento
privilegiado de educação permanente e um centro cultural acessível a todos. Em
função de tais posicionamentos, é defendido um conjunto de reformulações que, de
forma mais ou menos lenta, será adotado dentro e fora do território francês.”
(DUARTE, 2013: p. 101)
O museu moderno, cuja missão era informar os cidadãos acerca da história dos grandes
heróis do passado e criar uma identidade nacional, ficou localizado, de maneira geral, nas
antigas propriedades reais, palácios, igrejas ou grandiosos prédios tornados públicos. Nestes
locais, foram dispostas coleções de arte, achados arqueológicos, informações sobre a fauna e
flora de variadas regiões do globo. As peças foram organizadas, catalogadas, se tornaram um
acervo museológico e, enfim, apresentadas ao público. Neste museu, o acervo tinha status sacro.
Embora apresentado ao público, este não pode tocá-lo, pegá-lo, usá-lo. Além disso, os grandes
museus europeus, bem como os de países americanos influenciados pela museologia europeia,
costumavam priorizar as narrativas oficializadas, os acervos de reis, nobres, homens de grande
destaque e poderio econômico.
6
A partir do pós II Guerra, dos movimentos de independência africana e dos movimentos
contraculturais europeus e norte-americanos, bem como da revisão identitária latino-americana,
os museus foram sendo repensados e recriados com o objetivo de ter “[...] um caráter dinâmico,
de centros de informação, lazer e de educação do público. Novas atribuições foram sendo
acrescidas àquelas já tradicionais de conservação e exibição de acervos, a exemplo de atividades
educativas, eventos culturais e de entretenimento”. (JULIÃO, 2002: p. 26) Questionava-se o
papel social dos museus e a necessidade de aproximação do cidadão comum desse importante
espaço de memória, ampliando as temáticas e os objetos dos acervos, bem como a linguagem e
os materiais expográficos.
“Os museus iniciam um processo de reformulação de suas estruturas, procurando
compatibilizar suas atividades com as novas demandas da sociedade. Deixam de ser
espaços consagrados exclusivamente à cultura das elites, aos fatos e personagens
excepcionais da história e passam a incorporar questões da vida cotidiana das
comunidades, a exemplo das lutas pela preservação do meio ambiente e da memória
de grupos sociais específicos. Atuando como instrumentos de extensão cultural,
desenvolvem atividades para atender a um público diversificado — crianças, jovens,
idosos, deficientes físicos — e, ao mesmo tempo, estendem sua atuação para além de
suas sedes, chegando às escolas, fábricas, sindicatos e periferias das cidades.”
(JULIÃO, 2002: p. 27)
Interessante que tenha emergido na França a crítica aos museus ditos “tradicionais”.
Justamente no país que inaugurou os museus nacionais, que democratizou os acervos de arte e
história de reis e nobres, exatamente ali a museologia moderna se tornou tão tradicional,
sagrada, distante das pessoas, das histórias cotidianas, dos objetos corriqueiros que marcam
toda uma geração de trabalhadores
“As novas ideias que sustentavam o modelo do ecomuseu provinham, por um lado,
da insatisfação de alguns pensadores franceses em relação à museologia tradicional,
que começaram a colocar em prática museus com uma finalidade descentralizadora
e, por outro, da influência de certas experiências de museus heterodoxos ou de
“vanguarda” nas ex-colônias. Em meio a este contexto de rupturas, o projeto
“ecomuseológico” visava permitir que a memória recolhida pelos etnólogos fosse
7
restituída ao conjunto do grupo através de diversos instrumentos, sendo a exposição
de objetos materiais apenas uma expressão possível (Chaumier 2004:66). Um dos
primeiros museus pensados com o objetivo explícito de romper com os entraves da
museologia “restrita” e fragmentária, que vinha sendo colocada em prática nos
museus tradicionais franceses, seria criado em uma importante região industrial,
completamente à margem de qualquer referência à dita “alta” cultura.” (BRULON,
2015: p. 268)
Sobre o Ecomuseu do Cresout-Montceau-Les-Mines, sua constituição e os
desdobramentos dessa prática que já existe a quase 50 anos, além das semelhanças e diferenças
existentes entre as práticas ecomuseológicas brasileiras e francesas é um capítulo a mais nesta
história. Ficará para a próxima ocasião, pois tenho o objetivo, agora, de apresentar o Ecomuseu
dos Campos de São José e, ao menos, um de seus aspectos: as hortas urbanas como ação de
educação patrimonial.
O Centro de Estudos da Cultura Popular e o Projeto Ecomuseu
Quintais, ruas, parques, praças, escolas, locais onde se manifestam os patrimônios
culturais de uma comunidade. O solo comum do povo de um lugar. É neste solo comum que
acontecem as atividades do Ecomuseu dos Campos de São José. Rodas de conversa, mostras de
artes e saberes, oficinas de comunicação para jovens, plantio em áreas de recuperação
ambiental, hortas comunitárias, campanha de separação de resíduos e construção de hortas
pedagógicas em escola pública são exemplos de ações realizadas desde 2015 no bairro Campos
de São José e, a partir de 2018, também no Jardim Diamante e no Jardim Americano, todos eles
na Zona Leste de São José dos Campos, pelo CECP (Centro de Estudos da Cultura Popular).
Em 1985 foi criada a FCCR (Fundação Cultural Cassiano Ricardo) com o intuito de
promover a cena cultural da cidade. Para distribuir o recurso repassado para a área de cultura
pelo governo municipal, a FCCR era apoiada por seis Comissões Municipais, de caráter
consultivo e compostas por pessoas da sociedade civil. A função dessas comissões era participar
da construção das políticas públicas para as áreas de teatro, música, literatura, artes plásticas,
cinema e folclore.
8
“Nesta época tiveram início os trabalhos da Comissão Municipal do Folclore, com o
objetivo de formar, informar e registrar as mais diversas manifestações da cultura
popular existentes e tão presentes em cada ser. Com estudo e documentação feitos
pela Comissão, pode-se avaliar a importância de cada gesto, do pensar, do agir e do
sentir na nossa personalidade.” (WEISS, 2012: p. 10)
Diversas pessoas fizeram parte da Comissão Setorial de Folclore, com destaque para a
atuação de Angela Savastano, folclorista e cientista social que fomentava o grupo e alimentava-
o com os conteúdos apreendidos na Escola de Folclore, entidade que atuava na cidade de São
Paulo e mantinha interlocução com ela. Dois importantes projetos foram propostos e realizados
pela Comissão de Folclore: o Piraquara e o Museu do Folclore (este último inicialmente
instalado na Igreja de São Benedito, localizada no centro antigo da cidade e tombada pelo
Condephaat em 1981).
Anos mais tarde as Comissões Municipais foram diluídas e cada grupo se reorganizou
como pode. No caso da Comissão de Folclore, alguns dos membros se mobilizaram e formaram,
mais tarde, uma (OSC) Organização da Sociedade Civil, o CECP, cujo objetivo era fomentar o
estudo e a pesquisa na área do folclore/cultura popular. Nesta altura o Museu do Folclore já
estava localizado na área do atual Parque da Cidade Roberto Burle Marx, antiga área da
Tecelagem Parahyba, da família de Olivo Gomes.
O CECP é, portanto, uma organização não-governamental sem fins lucrativos instituída
em 1999 com a finalidade de promover o estudo, a pesquisa, a difusão e a valorização dos
patrimônios material e imaterial em São José dos Campos, SP. Dentre as ações realizadas pelo
CECP, destacamos quatro delas que se articulam para o cumprimento de sua finalidade: a gestão
do Museu do Folclore de São José dos Campos, a salvaguarda da Biblioteca Maria Amália
Corrêa Giffoni, a produção da Coleção Cadernos de Folclore e o Projeto Ecomuseu.
Em março de 2015 o CECP iniciou, com o patrocínio da Petrobras/Governo Federal, a
execução do Projeto “Ecomuseu: um território, um patrimônio, uma comunidade”. Este projeto,
aprovado em seleção pública pelo Programa Petrobras Socioambiental 2014, já estava sendo
elaborado, porém, desde o início dos anos 2000, quando Angela Savastano, Flávia Diamante e
Nívea Oliveira iniciaram sua participação nos Encontros Internacionais de Ecomuseus e
Museus Comunitários (EIEMCs) e nas Jornadas de Formação em Museologia Comunitária,
9
realizados pela Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC) para
discutir e possibilitar a troca de experiências nessa área de atuação.
Assim, em diálogo com a ABREMC e amparado nas reflexões do museólogo francês
Hugues de Varine, bem como numa série de métodos de pesquisa de manifestações culturais
(Espelho, espelho meu, de Julieta de Andrade; Questionários apresentados no livro Ciência do
Folclore, de Rossini Tavares de Lima e material disponibilizado pelo Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN), o CECP objetiva, com este projeto, valorizar saberes
e fazeres para fortalecer os patrimônios culturais locais e dar sustentação às ações coletivas de
moradores para promover o exercício da cidadania.
Dialogando na perspectiva da Nova Museologia e traçando um percurso de renovação
e ampliação das coleções, exposições e ações, o CECP, em sua prática museológica, conflui
com o Centro Nayarit do Instituto Nacional de Antropologia e de História do México em seu
relatório na I Jornada sobre a Nova Museologia, ocorrida em Buenos Aires de 24 de outubro de
2001:
“Em primeiro lugar, pensamos que o nova museologia se insere no conceito de
Educação Popular, um processo teórico-metodológico de educação não formal, que
um grupo social ou uma comunidade cria e recria para estudar, conhecer, analisar e
transformar a realidade socioeconômica, política e cultural que os caracteriza a um
dado momento e em um espaço determinado. Por analogia, estamos convencidos de
que o museu comunitário e o ecomuseu territorial são, antes de tudo,
indiscutivelmente, espaços de educação popular. (LUGO APUD VARINE, 2013: p.
190.
Acervos e ações: a prática dos saberes agrícolas como ação de educação patrimonial
Para exemplificar a afirmação de que o CECP atua na esfera da educação popular tanto
nas ações ligadas ao Museu do Folclore quanto, posteriormente, nas ações do Ecomuseu dos
Campos de São José será apresentada aqui a experiência de construção de hortas comunitárias
em espaços urbanos.
10
Essa experiência se deu a partir da implementação do Ecomuseu dos Campos de São
José, em 2015. Iniciadas as rodas de conversa com os moradores com o intuito de dialogar a
respeito dos saberes e fazeres locais, nos deparamos com diversos migrantes de outros estados
brasileiros que vieram à São José dos Campos para trabalhar nas fábricas e indústrias
emergentes na cidade a partir da década de 1950.
De fato, a cidade passou por diversos ciclos migratórios desde o final do século XIX,
quando se tornou um local de referência no tratamento da tuberculose. Pessoas de diversas
regiões do país se dirigiram à cidade para buscar a cura ou ao menos um conforto para seus
corpos cansados. Depois de descoberta a penicilina para o combate de bactérias, a Estância
Hidromineral e Climatérica, título joseense, perdeu sua função sanatorial. Porém, por ser uma
área geograficamente estratégica, localizada entre Rio Janeiro e São Paulo, entre a serra e o
mar, no Vale do Paraíba, São José foi sendo transformada em um importante polo industrial do
estado de São Paulo.
A indústria atraiu muitos trabalhadores. Não somente a indústria, também o comércio
era promissor, pois os trabalhadores das fábricas invariavelmente precisariam de roupas,
sapatos e alimentação que não poderiam produzir e teriam de comprar. Por outro lado, a vida
no campo continuava difícil, o homem muito mais submetido às intempéries das estações,
ocupado, junto com sua família, em garantir a subsistência familiar, e, de maneira extensiva, da
comunidade em que estava inserido. Uma geada, uma chuva de pedra, uma seca, um incêndio,
manifestações da natureza que hora ou outra dificultavam as condições de vida na roça. Além
disso, segundo relatos, as dificuldades de financiamento público e as questões trabalhistas
pesavam no cotidiano rural.
Voltando às rodas no bairro, nestas ocasiões se conversava sobre as histórias de vida
dos participantes, estimulando que cada um trouxesse um objeto de memória que pudesse
disparar uma narrativa acerca dos aprendizados familiares, dos costumes, dos fazeres. Peças de
artesanato, costuras, utensílios de cozinha, bolos e quitutes, exemplares de livros de poesia. Um
dia, lá pelas tantas, um dos participantes da roda comentou que seu saber era relacionado à roça.
Ele sabia plantar e tirar leite de vaca. Desdobramentos dessa conversa, meses depois começava-
se o plantio de árvores nativas para recompor a mata ciliar de um pequeno trecho do ribeirão
Alambari. Neste espaço, além das árvores, os moradores poderiam cultivar a agricultura. Com
11
o poder público, conseguiu-se a autorização para o cultivo e cuidado do espaço, bem como as
mudas de árvores, um pouco de adubo e instruções acerca do plantio e manejo das plantas. O
restante do material foi fruto do empenho da comunidade envolvida e de seus amigos.
Conseguiu-se arame, mourão, ferramentas, mudas. Conforme a disponibilidade local, as mudas
foram sendo plantadas e muito bem cuidadas. Embora a quantidade não fosse expressiva em
termos macros, plantou-se cerca de 250 mudas, a pega foi de 100%, não tendo-se perdido uma
planta sequer. É importante frisar isto porque já se havia plantado extensivamente árvores
naquela região, porém, quando o CECP iniciou o plantio ali apenas uma árvore habitava aquele
espaço. E uma árvore aparentemente doente.
Também é importante lembrar que esse terreno, uma Área de Preservação Permanente,
encontrava-se, em 2015, coberto por entulhos de construção civil descartados irregularmente,
sofás e outros móveis, animais mortos. Antes do plantio das árvores foi necessária, depois de
uma série de ligações de moradores ao 156, a retirada de cerca de seis caminhões de entulho do
terreno. Assim que ficou limpo o local, foi feito o cercamento de uma pequena área, roçada do
mato, abertura dos berços e plantios das árvores. Em seguida, os mesmos moradores iniciaram
o plantio das hortaliças e outros gêneros alimentícios. Neste momento, enfrentamos a questão
da água para a irrigação das plantas. Depois debates realizados nas rodas de conversa (que
aconteciam semanalmente), consultas aos técnicos da Secretaria do Meio Ambiente, pesquisas
de sistemas caseiros de captação de água da chuva, montou-se um piloto para tal fim. Verificou-
se vantagens e desvantagens no uso desse reservatório, além da possibilidade de replicar o
sistema para outros espaços. Também se desenvolveu ali uma composteira e uma horta de ervas
medicinais, além da continuidade do plantio das mudas de árvores.
Numa outra área do bairro Campos de São José, uma região de fronteira, pois faz divisa
com dutos da Transpectro que transportam petróleo até a Refinaria Henrique Lage, a Revap,
localizada na Zona Leste da cidade, no entorno dos bairros onde o Projeto Ecomuseu é
desenvolvido, teve início em 2018 outro movimento de horta urbana comunitária. Assim como
a experiência descrita anteriormente, essa atividade foi fomentada pela ação do Ecomuseu dos
Campos de São José a partir de rodas de conversa e dos encontros com os moradores
interessados em transformar uma área pública degradada em horta. Conseguiu-se o apoio da
SEURBS (Secretaria de Urbanismo e Sustentabilidade, antiga Secretaria de Meio Ambiente)
12
para a realização do cultivo. O Ecomuseu, por sua vez, mobilizou os moradores do entorno para
a realização de mutirões de limpeza e construção da horta, além de custear as ferramentas e
demais materiais necessários para o cercamento do espaço, além de mudas de plantas e caçamba
para complementar a limpeza do terreno, uma vez que a limpeza bruta já havia sido realizada
pela SMC (Secretaria de Manutenção da Cidade).
Nos bairros que foram abrangidos pelo Projeto Ecomuseu a partir de 2018, o Jardim
Americano e o Jardim Diamante, as hortas urbanas estão sendo iniciadas. Nestes bairros,
diferente do Campos de São José, há poucos espaços públicos para a instalação de ações como
essa, embora haja muito espaço vazio. Nos dois casos, são espaços pertencentes à Petrobras e
à CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista), porém, pelo fato de não
serem espaços públicos, embora sejam espaços de uso público, as negociações para produção
nestes locais ainda estão sendo feitas.
Em todos esses casos aqui rapidamente descritos evoca-se o patrimônio local, o
território e os saberes agrícolas, para promover o desenvolvimento da comunidade. Tal
desenvolvimento passa pelo reconhecimento da população daquilo que compõe seu patrimônio
cultural e a percepção de que esse patrimônio pode ser acessado em benefício próprio e da
comunidade em que se vive. São ações de educação patrimonial. Nas palavras de Varine:
“A educação patrimonial é para mim uma ação de caráter global, dirigida a uma
população e a seu território, utilizando instituições como a escola ou o museu, mas
sem se identificar com qualquer uma delas em particular. Seu objetivo é claramente
o desenvolvimento local, e não uma mera aquisição de conhecimento sobre o
patrimônio, ou uma animação cultural. A proposta visa a levar o maior número
possível de membros da comunidade a conhecer, a dominar e a utilizar o patrimônio
comum dessa comunidade. A ação integra-se no projeto e no programa geral de
desenvolvimento do território que ela acompanha, eventualmente evoluindo em
função das necessidades deste desenvolvimento.” (VARINE, 2013: p. 137)
Lições da prática – Considerações Finais
13
Em Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Zygmunt Bauman traz como
intertexto as análises de Ferdinand Tönies e Göran Rosenberg sobre as diferenças entre as
comunidades antigas e as sociedades modernas.
Ferdinand Tönies, segundo Bauman, pontua que nas comunidades pequenas e familiares
havia um entendimento compartilhado por todos os seus membros, um entendimento tácito, que
precedia a palavra, que era anterior a qualquer tipo de combinado ou regra social. (BAUMAN,
2003: p. 15). Também nessas comunidades, agora na acepção de Göran Rosenberg, as pessoas
viviam numa espécie de “círculo aconchegante”, um local idílico, que teria fundamentado os
primeiros agrupamentos humanos, seguindo a mesma lógica do entendimento comunitário de
Tönies. (BAUMAN, 2003: p. 16) Já nas sociedades modernas, compostas de grandes
agrupamentos populacionais oriundos de variadas regiões, localizadas em áreas urbanas, o
“entendimento compartilhado” foi substituído pelo “consenso”. Neste tipo de sociedade não há
um acordo tácito, pelo contrário, os acordos devem ser estabelecidos e é necessário vigilância
de todas as partes para que os tratos e regras não sejam quebrados.
“[...] Vejam bem: o consenso não é mais do que um acordo alcançado por pessoas
com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos
difíceis, de muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais.” (BAUMAN, 2003:
p. 15)
No ponto em que estamos, século XXI, Brasil, São José dos Campos, cidade industrial
paulista, “sociedade moderna”, não temos a experiência da comunidade original, dos
agrupamentos isolados, pequenos e autossuficientes. Além disso, a distância entre a
comunidade original e a comunidade moderna fica ainda mais intensa com a ascensão da
comunicação entre os “de dentro” e os “de fora”, alterando o equilíbrio das relações e trazendo
novidades não imaginadas. Acaba-se o isolamento, a pequenez e, devido ao conhecimento de
coisas novas, o que é produzido “dentro” não é mais suficiente para aplacar os desejos... finda-
se a autossuficiência da comunidade.
“[...] A distância, outrora a mais formidável das defesas da comunidade, perdeu
muito de sua significação. O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento
comunitário foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do
14
fluxo de informação proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em
que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade
muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte (como no tipo de
sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o “dentro” e o
“fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida.” (BAUMAN, 2003:
p. 18-9)
Nessa sociedade formada por migrantes das mais diversas regiões brasileiras, alguns
vindos de cidades, outros egressos da zona rural, uns vindos das regiões Norte e Nordeste,
outros provenientes do Sul e Sudeste do país, outras religiões, outros costumes, outros modos
de pensar e agir. Esse mosaico cultural que forma a população de São José dos Campos, em
especial as populações dos bairros Campos de São José, Jardim Americano e Jardim Diamante,
embora se fale em “comunidades”, não se trata de exemplares dessas comunidades antigas,
onde o entendimento era compartilhado. Nas comunidades onde o Ecomuseu dos Campos de
São José atua trata-se, portanto, de sociedades modernas onde busca-se um consenso.
“De agora em diante, toda homogeneidade deve ser “pinçada” de uma massa
confusa e variada por via de seleção, separação e exclusão; toda unidade precisa ser
construída; o acordo “artificialmente produzido” é a única forma disponível de
unidade. O entendimento comum só pode ser uma realização, alcançada (se for) ao
fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com um número
indefinido de outras potencialidades – todas atraindo a atenção e cada uma delas
prometendo uma variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais agradável) de
tarefas e soluções para os problemas da vida. E, se alcançado, o acordo comum
nunca estará livre da memória dessas lutas passadas e das escolhas feitas no curso
delas. Por mais firme que seja estabelecido, portanto, nenhum acordo parecerá tão
“natural” e “evidente” [...]. Nunca será imune à reflexão, contestação e discussão;
quando muito atingirá o status de um “contrato preliminar”, um acordo que precisa
ser periodicamente renovado, sem que qualquer renovação garanta a renovação
seguinte.” (BAUMAN, 2003: p. 18-9)
Esse trecho de Bauman descreve de maneira precisa o cotidiano das relações
interpessoais no Ecomuseu em questão. As práticas de construção de hortas urbanas são lições
sobre isto. Muito embora sejam ações de educação patrimonial e tenham aproximado os
15
moradores do seu próprio patrimônio, colocando-os em situação de protagonismo no cuidado
do território vivido e responsabilizando-os para manutenção do espaço coletivo, melhorando o
ambiente da vizinhança e possibilitando pensar em atividades para geração de renda, no
momento em que uma horta é inaugurada num bairro uma série de problemas conheçam a
surgir: quem vai irrigar? Como será feita a distribuição dos alimentos? Quem vigiará para saber
o quanto cada um trabalhou? Como resolver o problema do roubo das plantas? Como irrigar
sem custos extras para os moradores? E a manutenção das ferramentas? São várias as demandas
e diversas as mediações que precisam ser feitas para que o consenso não se perca.
“[...] Mais do que como uma ilha de “entendimento natural”, ou um “círculo
aconchegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar, a comunidade
realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente
bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e frequentemente
assolada pela discórdia interna; trincheiras e baluartes são os lugares onde os que
procuram o aconchego, a simplicidade e a tranquilidade comunitárias terão que
passar a maior parte do tempo.” (BAUMAN, 2003: p. 19)
Embora não haja um entendimento natural, embora nosso lugar sejam as trincheiras, vê-
se, ouve-se, percebe-se a importância da ação ecomuseológica para aquelas pessoas que viram
seu cotidiano, sua relação com os vizinhos, seu cuidado com os espaços públicos, o
entendimento de seu papel de cidadania transformados em decorrência de uma ação concreta
do terreno comum. Embora o trabalho progrida a passos curtos, cheio de altos e baixos e outros
contratempos, cada planta colhida, cada nova pessoa que se envolve com o Ecomuseu é um
fruto das sementes lançadas pelo Centro de Estudos da Cultura Popular ao longo de sua história
e de sua prática museológica.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003.
16
BRULON, Bruno. “A invenção do Ecomuseu: o caso do Écomusée du Creusot Montceau-
Les-Mines e a prática da Museologia Experimental”. In: Mana. Vol. 21. Nº 2. Rio de Janeiro,
p. 267-295. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93132015000200267&lng=en&nrm=iso. Acessado em: 09/08/2019
DUARTE, Alice. “Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda
inovadora”. In: Revista Museologia e Patrimônio. Vol. 06. Nº 1. Rio de Janeiro: MAST,
2013, p. 99-117. Disponível em:
http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/248/239.
Acessado em: 09/08/2019.
JULIÃO, Letícia. “Apontamentos sobre a História do Museu”. In: Caderno de Diretrizes
Museológicas 1. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura/Superintendência de
Museus, 2002, p. 19-32. Disponível em:
http://www.cultura.mg.gov.br/component/gmg/page/618-publicacoes-sumav. Acessado em:
25/07/2019.
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.
Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2013.
WEISS, Maria Helena. “Sonhos que se tornam realidade”. In: O saber e o fazer no Museu do
Folclore. São José dos Campos: FCCR/CECP, 2012, p. 10.