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Fausto BorémEditor de PER MUSI - Revista Acadêmica de Música ([email protected])

EditorialCom o presente número 11 de Per Musi, finalizamos a série de quatro artigos que Jean-Jacques Nattiezescreveu com exclusividade para nossos leitores. Aqui, ele levanta questões sobre a crise atual e futuroda musicologia, tendo em vista a ambígua relação desta com a própria música, seja pela fragmentação deseus focos, pelas posições de julgamento de valor sobre o objeto artístico ou pela posição muitas vezesparasitária de seu discurso. Na sua descrição e análise, o grande semiólogo musical percorre as principaistendências, pesquisadores e estudos que tem marcado esta sub-área da música.

Vladimir Silva recorre aos princípios da retórica e da análise schenkerinana em um aprofundado estudosobre a Paixão Segundo São Lucas de Krzysztof Penderecki, estabelecendo também uma relação entreesta obra monumental e o coral An Wasserflüssen Babylon de J. S. Bach.

No primeiro estudo histórico-analítico publicado no Brasil sobre o minimalismo, Dimitri Cervo apresentao contexto sócio-cultural, compositores (incluindo alguns brasileiros), obras e procedimentos composicionaisque fazem deste um dos mais importantes estilos musicais surgidos na segunda metade do século XX.

A abordagem analítica de Ângelo José Fernandes sobre a Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto)do compositor e regente mineiro Carlos Alberto Pinto Fonseca mostra a convivência de contrários nestaobra premiada, como o sacro e o profano, o latim e a língua vernácula, o tonalismo e o modalismo e oerudito ao lado de uma variedade de referências a gêneros populares como o baião, o vira português, ascantigas de ninar, as cantigas de roda, o canto de aboio, o samba-canção, a marcha-rancho, o choro e ospontos de umbanda.

Após mais de um século de sua composição, Fausto Borém discute a história, restauração e resgate dahistórica Impromptu, obra para contrabaixo e piano de Leopoldo Miguez, cuja partitura é aqui publicadapela primeira vez e com a nova versão da parte de piano de Roberto Macedo Ribeiro, que recebeu oprimeiro prêmio em um concurso internacional de composição.

Maria Lúcia Pascoal analisa A Prole do Bebê n.1 e n.2 de Villa-Lobos, dissecando seus procedimentoscomposicionais nas dimensões vertical (movimentos paralelos, intervalos de segundas, quartas e quintas)e horizontal (faixas sonoras e bordões de uma a quatro notas) para concluir que sua síntese original éamparada por uma combinação rítmico-melódica brasileira.

Questionando as limitações da notação musical, Zelia Chueke combina a opinião de especialistas empsicologia da música, musicólogos, teóricos, filósofos e instrumentistas, para explorar os três estágios daescuta (escuta da partitura, escuta interna e escuta da performance) durante uma preparação eapresentação ao piano.

Any Raquel Carvalho e Martin Dahlström Heuser analisam seis obras para órgão do compositor mineiroCalimerio Soares, verificando seus diversos graus de pandiatonicismo e como este procedimento setorna essencial na sua estruturação harmônica e linguagem musical.

Finalmente, Júnia Canton Rocha entrevista o compositor Almeida Prado sobre sua coleção de Poesilúdiospara piano, revelando motivações, culturas e instrumentos musicais que inspiraram o compositor, em umcurioso pano de fundo para o mosaico formado por essas obras.

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PER MUSI - Revista Acadêmica de Música é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade eo debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSIestá indexada nas bases RILM Abstracts of Music Literature e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

EditorFausto Borém (UFMG)

Comissão EditorialAndré Cavazotti (UFMG)

Cecília Cavalieri França (UFMG)Maurício Freire (UFMG)

Maurício Loureiro (UFMG)Rosângela de Tugny (UFMG)

Sandra Loureiro de Freitas Reis (UFMG)

Conselho Consultivo do Volume 11Anthony Scelba (Kean University, EUA)

Antônio Carlos Guimarães (UEMG)Antônio Gilberto de Carvalho (UFMG)

Artur Andrés (UFMG)Carlos Palombini (UFMG)

Celso Loureiro Chaves (UFRGS)Diana Santiago (UFBA)Eliane Tokeshi (USP)

Florian Pertzborn (Escola Superior de Música, Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Helena Jank (UNICAMP)

Jocelei Borher (Faculdade de Música Carlos Gomes, São Paulo; UFRGS)Lúcia Barrenechea (UFG)

Maggie Williams (Revista Strad, Inglaterra)Margarida Borghoff (UFMG)

Salomea Gandelman (UNIRIO)Sônia Ray (UFG)

Vania Camacho (UFPB)William Davis (University of Georgia, EUA)

Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Espanha)

Revisão GeralFausto Borém (UFMG)

Maria Inêz Lucas Machado (UFMG)

Universidade Federal de Minas GeraisReitora Profa. Dra. Ana Lúcia Almeida Gazzola

Vice-Reitor Prof. Dr. Marcos Borato Viana

Pró-Reitoria de Pós-GraduaçãoProf. Dr. Jaime Arturo Ramirez

Pró-Reitoria de PesquisaProf. Dr. José Aurélio Garcia Bergmann

Escola de Música da UFMGProf. Dr.Lucas José Bretas dos Santos, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG:Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coordenador

Secretárias de Pós-GraduaçãoEdilene Oliveira, Dasy Araújo e Ráulia Augusta de Mello

ProduçãoIara Veloso

Projeto GráficoCapa e miolo: Jussara Ubirajara

Logomarcas PER MUSI e Vinheta “PEGA NA CHALEIRA”Desenhos: Fausto Borém

Arte final: Edna de Castro (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

Arte-Final Romero H. Morais / Samuel Rosa Tou (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

FotosFoca Lisboa (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

Tiragem250 exemplares

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - v.11, janeiro / junho, 2005 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2005 –

v.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599

Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

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SUMÁRIO

O desconforto da musicologia ...................................................................... 5The disconfort of musicology

Jean-Jacques NattiezTradução de Luis Paulo Sampaio

Uma Análise da Paixão Segundo São Lucas de Krzysztof Penderecki ... 19An analysis of St. Luke’s Passion by Krzysztof Penderecki

Vladimir Silva

O Minimalismo e suas técnicas composicionais ....................................... 44Minimalism and its compositional techniques

Dimitri Cervo

De Batuque e Acalanto: uma análise da Missa Afro-Brasileira de CarlosAlberto Pinto Fonseca .................................................................................. 60De Batuque e Acalanto: an analysis of the Afro-Brazilian Mass by Carlos Alberto Pinto Fonseca

Ângelo José Fernandes

Impromptu de Leopoldo Miguez: o renascimento de uma obra históricado repertório brasileiro para contrabaixo ................................................... 73Impromptu by Leopoldo Miguez: the renaissance of a historical work from the Romantic Braziliandouble bass repertory

Fausto Borém

Partitura de Impromptu para contrabaixo e piano de Leopoldo Miguez . 86Score of Leopoldo Miguez´s Impromptu for double bass and piano

Leopoldo Miguez (Parte de piano de Roberto Macedo Ribeiro; Ed. Fausto Borém)

A Prole do Bebê n.1 e n.2 de Villa-Lobos: estratégias da textura comorecurso composicional ................................................................................. 95Villa-Lobos’s A Prole do Bebê N.1 and N.2: aspects of texture and composition techniques

Maria Lúcia Pascoal

Reading music: a listening process, breaking the barriers of notation 106Lendo música: um processo de escuta, quebrando as barreiras da notação

Zelia Chueke

Tendências pandiatônicas na obra para órgão solo de Calimerio Soares 113Pandiatonic tendencies in the organ works by Calimerio Soares

Any Raquel CarvalhoMartin Dahlström Heuser

Entrevista com o compositor Almeida Prado sobre sua coleção dePoesilúdios para piano solo ...................................................................... 130Interview with Brazilian composer Almeida Prado about his Poesilúdios collection for solo piano

Júnia Canton Rocha

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NATTIEZ, Jean-Jacques. O desconforto da musicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.5-18Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p. jan - jun, 2005

Recebido em: 02/02/2005 - Aprovado em: 13/03/2005.

O desconforto da musicologia1

Jean-Jacques Nattiez (Université de Montréal, Canadá)Tradução de Luis Paulo Sampaio (UNIRIO)

[email protected]

Resumo: Do mesmo modo que as demais ciências humanas, a musicologia atravessa atualmente uma difícilcrise de crescimento, cujo motivo, segundo o autor deste texto, é a relação ambígua que ela mantém com seuobjeto de estudo, a música. Esta ambigüidade seria provocada por três razões cuja descrição e análise constituemo objetivo do artigo: 1) Por ser a musicologia uma a linguagem sobre a música, alguns a consideram como umdiscurso parasitário; 2) o grande número de campos especializados em que a disciplina se desdobrou; 3) porque,sendo o seu objeto de estudo o conceito de arte, surgem problemas quando são abordadas questões sobre oBelo musical e sua autenticidade.Palavras-chave: musicologia, etnomusicologia, história da teoria musical, semiologia

The disconfort of musicology

Abstract: Musicology like the other Humanities is going through a difficult growth crisis which, according to theauthor of this text, is motivated by the ambiguous relationship it maintains with its subject of study: Music. Suchambiguity is due to three basic reasons which are described and analyzed in this article: 1) Being a languageabout Music, some people consider Musicology a parasitical discourse; 2) the unfolding of this discipline in agreat number of specialized fields; 3) as the concept of art itself is one of its main subjects of study, manyproblems arise when Musicology deals with issues on authenticity and on the idea of the Beautiful in Music.Keywords: musicology, ethnomusicology, history of musical theory, semiology

A musicologia mantém uma relação ambígua com seu objeto, a música, e, talvez, como outrasciências humanas, ela parece estar atravessando atualmente uma difícil crise de crescimento.Esta relação é ambígua por três razões:

a) porque é uma linguagem sobre a música, alguns vêem nela um discurso parasitário quetrai a essência daquela;

b) porque, nesses últimos anos, a musicologia diversificou-se em um grande número decampos especializados, com seu cortejo de múltiplas escolas e igrejinhas;

c) porque a musicologia trata de uma arte e, ainda que o conceito de obra de arte, no sentidoocidental do termo, não seja adequado, como no caso da etnomusicologia, os julgamentosde valor – invocando uma noção indefinida de Belo musical ou de autenticidade – nãoestão ausentes dele.

Como nada omiti sobre as dificuldades encontradas, tanto no diálogo introdutório quanto nosdemais ensaios reunidos no volume indicado na nota abaixo, vou tentar agora, à guisa deconclusão, esclarecer o que penso sobre estas três categorias de dificuldades.

1 Este texto constitui o sexto capítulo da coletânea de artigos La musique, la recherche et la vie (Montréal,Leméac, 1999). As duas primeiras seções foram objeto do discurso de minha recepção à Société Royale duCanada (23 de novembro de 1988) publicado no periódico Présentation da Académie des lettres et scienceshumaines, Société Royale du Canada, n° 42, 1988-89, p. 15-28. A presente versão para publicação em PerMusi foi revista em 15 de janeiro de 2005.

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1. A musicologia como discurso parasitário

O musicólogo é, por natureza, vítima de um defeito indelével: sua função principal é a deescrever ou falar sobre a música, mas, por vezes, ele sente que sua consciência lhe pesa.Porquanto, mesmo que a música partilhe com a linguagem verbal, entre outros aspectos, alinearidade do seu desenvolvimento e, se temos, com freqüência, a sensação de que por meiodela, o compositor, o improvisador ou o intérprete, nos falam, sabemos bem que ela apenas éuma “linguagem” no sentido metafórico, capaz de provocar fortes sugestões emocionais - aoponto de que Platão tenha proposto regulamentar a utilização de certos modos musicais naPolis. Ela tem também a capacidade de, em determinadas condições, imitar ou evocar o mundoexterior, particularmente o movimento e o espaço, e as pesquisas da psicologia experimentaljá demonstraram sua capacidade de evocar algo tão substancial quanto a água, ou tão metafísicoquanto o absoluto ou a eternidade, sem que a obra seja, necessariamente, acompanhada deum título ou de um programa. Entretanto, para que ela seja uma linguagem, no sentido técnicodo termo, falta-lhe a capacidade de organizar os feixes de significações e de conotações segundouma sintaxe. Quando, após a sua análise, constato que, no início de Tristão e Isolda, Wagnerfaz com que sejam ouvidos sucessivamente os motivos da confissão, do desejo, do olhar, edepois, o da liberação pela morte, é porque posso, apenas a posteriori, parafrasear esteencadeamento e lhe atribuir uma lógica discursiva que é, ao mesmo tempo, uma interpretaçãodo mesmo: “A confissão nasceu do desejo, ele próprio surgido de um olhar e somente a mortepoderá livrar Tristão e Isolda da impossibilidade de seu amor.” A sintaxe da música propriamentedita se situa alhures: ao nível das expectativas que, no curso do desenvolvimento da obra,cada evento suscita, para depois resolver; ao nível do sentido musical retrospectivo que cadanovo evento sonoro dá àquilo que já foi ouvido.

Porém, o mal-entendido entre musicistas e não musicistas, sem dúvida, tem origem nisto:comparada à linguagem, a música parece sofrer da falta de alguma coisa; para o musicista aocontrário, ela é vivenciada como uma forma simbólica sui generis, sem que lhe seja precisopassar por uma verbalização sofisticada,. Ninguém expressou isso melhor do que Proust, em LaPrisonnière, quando sonhou fazer da música tanto o modelo de obra de arte absoluta comoaquele da literatura: «Eu me perguntava, escreveu ele, se a música não era o exemplo único doque poderia ter sido – se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras,a análise das idéias - a comunicação das almas. É ela como uma possibilidade que não teveprosseguimento; os homens enveredaram por outros caminhos, o da linguagem falada e escrita.»(PROUST, 1988, p.762-763; 1981, p.218) 2 Explica-se, então, que, para o musicista, o discursodo musicólogo possa ser percebido como uma concorrência parasitária, até mesmo umafalsificação da essência profunda do musical, de seu caráter fundamentalmente inefável. Ouçamoso que diz o filósofo Vladimir JANKÉLÉVITCH (1961, p. 75, 101, 102): “A música significa algumacoisa em geral sem jamais querer dizer algo em particular. . . [Ela] tem isso em comum com apoesia e o amor e, até mesmo, com o dever: ela não é feita para que dela se fale, ela é feita para

2 A remissão às traduções brasileiras de textos estrangeiros, quando for o caso, é a que aparece em segundolugar nas citações.

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que se a faça; ela não é feita para ser dita, mas para ser tocada... Não, a música não foi inventadapara que se fale de música !” Porém Jankélévitch assume, então, uma postura bem temerária:«E como, por nossa vez, pretendemos falar do indizível, falemos dele ao menos para dizer quenão se deve falar dele e para desejar que seja esta, hoje, a última vez.”

Porém, o autor parece haver tido bastante dificuldade em segurar sua língua ou sua pena.Porquanto são milhares as páginas, com freqüência admiráveis, que lhe devemos, consagradasa Chopin, Liszt, Rimsky-Korsakov, Fauré, Satie, Debussy, Ravel. . . O filósofo tem, sem dúvida,o privilégio de poder ainda glosar sobre a necessidade do silêncio. O musicólogo não dispõedeste recurso. Pois, se a consciência pesada se apodera dele, mesmo que seja possível retornarao seu piano, a seus discos, a suas conferências, isto de nada lhe servirá, pois ele só existecomo tal quando discorre e escreve.

Deveria eu me lamentar, ou demonstrar inveja do crítico literário, admitido, aparentementecom bastante facilidade, na República das letras porque partilha com o romancista ou o poetao mesmo meio? Por que, em certo nível, a crítica literária é considerada, ela própria, comoliteratura? Invejoso ainda do historiador da arte, cujo discurso é, por natureza, materialmentetão diferente dos pigmentos coloridos aplicados sobre uma superfície que seu propósito nãopode ser percebido como concorrente? São inúteis os queixumes estéreis. O que importa écompreender o que aproxima e distingue, do ponto de vista semiológico, a música e o discursosobre a música. Como existem relativamente poucos musicólogos que tenham se debruçadosobre essa questão, não posso deixar de mencionar as reflexões de Charles SEEGER (1977,p. 48): “Os objetivos imediatos da musicologia [são]: (a) integrar o conhecimento e a sensibilidademusicais, o conhecimento discursivo e a sensibilidade ao assunto, de maneira que isto sejapossível em uma apresentação discursiva, e (b) indicar tão claramente quanto possível até queponto isso não é uma possibilidade.” Precisamos de “uma teoria geral, segundo a qual a distorçãoprovocada pelo inevitável viés do sistema no qual é feita a apresentação – a arte do discurso –seja a menor possível.” (SEEGER, 1976, p.1). Este autor chegou mesmo a sonhar em conseguirreduzir o que chamava de «bias of speech» através de uma aproximação dos dois meios: “Odiscurso canta e a música fala, bem mais do que imaginamos” (SEEGER, 1977, p. 131). Porém,mesmo que, tal como uma colega, Marcia Herndon, o fez certa feita durante um congresso deetnomusicologia (HERNDON-BRUNYATE, 1975, p.126-130), eu me pusesse a cantar paradizer-lhes, ao som de uma ária de Verdi, como é dramática a situação da musicologia, a cançãoviria, talvez, reforçar o colorido daquilo que tenho a lhes dizer, mas seu conteúdo cognitivo nãodeixaria de ser transmitido pela linguagem.

A musicologia se insere, portanto, nesse desvão entre linguagem e música. Ela é, antes detudo, uma busca de conhecimento e não deve ter vergonha de sê-lo, mas é uma busca difícil,como observou muito bem Lévi-Strauss no prefácio a O cru e o cozido: “A música [é] o supremomistério das ciências do homem, contra o qual elas esbarram, e que guarda a chave de seuprogresso” (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 26; 1991, p. 26)

Sabemos o que essa bela fórmula significa para Lévi-Strauss: pelo fato de que a música é feitade repetições e de transformações que podem ser determinadas sobre o eixo sintagmático edas quais é possível fazer um inventário graças aos eixos paradigmáticos, o antropólogo viunela o modelo da análise estrutural dos mitos. Mas se levarmos essa proposição às suas

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últimas conseqüências, torna-se difícil pensar que as ciências humanas só chegarãoverdadeiramente a uma situação de maturidade quando a musicologia houver elucidado osmistérios da música. Penso que, ao contrário, o destino da musicologia parece estar ligadoàquele das outras ciências humanas. Isto é o que lhe dá, hoje em dia, uma nova densidade, aomesmo tempo em que a priva de sua autonomia.

2. O desdobramento da musicologia

Por consenso geral, considera-se o ano de 1837 como aquele em que se deu o surgimento daexpressão musicologia (Musikwissenschaft) em um livro de um pedagogo alemão de nomeLogier: não se poderia imaginar data simbolicamente mais significativa. Aquele foi o ano damorte de Beethoven quem, mais do que qualquer outro, fez da obra do compositor a mensagemde um indivíduo solitário e heróico dialogando diretamente com seu século. Foi também aépoca em que, com Johann Strauss, a música de entretenimento se separou da música eruditae, na qual, certos compositores passaram a se especializar na Gebrauchsmusik. Foi a épocaem que se introduziram nos concertos obras do passado - a Paixão segundo São Mateus foiressuscitada por Mendelssohn em 1829, sendo executada pela primeira vez depois da mortede Bach –, em que se tomou consciência da historicidade agregada à criação musical. Foijustamente antes da morte de Beethoven e depois dele, em 1824-26, com Reicha, em 1837-1847, com A.B.Marx e, em 1849-1850, com Czerny, que a forma-sonata foi objeto da descriçãoe da teorização que conhecemos hoje. Em suma, a musicologia surge no momento em que opúblico começou a ter dificuldades em compreender a música. Se a teoria musical já existia hámuito tempo – pense-se em Rameau que explicitou como produzir um bom encadeamentoharmônico -, seria doravante necessário explicar a música aos ouvintes. Entre 1887 e 1890,Kretzschmar publicou os 3 volumes de seu Führer durch den Konzert-Saal, um “Guia para asala de concertos”, fundado sobre o que ele chamou – dando ao termo um sentido algo diferentedaquele que encontramos em Schleiermacher ou Dilthey - de hermenêutica musical, ou seja,uma explicação, com base em dados históricos e biográficos, das emoções transmitidas pelocompositor através de suas obras. Na mesma época, no primeiro número do Vierteljahrsschriftfür Musikwissenschaft, em 1885, Guido Adler publicou um artigo, «Umfang, Methode und Zielder Musikwissenschaft» - “Alcance, métodos e objetivos da musicologia” -, considerado comoa pedra fundamental da musicologia moderna.

Trinta anos antes de Saussure, Adler dividiu o campo da musicologia em dois grandes setores,a musicologia histórica e a musicologia sistemática (veja a tabela detalhada de Adler traduzidapara o português por DUDEQUE em Per Musi, v.9, jan-jun, 2004, p.117). O primeiro setorcompreendendo quatro ramos: a paleografia musical, isto é, o estudo das notações; o estudodas categorias históricas fundamentais, a saber, as formas e sua evolução; o estudo das regrastal como aplicadas nas composições de cada época e tal como concebidas e ensinadas pelosteóricos; e, finalmente, a organologia dos instrumentos musicais.

Já a musicologia sistemática tem caráter sincrônico, pois se ocupa dos fundamentos das leisque revelam a história, quer se trate da harmonia, do ritmo ou da melodia; ela compreende aestética, a psicologia da música e também a educação musical, isto é, o ensino da harmonia,do contraponto, da composição, da orquestração, da interpretação, além daquilo quedenominamos hoje a etnomusicologia.

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O que impressiona nessa concepção da musicologia de pouco mais de cem anos atrás é seucaráter holístico e globalizado. Entretanto, Adler não fez mais do que traçar um programa e,como disse o lingüista Hjelmslev, “para o cientista, nada é mais belo que vislumbrar diante desi uma ciência a ser feita”. De que modo um mesmo pesquisador poderia conseguir dominar,na prática, todas as disciplinas conexas que, segundo Adler, seriam necessárias a esseprograma? Para a musicologia histórica: a história geral, a paleografia, a ciência dos manuscritos,a bibliografia, a arquivologia, as biografias, a história da literatura, a história das religiões, ahistória da dança; para a musicologia sistemática: a acústica e a matemática, a fisiologia, apsicologia, a pedagogia, a gramática, a lógica, a métrica, a poética, a estética, etc.

Hoje em dia, essa lista precisa ser revista, detalhada e, até mesmo, ampliada: certamente énecessário acrescentar a lingüística, a antropologia, a informática e as ciências cognitivas.Porém, o que tinha de acontecer, aconteceu: a musicologia se dispersou. De início, noprolongamento do século XIX, ela foi fundamentalmente histórica. Com a entrada em cena, noalvorecer do século XX, do estudo das músicas de tradição oral, ela se tornou comparativa:falamos da vergleichende Musikwissenschaft (“Musicologia comparativa”). Com a atençãovoltada para o ambiente sócio-cultural da música e o reconhecimento de sua dimensãoantropológica, a “musicologia comparada” da escola de Berlim tornou-se “etno-musicologia”na década de cinqüenta. Finalmente, enquanto modelos analíticos cada vez mais sofisticadosdavam maior ênfase às estruturas imanentes das obras do que à história das formas, a análisemusical sincrônica, com Schönberg, Schenker, Réti e, atualmente, Ruwet, Forte, Meyer, Narmouret Lerdahl, tende a se tornar uma disciplina autônoma. Este desdobramento se reflete na históriadas instituições musicológicas.

Em 1917, nascia a Sociedade Francesa de Musicologia, seguida, em 1927, pela SociedadeInternacional de Musicologia. Já a American Musicological Society (A.M.S.) veio à luz em 1934.Em 1947, deu-se o primeiro cisma com a criação do International Folk Music Council que setornaria, em 1981, o International Council for Traditional Music. Em 1955, os etnomusicólogosnorte-americanos não se sentem mais à vontade na A.M.S. – sociedade em que predomina aabordagem histórica da música (não é por acaso que as más línguas a chamam de “AmericanMedieval Society”!) – e nasce a Society for Ethnomusicology, em princípio com vocaçãointernacional, mas que realiza seus congressos, essencialmente, na América do Norte. Quantoà Société française d’ethnomusicologie, esta foi criada em 1983. Abrindo-se, portanto, para umoutro objeto musical: as músicas camponesas e populares dos países desenvolvidos, as músicasextra-ocidentais, as músicas de tradição oral.

Em 1977, ocorreu um novo divórcio entre os americanos: a Society for Music Theory forneceuum novo horizonte para as abordagens analíticas e sincrônicas das obras musicais. Uma Sociétéfrançaise d’analyse musicale veio à luz em 1987. Por outro lado, a globalização da indústriamusical provocou, por sua vez, a criação de uma International Association for the Study ofPopular Music, em 1980.

O desenvolvimento da psicologia experimental permitiu, por seu lado, a criação de sociedadesque se dedicam ao estudo cognitivo da música, com o surgimento de uma Society for MusicPerception and Cognition nos Estados-Unidos, de uma European Society for the CognitiveSciences of Music e de uma Japanese Society for Music Perception and Cognition. Não é difícil

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imaginar que, no momento em que biologia do cérebro tenha feito o progresso que se espera,um novo eixo de pesquisas se abrirá para a musicologia. Um primeiro encontro de biomusicologiajá ocorreu em Fiesole, em maio de 1997. . .

Essa situação não tem, certamente, nada de anormal, quando comparada a outras disciplinasdas ciências humanas. E a proliferação dos domínios, dos métodos e das referênciasepistemológicas que se constata hoje em minha disciplina, está, sem dúvida, em perfeitaconsonância, ouso dizer, com a situação geral da cultura e do saber.

Entretanto, é preciso perguntar se, com o desconforto atual da musicologia e, provavelmente, deoutras disciplinas, não teremos, de fato, abandonado um período de ditosas ilusões em relação aoqual seria um erro mantermos uma excessiva nostalgia. Isto porque, quando existia consenso emtorno de abordagens rigorosamente históricas ou psico-biográficas, aquilo apenas significava queoutras dimensões dignas de investigação tinham sido ocultadas. Quando ocorreu o triunfo dosgrandes paradigmas globalizantes – o estruturalismo, o funcionalismo, o marxismo, a psicanálise –, o sentimento de homogeneidade desses modelos resultava tão somente de seu caráter reducionista.O desmoronamento das visões totalizantes, para não dizer, em certos casos, totalitárias, nos fezreaprender o senso da complexidade inerente ao estudo das práticas e das obras humanas. Asituação atual é, sem duvida, menos estimulante, pois que o espírito está sempre em busca daunidade e da unificação. Mas ela nos aproxima da necessária humildade científica. É isto o queexplica – face à diversidade dos saberes justapostos de que dispomos hoje em dia a propósito deum mesmo objeto –, o sucesso da abordagem sistêmica. Ao mesmo tempo, sabemos melhor quenosso discurso é menos a transmissão de uma verdade do que uma construção, como, desde oinício do século passado, o demonstrou para sua disciplina, o físico Paul DUHEM (1906). E,retomando as belas análises do historiador Paul VEYNE (1971), cada uma dessas construçõesdepende do enredo a partir do qual o pesquisador seleciona e organiza a realidade.

Era muito mais fácil ensinar a musicologia há vinte anos, porque estávamos convencidos, cadaum em sua esfera, de um certo número de certezas. Se me alongo sobre a situação de dispersãoem que vive presentemente a musicologia, é porque não podemos deixar de colocar a questãoda transmissão pedagógica de nossas pesquisas.

Por certo, é perfeitamente normal que novos eixos de investigação sejam objeto de ensinoespecializado, mas não se deve jamais esquecer, não obstante o conceito demasiado radicalde revolução cientifica proposto por KUHN (1962), que todo novo paradigma emergiu de umestado anterior da ciência. Tais estados anteriores, nós os conhecemos porque convivemoscom eles, mas as novas gerações de estudantes não os conhecem. Estas gerações terão atendência a aceitar passivamente a nova imagem que apresentaremos de nosso objeto e,lamentavelmente, com muita freqüência, não os encorajamos para que façam uma apropriaçãoepistemológica do passado, convencidos que possamos estar de que todo novo eixo de pesquisarepresenta não apenas a última palavra, mas também a última verdade. Que ingenuidade! Seos paradigmas pudessem falar, diriam sem dúvida, o mesmo que, segundo Valéry, dizem ascivilizações: “Nós, os paradigmas, sabemos bem que somos mortais.”

Assim sendo, face à situação atual da musicologia, vou me permitir fazer duas proposições:uma ao nível do ensino e a outra ao da pesquisa.

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É absolutamente indispensável que se introduza nos cursos das faculdades de música a históriada musicologia, a história da teoria musical e a história da análise musical. Esta me parece ser aúnica maneira de fornecer pontos de referência a nossos estudantes e, sobretudo, a possibilidadede que compreendam de onde vem o discurso que se faz hoje em dia e a razão dele. Isto já sefaz aqui e acolá, e eu mesmo tentei dar uma contribuição, desenvolvendo, a partir de um cursoque ministrei na década de 1980, um artigo consagrado à história da etnomusicologia, elaboradohá algum tempo juntamente com meu saudoso colega Charles L. Boilès (NATTIEZ-BOILÈS,1977). Mas, isso ainda não é algo sistemático e, ouso dizer, automático, como deveria ser, umavez que, como se sabe, não existe departamento de matemática que se preze que não ofereçaensino consagrado aos fundamentos e à história da matemática.

Em segundo lugar, seria preciso contextualizar melhor em nossas publicações as pesquisaspor nós realizadas. Como nossas disciplinas não são cumulativas no sentido das ciênciasexperimentais, não estou a ponto de propor que nossos artigos, tal como aqueles de nossoscolegas da medicina ou da química, comecem pela lista de todos os estudos precedentes nalinha da nova contribuição. Penso antes no exemplo admirável do lingüista Kenneth Pike quem,em seu livro de 1967, Language in Relation with a Unified Theory of Human Behaviour, terminavacada capítulo com uma longa apresentação e discussão das teorias que o tinham inspirado, ouentão se posicionando em relação àquelas que ele, se necessário, contradizia. Será quepoderíamos ser ainda capazes de tanta sabedoria?

Porém, não gostaria que minhas propostas adquirissem o tom de uma lição de moral. Elas são,de qualquer modo, e, sem dúvida, uma autocrítica de caráter genérico. Em face da dispersãoem que se encontra a musicologia, como descrevi acima, trabalhei no sentido de colocar emoperação o modelo tripartite da semiologia musical, cujos princípios apresentei em outro artigo,publicado em 1997, também traduzido no Brasil (NATTIEZ, 2002). Ao adotar este modeloholístico, eu poderia facilmente ser censurado por ter cedido ao sonho, algo fantasioso, deunificação, que acabei de criticar com referência à proposta das ciências humanas na décadade 1960; contudo, não mais se trata de trabalhar a partir de um paradigma reducionista. Pelocontrário, trata-se de examinar as possibilidades de interações entre os saberes de naturezadiferente convocados pela operacionalização daquele modelo: história, estética, análise,hermenêutica, antropologia, sociologia, psicologia, ciências cognitivas, biologia. Deixar de tentarfazê-lo seria me dar por satisfeito com a fragmentação e a pulverização que prevalecem hoje.Como não me conformo com esta situação, prefiro, mesmo ao risco de um revés, fazer umaaposta em sentido contrário. Em todo caso, é desta maneira que tento vivenciar as interrogaçõesatuais da musicologia, na esperança de torná-la menos desconfortável. Todavia, contribuirpara uma nova unidade da musicologia através do modelo que acabo de evocar não será,talvez, a tarefa mais difícil.

3. Musicologia e julgamento de valor

Durante o período estruturalista que se seguiu à Segunda Guerra, o fato de despojar as análisesde todo e qualquer julgamento de valor era considerado, mais no mundo acadêmico que entre oscompositores, uma garantia de neutralidade acadêmica e de cientificismo. Não havia Schenker,já no início do século XX, elaborado seu sistema de análise para justificar a predominância damúsica alemã do barroco, do classicismo e do romantismo? Os analistas da década de 1960, os

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“music theorists”, não se enredaram nesta armadilha, posto que a tendência musicológica contrária,aquela do “music criticism”, não se privava de avaliar as obras de que tratava. Curiosamente, aatitude dos “theorists” coincidia, neste ponto, e unicamente neste ponto, com a dos “culturalistas”que definiram, e ainda definem, a ideologia oficial da etnomusicologia: todas as culturas seequivalem, não há, no interior de uma determinada cultura musical, produção inferior ou superiorà outra; o que se precisa compreender é a significação que cada uma delas têm, no seio de certacultura, para aqueles que a produzem e aqueles que a escutam.

Eu rompi com este ilusório parti pris da objetividade quando tive que admitir, juntamente comminha equipe de pesquisas, que se havia privilegiado o estudo dos “jogos de garganta” (jeuxde gorge) dos Inuit em relação aos cantos de dança com tambor, foi porque considerei osprimeiros musicalmente bem mais interessantes que os segundos. O que, aliás, não me impediude estudar estes últimos (Cf. NATTIEZ, 1988-1989). Além disso, se eu não tivesse me debruçadosobre “o resto” da cultura musical Inuit, jamais teria podido compreender um bom número dedimensões dos jogos de garganta. Mas este era o fato que se apresentava ali. O etnomusicólogoBruno Nettl, com seu humor corrosivo, chama nossa atenção sobre algo que é, sem dúvida,uma forma de má fé. Será mesmo que o etnomusicólogo não permite que seus julgamentos devalor interfiram em seu trabalho? Basta observar as músicas às quais ele devota toda a suaatenção. . . (Cf. NETTL, 1983, p. 322).

Também me tornei mais “brando”, desta feita em relação à criação musical contemporânea,quando tive ocasião de ouvir Répons de Boulez, obra que me parece ter conseguido fugir darotina da escrita pontilhista de Darmstadt, ao mesmo tempo em que se afirma por suaresplandecente beleza, confirmada através de seu lançamento em disco, desde há algum tempoaguardado (Cf. NATTIEZ 1993, cap.VIII; 2005, cap.X) Isso não significa que eu tenha deixadode agir como musicólogo em relação àquela obra. Ao contrário. O julgamento de valor se apóiatanto sobre os conhecimentos quanto sobre as estruturas de pensamento evidenciados emsua disciplina, e não deixei de recorrer – em um capítulo de meu livro La musique, la rechercheet la vie livre, ao modelo da tripartição a fim de respaldar a minha crítica do pós-modernismo.

Contudo, é preciso também levar em conta que, se o musicólogo pode tentar basear a construçãode suas análises ou de seu discurso histórico sobre princípios epistemológicos, ele fica emmaus lençóis quando se lhe pedem os fundamentos de seus julgamentos de valor. DAHLHAUS(1970), num texto ao mesmo tempo difícil e fascinante como Analyse und Werturteil cuja traduçãofrancesa com o título Analyse et jugement de valeur foi publicada, em 1990, no conhecidoperiódico Analyse musicale, deu sua enérgica resposta: todo julgamento de valor éhistoricamente determinado; portanto, é possível avaliar sua pertinência com base numacaracterização analítica e estilística ancorada nos fatos. Entretanto, se nos exemplos que eleanalisa na terceira parte da obra, Dahlhaus, o historiador antes de tudo, empreende a justificativahistórica dos critérios de avaliação cujo conteúdo nos é historicamente transmitido, seu ensaionão permite respaldar os seus próprios julgamentos de valor, como, por exemplo, aquele queo leva a escrever, respondendo a Adorno sem citá-lo: “A Ave Maria [de Gounod] é, tal comotodos os dramas de Scribe, uma dessas pièces bien faites [em francês no texto original] apropósito das quais não convém se exaltar, pois que são, a um só tempo, boas demais paraque se justifique a indignação, e demasiado ruins para que valha a pena se indignar”(DAHLHAUS, 1970, p. 42).

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Assim sendo, a responsabilidade é do musicólogo que toma a iniciativa de criticar. Este é umexercício de tauromaquia, que nem sempre empreendemos com completo conhecimento decausa, sendo que tenho minhas dúvidas se o papel que nele exercemos seja o de toureador…No que me toca, mantenho as certezas já expressas até aqui neste artigo, o que me posicionado lado de Dahlhaus, quanto aos riscos que ele assume: felizmente os grandes compositoresocidentais não hesitaram diante do receio de cometer o pecado do elitismo, empreendendomonumentos belos e poderosos, ao que se sabe, desde a Arte da fuga à Tetralogia. . . Porém,o que me permite, em época de pleno descaminho relativista, afirmar a existência de critérios,até certo ponto, pouco tangíveis do Belo e do êxito estético?

Em um artigo estimulante e de grande importância, Molino lembra que as tradições platônica eneo-platônica reconhecem três “condições objetivas do Belo”: “1) inteireza, ou integridade, aintegritas sive perfectio dos escolásticos; o objeto belo deve ser determinado por uma formaque corresponda a seu tipo plenamente realizado. Esta é a razão pela qual o critério deintegridade para um ser é o de que não lhe falte tudo aquilo que deveria ter: um objeto belo éum objeto ao qual nada falta; 2) a harmonia, harmonia, definida por Plotino como “o acordo naproporção das partes, entre elas e com o todo” ; 3) o brilho, claritas, que corresponde ao prazercausado pelas qualidades sensíveis, aquilo que no objeto, “prende e retém o olhar” (GILSON,1963, p. 49).” (MOLINO, 1990, p. 22).

Por certo, é possível objetar que esses critérios são aqueles da Antiguidade, de uma culturaparticular, historicamente datada. Molino executa, então, um salto de dois mil anos, eencontra, em BEARDSLEY (1981, p.446), um esteta contemporâneo, três “cânones gerais”da Beleza: «1) O cânone de unidade ; 2) o cânone de complexidade ; 3) o cânone deintensidade. (...) O paralelismo entre as duas listas é impressionante e, evidentemente, nãoé devido ao acaso.” (MOLINO, 1990, p. 22)

O que acontece durantes os períodos em que domina a estética da antiarte? É característicoque os aspectos valorizados não mais sejam mais do que o retorno dessas categorias: adispersão (Stockhausen, Boulez), a simplicidade (Reich, Glass), a zombaria (dadaismo,surrealismo). Na era moderna, “o campo estético não mais se define pela exclusão do feio enenhuma experiência, como tal, escapa à extensão do campo. Donde a necessidade deintroduzir, entre as categorias objetivas que analisamos acima, um valor estético precisamentenaquilo que traz o novo e a ruptura: o irregular, o grosseiro, o descontínuo, o fragmentário, oinacabado e o redundante tornam-se categorias estéticas superiores às categorias anterioresque foram por eles deslocadas.” (MOLINO, 1990, p. 25) O autor acaba por chegar à conclusãode que a estrutura fundamental do julgamento de gosto é “um julgamento irredutível que se fazacompanhar por um conjunto de razões, razões estas que jamais chegam a fundamentá-lo demaneira absoluta” (ibidem)

Mas Molino imagina um juiz em nossos dias. “Toda a questão é a de saber o que fazer. Osmodernos crêem sabê-lo, os pós-modernos sabem que não o sabem mais. Quanto ao juiz, estedeve estar persuadido de que sabe ainda menos. Eu pleitearia, portanto, que se fizesse umaespécie de julgamento em “ziguezague”. O que não quer dizer pleitear qualquer coisa, muito pelocontrário.” (MOLINO, 1990, p. 26. [Os grifos são meus]) Eis que voltamos ao ponto de partida:“Ainda existem obras belas e grandiosas” (Ibidem), acrescenta ele. O artigo, após ter tangenciado

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o relativismo ambiente, reabre a porta a uma posição absoluta que flerta com a transcendência,sem nos dizer se é preciso fundamentá-la sobre as três famílias de critérios apresentadas.

Por meu lado, retenho desse soberbo panorama a permanência desses três critérios, inclusivesob a forma de sua inversão sistemática: falar do feio ou do irregular ainda é se referir a umacerta idéia do belo e do simétrico. O que demonstra bem uma certa constância, mesmo quandoo espírito da época conduz à rejeição desses novos critérios. Talvez isso possa ser atribuídoao fato de existir uma certa permanência histórica. Mas e o que dizer quando se aborda ascategorias estéticas em ação nas sociedades de tradição oral?

Por longo tempo pensava-se ter resolvido o problema negando-se a existência de uma dimensãoestética entre essas populações: apenas a funcionalidade explicaria as suas produções musicais.Esta é uma página virada hoje em dia. Todas as culturas se equivalem? Seria preciso respeitaros estilos de cada cultura, assim como suas tradições e seus valores? Qual seria então arazão, no que se refere ao domínio do Belo, pela qual, no próprio seio do conjunto culturalconstituído pelos índios da América do Norte, os membros dos grupos do Sul reconhecem debom grado que a música das tribos do Norte é de qualidade superior, e de que haja um consensosobre isso quando das reuniões inter-étnicas? Qual é o motivo que permite o meu julgamento,quanto à qualidade da voz de meu principal informante Inuk, Qumangapik, coincidir com o dosautóctones? Já é chegado o tempo dos etnomusicólogos empreenderem estudos sistemáticossobre etno-estéticas análogas às que foram reportadas por Frank Willett a propósito das artesplásticas, em African Art (WILLETT, 1971, p. 208-222), que demonstram, à exaustão, a existênciade uma hierarquia de critérios estéticos em ação nas sociedades estudadas, nas quais, algunsdeles – não todos - são idênticos aos nossos. . .

Ouçamos a dança Mbaga des Bagandenses de Uganda, uma dança de iniciação ao casamento(NATTIEZ-TAMUSUZA, 2002). Seria possível reconhecer ali a presença da complexidade?Sim. Graças aos trabalhos de Simha AROM (1985), sabemos que as músicas da África negrasão tudo, menos improvisadas, e colocam em jogo uma sistematização que nada fica a deveràs sutilezas da Ars nova. Encontro essa mesma complexidade na dança em questão, seja pelointrincado jogo das hierarquias entre os instrumentos, pelas relações entre ritmos e ciclosmétricos, ou entre a parte do canto e as variações dos tamborileiros.

E quanto ao critério de unidade? Aqui também Arom demonstrou perfeitamente como asvariações constituintes do desenvolvimento “puramente” musical nesses repertórios nada maissão do que o desenvolvimento de modelos subjacentes, que não apenas se encontram nabase de execuções particulares, como também lhes conferem a sua identidade. Respaldadopela lição de Arom, descobri que cada uma das oito partes da dança Mbaga se baseia em ummotivo que se encontra na origem das variações e que, por sua vez, sete destes motivos nãodeixam de ter um vínculo com um motivo específico, considerado por meu principal informantecomo o mais importante e que, além do mais, reencontro na base de todo o repertório religiosotradicional. Unidade, como nos persegues . . .

Quanto ao critério de intensidade, basta ouvir a música desta dança. Os tamborileiros começam,de maneira relativamente tranqüila. Quando são atingidas a quarta e a quinta partes, oandamento se torna mais apressado, com os tamborileiros rivalizando em virtuosismo: essemomento da dança evoca as preliminares sexuais e a penetração, um dos objetivos essenciais

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da iniciação dos jovens casais que assistem à dança. Os músicos e as dançarinas retornamem repetidas ocasiões a esses motivos. Em seguida, a dança continua para terminar em ummomento de intensidade de outra espécie: o que se poderia chamar de “elogio” da cultura dabananeira, essencial para a sobrevivência dos jovens recém-casados: para que estejam emboa saúde e fisicamente aptos para trazer no mundo a sua prole.

Certamente seria fácil mostrar que os critérios de apreciação desta dança e de sua música,considerados pelos Bagandenses como centrais à sua cultura, estão ligados a categorias quelhe são próprias: do casamento nascerão crianças que irão permitir que a alma dos paissobreviva, razão pela qual é essencial que, já na noite de núpcias, a jovem recém-casadaengravide. O que não impede que a complexidade, a unidade e a intensidade formem a baseda música desta dança. (Para uma análise desta dança, cf. NATTIEZ-TAMUSUZA, 2003).

Não há nada de tão diferente em Répons de Boulez: uma obra que, provavelmente, irá figurarentre as obras-primas do século XX, ao lado de Pelléas et Mélisande, da Sagração da prmaverae de Wozzeck . Unidade? Oh, quanta! A obra é derivada de uma matriz de cinco acordes desete sons, enunciados logo nos dois primeiros compassos, cujas notas formam a base dodesenrolar linear que o ouvinte seguirá durante 42 minutos. Complexidade? Esta é grande,recorrendo com freqüência a strettas de agrupamentos densos e rápidos, ou a momentos deconfusão entrópica que vêm pontuar as zonas de claridade. (Para uma análise detalhada, cf.NATTIEZ, 1993, cap.VIII; 2005, cap.X) Quanto à intensidade, basta que nos deixemos invadirpor essas imensas vagas sonoras, resultantes da combinação da execução instrumental e doprocessamento informático das partes dos seis solistas . . .

Ainda seria fácil mostrar aqui também o que as categorias em ação em Répons devem aouniverso cultural de Boulez: a busca da unidade em comum com Bach, Schönberg e Webern,a pesquisa de uma complexidade cultivada pela tradição neo-serial de Darmstadt, a vontadede oferecer aos ouvintes, do início da década de 1980, fios condutores da percepção. Entretanto,para além do que se refere a um momento da cultura européia contemporânea, os três eixosda unidade, da complexidade e da intensidade estão bem presentes.

Quer isto dizer que para compreender o porquê dos julgamentos de valor que atravessam ahistória e as culturas se possa volver a Platão e se desembaraçar das explicações históricas eculturais? Não se trata de excluir “a presença dos valores sócio-culturais na elaboração dojulgamento estético” sobre os quais minhas colegas e amigas Monique Desroches e GhyslaineGuertin insistem com tanta eloqüência (DESROCHES e GUERTIN, 1997, p.78). Mas serianecessário portanto adotar uma concepção relativista do julgamento de valor? De fato, euapostaria numa dialética do permanente e do variável, o que é completamente diferente.

O que Molino propõe, de Platão a Beardsley, é um gigantesco paradigma dos critérios de valorreduzidos a três eixos. Todavia, o conteúdo desses eixos é diversamente colorido, em cadaépoca e em cada cultura, por “operadores” a serem descritos e inventariados: o princípio doretorno, nas eras moderna e pós-moderna, é, com certeza, um deles; o princípio de estabilidadena civilização japonesa, fortemente posto em questão hoje em dia pela industrialização, seria,sem dúvida, um outro desses operadores. Mas, para compreender este retorno ou estaestabilidade, é necessário fazer referência a uma tradição ou a estados anteriores. Cada época,

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cada geração não repensa as categorias estéticas dos períodos precedentes em função desuas próprias categorias dominantes? É o jogo do poiético e do estésico que reaparece aqui.

Se existe uma certa constante paradigmática para além da extraordinária variedade dosjulgamentos de valor presentes nas culturas do mundo, será que eu deveria pagar o meutributo à metafísica e ousar falar de transcendência ? Preferiria arriscar a idéia, por maisetnocêntrica que seja, de que existem talvez universais do valor e do Belo que não excluem aindividualidade de outros critérios próprios a esta ou àquela sociedade. Então, em que pesemas aparências, minha posição seria fundamentalmente antropológica. . .

Imagino uma história semiológica dos julgamentos de valor, que mostraria como cada época ecada cultura expressou, transformou e matizou, com seus conceitos próprios, os três eixosfundamentais propostos aqui e que parecem caracterizar todas as formas possíveis de avaliaçãoestética no tempo e no espaço. Ao término do exercício, se assistirá, talvez, à emergência deuma certa permanência da qualidade e do valor. Isto explicaria, talvez, que, para além dadúvida, da incerteza e do relativismo, o espírito humano funciona – até quando não se dá contada idéia ou mesmo a recuse – a partir de categorias estáveis e fundamentais.

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Jean-Jacques Nattiez é Professor Titular de Musicologia da Faculade de Música daUniversidade de Montreal. Considerado pioneiro da Semiologia Musical, publicou: Fondementsd´une sémiologie de la musique (UGE, 10-18, 1975), Musicologie générale et sémiologie(Bourgois, 1987), De la sémiologie à la musique (UQAM, 1987), Le combat de Chronos etd´Orphée (Bourgois, 1993). Aplicou seus conceitos semiológicos às relações entre a música ea literatura (Proust musicien, Bourgois, 1984, 1999); às obras de Wagner (Tétralogies, Bourgois,1983; Wagner androgyne, Bourgois, 1990); ao pensamento de Pierre Boulez (do qual editouvários volumes de escritos, dentro os quais a correspondência com John Cage); à música dosInuit (Candá), dos Aïnous (Japão) e dos Baganda (Uganda), destes publicando diversos discos.Autor do romance Opera (Leméac, 1997) e da autobiografia intelectual La musique, la rechercheet la vie (Leméac, 1999). Foi o primeiro co-editor e co-fundador da Revue de musique desuniversités canadiennes, dirigindo Circuit de 1990 a 1999. Hoje, é diretor geral de umaEnciclopédia de Música, em 5 volumes, cuja publicação, em italiano, pela EINAUDI, iniciou-seem 2001, e, em 2003, pela ACTE-SUD, em francês. Escreveu cerca de 150 artigos, realizandoséries de conferências em vinte países. Vários de seus livros foram traduzidos para o inglês, oitaliano e o japonês. A edição revista e aumentada do Combate de Cronos e Orfeu será, embreve, publicada no Brasil, por VIA LETTERA.

Luis Paulo Sampaio é doutor em musicologia pela Universidade de Montreal e professortitular de Análise Musical na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

REICHA, A., 1824-26 : Traité de haute composition musicale, Paris, Zettler & Cie, 2 vol.SEEGER, C., 1976 : «Tractatus Esthetico-Semioticus», in Grubbs, J.W. (ed.), Current Thought in Musicology,

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SILVA, Vladimir. Uma Análise da Paixão Segundo São Lucas de Krzysztof Penderecki. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.19-43.Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 10/08/2004 - Aprovado em: 05/11/2004.

Uma Análise da Paixão Segundo São Lucas de Krzysztof Penderecki

Vladimir Silva (UFPI, Bolsista do CNPQ na LSU, EUA)[email protected]

Resumo: A Paixão Segundo São Lucas é uma obra que exemplifica o estilo de Krzysztof Penderecki nos anossessenta. No presente estudo, o autor evidencia aspectos tonais da Paixão e mostra a possível relação existenteentre a obra de Penderecki e o coral An Wasserflüssen Babylon (BWV 267) de J. S. Bach. A análise comparativada estrutura original (Urstaz) e da estrutura do discurso (dispositio), nas duas peças, mostra como música e textoestão diretamente interligados e como tais estruturas enfatizam aspectos relevantes e distintos do drama músico-textual.Palavras-chave: Paixão Segundo São Lucas; Krzysztof Penderecki; retórica; J. S. Bach.

An analysis of St. Luke’s Passion by Krzysztof Penderecki

Abstract: St. Luke’s Passion is a work that exemplifies Krzysztof Penderecki’s style in the 1960s. In this study,the author brings up tonal aspects of the Passion and points out a hypothetical relationship between Penderecki’swork and J. S. Bach’s chorale An Wasserflüssen Babylon (BWV 267). The comparison between their fundamentalstructure (Ursatz) and their textual organization (dispositio) displays how music and text are closely related inboth compositions, and how they highlight relevant and distinct aspects of the musical-textual drama.Keywords: St. Luke’s Passion; Krzysztof Penderecki; rhetoric; J. S. Bach.

A música coral da segunda metade do século XX foi marcada por uma grande diversidade detécnicas composicionais. Vários compositores contribuíram decisivamente para o desenvolvimentode novas linguagens, dentre os quais Krzysztof Penderecki, compositor polonês que ocupa lugarproeminente na história das vanguardas musicais dos anos sessenta.1 O objetivo deste estudoé analisar a obra Passio Et Mors Domini Nostri Iesu Christi Secundum Lucam (de agora emdiante denominada Paixão Segundo São Lucas), evidenciando aspectos estruturais relevantesno intuito de criar referenciais teóricos para a compreensão do repertório coral.

O estilo composicional de Penderecki é bastante diversificado, englobando, dentre outrosaspectos, o experimentalismo, a aleatoriedade, o serialismo e o uso de estruturas de massasonora. Duas etapas principais marcam a produção composicional de Penderecki. A primeirafase, que vai até 1974, é caracterizada pelo uso de notação não-convencional; estruturasparcialmente controladas e experimentos com vozes e instrumentos; e textos incomuns, frutosda combinação de fontes religiosas, poéticas e filosóficas. A segunda fase, que tem início em1975, é marcada pela linguagem neo-romântica, rica em variação harmônica; repetição intervalar,ostinatos e tendência a expressar idéias retoricamente; e composições em único movimentomulti-seccionado (THOMAS, 2004).

No que diz repeito à música coral, grande parte do trabalho de Penderecki tem caráter religiosoe algumas obras são baseadas em textos de tragédia ou horror. Além da Paixão Segundo São

1 Penderecki nasceu em Debica, Polônia, no dia 23 de novembro de 1933 e teve como principais professoresStanislaw Tawroszewicz (violin), Franciszek Skolyszewski (teoria) e Stanislaw Wiechowicz e Artur Malawski(composição).

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Lucas, ele escreveu outras composições significativas, dentre as quais Psalmy Dawida, paracoro, percussão, celesta, harpa, 2 pianos e 4 contrabaixos (1958); Stabat Mater, para 3 coros(1962); Dies irae, para soprano, tenor, baixo, coro e orquestra (1967); Magnificat, para baixo, 7vozes masculinas, coro de meninos, 2 coros e orquestra (1974); Te Deum, para soprano, mezzo,tenor, baixo, coro e orquestra (1979–80); Lacrimosa, para soprano e coro (1980); Requiem,para soprano, contralto, tenor, baixo, coro e orquestra (1980–84, revisada em 1993); e Credo,para soprano, 2 mezzos, tenor, baixo, coro infantil, coro misto e orquestra (1998).

A Paixão Segundo São Lucas, escrita em latim, foi encomendada pela Rádio da AlemanhaOcidental para celebrar o 700º aniversário da Catedral de Westphalia, Münster. A obra é dedicadaa Elizabeth, esposa de Penderecki, e foi composta entre 1963 e 1966. A estréia ocorreu no dia30 de março de 1966, quarta-feira da Semana Santa, naquela Catedral. O evento foi umacontecimento cultural dos mais importantes e concorridos na Europa, tendo sido prestigiadopor diversas autoridades políticas e eclesiásticas. Críticos de diversas partes do mundo estiverampresentes ao evento, que foi transmitido ao vivo pela Rádio da Alemanha Ocidental.

2

Diferentes comentários foram feitos logo após a estréia da Paixão Segundo São Lucas, oraressaltando o seu caráter revolucionário e inovador, ora classificando-a de suspeitosamentemodista. É interessante observar que a Paixão foi interpretada pela primeira vez na Polônia,na cidade de Cracóvia, no dia 22 de abril de 1966, que é o dia dedicado a São Lucas. Otrabalho foi apresentado em diversos países, dentre os quais Inglaterra, Holanda, EstadosUnidos, França e Suécia. Por volta de 1976, dez anos após a estréia, a Paixão Segundo SãoLucas já havia sido executada mais de cem vezes, tendo sido interpretada, em certaoportunidade na cidade de Cracóvia, para um público de mais de quinze mil pessoas(ROBINSON e WINOLD, 1983, p.18-23).

O texto da Paixão Segundo São Lucas é composto de passagens bíblicas e outros textossacros. Na primeira categoria, encontram-se os livros do Velho Testamento (Salmos eLamentações de Jeremias) e do Novo Testamento (os evangelhos de Lucas e João), enquanto,na segunda, estão hinos e seqüências latinas tais como Vexilla regis prodeunt, Improperia,Pange lingua e Stabat Mater.

A obra dura aproximadamente 80 minutos e, para a sua interpretação, são necessários trêscoros mistos a quatro vozes, coro de meninos a duas vozes e três solistas3 . Quanto àinstrumentação, é necessário um grande efetivo orquestral

4 .

2 Os intérpretes que participaram da estréia foram Herryk Czy¿ – Diretor da Filarmônica de Krakow; StefaniaWoytowicz – Soprano; Andrzej Hiolski – Barítono, Jesus; Bernard £adysz – Baixo; Rudolf Jürgen Bartsch –Evangelista; Meninos Cantores de Tölzer; Orquestra Sinfônica e Coro da Rádio de Colônia.

3 Barítono – Cristo; baixo – Pedro, Pilatos e o segundo ladrão; soprano – mulher na cena em que Pedro negaCristo; narrador – Evangelista.

4 Necessita-se de quatro flautas, clarinete baixo em Si , dois saxofones alto, três fagotes, contrafagote, seistrompas em Fá, quatro trumpetes em Si , quatro trombones, tuba, quatro tímpanos, bumbo, seis tom-tons, doisbongôs, caixa-clara, chicote, matraca, guiro, cocalho, maracas, claves, quatro pratos, dois tantãs, dois gongos(chinês e javanês), sinos, vibrafone, arpa, piano, harmônio, órgão, vinte e quatro violinos, dez violas, dezvioloncellos e oito contrabaixos.

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As inovações no campo timbrístico podem ser percebidas tanto no plano vocal quantoinstrumental. Em diversas passagens da Paixão Segundo São Lucas, Penderecki indica queos cantores – solistas e coro – devem cantar sobre vogais e sobre consoantes, técnicas quecriam um efeito sonoro extremamente expressivo (Exs.1 e 2).

Ex.1. Canto sobre vogais, movimento 3© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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5 Todos os exemplos musicais da Paixão Segundo São Lucas incluídos neste artigo foram retirados da partiturapublicada pela Moeck Verlag (5028). A permissão para usá-los foi expedida pela Sra. Andrea Höntsch-Bertram([email protected]), representante da MOECK MUSIKINSTRUMENTE – VERLAG, através demensagens eletrônicas enviadas entre os dias 29 de setembro e 15 de outubro de 2004.

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Ex.2. Canto sobre consonantes (PPP), movimento 10© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Além disso, o texto é apresentado de três formas diferentes: a) falado – em estilo de prosa,sem ritmo e altura especificados; b) recitado – com ritmo definido e c) Sprechstimme – comritmo e altura indicados aproximadamente (Exs.3a, 3b e 3c).

Ex.3a. Texto falado, movimento 2© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Ex.3b. Texto recitado, movimento 10© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Ex.3c. Sprechstimme, movimento 24 (Stabat Mater)© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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No que diz respeito aos instrumentos, Penderecki também explora diferentes possibilidades.Nos instrumentos de cordas, por exemplo, existem trechos nos quais o músico deve atacar como talão (Ex.4) e outros nos quais ele participa na produção de clusters de harmônicos (Ex.5).

Ex.4. Indicação para atacar com o talão, movimento 5© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Ex.5. Harmônicos, movimento 13© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Ademais, Penderecki explora todos os registros dos intrumentos e indica, em certas passagens,que o instrumentista deve tocar o som mais agudo e/ou grave possível (Ex.6).

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Ex.6. Registros extremos, movimento 10a seta no sentido ascendente informa ao instrumentista que ele deve produzir o som mais agudo possível.

A seta no sentido descendente significa o contrário.© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Quanto à textura, o compositor emprega passagens monofônicas e polifônicas, homorrítimicase imitativas. As técnicas do texto deslocado (displaced text) e da melodia distribuída (distributedmelody) são usadas sistematicamente na construção das densas texturas polifônicas. Enquanto,na primeira técnica, o compositor explora o texto e distribui ordenadamente as sílabas daspalavras entre as diferentes vozes, na segunda, ele distribui as notas de uma determinadamelodia ou motivo em diferentes vozes e instrumentos. Neste caso, Penderecki indica que,após o ataque, o instrumentista deve sustentar a nota até que todas as outras notas da melodiaou motivo estejam soando simultaneamente (Exs.7 e 8).

Além desses procedimentos, o compositor também justapõe, em diversas partes da obra, rápidasfigurações motívicas em diferentes partes, que podem ou não estar correlacionadas entre si. Épossível inferir, conseqüentemente, que Penderecki está utilizando a textura para construirmassas sonoras densas e complexas (sound mass), a fim de realçar passagens relevantes eexpressivas da narrativa da paixão (Ex.9). O uso de tal técnica é, provavelmente, umacaracterística dos anos sessenta, período no qual seu axioma consistia na exploração da matériasonora em sua totalidade (MIRKA, 2004).

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Ex.7. Texto deslocado (displaced text), movimento 10© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Ex.8. Melodia distribuída (distributed melody), movimento 25© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Nos trechos em que o ritmo é métrico, a semínima e a colcheia são freqüentemente definidascomo unidades de tempo, e os compassos mais comuns são o 2/4, 3/4, 4/4, 3/8, 5/8, 7/8 e 9/8.Em muitos trechos, todavia, o compositor emprega notação proporcional, técnica que ele jáhavia usado quando da composição da obra Tren. Vale ressaltar que a notação proporcionalestava em pleno desenvolvimento naquela época e que diversos compositores tambémadotaram-na como é o caso, por exemplo, de Lutoslawski na obra Trois poèmes d’Henri Michaux,escrita entre 1961–1963. Nos dois casos, a organização temporal é aproximada, sendo indicadapor intermédio da posição relativa dos eventos musicais – células rítmicas e motívicas, porexemplo – nas diferentes vozes e instrumentos (MORGAN, 1992, p.410). Inquestionavelmente,este tipo de procedimento revela a conexão de Penderecki com a música aleatória, marcadapela indeterminação, incerteza e casualidade dos elementos rítmicos, melódicos e harmônicos(Exs. 4, 5, 6, 7, 8 e 9).

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Ex.9. Rápidas figurações motívicas em diferentes partes, movimento 10© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Quanto à notação, o sinal ( ~ ) é usado para indicar que os valores rítmicos não devem serobservados rigorosamente, enquanto que o sinal ( . . . ) determina que as notas e/ou os trechosindicados devem ser repetidos da forma mais rápida possível. A duração e a densidade dosclusters é determinada por intermédio de sólidas linhas pretas escritas no pentagrama (Ex.10).

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Ex.10. Clusters, movimento 10© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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Para indicar que a nota deve ser elevada de tom, Penderecki usa o sinal ( | ), ao passo que

o símbolo ( || ) especifica que a nota deve ser elevada de tom. Por outro lado, o sinal ( )

altera a nota descendentemente em de tom, e o símbolo ( ) rebaixa-a em de tom (verfigura 11).

Ex.11. Microtons, movimento 4© Copyright by MOECK Verlag, Celle, Germany: for all countries with the exception of:

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A Paixão Segundo São Lucas é eminentemente atonal. Apesar de a obra estar baseada emvariados motivos, duas séries (melhor definidas como grupos melódicos) são de fundamentalimportância e têm a estrutura composta quase que exclusivamente por intervalos de segundase terças menores (Ex.12). A primeira série é formada por dois hexacordes que têm a mesmaseqüência intervalar, estando separados por um trítono. As últimas quatro notas da segundasérie contêm as iniciais BACH 6 , numa homenagem explícita ao compositor barroco 7. Éimportante observar que as duas séries são quase semelhantes, consistindo de permutações

6 Esse motivo é formado pelas notas Si , Lá, Dó e Si.7 Para Penderecki, o motivo baseado no nome de BACH é a idéia fundamental de todo o seu trabalho e, por

essa razão, ele chega a considerá-lo o leitmotiv da Paixão (ROBINSON e WINOLD,1983, p.64).

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nas alturas de cada hexacorde, sendo que, na segunda série o Si natural, em vez de ocupar anona posição, é a sua última nota (NEWMAN, 2002).

Ex.12. Duas séries da Paixão: a primeira série está baseada no hino Œwiêty Bo¿e e a segunda tem, nosegundo hexacorde, o motivo BACH.

De forma geral, Penderecki usa 35 motivos e grupos melódicos, apresentando-os no formatooriginal, transpostos, invertidos e/ou como retrógrados ao longo dos diferentes movimentos(Ex.13). Entretanto, a despeito do atonalismo predominante e de algumas passagensmicrotonais8 , a obra contém, em termos macro-estruturais, elementos tonais que sãoestabelecidos nas relações de centricidade entre notas pedais em diferentes momentos dacomposição. Além disso, a definição dos centros tonais e a pontuação harmônica que elesestabelecem revelam, em última instância, a existência de um plano formal similar àquele dorondó-sonata (A1 B A2

C A3 D A4).

O estudo criterioso de ROBINSON e WINOLD (1983) sobre a Paixão Segundo São Lucas nãoaborda aspectos harmônicos e formais nessa perspectiva macro-tonal que nos parece essencialpara a compreensão da obra como um todo. A premissa, ora apresentada, difere da abordagemdesses autores e baseia-se no fato de que o compositor emprega uma série de notas pedaisque definem, de forma global, a sintaxe harmônica e destacam aspectos semânticos da narrativapoética. Estes pedais, geralmente executados pelo órgão, são as notas mais graves, longas efortes nos diferentes contextos nos quais se inserem, assumindo, por conseguinte, importânciae função relevantes sob o ponto de vista da articulação formal.

8 A obra Emanacje, escrita por Penderecki, em 1958, para duas orquestras de cordas com afinações diferentesem de tom, é um execelente exemplo de como o compositor trabalha com a técnica do microtonalismo.

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Ex.13. Motivos e séries da Paixão, conforme ROBINSON e WINOLD (1983, p.70-71)

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A Paixão tem 27 movimentos e está organizada em duas partes 9 . A primeira parte está dividida emtrês seções (Ex.14): A1 (movimentos 1 – 4), B (movimentos 5 – 10) e A2

(movimentos 11 – 13). Asseções A1 e A2 têm, como pedais, as notas Sol, Lá, Mi e Fá#, enquanto a seção B, que é intermediária,é marcada pelo uso de diferentes pedais em trítono (Sol – Dó#, Mi – Si , Fá – Si, Lá – Ré).

Ex.14. Estrutura remota dos pedais na primeira parte

A segunda parte da Paixão Segundo São Lucas tem quatro seções (Ex.15): C (movimentos 14– 19), A3 (movimentos 20 – 22), D (movimento 23) e A4 (movimentos 24 – 27). Os pedais daseção C são as notas Ré, Si , Fá e Dó; os da seção A3, Ré, Fá# e Lá; o da seção D, Lá ; e,finalmente, os da seção A4, Ré, Lá e Mi.

Ex.15. Estrutura remota dos pedais na segunda parte. As notas entre parêntesis não são pedais, mas integrama hipotética estrutura cadencial.

9 Os movimentos estão assim distribuídos: 1) coro acompanhado; 2) recitativo para barítono; 3) ária para barítono;4) ária para soprano; 5) interlúdio orquestral seguido de coro acompanhado e ária para barítono; 6) coroacompanhado; 7) coro a cappella; 8) coro acompanhado; 9) ária para baixo; 10) interlúdio orquestral seguidode coro acompanhado e ária para barítono; 11) ária para soprano; 12) coro a cappella; 13) interlúdio orquestralseguido de coro acompanhado e ária para baixo; 14) coro acompanhado; 15) evangelista; 16) passacaglia(coro acompanhado); 17) interlúdio instrumental; 18) ária com coro; 19) recitativo para barítono; 20) coro acappella; 21) coro acompanhado; 22) interlúdio orquestral seguido de coro acompanhado e ária para barítonoe baixo; 23) recitativo para barítono; 24) coro a cappella (Stabat Mater); 25) recitativo para barítono; 26) interlúdioorquestral; 27) coro acompanhado.

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A nota Sol é o eixo central ao redor do qual os pedais estão ordenados. Além disso, a relaçãoexistente entre a nota Sol, na primeira parte, e a nota Ré, na segunda, caracteriza a oposiçãoentre duas áreas tonais distintas, quais sejam, tônica e dominante. Nessa perspectiva, a primeiraparte é marcada pela “exposição”, enquanto que o drama que tão bem define a forma sonata –e outras formas derivadas como, por exemplo, o rondó-sonata – só atinge o seu apogeu nocomeço da segunda parte, no décimo quarto movimento, quando o pedal sobre a nota Réindica uma possível passagem à dominante. Contudo, é importante observar que essamodulação é contestada pela presença dos pedais Si , Fá e Dó, que sugerem, por outro lado,uma dramática passagem à dominante menor, ratif icando a premissa de que,incontestavelmente, o compositor, ao longo do “desenvolvimento”, confunde mais que esclarece,insinua mais que define, dramatiza mais que simplifca. Ademais, as notas pedais Lá e Fá#, nosmovimentos 21 e 22, projetam horizontalmente o acorde de dominante, reforçando a idéia decentricidade em torno do eixo Ré. O pedal Lá , no movimento 23, exerce a função de acordenapolitano e prepara a cadência que conduz à “recapitulação” nos movimentos seguintes.Todavia, é na “coda” que o elemento surpresa se revela e, ao invés do esperado pedal sobre anota Sol (tônica), o compositor conclui com o acorde perfeito maior sobre a fundamental Mi –vale salientar que é a única tríade maior existente em toda a obra. É possível analisar esseacorde como o relativo menor de Sol, entretanto, a forma como é apresentada, ou seja, comuma terça de Picardia, é, indiscutivelmente, uma referência explícita às práticas composicionaisbarrocas, um tributo a J. S. Bach.

Outro elemento que reforça a definição do plano harmônico-formal, estabelecido nas entrelinhasda obra de Penderecki, é a organização textual. Inicialmente, é preciso levar em conta que eleescolheu a narrativa da Paixão segundo o Evangelho de Lucas por considerá-la uma das maisricas em detalhes pictóricos e porque ela enfatiza minuciosamente o caminho para o Calvárioe a cena de Jesus entre os ladrões (SCHWINGER, 1974, p.44). Além do mais, a inserção deoutros textos sacros foi criteriosa, uma vez que eles iluminam passagens importantes da narrativabíblica e revelam, conseqüentemente, o paralelo existente entre a sintaxe harmônica e asemântica textual, entre a hipotética estrutura fundamental (Ursatz) e a estrutura do discurso(dispositio) na Paixão Segundo São Lucas.

Para uma melhor compreensão do paralelo existente entre tais estruturas, é necessário reveralguns dos conceitos básicos da teoria Schenkeriana e da retórica clássica. Para Schenker,

“. . .o gênio musical está capacitado a conceber toda uma obra musical a partir de uma estruturabásica, que contém em sua extrema simplicidade um elemento indicador do processo dacondução de vozes e um elemento indicador da progressão harmônica dos graus I, V e I daescala diatônica. Ele denomina essa estrutura de “estrutura fundamental”, conforme a traduçãoinglesa para Ursatz. (Uma expressão mais fiel à sua definição e ao significado alemão talvezempregasse a expressão “estrutura original”). A Ursatz pode revelar-se em três formas, variandoa nota de partida da linha superior (“linha fundamental” ou Urlinie) conforme o terceiro, quintoou oitavo grau da escala, mas mantendo-se estáveis a queda por graus conjuntos dessa linhaaté o primeiro e a linha do baixo (“arpejo do baixo”, também conforme a tradução inglesa paraBassbrechung) (LACERDA, 1997).

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Por sua vez, a retórica é a arte do bem falar, cuja finalidade é persuadir, fazendo com que umdeterminado interlocutor ou auditório tome posição frente a um assunto devidamente tratado. Aretórica divide-se em cinco partes, cada uma com caraterísticas específicas: a invenção (inventio)é a busca das idéias e argumentos para se formar o discurso; a disposição (dispositio) dizrespeito à distribuição das idéias e das partes do discurso de forma prudente e lógica; a elocução(elocutio) consiste na escolha de palavras mais apropriadas para revestir o discurso; amemorização (memoria) é necessária para que o discurso seja apresentado com naturalidade;a pronunciação (pronunciatio) envolve aspectos ligados às técnicas de enunciação, entonaçãoe gesticulação apropriados para o discurso retórico (CARDOSO, 2004, p.34–37).

A estrutura do discurso (dispositio) é composta de seis partes: o exórdio (exordium) é a introduçãodo assunto, cuja finalidade é ganhar a atenção dos ouvintes e torná-los favoráveis ao orador; anarração (narratio) é a exposição dos fatos que se deram ou poderiam ter-se dado; a proposição(propositio) é o momento de explicitação do assunto do discurso; a prova (probatio) visa àfundamentação do tema tratado; a refutação (refutatio) concentra-se em destruir as objeçõesfeitas pelo adversário; e, finalmente, a peroração (peroratio), que consiste em uma breverecapitulação dos pontos básicos que foram tratados e, ao mesmo tempo, busca conquistar asimpatia do auditório, como resposta ao discurso (CARDOSO, 2004, p.39–40).

O tema música e retórica tem sido objeto de discussões entre compositores, teóricos e intérpretesdesde há muito tempo, e este debate ganhou maior projeção durante os séculos XVII e XVIII.A obra Der vollkommene Capellmeister, por exemplo, escrita por Johannes Mattheson em 1739,é singular, uma vez que o autor apresenta um modelo teórico composicional baseado nosprincípios retóricos. E é provavelmente nessa perspectiva que a relação texto-harmonia-formase manifesta na obra de Penderecki.

O compositor introduz o tema da Paixão ao longo dos quatro primeiros movimentos, à medidaque ele estabelece os pedais Sol, Lá, Mi e Fá#. Os textos usados no exórdio incluem o sextoverso do hino latino Vexilla regis prodeunt

10 , a passagem do evangelho de Lucas que descrevea oração de Cristo no Monte das Oliveiras11 e trechos extraídos dos Salmos, que estãodiretamente relacionados àquele momento de angústia e incertezas12 . Os fatos que se seguiramà prisão de Jesus estão inseridos entre os movimentos 5 e 10. Nesta seção, que está marcadapelo uso de diferentes pedais em trítono, Penderecki narra a traição de Judas13 , a negação dePedro14 e o escárnio de Jesus diante dos sacerdotes15 . Para enriquecer a descrição com maisdetalhes, o compositor intercala, novamente, trechos extraídos dos Salmos16 , assim comouma pequena passagem das Lamentações de Jeremias, segundo a versão do Missal Romano

17.

10 Salve! Ó cruz, única esperança, neste tempo da paixão, aumenta a graça dos justos, apaga os pecados dosréus.

11 Lc. 22,39-44.12 Sl. 21,2-3.13 Lc. 22,47-53.14 Lc. 22,54-62.15 Lc. 22,63-70.16 Sl. 10,1.17 Jerusalém, Jerusalém, converte-te ao Senhor teu Deus.

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É, todavia, no final da primeira parte, entre os movimentos 11 e 13, que Penderecki reintroduzos pedais sobre as notas Sol, Lá, Mi e Fá#, à medida que ele apresenta o propósito da narrativa,isto é, o julgamento e a condenação de Cristo18 . Aqui, mais uma vez, Penderecki interserepassagens dos Salmos19 e um verso das Lamentações de Jeremias.

A segunda parte da Paixão Segundo São Lucas traz à tona o drama da crucificação. Pendereckiconfirma e prova, no décimo quarto movimento, que o tema central de toda a narrativa chegaao seu apogeu: é a hora do sacrifício. Os textos extraídos do evangelho de João

20 , os versículosdos Salmos

21 e o estabelecimento do pedal Ré, caracterizando a passagem à dominante,ratificam esta premissa. Entretanto, o compositor aviva a tensão do momento ao confrontarargumentos que refutam a consumação do martírio e a crucificação de Jesus. É o próprioCristo que, no movimento 15, pergunta: “Povo meu, que te fiz ou em que te contristei?” É odilema do Cristo homem e filho de Deus que emerge nos instantes que antecedem o Seususpiro final. E Penderecki sublinha esse conflito majestosamente ao incluir, entre os movimentos15 e 19, pedais em Fá, Si e Dó que, como dito anteriormente, sugerem a possibilidade de umapassagem à dominante menor. É extremamente importante observar que, na Paixão, o cortepróprio à seção áurea está localizado entre os movimentos 16 e 17, região caracterizada peladubiedade harmônica

22 . Para reforçar o drama da seção, o compositor se utiliza do Improperia23 , do evangelho de Lucas

24 , dos versos da antífona Crux fidelis 25 , dos versos da antífona Ad

detegendam Crucem 26 e dos versículos dos Salmos

27 .

Toda a incerteza que permeia os movimentos anteriores é dissipada a partir do movimento 20,prolongando-se até o final da obra. O compositor inicia a sua peroração reapresentando ospedais Ré, Lá e Fá#. Para reafirmar a vitória da vida sobre a morte, ele recorre ao evangelho deLucas novamente

28 . A expressividade desta etapa conclusiva é incrementada quando Pendereckiintroduz o Stabat Mater 29 , cujo texto trata basicamente de dois aspectos ligados à Maria, Mãe deJesus: 1) o seu sofrimento diante da cruz na qual Cristo agonizava e 2) a sua intercessão diante

18 Lc. 22,1-22.19 Sl. 22,2.20 Jo. 19,17.21 Sl. 21,16.22 A seção áurea é uma razão definida pelo número Phi (φ = 0.618...) e pode ser representada matematicamente

como A/C = B/A. Artistas plásticos e arquitetos usaram este número para determinar a proporção perfeita dassuas criações. A definição da seção áurea é importante nesta análise porque ela reforça a relação existenteentre as estruturas textual e musical. O cálculo da seção áurea resultou da multiplicação do número demovimentos pelo número Phi (φ), logo 27 x 0.618 = ~16.686.

23 Povo meu, que te fiz ou em que te contristei? Responde-me. Por te haver tirado da terra do Egito. Preparasteuma cruz para o teu Salvador. Deus Santo. Deus Santo. Santo poderoso. Santo poderoso. Santo imortal,tende piedade de nós. Santo imortal, tende piedade de nós.

24 Lc. 23,33-37.25 Cruz fiel, a mais nobre entre todas as árvores. Nenhum bosque ostenta tais folhas, flores e frutos. Doce lenho,

doce cravos, doce fardo que suportas.26 Eis o lenho da cruz em que pendeu a salvação do mundo.27 Sl. 21,16-20.28 Lc. 23,39-43.29 Lc. 23,25-27.

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de Deus e em favor dos pecadores30 . É nessa atmosfera catártica que Penderecki, ao apresentaro pedal em Lá , narra os últimos momentos da vida de Jesus31 . Finalmente, quando ele reintroduzos pedais Ré, Lá e Mi

(Sol) nos últimos três movimentos, ele reafirma que Cristo não morreu e

que a ressureição é a esperança daqueles que n’Ele crêem32 . Toda a riqueza simbólica da Paixãoparece estar diretamente associada aos arquétipos barrocos como é possível observar, porexemplo, no último movimento, quando o compositor conclui a obra com uma tríade maior, íconeda Trindade representada na figura do Pai, Filho e Espírito Santo (Ex.16).

Ex.16. Comparação entre a estrutura original (Ursatz) e a estrutura do discurso (dispositio) na Paixão

Certamente, Penderecki se utiliza de elementos barrocos para reverenciar, em sua Paixão, omaior compositor do século XVIII. No entanto, é imprescindível notar que, além da inclusão donome de Bach num dos agrupamentos melódicos e/ou da utilização da terça de Picardia noúltimo movimento, a forma como ele organiza a seqüência de pedais em torno do eixo Solobedece aos padrões sintáticos em voga durante o apogeu do sistema tonal e, maisparticularmente, à linguagem harmônica e estilística dos corais de Bach.

O coral foi a forma vocal par excellence da igreja luterana barroca, tendo sido amplamenteutilizado nos mais diversificados serviços religiosos. Bach compôs e harmonizou vários coraispara o serviço litúrgico Luterano e, provavelmente, Penderecki baseou a progressão dos baixosda Paixão no coral An Wasserflüssen Babylon

33 . As razões para tal suposição estãofundamentadas, novamente, em fatores textuais, musicais e simbólicos. Primeiro, o texto dessecoral é extraído do livro de Isaías, e nele o profeta afirma que a redenção dos pecados da

30 De pé, a mãe dolorosa junto da cruz, lacrimosa, via o filho que pendia. Quem não chora vendo isso: contemplandoa Mãe de Cristo num suplício tão enorme? Faze, ó Mãe, fonte de amor que eu sinta o espinho da dor paracontigo chorar. Faze arder meu coração do Cristo Deus na paixão para que o possa agradar. Quando meucorpo morrer possa a alma merecer do Reino Celeste a glória.

31 Lc. 23,44-46.32 Sl. 30,2-3,6.33 No período barroco, a expressão coral abrange dois sentidos diferentes, isto é, texto e/ou música. O coral An

Wasserflüssen Babylon é baseado no texto de Paul Gehardt (Ein Laemmlein geht) e na melodia AnWasserflüssen Babylon, publicada pela primeira vez na cidade de Strassburg em 1525. Esse coral aparececomo BWV 267 e 653 no catálogo de Bach. No hinário Luterano brasileiro, ele é o número 89 e tem como títuloUm cordeirinho quer levar.

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humanidade se dará por intermédio do sacrifício do Cordeiro de Deus 34 . Ora, nada poderia sermais apropriado para enriquecer a narrativa do que a profecia de Isaías, antevendo a presençado Cristo entre os homens, presumindo o Seu sofrimento e Paixão. Segundo, as razões musicaissão inequívocas, já que a comparação da redução harmônica do coral An Wasserflüssen Babylone da seqüência de pedais na Paixão Segundo São Lucas evidencia as equivalências esimilaridades existentes entre ambas. A tonalidade maior predomina durante os primeiros versosdo coral, mas muda, gradualmente, na medida em que os sentimentos de angústia e dor sãointroduzidos no texto. FOELBER (1961, p.369) afirma que, para descrever o sentido das palavrasansiedade, cruz e morte, Bach modula para Ré menor. A suspensão de Cristo na cruz éliteralmente retratada através das suspensões no contralto, e as palavras finais do texto podemser interpretadas de duas formas: a) o retorno para a tonalidade original (Sol maior) representaa aceitação de Jesus em ser imolado como o Redentor da humanidade e b) os melismas sobrea palavra leiden (sofrimento) nos últimos compassos, os consecutivos acordes de sétima e asnotas de passagem acentuadas na voz do soprano simbolizam a dor e morte de Cristo (Ex.17).

34 Is. 53, 1–12.

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Ex.17. Coral An Wasserflüssen Babylon (J. S. Bach)

(Continuação do Ex.17 na próxima página)

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Finalmente, a forma como Penderecki incorpora o referido coral ao longo dos vinte e setemovimentos da sua obra é fenomenal, visto que, à semelhança de Bach, ele mostra toda a suamaestria ao criar um jogo de quebra-cabeça, marcado pela lógica e pela abstração, constituindo-se num verdadeiro desafio à percepção e à inteligência musical do leitor-ouvinte-intérprete.Por essa razão, é possível inferir que Penderecki, ao incluir o coral de Bach em sua Paixão,potencializa filosófica, teológica, estética e musicalmente o conflito entre caos e ordem,predestinação e livre-arbítrio, tonalismo e atonalismo, modernidade e pós-modernidade (Ex.18).

Ex.18. Paralelo entre a redução harmônica do coral An Wasserflüssen Babylon (sistema superior) e os pedaisda Paixão Segundo São Lucas (sistema inferior).

As comparações entre as obras de Bach e a de Penderecki e o paralelo entre a estruturaoriginal (Ursatz) e a estrutura do discurso (dispositio) mostram como música e texto estãodiretamente interligados e como tais estruturas enfatizam aspectos relevantes e variados dodrama músico-textual. É imprescindível acrescentar, entretanto, que esta analogia é hipotéticae tem o propósito de revelar a polissemia do objeto estético diante da abordagem analíticainterdisciplinar. Assim, as observações aqui apresentadas devem ser entendidas como umapossibilidade de leitura, isentando-se da pretensão de descrever o processo composicionalcomo um todo. É provável que Penderecki tenha delineado a macro-estrutura da sua obrasegundo um plano tonal-retórico preestabelecido, todavia a asserção de tal probabilidade escapa

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aos objetivos desse estudo, limitado a evidenciar aspectos estruturais relevantes da Paixãocom o intuito de criar referenciais teóricos para a compreesão do repertório coral do século XX.Inquestionavelmente, o paralelo entre a análise tonal e a textual revela, grosso modo, osprocedimentos retóricos e harmônicos que o compositor pode ter usado para reforçar ecomplementar a narrativa magistralmente.

A Paixão Segundo São Lucas pode ser considerada, portanto, uma das obras maisrepresentativas da segunda metade do século XX. Primeiramente, isso se deve à sua relevânciahumanitária porque “a Paixão não foi tão-somente o sofrimento e a morte de Cristo, mas tambémo sofrimento e morte em Auschwitz, a trágica experiência da humanidade no meio do séculoXX. Por essa razão, ela deveria ter um caráter humanístico e universal como, por exemplo, aobra Tren” (ROBINSON e WINOLD, 1983, p.17).

Outro aspecto de extrema importância é o sócio-político. É fato que a Polônia, desde o inícioda sua existência como Estado, aceitou o Cristianismo segundo os moldes romanos, sendo,portanto, uma exceção no leste europeu, predominantemente ortodoxo. Dessa forma, a PaixãoSegundo São Lucas adquiriu força e conotação sócio-política imensuráveis, tanto por suscitaro reavivamento da herança e da tradição religiosa do povo polonês, quanto por sintetizar ogrito de fé e protesto de uma nação face à devastidão da guerra e aos desmantes doautoritarismo. E segundo Penderecki “fazia-se necessário lutar contra o regime” (ROBINSON,1983, p.9).

Em suma, a Paixão representa um novo estágio na carreira de Penderecki, marcado, a priori,por tendências mais conservadoras e que parecem seguir em direção oposta àquele estilo dosanos anteriores, no qual o compositor fez amplo uso de massas sonoras, glissandi e outrosefeitos sonoros (WATKINS, 1995, p.650). A Paixão Segundo São Lucas revela as múltiplasfacetas de um compositor em fase de amadurecimento, um compositor em sintonia com ocontexto no qual ele se insere e que é caracterizado pelo avanço das ciências e pela revisãodo passado musical. Mais que isso, ela é a prova inconteste de que Penderecki está delineandoa pós-modernidade, visto que ele concilia, de forma singular, elementos nacionais e universais,passado e presente, tradição e vanguarda em função da pluralidade estética e da integralidadeestilística da sua obra.

Referências BibiográficasBACH, J. S. An Wasserflÿssen Babylon. Coral a quatro vozes. Partitura de domínio público, editada por Vladimir

Silva (2004).CARDOSO, José Roberto C. 1 Tessalonicenses: Epístola e Peça Retórica. Fides Reformata Et Semper Reformanda

Est, Vol. 7, nº 1, (2004): 27–44.FOELBER, Paul F. Bach’s Treatment of the Subject of Death in His Choral Music. Dissertação de Mestrado.

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MIRKA, Danuta. Texture in Penderecki’s Sonoristic Style. Music Theory Online. Banco de dados online. Texto

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1983.SCHWINGER, Wolfram. Penderecki: Begegnungen, Lebensdaten, Werkkommentare. Stuttgart: Deustsche

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WATKINS, Glenn. Soundings: Music in the Twentieth Century. New York: Schirmer Books, 1995.

Vladimir Silva é mestre em regência coral pela UFBA, professor assistente da UFPI e bolsistado CNPQ, órgão pelo qual faz doutorado em regência-canto na LSU, Baton Rouge, EUA. Temartigos publicados sobre música em revistas especializadas na América do Sul e do Norte,dentre os quais no Choral Journal da American Choral Directors Association (ACDA). Suasperformances como regente e cantor incluem concertos e recitais no Brasil, Argentina, França,Itália, Áustria e Estados Unidos.

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CERVO, Dimitri. O minimalismo e suas idéias composicionais. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.44-59Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 10/08/2004 - Aprovado em: 05/11/2004.

O Minimalismo e suas técnicas composicionais

Dimitri Cervo (Universidade Federal de Santa Maria)[email protected]

Resumo: Estudo sobre o Minimalismo na música, com destaque para feições estilísticas e estéticas, técnicascomposicionais e processos de repetição desenvolvidos por Riley, Reich e Glass na década de 1960 e início dadécada de 1970, em obras como In C, Piano Phase, Clapping Music, Two Pages e Music in Fifths. Inclui umabreve contextualização histórica do Minimalismo.Palavras-Chave: Minimalismo, processos de repetição, técnicas composicionais, compositores minimalistas,composição musical.

Minimalism and its compositional techniques

Abstract: Study about Minimalism in music, focusing on the stylistic and aesthetical features, compositionaltechniques and repetition processes developed by Riley, Reich and Glass in the 1960s and early 1970s, in workssuch as In C, Piano Phase, Clapping Music, Two Pages and Music in Fifths. It includes a brief historical backgroundof Minimalism.Keywords: Minimalism, processes of repetition, compositional techniques, minimalist composers, composition.

I. IntroduçãoO Minimalismo musical, surgido nos Estados Unidos na década de 60 através da música dosseus quatro “pais fundadores”, La Monte Young (1935-), Terry Riley (1935-), Steve Reich (1936)e Philip Glass (1937-), é um dos movimentos estéticos mais significativos dos últimos quarentaanos, tendo consagrado internacionalmente nomes como os próprios Steve Reich e PhilipGlass, influenciado outros compositores de grande visibilidade, tais como Arvo Pärt (1936-),Louis Andriessen (1939), Michael Nyman (1944), John Adams (1947) e Michael Torke (1961),estimulado jovens compositores em todo o mundo, além de se refletir em uma série demanifestações musicais do mundo pop (new age, world music, etc.). Entretanto, seu estudo noambiente acadêmico vem ganhando prestígio apenas recentemente.

De acordo com Schwartz, nenhum estilo da música contemporânea recente provocou tantacontrovérsia quanto o Minimalismo, sendo que por três décadas esta estética musical foiridicularizada pelos compositores e críticos do mainstream (corrente principal) (SCHWARTZ,1996, p.8). Esse descaso para com a música minimalista no ambiente acadêmico é amplamentecitado por autores como Nyman, Warburton, Epstein, Schwartz, entre outros.

1 A maior parte da

literatura e artigos sobre o Minimalismo musical surgiu no meio acadêmico norte-americano apartir do final dos anos 80 e na década de 90.

1 Por exemplo, a Escola de Música da Universidade de Washington, em Seattle/USA, onde realizei o DoutoradoSanduíche entre os anos de 1996 e 1998, ofereceu seu primeiro “Seminário em Minimalismo”, ministrado porJonathan Bernard (na época editor do Music Theory Spectrum), para alunos de mestrado e doutorado somenteem 1998. Esse fato pontual demonstra como alguns ambientes acadêmicos norte-americanos têm tido resistênciaem incluir a música minimalista no seu objeto de estudo, apesar da ampla disseminação de obras minimalistasem salas de concerto, discografia e música para cinema, em todo o mundo.

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Dessa forma, consideramos que esse tópico dever ser tratado dentro da academia brasileiracom dedicada atenção. Pretendemos, com esse artigo, fornecer um ponto de partida para umamelhor compreensão do Minimalismo no contexto do meio acadêmico brasileiro, fixandoconceitos e fornecendo uma base teórica e terminológica para que futuros estudos e análisesde obras minimalistas possam ser mais bem realizados e melhor compreendidos.

II. Contexto históricoSegundo Morgan, nos anos 50, serialismo e indeterminação eram as duas direçõescomposicionais dominantes. Elas foram seguidas por uma série de novas tendências

2 nos

anos 60, dentre as quais destaca-se o Minimalismo. O pluralismo radical da culturacontemporânea tornou-se evidente a partir dos anos 60, quando a incessante procura por algo“novo” fez com que movimentos artísticos surgissem quase que de ano em ano. Morgan citacomo causas dessa explosão de novas manifestações artísticas a profunda insatisfação dajuventude com os valores tradicionais, rebelião contra o que a juventude da época percebiacomo centralismo monolítico, além do demasiado elitismo no contexto cultural e políticoestabelecido. Essa juventude (à qual pertenciam os compositores iniciadores do Minimalismo)explorou uma ampla gama de estilos alternativos de vida que incluíam temas como aemancipação sexual, o interesse pelo misticismo oriental e filosofias não ocidentais, experiênciascom drogas e principalmente uma forte rejeição aos valores tradicionais do sistema(establishment, ou conjunto dos grupos dominantes dentro de uma sociedade), que era vistocomo uma força impessoal que vitimava os cidadãos, impedindo-os de exercerem sua liberdade.Morgan também argumenta que as gerações jovens tinham aversão à alta cultura, que eravista como uma cultura em processo de exaustão. No lugar dela, uma contracultura, a qualrespondia a uma imensa variedade de interesses sociais e étnicos, foi erguida. A culturacentralizada seria substituída por uma democracia de contraculturas, que coexistiriam em péde igualdade. Assim, a alta cultura, nos anos 60, começou a perder espaço para a cultura pop.Essa erosão de barreiras entre níveis artísticos estimulou o ecletismo e novas combinaçõesestilísticas (MORGAN, 1991, p.328-30).

O Minimalismo é, portanto, filho de uma década muito especial na história do século XX. Adécada de 60, na qual ele se desenvolveu e floresceu plenamente, foi uma das mais importantesna história do século XX no que diz respeito à articulação de movimentos alternativos contra osistema. Dentre os movimentos que propunham formas alternativas de comportamento equestionavam o status quo nos anos 60, podemos citar o movimento hippie, o movimentofeminista e o movimento pelos direitos dos negros, liderado por Martin Luther King. Os anos 60foram também uma época na qual as experiências com drogas que visavam estados alteradosde consciência foram levadas ao extremo, e em que as filosofias do Oriente e a yoga começarama penetrar com mais intensidade no Ocidente, devido a uma série de fatos, já bem documentados,dos quais destacamos algumas efemérides, como a ida dos Beatles à Índia, a difusão da músicaindiana e a vinda para a América de músicos daquele país, como Ravi Shankar.

Tendo em mente que o establishment na música, desde o pós-guerra até os anos 60, erarepresentado principalmente pelos compositores da vanguarda européia, que em sua grandeparte haviam aderido ao serialismo integral e suas diretrizes estéticas, podemos considerar o

2 Música textural, citação e colagem, música ambiente ou musak, neo–tonalismo, para citar algumas.

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Minimalismo nascido no continente Americano uma forma alternativa de se compor que estavaem confronto direto com os valores já bem estabelecidos pela vanguarda. No domínio da músicaséria nos anos 50 e 60, nada representava mais o “sistema” do que a vanguarda e os serialistas,pois estes, através de uma postura autoritária e monolítica, consideravam que qualquercompositor que não aderisse ao serialismo estava à margem da “evolução” histórica. Adeclaração de Boulez de que todo o compositor que ignorasse a necessidade do serialismointegral era “um inútil” é sintomática (BOULEZ, 1995, p.139).

Portanto é natural que esta nova geração de compositores, nascida na América ao invés de naEuropa, sufocada pela vanguarda histórica, insuflada contra o sistema por todo um contextode época, articulassem uma revolta radical contra os serialistas e manifestassem isso em suamúsica.

3 Philip Glass, por exemplo, considerou, em 1984, que a série de música nova, Domaine

Musicale, promovida por Pierre Boulez era “uma terra perdida, dominada por esses maníacos,esses mórbidos, que estavam tentando fazer todo mundo escrever essa música insana emórbida” (Apud in SCHWARTZ, 1996, p.114).

Esse tom radical de Glass, já dezesseis anos depois de a primeira obra minimalista atingirsucesso comercial em 1968, (In C [1964] de Terry Riley), é apenas uma demonstração decomo os compositores minimalistas estavam trabalhando conscientemente e ideologicamentecontra um tipo de música de origem européia que não os interessava. É nesse contexto quetemos que entender o radicalismo e o escândalo que as primeiras obras minimalistas causaramno status quo do mundo musical, ainda muito dominado pela vanguarda no início dos anos 60.

III. Minimalismo x Serialismo (Expressionismo)O Minimalismo, com sua estética extremamente ascética, econômica, impessoal, que utilizava ummínimo de meios, pode ser visto como uma reação ao movimento expressionista

4 iniciado por

Schoenberg em fins do século XIX e início do século XX, desenvolvido por Berg e Webern, até serapropriado pelos vanguardistas Boulez e Stockhausen, entre outros nomes da nebulosa deDarmstadt, através do serialismo integral,

5 após a segunda guerra mundial. Como coloca Mertens:

3 É interessante notar que entre os quatro pais fundadores do Minimalismo, Young, Riley, Reich e Glass,encontramos feições comuns importantes: todos eles nasceram nos Estados Unidos nos anos 30; todoscresceram enamorados pela cultura pop norte-americana; todos sobreviveram após rejeitar seu treinamentoacadêmico e de conservatório europeu; e todos, com o passar do tempo, tornaram-se indivíduos profundamentemísticos e religiosos (SCHWARTZ, 1996, p.13).

4 Os livros de história da música quando falam em dodecafonismo, serialismo e serialismo integral, usualmentenão se referem à estética desta música, preferindo denominá-la apenas pelo nome das suas técnicascomposicionais. Mas já que não existe música permeada por algum tipo de orientação estética, qual é aestética desta música? Propomos aqui considerá-la Expressionista. Expressionista num sentido amplo, nãoapenas como uma expressão de sentimentos subjetivos ou inconscientes, mas no sentido de que esta músicaé baseada num discurso essencialmente dramático. As tensões dissonantes e os fortes contrastes, a utilizaçãode textos com conteúdos dramáticos, a moldura histórica das duas grandes guerras, são elementos que conferema maior parte da produção musical (de compositores como Schoenberg, Webern, Nono, Berio, Zimmermann,Boulez, dentre outros) que se segue ao atonalismo livre, um pathos expressionista ou ainda pós-expressionista(assim como podemos considerar que as obras de Mahler, Rachmaninov e Richard Strauss possuem umpathos romântico ou pós-romântico).

5 Cabe ressaltar a importância seminal da peça para piano Modos de Valores e Intensidade (1949-50) de OlivierMessian, apresentada em Darmstadt em 1951, para o futuro desenvolvimento do serialismo integral.

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“… é claro que a música repetitiva pode ser vista como o estágio final de um movimento anti-dialético que orientou a Vanguarda musical européia desde Schoenberg, um movimento queatingiu sua culminância com John Cage… A real importância da música repetitiva está no fatode que ela representa o estágio mais atual na continuação da evolução musical desdeSchoenberg” (MERTENS, 1983, p.87).

Portanto, Serialismo (Expressionismo) e Minimalismo são dois movimentos estéticos, ambosfilhos do modernismo e que defendem modos de compor “puros” ou exclusivistas, intimamenterelacionados por oposição radical. Enquanto o serialismo procura evitar de forma sistemáticaum centro tonal, o Minimalismo procura afirmar incessantemente um centro tonal. Enquanto oserialismo trabalha com o princípio de não repetição, o Minimalismo pretende repetir à exaustão.Enquanto o serialismo era considerado um desenvolvimento necessário e irreversível daevolução da música ocidental, o Minimalismo introduzia conceitos filosóficos e estéticos doOriente os quais diferiam frontalmente da visão de mundo ocidental.

IV. Música experimental x Música de vanguarda (processos x obras acabadas)Essa rebeldia contra os alicerces fundamentais da música européia e da vanguarda históricateve como grande arauto e precursor o compositor norte-americano John Cage (1912-1992).Cage, profundamente imbuído de conceitos da filosofia oriental e do zen budismo, começou aquestionar profundamente, nos anos 40 e 50, a noção de música praticada no Ocidente.

Já no ano de 1974, o compositor Michael Nyman, através da publicação de seu livro ExperimentalMusic: Cage and Beyond, tentava distinguir a música da vanguarda, de compositores comoBoulez, Berio, Stockhausen, da música dos compositores experimentalistas norte-americanosna tradição de Ives, Cowell e Cage (NYMAN, 1974, p.2). Dentre as principais diferenças damúsica experimental em relação à música de vanguarda, Nyman destaca a idéia de processoinerente à música experimental. Nyman diz que os compositores experimentalistas não estavaminteressados em prescrever tempo-objetos definidos, cujos materiais e relações estão calculadose arranjados previamente, mas sim interessados em criar situações nas quais os sons poderiamocorrer, um processo de geração de uma ação musical. Entre os tipos de processos destacadospor Nyman estão:

1) Processo de determinação por acaso (chance), primeiramente adotado por Cageque utilizou o oráculo chinês I Ching para articular sua obra para piano Music ofChanges (1951).

2) Processo de pessoas, onde os executantes se movem livremente pelo materialsugerido no seu próprio tempo.

3) Processos contextuais, os quais são gerados a partir de ações que dependem desituações não previsíveis e de variáveis que podem surgir durante o processo.

4) Processo de repetição, que usam a repetição como o único meio de gerar movimento(NYMAN, 1974, p.2-8).

Portanto, na idéia de processo musical, mais do que na de obra acabada, consistia a grandediferença entre os compositores experimentalistas norte-americanos como Cage, Feldman,Cardew, La Monte Young, Wolff, Reich, Glass, e a música tradicional européia, incluindo oscompositores pertencentes à vanguarda histórica. Como coloca Mertens:

“… na música repetitiva a idéia de obra é substituída pela idéia de processo … a música dialéticatradicional é representacional: a forma musical está relacionada com um conteúdo expressivo

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e isso é um meio de criar uma tensão crescente; o que é usualmente chamado um argumentomusical. Mas a música repetitiva não é construída em torno de um argumento, a obra não érepresentativa e também não é um meio de expressão de sentimentos subjetivos. Glass escreveuque ‘Esta música não é caracterizada por argumento e desenvolvimento… a música não temmais uma função de mediação que se refere a algo fora dela mesma, mas encarna a si mesmasem mediações. Assim o ouvinte necessitará de uma estratégia de audição diferente, sem osconceitos tradicionais de lembrança e antecipação. A música deve ser ouvida como um eventosônico puro, um ato sem nenhuma estrutura dramática.’ ” (MERTENS, 1983, p.88)

V. Processos de repetiçãoO Minimalismo, como fruto direto do movimento experimentalista norte-americano, deteve-see levou às últimas conseqüências os processos de repetição. Portanto, o Minimalismo não sedefine apenas por repetição, mas por processos sistemáticos de repetição.

6 Como escreve

Steve Reich em 1968 em seu manifesto minimalista, Writings About Music, publicado em 1974:

“Eu não quero dizer processo de composição, mas sim obras que são literalmente processos.O que é distintivo em um processo musical deste tipo é que ele determina todos os detalhes,de nota para nota, de uma composição, e toda a sua forma simultaneamente. Estou interessadoem processos perceptíveis. Quero ser capaz de ouvir o processo acontecendo através dofluxo de toda a extensão da música… Processos musicais podem nos dar contato direto como impessoal e também um tipo de controle completo… por esse “tipo” de controle completo euquero dizer que, ao fazer esse material se articular através desse processo, eu controlocompletamente todos os resultados, mas também aceito todos os resultados sem mudanças”(REICH, 1974, p.9-10).

Reich continua criticando os processos de Cage e os procedimentos da música serial, opondo-os à sua maneira de articular processos musicais.

“John Cage tem usado processos e tem certamente aceitado seus resultados, mas os processosque ele usa são processos composicionais que não podem ser escutados quando a peça éexecutada. O processo de usar o I Ching ou imperfeições em uma folha de papel para determinarparâmetros não pode ser ouvido quando se escuta uma música composta dessa forma. Osprocessos composicionais e a música que soa não têm conexão audível. Da mesma forma, namúsica serial, a série em si mesma é raramente audível.

Eu estou interessado em processos composicionais onde o processo e a música que soa sãouma coisa una. …O uso de estruturas ocultas nunca foi apelativo para mim. Mesmo quandotodas as cartas estão na mesa e todos ouvem o que gradualmente acontece em um processomusical, ainda assim existem mistérios suficientes para satisfazer a todos. Esses mistériossão os produtos residuais de ordem psicoacústica, impessoal, não intencional, geradas pelopróprio processo.” (REICH, 1974, p.10)

Assim, as obras minimalistas têm como própria essência a escolha de processos de repetição,claros e perceptíveis, os quais vão articular e coordenar toda a micro e a macroforma da obra.Para tal finalidade os compositores minimalistas desenvolveram técnicas composicionaisespecíficas, as quais examinaremos a seguir.

6 Essa distinção é de extrema importância. O simples uso da repetição como elemento estrutural, como ostinatos,por exemplo, não é suficiente para caracterizar uma obra como minimalista. Se assim fosse, uma ampla gamade obras que se baseiam em repetição e variação gradual, ou ainda ostinatos, como princípio estrutural, comoo Primeiro Prelúdio do Cravo Bem Temperado de Bach, a Berceuse, op. 54, de Chopin, o Bolero de Ravel ouo Batuque de Lorenzo Fernandes, apenas para citar quatro obras, poderiam ser consideradas “minimalistas”,o que ao nosso ver consistiria em um grande equívoco conceitual e estético.

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VI. Técnicas Composicionais para Articular Processos de RepetiçãoDan Warburnton procura identificar as várias técnicas composicionais que os compositoresminimalistas utilizaram para a articulação de processos de repetição nas décadas de 60 e 70.Segundo o autor, as principais técnicas composicionais que sustentam os processos de repetiçãocaracterísticos das obras minimalistas são: phasing, linear additive process, block aditive process,textural additive process e overlapping pattern. Warburton demostra como cada uma dessastécnicas composicionais podem ser encontradas naquelas obras seminais pelas quaisusualmente o Minimalismo é definido (WARBURTON, 1988, p.144-152).

Optamos em traduzir essa terminologia para o português da seguinte forma: troca de fase (oudefasagem), processo aditivo linear, processo aditivo por grupo (bloco), processo aditivo texturale superposição de padrões. A partir deste ponto do trabalho utilizaremos a terminologia emportuguês, e a seguir examinaremos a ocorrência das técnicas composicionais supra citadasem algumas obras seminais do Minimalismo “clássico.”

7

Começaremos pela explanação da técnica de troca de fases (ou defasagem).8 Essa é a técnica

central utilizada nas obras de Steve Reich compostas entre os anos de 1965 (It’s Gonna Rain) e1972 (Clapping Music). A primeira utilização dessa técnica por Reich deu-se nas suas obras parafita magnética It’s Gonna Rain (1965) e Come Out (1966). Ambas são peças que utilizam o meioeletroacústico e gravações da voz humana como ponto de partida e material pré-composicional. EmIt’s Gonna Rain dois excertos idênticos (pré-gravados) são alinhados em uníssono, e gradualmenteum deles é ligeiramente acelerado. Uma vez que o processo é posto em movimento, os dois trechosdefasam gradualmente até voltarem ao uníssono novamente no final da obra. No decorrer da peça,essa relação de duas vozes é ampliada para quatro e oito vozes. Segundo o autor, It’s Gonna Rainé a primeira obra na história que utilizou a técnica de defasar gradualmente dois ou mais padrõesidênticos. A segunda foi Come Out, que se utiliza de recursos semelhantes (REICH, 1987).

Após essa experiência com loops defasando em fitas magnéticas, Reich começou a pensar emuma maneira de transpor essa experiência para o domínio da música instrumental. Em 1967, elegravou um padrão de doze notas ao piano em uma fita, e começou ele próprio a tocar o mesmopadrão simultaneamente à gravação, tentando gradativamente defasar, através de um accelerandogradual, do padrão gravado. Ao constatar o sucesso e a viabilidade da experiência, Reich passouentão a experimentar com dois pianos. Por fim, após essa experiência de execução com doisinstrumentistas, a peça foi passada para a pauta. Assim surgiu a primeira obra a utilizar a técnicade defasagem no domínio da música instrumental: Piano Phase de1967 (REICH, 1974, p.51-53).

O Ex.1 mostra que essa peça articula um mesmo padrão de doze notas, apresentado inicialmenteno piano I (c.1) e logo introduzida, em uníssono, pelo piano II (c.2). A partir daí o piano II

7 A expressão Minimalismo “clássico”, no contexto deste artigo, refere-se às obras minimalistas compostasentre os anos de 1964 e 1976, as quais se caracterizam pela utilização clara, sistemática e radical de processoscomposicionais já bem documentados. A partir de 1976, a produção dos compositores minimalistas começoua sofrer mudanças significativas, em obras onde os processos passam a ter importância secundária ou sãocompletamente abandonados. As diferenças entre o Minimalismo “clássico” e essa produção a partir de 1976,que consideramos pós-minimalista, é discutida e examinada em detalhe em CERVO (1999).

8 Os autores geralmente utilizam três palavras do inglês para denominar essa técnica: phase, phashing ouainda phase shifting, sendo que todas têm o mesmo significado.

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gradualmente defasa do piano I, através de um sutil accelerando, até a segunda semicolcheiado padrão repetido no piano II (Fá #) se encontrar com a primeira semicolcheia (Mi) do padrãorepetido no piano I (o piano I mantém sempre uma mesma velocidade). Quando existe umalinhamento dos padrões (quando os dois instrumentistas estão tocando na mesma velocidadee sincronizados) o padrão é repetido de 16 a 24 vezes até a próxima defasagem ter o seuinício. Quando existe uma defasagem esta se dá no período de tempo entre 4 e 16 repetições.

Assim esse processo de repetição com mudança de fase (phase shifting) articula-se gerando oseguinte movimento harmônico e contrapontístico (Ex.2):

Ex.1 – Piano Phase (1967) de Steve Reich.

Ex.2 –Piano Phase (1967) de Steve Reich: padrões harmônicos e contrapontísticos que surgematravés de 12 defasagens.

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Dessa forma, embora a peça (em sua primeira parte) repita incessantemente um mesmo grupode doze notas, o ouvinte é presenteado com uma rica gama de possibilidades pelas quaispode construir a experiência da peça. Dois tipos de eventos surgem nessa peça: aquelesestáveis, que ocorrem nas reconfigurações do alinhamento dos dois padrões; e aqueles instáveis,que ocorrem durante o período de tempo da defasagem. Por exemplo, quando as notas estãoperto de meio pulso de defasagem, uma sensação de duplicação da velocidade ocorre. Assim,uma gama ampla de efeitos acústicos e psicoacústicos ocorre, e, embora o processo repitasempre o mesmo material, a obra soa sempre diferente e viva. Cada vez que um alinhamentoocorre, ele soa diferente do precedente, e cada vez que existe uma aceleração ou defasagem,a forma como esta se dá é única. Conforme Epstein (1986, p.494):

“O credo de Reich de que a música pode ser impessoal, um processo não editado, ao invés deum processo metafórico construído, é uma nova idéia, no sentido de que o papel do compositorpassa a ser visto não como o de um inventor de códigos pessoais, mas de um descobridor deprocessos naturais impessoais. Ao experienciar esse processo, a tarefa do ouvinte é tambéma de um descobridor, tanto das leis físicas inerentes ao processo como das leis psicológicasque afetam a interação do ouvinte com o processo.”

Reich utilizou-se ainda da técnica de troca de fases em outras obras, dentre as quais ViolinPhase (1967), Drumming (1971) e Clapping Music (1972). Em Clapping Music (1972), Reichexplorou a troca de fase entre dois percussionistas batendo palmas, porém sem uma transiçãogradativa na defasagem. Aqui as trocas de fase são abruptas, um executante repete o mesmopadrão, enquanto o outro (clap II) defasa abruptamente após 12 repetições de um mesmocompasso. Como mostra o Ex.3, aqui os padrões são defasados, pelo segundo executante,diretamente a cada troca de compasso, até a volta ao uníssono inicial no compasso 13. Oefeito prático dessa defasagem é idêntico ao de uma imitação canônica realizada com onzecolcheias de distância (c.2), dez colcheias de distância (c.3), e assim por diante, até a volta aouníssono no compasso final da peça (repetição do c.1).

Clapping Music marca o fim da utilização da técnica de troca de fase. Nos anos seguintes asobras de Reich, como Six Pianos (1973), Music for Mallet Instruments (1973), seriam centradasna técnica de processo aditivo por grupo (já utilizada em Drumming), a qual o compositordenomina “processo de construção rítmica” ou “substituição de pausas por notas” (REICH,1974, p.65-66). Examinaremos essa técnica composicional mais adiante, sob o nome deprocesso aditivo por grupo.

Ex.3 –Clapping Music (1972) de Steve Reich

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Enquanto Reich estava trabalhando com a técnica de troca de fase, Philip Glass, em suas primeirasobras minimalistas, realizadas no final dos anos 60, estava preocupado em desenvolver outratécnica composicional que se tornou característica do Minimalismo: a técnica de processo aditivo/subtrativo linear

9 (linear additive process). Como o próprio compositor relata, a idéia da técnica de

processo aditivo linear lhe ocorreu depois de fazer algumas transcrições de música indiana para anotação ocidental, em um trabalho junto a Ravi Shankar em Paris, no ano de 1965. Glass trabalhoualgum tempo com Ravi Shankar e seu tablista Alla Rakha, tendo a missão de transcrever para anotação ocidental a música a ser executada em uma sessão de gravação. Gradualmente, Glasspercebeu que a rítmica da música hindu era estruturada de forma diferente da ocidental. Elepercebeu que na música ocidental o ritmo é dividido, enquanto que na música hindu parte-se depequenas unidades rítmicas que, colocadas em seqüência, formam ciclos ou unidades maiores(ritmo aditivo). A partir dessa revelação (insigth) Glass livrou-se das indicações e barras de compassoda métrica ocidental para realizar suas primeiras obras aditivas (SCHWARTZ, 1996, p.114-6).

A técnica de processo aditivo linear articula processos de repetição baseados em adição defiguras a partir de um padrão base. Por exemplo, se temos um padrão 1-2, após um certo númerode repetições adiciona-se mais um elemento 1-2-3, gerando assim um processo gradativo deadição linear. Esse processo pode ser regular com a adição de um número regular de unidadesdurante o processo de repetição (ex. 1, 1-2, 1-2-3), ou ainda irregular com a adição de um númeroirregular de unidades (ex. 1, 1-2-3, 1-2-3-4, 1-2-3-4-5-6) durante o processo de repetição.

Na peça de Glass Two Pages (1969) temos um exemplo pontual de como essa técnicacomposicional se articula. O Ex.4 mostra que aqui temos um processo aditivo linear irregular,pois o número de unidades acrescentadas a cada repetição é irregular. No primeiro compassotemos um grupo de cinco notas; após um certo número de repetições deste, o intérprete passaao segundo compasso, no qual mais quatro notas são adicionadas. No terceiro compassotemos a adição de mais três notas. Esse é, portanto, um processo aditivo (por vezes tambémsubtrativo, como nos c.5-7) linear irregular.

9 Quando nos referimos aos processos de caráter aditivo, a contraparte lógica “processo subtrativo” tambémestá implícita.

Ex, 4 –Two Pages (1969) de Philip Glass (c.1-9 e c.86-107)

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O material melódico utilizado em Two Pages é reduzido ao mínimo, e contém somente cincoalturas (Sol, Dó, Ré, Mi b e Fá). Dignos de nota nessa peça são os começos e finalizaçõessúbitas de novos compassos (padrões) sem nenhuma preparação, o que dá ao ouvinte asensação de estar ouvindo apenas fragmentos em um permanente continuum musical. Essesgrupos irregulares de colcheias, às vezes adicionadas e às vezes subtraídas dos compassos,não oferecem ao ouvinte qualquer possibilidade de apreendê-las dentro de uma indicação decompasso específica. Dessa forma, o ouvinte logo perde seu ponto de referência métrico,perdendo também a noção de como está ocorrendo o processo aditivo/subtrativo, o que acabapor gerar uma sensação extremamente hipnótica.

Em sua peça Music in Fifhts (1969), Glass utilizou a mesma técnica composicional de processoaditivo linear, mas agora em duas linhas melódicas com a distância de uma quinta uma daoutra.

10 Nessa peça, o processo aditivo linear também é irregular. O Ex.5 mostra que duas ou

três colcheias são acrescentadas antes do grupo principal de oito notas, e às vezes interpoladasno meio deste, dividindo-o em dois subgrupos de quatro notas.

Glass utilizou ainda essa técnica composicional de forma preponderante em obras como Musicin Similar Motion (1969), Music in Contrary Motion (1969) e Music with Changing Parts (1970).Em Music in Twelve Parts (1971-74), essa técnica foi utilizada em combinação com outras técnicascomposicionais dentro de cada uma das doze seções da obra. Essa obra, assim como Music forEighteen Musicians (1974-76), de Reich, começaria a levar o Minimalismo a mudanças estilísticassignificativas,

11 já que a idéia de processo passa a ser algo secundário, devido à maior importância

de outros elementos utilizados, tais como modulações e progressões harmônicas, e ainda autilização de texturas mais densas e complexas (SCHWARZ, 1996, p.127-8.).

10 Ironicamente, Glass diz que essa obra seria uma homenagem à sua professora de contraponto durante suatemporada Parisiense, Nadia Boulanger.

11 Para uma discussão aprofundada dessas mudanças ver CERVO, 1999.

Ex. 5 – Music in Fifhts (1969) de Philip Glass (c. 13-19)

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Passaremos agora ao exame da técnica de processo aditivo por grupo12

(block additive process).Reich refere-se a esta técnica como “processo de substituição de pausas por notas”, pois se tratade introduzir um grupo (ou bloco) de notas, de maneira gradual e não linear. A primeira obra naqual Reich utilizou a técnica de processo aditivo por grupo, ou, conforme o autor, processo desubstituir pausas por notas, foi Drumming (1972). As obras imediatamente subseqüentes aDrumming que utilizam essa técnica são: Six Pianos, Music for Mallet Instruments e Music forPieces of Wood, todas compostas em 1973 (REICH, 1974, p.66). Cabe notar que essa técnicacomposicional é proeminente nas obras de Reich, de 1973 até os dias atuais.

Para exemplificar essa técnica composicional, suponhamos que tenhamos como idéia musicalum grupo de oito notas 1-2-3-4-5-6-7-8. Pela técnica de processo aditivo por grupo é possívelintroduzir cada uma dessas oito notas gradualmente e de forma não linear. Para isso bastasubstituir as pausas por notas, como mostra o Ex.6.

Assim, gradualmente, e de forma não linear, as notas que compõem o grupo vão sendointroduzidas até o grupo se completar, daí o nome “processo aditivo por grupo.” A principaldiferença entre essa técnica composicional e a técnica de processo aditivo linear consiste emque, no caso do processo aditivo por grupo, é possível identificar uma métrica fixa dentro daqual o grupo é executado.

O Ex.7 mostra como essa técnica composicional é empregada no Sexteto de Steve Reich. Ogrupo completo, apresentado na Marimba I, é gradualmente introduzido pelas Marimbas II e IIIatravés do processo aditivo por grupo. A marimba II expõe três notas do grupo no compasso18; no compasso 19, mais duas notas do grupo são adicionadas, e assim por diante. A marimbaIII começa expondo uma nota do grupo no compasso 21, mais uma no compasso 22, e assimpor diante, até a exposição completa do grupo nas Marimbas II e III no compasso 23.

12 Preferimos o termo “grupo”, ao invés de “bloco”, pois bloco em português pode ser facilmente relacionado econfundido com textura.

Ex.6 – Processo Aditivo por Grupo

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Nesse exemplo, ocorre ainda que os grupos estão fora de fase, fazendo com que o resultadofinal (c.23) seja idêntico àquelas seções das peças instrumentais de Reich que utilizam a técnicade troca de fase, quando duas vozes estão sincronizadas (onde o andamento é o mesmo paraambos executantes) e o padrão é ouvido como deslocado em relação a si mesmo.(WARBURTON, 1983, p.148).

Agora examinaremos a técnica de processo adit ivo (ou subtrativo) textural. Essa técnicaconsiste em nada mais do que adicionar vozes, uma a uma, até o ponto em que toda a texturase completa. Essa técnica foi utilizada de forma proeminente em obras como Drumming (1972),Music for Pieces of Wood (1973), Music for Eighteen Musicians (1974-6) de Reich, e tambémna obra North Star, entre outras, de Glass (WARBURTON, 1983, p.156).

A idéia de uma textura que se incrementa (ou se extingue) gradualmente tem muitosantecedentes na música ocidental, mas a maneira pontual como os compositores minimalistasa utilizaram, subjugando a técnica a um processo gradual, e sempre em combinação comoutras técnicas de variação gradual, criou efeitos tímbricos de grande variedade, riqueza e

Ex.7 – Primeiro movimento (3 marimbas) do Sexteto (1983) de Steve Reich (c.17-23)

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sofisticação, como, por exemplo, na obra Music for Eighteen Musicians (1974-6) de Reich.Assim, o timbre ganha uma importância estrutural de relevância na música minimalista, já queele é um elemento que pode variar de forma bastante rica e complexa, enquanto os outroselementos de um processo de repetição permanecem estáticos.

Um exemplo pontual dessa técnica pode ser encontrado no inicio de In C (1964) de Terry Riley,onde o autor conjuga um processo de repetição, através da técnica de superposições de padrões(que examinaremos a seguir), e um processo aditivo textural. Em In C as vozes vão entrandouma a uma (começando pelo padrão 1) até que todos os instrumentos de uma execuçãoespecífica (a instrumentação é variável) estejam soando, produzindo então a “sonoridade” e atextura geral da obra, que se manterá por um longo período de tempo (ver Ex.8).

Por fim, vamos examinar a técnica de superposição de padrões, que é a técnica de repetiçãocentral das obras de Terry Riley nas décadas de 60 e 70, utilizada em obras como In C, ARainbow in Curved Air, Dorian Reeds, para citar algumas. Essa técnica consiste em superpordiferentes padrões rítmicos e melódicos, geralmente com durações diferentes, sobre um pulsoque se mantém uniforme para todos os executantes.

Em In C (1964), Terry Riley combina um processo de superposição de padrões com um processode pessoas. Um processo de pessoas na medida em que os executantes se movem mais oumenos livremente pelo material sugerido, ao seu próprio tempo. Esse processo de pessoas éconjugado a um processo de superposição dos padrões 1-53, indicados na partitura (Ex.8),que são gradualmente introduzidos pelos instrumentistas (um processo aditivo textural estáimplícito).

A peça pode ser tocada por qualquer número de instrumentistas, mesmo amadores, mas asmelhores execuções serão realizadas por músicos acostumados a improvisarem e a escutaremuns aos outros. Não incluída na partitura está o “Pulso”, que consiste na oitava dos Dós maisagudos do piano, que são repetidas em um pulso de colcheias, do início até o fim da execução.

13

Assim, cada membro do grupo executa consecutivamente as figuras de 1 a 53 contra essePulso. O número de repetições, assim como os intervalos de pausa entre elas, é deixado acargo dos executantes. A obra termina após todos os executantes terem finalizado a figura 53.A qualidade da música depende das interações espontâneas que ocorrem no decorrer dapeça, que pode durar entre 45 e 90 minutos.

13 Essa parte foi sugerida e executada por Steve Reich, que participou da primeira audição de In C, em SãoFrancisco, USA, em novembro de 1964.

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Nessa peça, idéias musicais de diferentes durações são superpostas e adicionadas enquantoexecutadas contra um pulso comum. Segundo Warbunton, o resultado da técnica desuperposição de padrões pode ser considerado como algo que está entre a regularidade rítmicade um processo aditivo por grupos e a qualidade mais expansiva e irregular de um processoaditivo linear (WARBURTON, 1988, p.152).

VII. Feições Estilísticas das Obras MinimalistasTodas as obras minimalistas anteriormente exemplificadas apresentam características comuns,que são fortes o suficiente para caracterizá-las como pertencentes a um mesmo estilo musical,da mesma forma que nos é possível, por exemplo, identificar obras que apresentemcaracterísticas do estilo barroco ou do estilo clássico.

Dentre as principais características estilísticas das obras pertencentes ao Minimalismo, podemser destacadas as seguintes: Estrutura formal contínua, textura rítmica homogênea com umacor brilhante, paleta harmônica simples, ausência de linhas melódicas e repetição de padrõesrítmicos (JOHNSON, 1994, p.751).

Ex.8 - In C (1964) de Terry Tiley

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A seguir comentaremos cada uma dessas feições estilísticas:

1) Estrutura formal contínua: as obras minimalistas têm longa duração, e durante seudesenrolar não apresentam mudanças abruptas ou qualquer outro recurso de contrasteque possa caracterizar uma “troca de seção” nos termos tradicionais. A forma geral éuma decorrência do processo que se articula de modo gradual e quase imperceptível;assim, a forma pode ser considerada circular e contínua, sem objetivos direcionaisou dramáticos. Um gesto característico das obras minimalistas é uma finalizaçãoabrupta e inesperada, dando a idéia de “parada”, mais do que de fim, o que reforça aidéia de forma circular;

14

2) Textura rítmica homogênea com uma cor brilhante: A “cor” da textura das obrasminimalistas tende a ser brilhante, já que a intensa atividade rítmica da superfíciesugere uma atmosfera musical de vivacidade, de um fluxo motório contínuo, que nosremete a “cores” claras e brilhantes. A textura rítmica homogênea é elementocaracterístico das obras minimalistas, sendo por vezes variada gradualmente atravésda adição e subtração de timbres (processo aditivo/subtrativo textural);

3) Paleta harmônica simples: as harmonias utilizadas pelas obras minimalistasprivilegiam estruturas harmônicas simples, geralmente baseadas em harmonia triádica,com caráter fortemente modal. O ritmo harmônico das obras (quando existente) tendea ser muito lento se comparado a qualquer outra obra da música ocidental;

4) Ausência de linhas melódicas: devido ao foco no processo rítmico e formal contínuo,linhas melódicas expressivas, que sugerem início e fim de frases, não têm lugar namúsica minimalista;

5) Repetição de padrões r ítmicos: as obras minimalistas apresentam um fluxointermitente de figurações rítmicas que fluem do início ao fim da obra. Esses padrõesgeralmente são sustentados por longos períodos de tempo, sendo eventualmentesuperpostos, defasados, ou ainda gradualmente modificados.

VIII. Considerações finaisAté onde temos conhecimento, este artigo apresenta a primeira explanação mais aprofundadasobre o Minimalismo no contexto do meio acadêmico brasileiro, assim como a primeira tentativade definir uma terminologia e conceitos em português, e de caracterizar um referencial teóricopara a análise de obras minimalistas. Esperamos que o substrato teórico aqui lançado seja devalia para aqueles interessados em estudar obras de compositores brasileiros influenciadospelo Minimalismo, como Gilberto Mendes, Rodolfo Coelho de Souza, Marco Antônio Guimarães,dentre outros, já que muitas de suas obras utilizam técnicas composicionais semelhantes àquelasaqui descritas, em conjunção com elementos estilísticos característicos.

14 Cabe notar que a idéia de ciclo, que não tem início nem fim, é um conceito fundamental, no qual a maior partedas músicas da África e do Oriente são baseadas, sendo que tais tradições musicais foram fontes de influênciadecisivas para os compositores minimalistas.

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Dimitri Cervo é compositor e pianista, Doutor em Música pela UFRGS (1999). Atualmente, éProfessor Adjunto do Curso de Música da Universidade Federal de Santa Maria. Em 1995,recebeu o primeiro prêmio no Concurso de Obras para Orquestra do XV Festival de Londrinae, em 2000, sua Pequena Suíte Brasileira recebeu o prêmio do júri e do público no V AliénorCompositon Competition (Carolina do Sul, USA). Em 1997, em Seattle (USA), assinou contratocom a editora Sunhawk, tornando-se um dos pioneiros na publicação de partituras em formatodigital na Internet. É autor de obras como Toronubá e Pattapiana que têm recebido inúmerasexecuções em diversos estados brasileiros e no exterior, sob a regência de maestros comoRoberto Duarte, Lutero Rodrigues, Ricardo Rocha, Cláudio Ribeiro e Mark Cedel. Em 2003 e2004, teve sete de suas obras registradas em CDs de diversos grupos e artistas.

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FERNANDES, Ângelo José. De Batuque e Acalanto: uma Missa Afro-Brasileira.... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.60-72Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 07/10/2004 - Aprovado em: 05/02/2005.

De Batuque e Acalanto:uma análise da Missa Afro-Brasileira de Carlos Alberto Pinto Fonseca1

Ângelo José Fernandes (UNICAMP)[email protected]

Resumo: Este artigo apresenta a Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto) de Carlos Alberto Pinto Fonsecacom base em informações e observações fornecidas pelo compositor e procedimentos analíticos. Inicialmente,apontam-se fatores que influenciaram o compositor no processo composicional e posteriormente apresentam-seaspectos importantes sobre a estrutura da obra e algumas sugestões para sua performance.Palavras-chave: Carlos Alberto Pinto Fonseca, música afro-brasileira, música coral, regência coral.

De Batuque e Acalanto: an analysis of the Afro-Brazilian Mass by CarlosAlberto Pinto Fonseca

Abstract: This article presents the Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto) by Brazilian composer CarlosAlberto Pinto Fonseca, focusing on information and observations provided by the composer and also on analyticalissues. Initially, it discusses the factors that have influenced the composer in his compositional process and thenpoints out important structural aspects of the work as well as some suggestions for its performance.Keywords: Carlos Alberto Pinto Fonseca, Afro-Brazilian music, choral music, choral conduction.

I. O COMPOSITOR E A OBRACarlos Alberto Pinto Fonseca é, atualmente, um dos mais importantes compositores brasileirospara a música coral. Sua atuação como regente à frente do Ars Nova - Coral da UFMG, pormais de 40 anos é, sem dúvida, um fator determinante em sua produção musical. “O trabalhoininterrupto junto a este coral deu a Carlos Alberto Pinto Fonseca, oportunidades de pesquisae experiências junto à criação musical destinada a formações corais” (SANTOS, 2001).

Nascido em Belo Horizonte no ano de 1933, o compositor iniciou seus estudos de músicanesta mesma cidade. Estudou Harmonia com Hostílio Soares no Conservatório Mineiro deMúsica (1954) e Harmonia e Regência Coral com Hans Joachin Koellreuter nos Semináriosde Música da Bahia, estado para o qual viria a se mudar no ano de 1956. Deste ano até 1960foi aluno da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, onde se formou em 1960.

Em 1960, mudou-se para a Europa. Inicialmente, estudou na Alemanha onde foi aluno deSchmidt-Isserstedt (regência de orquestra), Ferry Gebhardt (piano), Wolfgang Sawallish(regência) e Schmidt-Neuhaus. Deixando a Alemanha, fixou-se em Paris, onde estudou regênciasob orientação de Edouard Lindemberg, com quem se preparou para o Concurso Internacionalpara Jovens Regentes, em Besançon, no qual foi finalista. Entre seus estudos regulares de1960 a 1962, também freqüentou cursos promovidos pela Academia Musicale Chigiana, emSiena, onde pode estudar regência de orquestra com Franco Ferrara e Sergiu Celibidache,além de direção de ópera e interpretação com Bruno Rigacci e Gino Bechi.

1 Esse artigo é resultado parcial de pesquisa de Mestrado em Música na UNICAMP e é parte integrante dadissertação intitulada Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto) de Carlos Alberto Pinto Fonseca: aspectosinterpretativos, defendida pelo autor no primeiro semestre de 2004.

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No ano de 1961, teve sua primeira atuação à frente do coral Ars Nova, executando a MissaAeternae Christe Munera de Palestrina, a convite do regente titular – maestro Sergio Magnani.Algum tempo depois, tendo terminado seus estudos na Europa, assumiu, definitivamente, aregência titular deste coro, com o qual vem desenvolvendo um amplo trabalho como regente ecompositor. Sendo sua atividade profissional mais constante, este coro tem lhe servido deinspiração para a composição de inúmeras obras corais.

Uma das principais características de seu trabalho como compositor é o interesse pela culturaafro-brasileira. Desde o período em que viveu na Bahia, essa cultura o tem influenciado deforma significativa, levando-o a compor inúmeras peças baseadas em textos da umbanda e docandomblé. Apesar da forte influência da cultura afro-brasileira sobre a obra de Carlos AlbertoPinto Fonseca, o maestro, em entrevista “declarou jamais ter ido a algum terreiro de candomblé”,acrescentando ainda sobre seu interesse por tal cultura:

“Tive vontade de escrever música de inspiração afro-brasileira depois de ouvir um conjuntochamado Cantores do Céu, com uma sonoridade fascinante, incluindo vozes graves. Depoisde ouvir este conjunto, ganhei um livro

2 contento 400 pontos riscados, cantados e dançados

de umbanda. Comecei a partir dos textos deste livro a criar melodias por conta própria”(SANTOS, 2001).

Sua obra mais importante é a Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto), composta em1971 para solistas e coro misto a cappella. Premiada em 1976 pela Associação Paulista deCríticos da Arte, como “Melhor obra vocal do ano”, a obra reúne temas do folclore afro-brasileiro,intercalando trechos notadamente rítmicos e energéticos, que remontam à tradição da músicaafricana, com trechos mais melódicos, que ressaltam aspectos do acalanto e de outras formasencontradas na música brasileira.

A obra foi publicada pela Lawson-Gould music publishers nos Estados Unidos no ano de 1978(FONSECA, 1978), e, gravada pelo próprio compositor à frente do coral Ars Nova, no ano de1989 (FONSECA, 1989), tendo como solistas Maria Eugênia Meirelles (soprano), Mara DalvaAlvarenga (contralto), Marcos Tadeu de Miranda (tenor) e José Carlos Leal (barítono).

A decisão de compor a missa foi tomada em 1970, como forma de utilizar elementos da culturaafro-brasileira em uma obra sacra, com texto da liturgia católica romana. Esta decisão foi umreflexo dos comentários do Papa João XXIII que, na ocasião do Concílio Vaticano II, haviasugerido que os compositores de todo o mundo utilizassem elementos populares e folclóricosde seus países na composição de música sacra.

Carlos Alberto Pinto Fonseca afirma que, além da cultura afro-brasileira, sua religiosidadefoi um fator de grande influência na composição da missa. O compositor é um homembastante místico, que cultiva intensamente sua relação com Deus. De formação católica,declarou que na época em que escreveu a Missa Afro-Brasileira , ele freqüentava umgrupo de meditação e tal prática o influenciou de forma significativa no processocomposicional.

2 O livro a que o compositor se refere é 400 pontos riscados e cantados de umbanda e candomblé. 3.ed. Rio deJaneiro: Eco, 1962.

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Este processo iniciou-se com alguns esboços que, em sua maioria, não foram utilizados. Aobra foi composta e concluída em aproximadamente três meses, entre os anos de 1970 e1971, embora o compositor não tenha nenhum registro preciso a respeito das datas.

Apesar de sua religiosidade, Carlos Alberto Pinto FONSECA (2002) declarou que inúmerosfatores influenciaram o processo de composição da Missa Afro-Brasileira, mas que seu principalpropósito foi romper com os conceitos de sacro e profano, bem como de erudito e popular:

“Eu procurei na missa partir de dois pontos de vista: sair da concepção de erudito e popular,fazendo uma obra que fosse ao mesmo tempo erudita e popular, e também romper com aconcepção de música sacra e profana...”

Foi com esse propósito que o compositor empenhou-se na composição de uma obra que fossefacilmente assimilada pelo público, evitando o uso da linguagem experimental ou de vanguarda:

“... e a linguagem da missa não é experimental. Minha proposta é chegar aos corações daspessoas através de algo que já é assimilado por elas. Se pensarmos em informação eredundância, a Missa Afro-Brasileira tem muito mais redundância do que informação.”(FONSECA, 2002)

A obra é marcada pela presença constante de elementos do folclore e da música popular comoo baião, o vira português, as cantigas de ninar, as cantigas de roda, o canto de aboio, o samba-canção, a marcha-rancho e o choro. Observa-se ainda a presença constante da rítmica afro-brasileira, a utilização de escalas modais e o uso da língua vernácula em alternância e/ousuperposição com o latim.

Na Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto), o compositor chama de batuque3 tudo o que

representa a percussão afro, ou seja, todos os trechos que apresentam ritmos mais percussivosde origem afro sem denominações específicas. Os acalantos,

4 por sua vez, são os temas de

canções de ninar, os de cantigas de roda, além da marcha-rancho, do choro e do samba-canção.

No prefácio da partitura da Missa Afro-Brasileira, Carlos Alberto Pinto Fonseca afirma que o“sincretismo é uma realidade no Brasil” e que na composição da obra ele “tentou expressar ossentimentos religiosos dos brasileiros, povo formado pela mistura do europeu, do negro e dosancestrais indígenas” (FONSECA, 1978). A fusão do tradicional, representado pelo texto doOrdinário da liturgia católica, com o popular, representado pelos vários elementos da culturaafro-brasileira dá à obra o caráter sincrético descrito pelo compositor.

Apesar do caráter sincrético contido no título da Missa Afro-Brasileira, é impossível afirmar queexista na obra uma inserção direta de elementos do candomblé ou da umbanda. Não foram

3 Batuque é uma dança originária da Angola e do Congo. Sinônimo de batucada, é uma das danças brasileirasmais antigas, se não for a mais, tendo sido constatada no Brasil e em Portugal já no séc. XVIII. Em algumasregiões do estado de São Paulo, o batuque é uma dança de terreiro, e no Rio Grande do Sul significa cerimôniaafro-brasileira. Na verdade, a palavra batuque deixou de designar uma dança particular, e tornou-se um nomegenérico de determinadas coreografias e danças apoiadas em ritmos fortes realizados por instrumentos depercussão.

4 Os acalantos são melodias simples e ternas. Seu texto pode, normalmente, apresentar figuras que causemmedo, incentivando as crianças a dormir para evitá-las. Outra característica dos acalantos é o uso do canto embocca chiusa ao final da canção, de modo a propiciar uma certa monotonia para adormecer a criança.

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empregados instrumentos musicais (especialmente de percussão), tão comuns a esses rituais,ou quaisquer expressões em dialeto africano. Não existem na obra referências a orixás, ou amelodias tradicionalmente associadas ao culto afro. A performance da obra não requer coreografiasou movimentos que lembrem as danças características de tais rituais. O compositor deu umagrande importância ao ritmo, elemento vital nas religiões afro-brasileiras, justificando, ainda queparcialmente, o sincretismo religioso citado no prefácio da partitura e nas entrevistas cedidas.

Rafael Grimaldi da Fonseca, regente auxiliar do coral Ars Nova, afirma que a Missa Afro-Brasileira, muito mais do que resultado de um sincretismo religioso é produto da estéticanacionalista. Para ele, Carlos Alberto Pinto Fonseca é marcadamente um compositornacionalista, que colhe os elementos afro-brasileiros da própria estética nacionalista e de outroscompositores nacionalistas, e não da pesquisa do folclore. Para ele, “a missa não foi escritasob o ponto de vista de quem se envolveu e pesquisou, mas sob o ponto de vista da própriaescola nacionalista.” (GRIMALDI, 2003).

Entretanto, Carlos Alberto Pinto Fonseca não se julga um compositor nacionalista e tambémnão considera a Missa Afro-Brasileira como uma obra pertencente a tal movimento, apesar desua essência folclórica e popular. Apenas afirma que se trata de uma obra que tenta abolir asbarreiras entre sacro, profano, erudito e popular.

De qualquer forma, é inapropriado considerar a Missa Afro-Brasileira como uma “missafolclórica”

5, como a Missa em Aboio de Pedro Marinho e a Missa Nordestina de Lindembergue

Cardoso, que foram concebidas com base em elementos do folclore nordestino brasileiro.

Outro fator determinante na composição da Missa Afro-Brasileira foi o coral Ars Nova, suasonoridade e seu potencial técnico-musical. O compositor afirma que escreveu a missa para oArs Nova e suas condições técnicas:

“O coro que eu tinha nas mãos naquela ocasião apresentava um alto nível técnico e artístico.Poderia, inclusive estrear a obra. O coro tinha uma extensão vocal muito ampla, o que meproporcionou pensar na missa de forma mais exigente. Por isso, não é uma obra para ser feitacom madrigais ou coros amadores que não possuam um trabalho vocal desenvolvido”.FONSECA (2002)

Assim como o coral Ars Nova foi fonte de inspiração para o compositor, os solos presentes naobra também foram escritos para cantores determinados:

“Mais ainda que o coro, os solos foram pensados nos solistas que eu tinha na época,principalmente o solo de tenor, que fora escrito para a voz do Marcos Tadeu. Na ocasião eutinha Alcione Soares como baixo e Alba Machado de Souza, que era um contralto verdadeiro,com uma voz potente e rica em graves”. FONSECA (2002)

Carlos Alberto Pinto Fonseca considera a Missa Afro-Brasileira a maior de suas obras, declarandoque, mesmo após mais de trinta anos, ele não mudaria uma só nota de sua composição e que“ainda se emociona muito ao regê-la ou ao ouví-la” FONSECA (2002).

5 O Concílio Vaticano II deu um grande impulso à secularização da música litúrgica católica, e neste contextosurgiram então as chamadas “missas folclóricas”, que eram missas compostas baseadas em materiais folclóricos.

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II. A ESTRUTURA DA OBRAA Missa Afro-Brasileira é uma obra extensa que apresenta uma grande diversidade deelementos estilísticos. O compositor diz que “é uma obra mais longa do que o normalporque ele utilizou o texto oficial da Igreja Católica que era ainda usado no ano dacomposição (1971)” FONSECA (2002). A obra apresenta as cinco partes do Ordinário:Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus/Benedictus e Agnus Dei. Essas partes foram divididas em 19movimentos dos quais, alguns são, ainda, divididos em seções em função da variedade desuas características musicais.

Assim, o Kyrie foi dividido em três movimentos: Kyrie (c. 1-24),6 Christe (c. 25-35) e Kyrie II (c. 37-

63); o Gloria em quatro: Gloria (c. 1-20), Nós vos louvamos (c. 21-34), Gratias agimus (c. 35-140)e Quonian (c. 141-161); o Credo em cinco: Credo (c. 1-47), E se encarnou (c. 48-132), Et unamsanctam (c. 133-165), Et vitam (c. 166-173) e Amen (c. 174-193); o Sanctus em cinco: Sanctus(c. 1-27), Hosanna (c. 28-41), Benedictus (c. 42-62), Bendito Aquele (c. 63-83) e Hosanna (c. 84-104); e, por fim, o Agnus Dei em dois: Agnus Dei (c. 1-18) e Dona Nobis (c. 19-60).

O compositor usa o latim e a língua vernácula, às vezes de forma superposta, às vezes deforma alternada. Em geral, o latim, considerado pelo compositor como uma língua maispercussiva e articulada, é usado nas partes de acompanhamento e em grande parte dos trechoscontrapontísticos. O português, mais brando, é utilizado em todas as linhas melódicas. Ocompositor justifica a utilização dos dois idiomas dizendo que:

“O uso do português e do latim não é uma vontade de utilizar aquela forma arcaica que vem doperíodo medieval como aqueles motetos com várias línguas superpostas. É apenas uma questãode fonética. O português é muito brando, melhor para as melodias suaves. Enquanto que olatim é mais percussivo e articulado, melhor pra percussão afro e para as linhas mais enérgicas.Às vezes eu uso o português e o latim superpostos, às vezes em forma de responsório, comoo início do Gloria como se tivesse uma voz traduzindo a outra, e às vezes de forma alternada.Eu faço um bloco todo em latim e, depois, o repito em português...” FONSECA (2002)

Outro aspecto importante é a presença de um motivo melódico condutor (Ex.1), cuja função édar unidade à obra. Tal motivo é chamado pelo compositor de leitmotiv e aparece várias vezesno decorrer da obra. Normalmente apresentado na linha do soprano, o motivo condutor é acada vez harmonizado de forma diferente (Exs.2 e 3).

6 Tanto a partitura editada como o manuscrito do compositor não apresentam numeração de compassos. Porisso, nesta análise da obra, o Ordinário foi numerado como um todo, apesar de sua divisão em movimentos.

Ex.1: Motivo condutor da obra apresentado logo no início do Kyrie (c.1-2).

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Este motivo faz, em geral, referência a Deus Pai. Segundo GRIMALDI (2003), “todas as vezesque o texto faz referência à primeira pessoa da Santíssima Trindade, Carlos Alberto Pinto Fonsecautiliza um motivo mais rítmico do que melódico, enquanto que, as referências a Deus Filho aparecemem linhas mais melódicas do que rítmicas”. É como se o compositor usasse o Batuque para DeusPai e o Acalanto para Deus Filho. O mesmo acontece em relação à dinâmica. O compositorindicou dinâmicas mais fortes para Deus Pai e dinâmicas mais suaves para Deus Filho.

A única exceção encontra-se no fim de toda a obra, no Dona Nobis, onde há referência a DeusFilho, o “Cordeiro de Deus” – Agnus Dei (Ex.4) Para a exclamação “Agnus Dei qui tollis peccatamundi dona nobis pacem” o compositor utilizou o motivo condutor em fortíssimo. Neste momento

Ex.2: Primeira harmonização do motivo condutor no Kyrie, c. 1-2.

Ex.3: Apresentação do motivo condutor com nova harmonização no Quonian(Gloria, c. 141-142).

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da obra, as figuras de Deus Pai e de Deus Filho se juntam. Na verdade, o compositor consideroutal referência às três pessoas da Santíssima Trindade formando o Deus Uno. Em entrevista,ele disse:

“Ao invés de terminar a missa de forma suave resolvi, depois de uma conversa com o Pe.Nereu Teixeira, terminá-la com a exclamação Agnus Dei! Agnus Dei! O Dona Nobis é como sefosse uma escada que leva ao céu. Depois de toda a turbulência da missa com seus fortíssimose apoteoses, entra o Dona Nobis com aquela suavidade, e de repente, na segunda parte entraa exclamação: Agnus Dei, Agnus Dei, em fortíssimo. Essa exclamação é um pedido de socorroa Deus, dizendo a Ele que o mundo não está em paz”. (FONSECA, 2002)

Além do motivo condutor, há uma série de motivos melódicos que contribuem para a unificaçãoe coerência da obra. Alguns deles são repetidos, criando uma inter-relação entre trechosdiferentes (Ex.5 e 6). Outros são apresentados uma única vez na obra com a função decaracterizar determinados trechos (Ex.7)

Ex.5: Motivo inicial do Gloria (c. 1-2), apresentado nas linhas do baixo e do tenor.

Ex.4: Motivo condutor apresentado duas vezes em seguida, com harmonizações diferentes, onde ocompositor faz referência ao “Cordeiro de Deus” utilizando o “forte” como

dinâmica – Agnus Dei, c. 43-46.

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Ao lado do motivo condutor e dos diversos motivos melódico-rítmicos encontram-se,principalmente nos trechos de melodia acompanhada, alguns motivos de acompanhamento.

7

Tais motivos de acompanhamento apresentam, de forma geral, características rítmicas e, emalguns casos, melódicas. São unificadores e recebem um tratamento à base de repetiçõesrítmicas adaptados à harmonia. Segue abaixo, como exemplo um motivo de acompanhamentoapresentado no Kyrie (Ex.8). Este motivo, formado por duas células rítmicas (a primeiraapresentada pelo tenor e a segunda pelo baixo) e caracterizado melodicamente pelo desenhode uma bordadura descendente, é explorado ao longo de todo o Kyrie, mantendo as citadascaracterísticas melódico-rítmicas adaptadas à harmonia.

7 “Sendo um dispositivo unificador, o acompanhamento deve estar organizado de maneira similar àquela de umtema, ou seja, utilizar um motivo: o motivo de acompanhamento” (SCHOENBERG, 1996, p.108).

Ex.6: Modificado ritmicamente, em função do texto, o motivo inicial do Gloria é reapresentado noCredo (c.7), com o texto “factorem coeli et terrae”.

Ex.7: Motivo melódico do “Nós te Louvamos” (Gloria, c. 21-24).

Ex.8: Motivo de acompanhamento apresentado no Kyrie (c. 7).

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Existe, ao longo da obra, uma grande variedade de material melódico-harmônico: escalas modais(eólia, dórica, mixolídia, frígia e lídia), escalas tonais, escalas pentatônicas, escalas octatônicas,assim como melodias construídas sobre arpejos de acordes de sétima, acordes de quartas e quintassuperpostas e um pequeno cluster. Pode-se afirmar que cada unidade estrutural (movimentos/seções) da obra foi composta com base em um determinado material melódico-harmônico.

Do ponto de vista harmônico, é importante ressaltar a constante alternância entre harmoniamodal e harmonia tonal. Na verdade, há uma predominância da harmonia modal em função domaior uso de escalas modais, que, em alguns trechos, se intercalam com material melódicotonal. Observa-se, ainda, a constante presença de funções harmônicas tradicionais da harmoniatonal (tônica, dominante e subdominante), mesmo em trechos modais.

O ritmo tem papel de destaque, principalmente nos trechos chamados de batuque,caracterizados por sua essência mais percussiva. Tal essência cria uma certa complexidaderítmica, verificada na formação de algumas células rítmicas e na sua combinação. Como emgrande parte da obra de Carlos Alberto Pinto Fonseca, de natureza afro-brasileira ou não,observa-se, ao longo da obra, o uso de ritmos pontuados, síncopas, contratempos, acentuaçõesem partes fracas do tempo ou em tempos fracos e uma grande quantidade de células rítmicasconstruídas a partir da subdivisão do tempo em quatro partes.

Segue, abaixo, dois trechos que exemplificam a forma como o compositor trabalhou com osritmos. No primeiro exemplo, Carlos Alberto Pinto Fonseca combinou determinadas célulasrítmicas para criar um ritmo de batuque que se aproxima do baião. Trata-se de um trecho demelodia acompanhada, no qual a linha do soprano apresenta a melodia que tem comocontracanto a linha do contralto. As vozes masculinas se encarregam do acompanhamento(Ex.9). Usando a mesma textura de melodia acompanhada, o exemplo seguinte (Ex.10) mostracomo o compositor empregou o ritmo da marcha rancho. Neste exemplo, observa-se que ocompositor sugere aos tenores e baixos que cantem imitando instrumentos de percussão.

Ex.9: Trecho do Kyrie (c. 13-16) que mostra como o compositor empregou o ritmo do baião.

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No tocante à textura, pode-se afirmar que o compositor utilizou o contraponto como principalmétodo de composição. Nos vários momentos da Missa Afro-Brasileira encontram-se trechos:homofônicos a quatro vozes; homofônicos em uníssono oitavado; contrapontísticos baseadosna imitação de determinados motivos; contrapontísticos de melodia acompanhada (a melodiapode ser feita por determinada voz acompanhada pelas demais vozes ou feita por algum dossolistas acompanhado pelo coro); e, por fim, semicontrapontísticos.

8

III. SUGESTÕES PARA A PERFORMANCE DA OBRAA última etapa deste trabalho discute aspectos da preparação e execução da obra, para osquais o próprio compositor chama a atenção:

9

√ Escolha do coro:Não se pode ignorar o fato de que a Missa Afro-Brasileira foi escrita para o coral Ars Nova, suasonoridade e seu potencial técnico-artístico. Ao escolher o coro para sua montagem éinteressante que o regente considere, pelo menos, a sonoridade do citado coral: brilhante, ricaem harmônicos, baseada na impostação facial da voz e na cobertura da região aguda.

8 “O semicontraponto não se baseia sobre combinações tais como o contraponto múltiplo, as imitações canônicasetc., mas apenas sobre o movimento melódico livre de uma ou mais vozes” (SCHOENBERG, 1996, p.111).

9 Todas as sugestões e recomendações apresentadas neste trabalho para a performance da obra foram fornecidaspelo próprio compositor em entrevistas cedidas a este autor.

Ex.10: Trecho do “Nós te Louvamos” (Gloria, c. 21-24) que mostra como o compositor empregou oritmo de marcha –rancho.

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Há a necessidade de um grupo de cantores que apresentem extensões vocais amplas, controlede dinâmica em todas as regiões, boa articulação e dicção, além de uma certa “elasticidadevocal” em função das exigências da partitura.

Quanto ao número de cantores, recomenda-se que o coro não tenha menos que 32 vozes, emfunção da grande quantidade de divisi, e, nem mais que 60, o que poderia comprometer aclareza de articulação e a precisão do ritmo.

√ Afinação:Analisando, separadamente, a linha de cada uma das vozes, observa-se uma série dedificuldades de afinação de ordem melódica: sustentação de notas longas, desenhos melódicoscromáticos, saltos e intervalos de difícil realização para a voz, além da constante presença demelodias modais. Como forma de resolver tais dificuldades, sugere-se, ao regente que, durantea leitura da obra, os naipes do coro sejam trabalhados separadamente. Pode-se ainda usartais dificuldades para a criação de vocalizes a serem trabalhados nos aquecimentos vocais noinício dos ensaios.

Outra dificuldade de afinação é a passagem de um trecho para outro. Neste caso, recomenda-se que o regente ensine o coro a se auto-afinar através de um exercício que consiste narepetição dos dois últimos compassos de um trecho até a primeira nota ou acorde do trechoseguinte.

√ Precisão e clareza rítmicas:A realização precisa e clara da rítmica da Missa Afro-Brasileira é, para o compositor, um dospontos mais relevantes para uma boa execução da obra. Vários são os fatores que podemcomprometer o resultado rítmico: um número excessivo de cantores no coro, uma acústicacom excesso de reverberação, a imprecisão do gestual do regente e a articulação deficientepor parte dos cantores.

Para se conseguir uma execução rítmica satisfatória, o compositor sugere duas práticas:

• Realizar, durante o processo de preparação do coro, um exercício de antecipação dasconsoantes.Este exercício consiste no “recitar o texto, sílaba por sílaba, fazendo umapequena fermata na consoante da próxima sílaba” (FONSECA, 2002).

• Nos trechos mais percussivos, onde há células rítmicas formadas por colcheia pontuadae semicolcheia “deve-se colocar uma pausa de semicolcheia no lugar do ponto”(FONSECA, 2002). Assim, ter-se-á uma colcheia, uma pausa de semicolcheia e umasemicolcheia. Da mesma forma, nas síncopas – semicolcheia, colcheia e semicolcheia– “coloca-se uma pausa de semicolcheia após a colcheia, transformando-a em umasemicolcheia” (FONSECA, 2002). Assim, obtém-se duas semicolcheias, uma pausade semicolcheia e outra semicolcheia (Ex.11).

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√ Exploração timbrística:Ao contrário das indicações de dinâmica e temporalidade, as indicações referentes ao timbreideal para os vários trechos da obra são bem raras. Entretanto, como se trata de uma obrabastante variada em seus elementos musicais, o regente pode buscar alternativas de exploraçãode timbres nas vozes dos cantores.

O próprio compositor afirmou que utilizou o latim de forma mais percussiva e articulada. Alémdisso, há também uma pequena utilização de sílabas como dum-du-rum para a marcação dedeterminados ritmos. De posse disso, é possível explorar o timbre dos naipes como se essesfossem instrumentos de percussão a partir da articulação do texto. Deve-se ainda, segundo ocompositor, cantar as linhas de acompanhamento com uma maior exploração das consoantes:

“O cantor deve cantar as sílabas como se não tivesse vogal para tornar o acompanhamentomais percussivo. A exploração da ressonância de consoantes como o ‘m’, por exemplo, podecriar um efeito de instrumentos de percussão mais graves” (FONSECA, 2002).

√ Clareza e transparência do contraponto:Os trechos mais contrapontísticos exigem do coro uma sonoridade mais “clara, aberta etransparente” (FONSECA, 2002). Tal sonoridade pode ser trabalhada na preparação vocal docoro através de recursos da técnica vocal.

Para se adquirir uma maior “transparência” nas linhas mais melismáticas, o compositor sugere que“os cantores cantem a nota na qual há a articulação da sílaba na dinâmica indicada, e as notasseguintes do melisma, uma gradação de dinâmica abaixo daquela indicada” (FONSECA, 2002).Os cantores podem, ainda, articular repetidamente a vogal da sílaba a cada nota do melisma.

√ Fraseado:Carlos Alberto Pinto Fonseca costuma valorizar intensamente a acentuação tônica das palavras,dando ênfase às sílabas tônicas e realizando pequenos decrescendos nas sílabas átonas quesucedem.

No seu trabalho como regente, estabeleceu um padrão de fraseado. Segundo ele, as frasesdevem “abrir e fechar”. Tal processo inicia-se no princípio da frase na dinâmica indicada e partedesta “caminhando com um leve crescendo até o ponto culminante, seguindo com um levedecrescendo até o fim da frase, fechando-a prosodicamente” (FONSECA, 2002).

Ex.11: Exemplo de frase da linha dos baixos, com ritmos percussivos (Kyrie, c. 17-18). Na pauta decima está a forma como o compositor escreveu. Na pauta de baixo, como o ritmo deve ser executado.

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Nos trechos mais lentos e expressivos, recomenda-se que se cante tudo legato, sem cortes ecesuras, com uso da “respiração coral”. O compositor diz que, nesses trechos, “não devehaver respirações entre frases, em hipóteses alguma” (FONSECA, 2002).

√ Solos:De forma geral, as linhas de solo do soprano, do contralto e do baixo não apresentam grandescomplicações musicais ou técnicas a não ser a tessitura exigida. Entretanto, a parte de solo detenor é bastante exigente. Não só quanto à técnica, mas principalmente, quanto à interpretação,quanto ao controle de todo o texto musical e quanto à exigência dramática de alguns trechos.

√ Acústica ideal para a performance:Concertos de música coral a cappella, principalmente de natureza sacra, costumam funcionarbem em igrejas. Tal opção para a Missa Afro-Brasileira é, provavelmente, a mais recomendável.É importante, entretanto, que o regente saiba escolher uma igreja que apresente condiçõesacústicas adequadas, sem excesso de reverberação. O tratamento contrapontístico dado àobra, assim como a clareza rítmica tão essencial em seu contexto, podem ser colocados emrisco em função de uma acústica que apresente reverberação excessiva. Seja uma igreja ououtro tipo de sala, o local para a performance precisa ter uma quantidade de reverberaçãoequilibrada, a fim de facilitar a homogeneidade dos naipes, dar um certo brilho às vozes egarantir uma melhor afinação sem que haja comprometimento da clareza e da precisão.

Referências BibliográficasFERNANDES, Ângelo José. Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto) de Carlos Alberto Pinto Fonseca:

Aspectos Interpretativos. Campinas, 2004. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Músicado Instituo de Artes da UNICAMP, para obtenção do título de Mestre em Música.

FONSECA, Carlos Alberto Pinto. Entrevista concedida a Ângelo José Fernandes. (fita magnética). Belo Horizonte,2002.

______. Missa Afro-Brasileira (de batuque e acalanto). New York: Lawson-Gould Music Publishers, 1978.______. Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto). Ars Nova - Coral da UFMG. Regência: Carlos Alberto

Pinto Fonseca. Rio de Janeiro: Continental, 1989. 33 rpm, stereo. (Disco de vinil).FONSECA, Rafael Grimaldi da. Entrevista concedida a Ângelo José Fernandes. (fita magnética). Belo Horizonte,

2003.400 PONTOS RISCADOS E CANTADOS NA UMBANDA E CANDOMBLÉ. 3. ed. Rio de Janeiro: Eco, 1962.SANTOS, Mauro Camilo de Chantal. Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados biográficos e catálogo de obras. Belo

Horizonte, 2001. Dissertação apresentada à Escola de Música da UFMG, para obtenção do título de Mestreem Música de Câmara.

SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. Tradução de Eduardo Seincman. São Paulo:Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

Ângelo J. Fernandes: Regente natural de Itajubá/MG. Bacharel em piano e Especialista emRegência Coral pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.Concluiu recentemente seu Mestrado em Música, na área de Práticas Interpretativas, peloprograma de pós-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual deCampinas, UNICAMP, tendo sido orientado pelo Prof. Dr. Eduardo Augusto Östergren.Atualmente é doutorando em Música, pelo mesmo programa.

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BORÉM, Fausto. Impromptu de Leopoldo Miguez: o renascimento de uma obra histórica... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.73-85Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 07/10/2004 - Aprovado em: 05/02/2005.

Impromptu de Leopoldo Miguez:o renascimento de uma obra histórica dorepertório brasileiro para contrabaixo

Fausto Borém (UFMG)[email protected]

www.musica.ufmg.br/~fborem

Resumo: Estudo que integra aspectos musicológicos, composicionais e de performance sobre a obra Impromptupara contrabaixo e piano (1898) de Leopoldo Miguez, e cuja provável parte de piano nunca foi enconrada. Abordao contexto histórico do contrabaixo no Brasil na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro (instumentistas,professores, compositores e obras solísticas originais), o processo de restauração da parte do contrabaixo deImpromptu a partir de três manuscritos identificados como M1, M2 e M3 e a composição de uma nova parte depiano de Impromptu por meio da realização do IV CICC – Concurso Internacional de Composição para Contrabaixoem 2005.Palavras-chave: Leopoldo Miguez, Impromptu, música brasileira, composição musical, performance musical,musicologia histórica.

Impromptu by Leopoldo Miguez: the renaissance of a historical workfrom the Romantic Brazilian double bass repertory

Abstract: Study integrating musicological, compositional and performing aspects related to the work Impromptufor double and piano (1898), written by Brazilian composer Leopoldo Miguez, the possibe piano part of which hasnever being found. It deals with the historical context of the double bass in Brasil in the second half of thenineteenth century Rio de Janeiro (instrumentalists, teachers, composers and original solo works), the process ofrestoring the Impromptu double bass part from three manuscripts identified as M1, M2 and M3 and the compositionof a new piano part for Impromptu through the 4th CICC (Brazilian International Contrabass Composition Contest)in 2005.Keywords: Leopoldo Miguez, Impromptu, double bass, Brazilian romantic music, music composition, musicperformance, musicology.

1- O contrabaixo no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX:Somente na década de 1980, com o crescente interesse pelos estudos de pós-graduação emperformance musical, é que começaram a surgir trabalhos mais bem fundamentados sobre ocontrabaixo no Brasil. Entretanto, é provável que o desconhecimento de fontes históricas cominformações textuais, muito menos disponíveis que partituras, tenha dirigido a maioria dospesquisadores para temas focados em compositores ou obras específicas (BORÉM, 1993,1998, 1999, 2000, 2001a, 2001b, 2003, 2005; CARNEIRO, 1999; ARZOLLA, 1996; CUNHA,2000; NASCIMENTO, 2005; RODRIGUES, 2003; SANTOS, 2005). Embora alguns estudosmais recentes tenham abarcado temas com recortes mais amplos sobre o repertório brasileiro(RAY, 1996, 1998) ou sobre a história das escolas de contrabaixo no Brasil (DOURADO, 1998)ou sobre a pedagogia do contrabaixo no Brasil (MOTTA, 2003), ainda há uma carência deestudos que discutam o panorama mais amplo da musicologia do contrabaixo brasileiro.

A maioria dos contrabaixistas interessados na história mais remota do seu instrumento no Brasilainda convive com datas e dados incertos. Fragmentadas e incompletas, novas informações aindabrotam de arquivos e livros históricos. As partituras compostas ao longo da história musical do paísmostram que o contrabaixo esteve presente desde o período colonial, com o apogeu da música

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orquestral religiosa durante o ciclo do ouro em Minas Gerais (segunda metade do séc. XVIII),passando pela intensa vida musical ao redor da corte imperial no Rio de Janeiro (século XIX), até aRepública, em que o ensino de música começou a se democratizar, especialmente com as bandasde música no interior do Brasil (RESENDE,1989, p.666). Mas é em fontes estrangeiras queencontramos as primeiras referências a contrabaixistas importantes em solo brasileiro. No Capítulo26 - Del violoncello, dei violoncellisti e contrabassisti nazionali e stranieri de seu histórico livro sobrea música brasileira de 1549 a 1925, CERNICCHIARO (1926; p.504-505) aponta que praticamentetodos os primeiros nomes importantes do contrabaixo no Brasil estão ligados à tradição musicalitaliana, apesar de registrar o francês A. Baguet como o primeiro contrabaixista digno de nota nacena musical carioca, em 1857. Dois anos depois, o italiano Luigi Anglois, citado por Berlioz no seutratado, chegou ao Brasil como primeiro contrabaixista da temporada lírica de 1859 e que, antes devoltar a Torino, deu um recital em 18 de novembro daquele ano no Teatro São Pedro de Alcântara.Naquela ocasião, apresentou sua peça Brasile e Piemonte, um duo para dois contrabaixos, do qualtambém tomou parte seu aluno brasileiro Peregrino. Quase vinte anos depois, o contrabaixista emaestro D. Juan Canepa (italiano, apesar do nome espanholado) apresentou-se no Rio dirigindouma orquestra espanhola da Zarzuela em 1872. Em 29 de setembro do mesmo ano, o contrabaixistaJosé Maria Evangelista (Cernicchiaro não diz se é brasileiro) apresentou-se em recital no Teatro D.Pedro II. Mas foi a passagem de Giovanni Bottesini, “. . . senza rivali al mondo, il Paganini del suostrumento”, no Rio de Janeiro, quase duas décadas antes da composição de Impromptu de LeopoldoMiguez, que deixou as impressões mais fortes de um contrabaixista na cena musical carioca. Omaior virtuoso do contrabaixo na segunda metade do século XIX apresentou, por duas vezes,composições de sua autoria no Teatro D. Pedro II. No recital de 31 de outubro de 1879, interpretoua Tarantella e as fantasias sobre as óperas La Sonnambula e Lucia de Lammermoor. Pouco maisde uma semana depois, no recital de 9 de novembro, tocou uma de suas três Elegias (Cernicchiaronão diz qual) a fantasia operística I Puritani, o Souvenir di Lucia e o Carnevale di Venezia.

Sobre o ensino do contrabaixo no Brasil, CERNICCHIARO (1926; p.499) diz que o primeiro professorde contrabaixo do Conservatório de Música Imperial foi o também violoncelista italiano GiuseppeMartini (cujo nome aparece abrasileirado em MARCONDES, 1997, p.267), contratado em 1855, oqual foi substituído por outro italiano, Ricardo Roveda, em 1890. Na classe de Roveda, destacaram-se Annibal de Castro Lima, Alfredo Aquino Monteiro e Antonio Leopardi. Monteiro substituiu Rovedana cadeira de contrabaixo do Instituto Nacional de Música (INM) em 1932, e Leopardi substituiuMonteiro na mesma cadeira pouco tempo depois, após seu falecimento em 1935, quando o INM jáse havia se transformado na Escola de Música da Universidade do Brasil (ARZOLLA, 1996, p.3-4).CERNICCHIARO (1926, p.505) cita ainda outros contrabaixistas brasileiros deste período: JoséMartins (professor do Asylo dos Meninos Desvalidos), Domingos Alves (que também destacou-seno oficleide) e o baiano Virgílio Pereira da Silva (conhecido como Virgílio do Rabecão).

Esse grande desenvolvimento da performance e pedagogia do contrabaixo na segunda metadedo século XIX no Brasil não passou despercebido na Europa. O virtuoso e pedagogo italianoIsaia BILLÈ (1928, p.111,115), no Capítulo 8 - Cenni biografici dei più rinomati contrabassisti daSegunda Parte de seu livro (um das raras fontes da primeira metade do século XX sobre ocontrabaixo), reconhece a importância de Roveda e Leopardi entre virtuosos de todo o mundo.

Foi durante esta atividade relativamente intensa e contínua de grandes contrabaixistas no Rio deJaneiro no final do século XIX que Leopoldo Miguez compôs Impromptu. O ano de 1890 marca não

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apenas o início da história do INM e de sua direção por Leopoldo Miguez, mas também da contrataçãodo virtuoso Ricardo Roveda para a cadeira de contrabaixo daquela instituição e, conseqüentemente,de uma convivência mais próxima entre o compositor e o professor de contrabaixo e seus alunos.

A maioria dos músicos no Brasil ainda acredita que a primeira obra escrita por um brasileirooriginalmente para o contrabaixo solista seja Canção e Dança, composta por Radamés Gnattaliem 1934, obra cuja virtuosidade foi inspirada por Leopardi e cuja popularização somente ocorreumais de meio século depois, a partir de sua publicação, em 1985, como parte de uma coleçãode obras para contrabaixo pela FUNARTE (RODRIGUES, 2003). Entretanto, estudos maisrecentes (TARLTON, 1999, p.77; CORDEIRO, 2000) mostram que a história do repertóriovirtuosístico originalmente escrito para o contrabaixo por brasileiros inicia-se mais de meioséculo antes daquela data, com o carioca João Rodrigues Cordeiro (1826?-1881)

1que, aos

dois anos de idade, mudou-se com a família para Portugal, onde freqüentou a escola médicaem Lisboa em 1842 (VIEIRA, 1900, p.293-294), mas tornou-se contrabaixista e escreveu aFantasia para Contrabaixo e Orquestra de Cordas em 1869.

Entre estes dois marcos históricos (de Cordeiro e Gnattali) encontra-se a peça Impromptu,composta por Leopoldo Miguez (1850-1902), provavelmente em 1898. Nascido em Niterói, Miguezmudou-se com sua família para a Europa com dois anos de idade e teve sua formação musicalprincipalmente na Espanha e em Portugal. Destacou-se como violinista, teórico, maestro e,principalmente, como compositor e o mais destacado defensor da estética romântica de Wagnerno Brasil. Ainda pouco estudado, é mais conhecido pela autoria do Hino à Proclamação daRepública (1890, obra escolhida por concurso), pelos poemas sinfônicos Ave Libertas (1890),Parisiana (1888) e Prometheus (1891) e pela Sonata para Violino e Piano (sem data)(MARCONDES, 1977, p.513-514). Dedicou-se tardiamente à composição e sua produção musical,apesar de pequena, ainda gera confusões. Embora Impromptu não conste de nenhuma lista deobras do compositor, há referências a um duo para contrabaixo e piano denominado pelo nomegenérico de “concerto”. Esta designação confusa tem levado muitos músicos no Rio de Janeiro aacreditar que, além de Impromptu, haveria uma outra obra de Miguez: um possível “Concertopara Contrabaixo”. Em meados do séc. XX, no seu livro Origem e evolução da música em Portugale sua influência no Brasil, SANTOS (1942, p.245) listou Impromptu na categoria de “conjuntos decâmara” (não o colocando na categoria “obras sinfônicas”, como seria de se esperar para umconcerto). Esta classificação é replicada por MARCONDES (1998, p.514) quem, por sua vez,lista este suposto “concerto” na categoria “duos”. Mais adiante, no Suplemento Biográfico de seulivro, SANTOS (1942, p.248) nos informa sobre a relação entre o compositor, o professor e oaluno de contrabaixo envolvidos na história de Impromptu. Ela diz que Alfredo de Aquino Monteiro

“. . . aprendeu instrumentos de música; fez parte da banda do estabelecimento [Asilo Agrícolada Gávea, onde era aluno interno], cultivando o trombone. Matriculou-se no Instituto Nacionalde Música na classe de contra-baixo do professor Ricardo Roveda, curso que terminou em1898. Leopoldo Miguez, zeloso e dedicado diretor do Instituto Nacional de Música, reconhecendoo valor deste aluno, escreveu um difícil Concerto para contra-baixo com acompanhamento depiano para ser executado no dia de sua prova final, execução que foi repetida no seu concursoa premio, com grande sucesso . . . foi, com a aposentação [sic] do catedrático Roveda em1932, nomeado para substituí-lo na escola de Música.”

1 Aparentemente, houve um engano por parte de Sérgio Dias (CORDEIRO, 2000), ao citar o ano em que JoãoRodrigues Cordeiro freqüentou a faculdade em Portugal como o ano de seu nascimento no Brasil.

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2- Leopoldo Miguez e o contrabaixo em Impromptu :No início da década de 1980, o contrabaixista e pedagogo Sandrino Santoro, ex-professor daUFRJ e um dos mais reconhecidos nomes da história do contrabaixo no Brasil, cedeu-me areprodução de um manuscrito (o qual denomino aqui M3) de duas páginas (MIGUEZ, ImpromptuM3, s.d.), contendo uma parte de contrabaixo apenas, com o título de Impromptu e autoria deLeopoldo Miguez. De acordo com SANTORO (2005), esta cópia não autografada foi caligrafadapela ex-professora da Escola de Música da UFRJ Carolina Alfaro Diniz, cuja “. . . especialidade erateoria e solfejo. . .” e quem “. . . lia qualquer partitura em qualquer tonalidade, de cabeça pra baixo”.Esta cópia foi preparada a partir de um dos dois manuscritos existentes de Impromptu, os quaisdenomino M1 e M2 (MIGUEZ, Impromptu M1, s.d.; MIGUEZ, Impromptu M2, s.d.), cujas reproduçõeso Prof. Sandrino me enviou em julho de 2005 e que também estão guardados junto com o acervode obras históricas na Biblioteca da Escola de Música da UFRJ

2. É esta, a mesma biblioteca que

Miguez buscou desenvolver no período de 1890 a 1902,3 quando foi Diretor do INM, o que é mais

um indício de que este seria o lugar mais indicado para guardar seu “Concerto para Contrabaixo”.

Embora tanto as duas páginas de M1 quanto as três páginas de M2 compartilhem uma elegantecaligrafia a bico de pena, característica do final do século XIX, MACEDO (2005) confirma quesomente M1 é um manuscrito autógrafo do compositor:

“O manuscrito M1 é sem dúvida do Miguez. O M2 não reconheço como do Miguez. Valí-medos conhecimentos de outro especialista, grande conhecedor de manuscritos do INM - o maestroAndré Cardoso - para certificar-me da resposta que daria a você,”

Comparando-se os três manuscritos, observa-se pequenas diferenças: M3 traz colcheias e nãofusas no c.51; as cordas duplas no c.105 de M1 não aparecem em M2 e M3 (veja p.88, 92, 93 e 94neste volume de Per Musi). Observa-se também que a estilização da clave de Fá em M2 induziu acopista de M3 a considerá-la como uma clave de Dó na quarta linha, e daí o erro histórico (Ex.1).

2 A Escola de Música da UFRJ, criada em 1965, teve como antecessores o Conservatório de Música, criadodurante o Império em 1841 e, depois, sucessivamente, o Instituto Nacional de Música, em 1890, e a EscolaNacional de Música da Universidade do Brasil, em 1937 (MARCONDES, 1998, p.266-267).

3 Neste período, Miguez adquiriu 112 manuscritos do Padre José Maurício Nunes Garcia (MARCONDES, 1998, p.267)

Ex.1 - Os três manuscritos da parte de contrabaixo de Impromptu, com as caligrafias de Leopoldo Miguez em M1,de copista anônimo em M2 e de Carolina Alfaro Diniz em M3.

M1

M2

M3

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Este erro de notação de clave em M3, entretanto, combinado com a prática de anotar a parte docontrabaixo em suono reale (som real, e não uma oitava acima, como é o mais comum hoje em dia)com muitas linhas suplementares inferiores, como ocorre no método de contrabaixo e em algumasedições de obras de Giovanni BOTTESINI (1870; 1969), parece ter desviado a atenção de todosem reconhecer, ali, obra tão importante. De fato, o manuscrito parecia ser apenas uma parteinstrumental problemática, possivelmente extraviada de alguma obra de câmara em que o compositorexplorava apenas os registros graves e médios do contrabaixo. Ao substituir a clave de tenor (ouclave de Dó na quarta linha) que inicia o manuscrito por uma clave de Fá e, depois, realizar a leiturados 26 compassos deste trecho uma oitava acima, a verdadeira parte do contrabaixo se revelou,passando do exótico modo de Lá Frígio com ocasionais sétimas alteradas ascendentemente (Sol#) para a tonalidade de Ré menor, harmonicamente mais característica do estilo romântico (Ex.2).

A forma de Impromptu (ABA), sua métrica ternária em andamento movido, sua rítmica,articulações e o fato de haverem dois compassos de pausa na parte manuscrita do contrabaixosugerem um típico scherzo instrumental com acompanhamento de piano (com uma seção Avisrtuosística, uma seção central B cantabile e uma codetta), o que confirmaria os dados deinstrumentação (música de câmara ou duo) das listas de obras mencionadas acima por SANTOSe MARCONDES. Até onde se sabe, esta parte de piano não consta de nenhum acervo musicale pode ser considerada extraviada.

A correção do erro de clave na cópia do manuscrito deixou mais claro que tratava-se de umaobra escrita na tradição do contrabaixo solista italiano, com apenas três cordas (sem a cordamais grave), o que pode ser confirmado pelo fato da nota mais grave utilizada ser a corda soltaLá

1. Seguindo a tradição do repertório solista italiano do final do século XIX, é provável que

Miguez tenha utilizado a afinação mais brilhante de solista (Si, Mi e Lá; e não Lá, Ré, Sol). Defato, nota-se que Miguez estava bem informado sobre as técnicas virtuosísticas do contrabaixosolista do período romântico. Ele recorre às cordas soltas não apenas para facilitar saltos egrandes deslocamentos da mão esquerda ao longo do espelho do contrabaixo (Ex.3), mastambém para intensificação sonora em cordas duplas, como nas oitavas ao final da peça (Ex.4).

Ex.2 - Notação do contrabaixo no início de Impromptu: 2a: com erro de clave (clave de Dó) e notaçãosuono reale no manuscrito; 2b: com a correção de clave (clave de Fá); 2c: com a notação de oitava

mais adequada (clave de Sol), utilizada na nova edição.

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4 Capo tasto é a técnica, geralmente utilizada no violoncelo e contrabaixo, em que o polegar da mão esquerdasai de sua posição atrás do braço do instrumento para tocar a corda sobre o espelho do instrumento.

Ex.6 - Utilização de harmônicos naturais por Miguez como recurso timbrístico em trecho melódico naseção central de Impromptu; inclusão de ossias (c.61 e c.63-66) na nova edição de Impromptu como

alternativa para harmônicos de difícil realização.

Ex.5 - Utilização de harmônicos naturais por Miguez em Impromptu para facilitar passagens noextremo agudo do contrabaixo.

Nota-se uma utilização de harmônicos naturais não apenas como facilitadores da técnica empassagens no extremo agudo do contrabaixo (Ex.5), mas também como principal elementotimbrístico em um significativo trecho da Seção B, embora alguns deles (Mi

5 e Fá#

5) sejam de

difícil realização (Ex.6).

Ex.3 – Utilização de corda solta por Miguez em Impromptu para facilitar grandes saltos da mão esquerda.

Ex.4 – Utilização de cordas duplas por Miguez para reforço sonoro ao final de Impromptu.

Miguez preocupou-se com uma escrita que fosse, ao mesmo tempo, virtuosística e confortável nocontrabaixo, não impondo dificuldades técnicas muito grandes para o solista. Por exemplo, evitaque as mudanças de posição ou saltos coincidam com as semicolcheias recorrentes da Seção A.De fato, todos os fragmentos ou motivos com esta figuração rítmica estão circunscritos em intervalosde no máximo uma terça (geralmente terças menores), que podem ser tocados dentro de umaposição (ou fôrma da mão esquerda), utilizando-se a técnica de extensão ou de capo tasto

4 (Ex.7).

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Ex.7 – Evitamento de saltos de mão esquerda durante as semicolcheias por Miguez em Impromptu,cujos trechos mais rápidos são facilmente resolvidos coma a utilização de extensão (ext.) ou

capo tasto (c.t.).

3 - A nova parte de piano de Impromptu:A importância histórica e a qualidade técnico-musical de Impromptu foram as principaismotivações para a criação de uma nova parte de piano, para substituir o manuscrito extraviado.Por meio do projeto de pesquisa “Pérolas” e “Pepinos” do Contrabaixo (apoiado pelo CNPq,CAPES e FAPEMIG), coordenei o IV CICC (Concurso Internacional de Composição para oContrabaixo Brasileiro)

5, cuja divulgação, distribuição de partes musicais, tarefas e avaliação

por parte dos jurados realizaram-se exclusivamente via Internet (www.musica.ufmg.br/~fborem)e correio. O fato de os jurados não precisarem de se encontrar, permitiu que o IV CICC contassecom um júri internacional de 13 membros (em ordem alfabética) representando as trêsespecialidades envolvidas:

Almeida Prado (compositor, pianista; Brasil);Celso Loureiro Chaves (compositor, pianista; Brasil);Edmundo Villani-Côrtes (compositor; Brasil);Frank Proto (contrabaixista, compositor; EUA);Gary Karr (contrabaixista; EUA);Harmon Lewis (pianista; EUA);Louise Proto (pianista; EUA);Margarida Borghoff (pianista; Brasil);Oilliam Lanna (compositor, pianista; Brasil);Patrick Neher (contrabaixista, compositor; EUA);Paul Ramsier (compositor, pianista; Canadá);Rafael dos Santos (pianista, compositor; Brasil);Tony Osborne (compositor, contrabaixista; Inglaterra).

Do ponto de vista composicional, os jurados observaram a fidelidade dos candidatos ao estiloromântico de Leopoldo Miguez. Por isso, foram previamente disponibilizados excertos de suaSonata para Violino e Piano Op.14 e da Valsa Op.8 Faceira (Coquette), cujas linhas melódicase métrica ternária, respectivamente, se assemelham a Impromptu. Foram também observadas,pelos jurados, a utilização de materiais temáticos retirados da parte original do contrabaixo euma efetiva interação entre os dois instrumentos. Do ponto de vista da performance, foiobservada a escrita idiomática da parte do piano e, do ponto de vista camerístico, a preservaçãoda clareza da linha solística do contrabaixo. A parte do piano deveria ser composta no tom deMi menor, para acomodar a afinação do contrabaixo solista (do grave para o agudo Fá#, Si, Mi,

5 Alguns dos compositores premiados em edições anteriores deste concurso incluem Ernst Mahle, EdmundoVillani-Côrtes, Andersen Viana e David Korenchendler.

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Lá), que é em Ré menor, mas soa um tom acima do contrabaixo em afinação de orquestra (Mi,Lá, Ré e Sol). Os candidatos também compuseram uma introdução de 8 a 24 compassos parapiano solo para preceder os 98 compassos do original de Miguez, uma vez que introduçõessão características desse gênero virtuosístico ligeiro no final do século XIX.

Seguindo os critérios de avaliação previstos no regulamento, cada um dos jurados apresentou,em ordem decrescente, seus três primeiros favoritos, sendo que cada indicação em primeiro,segundo e terceiro lugares, valeu 3, 2 e 1 pontos, respectivamente. Finalmente, os finalistasforam clasificados de acordo com o somatório de todos os pontos recebidos.

Paul RAMSIER (2004), pianista e um dos compositores para contrabaixo mais importantes noCanadá (www.musarts.net/ramsier), observou que “. . .todos os cinco [finalistas] devem serparabenizados”. De fato, todos eles, que tiveram de se equilibrar sobre a tênue linha que separaa aderência ao estilo do compositor e a expressão de sua criatividade, foram apontados emprimeiro lugar na lista de pelo menos um dos 13 jurados. Almeida PRADO (2004), um dos maisprestigiosos compositores brasileiros da atualidade, também reconheceu a qualidade de todosos finalistas, mas observou que o excessivo cromatismo de algumas partes de piano não seintegrava à linha essencialmente diatônica do contrabaixo. A diversidade de estilos dos cincofinalistas pode ser apreciada em ordem de classificação no Ex.8, que mostra o início dasintroduções de cada uma dessas versões. Pode-se observar, nestas introduções, a tendênciados jurados de valorizar a simplicidade de elementos composicionais e, talvez pelo fato de seruma peça breve e com o ágil caráter de scherzo (e não de um concerto), a manutenção doandamento marcado no original do manuscrito (Allegreto com moto).

Dentre os cinco finalistas,6 o vencedor foi o Professor da UFRJ Roberto Macedo Ribeiro

([email protected]), que recebeu o Primeiro Prêmio do IV CICC no valor de R$ 1.000,00,patrocinado com recursos do CNPq e International Society of Bassists (ISB) e, como os outrosfinalistas, recebeu também partituras de obras para contrabaixo recém-editadas pela IrokumBrasil (www.irokunbrasil.com.br). Em que pese sua satisfação com o resultado, o vencedorcomentou que “o que mais me gratifica é possibilitar a ‘ressurreição’ de uma obra de umcompositor com pouca divulgação entre nós e a cuja obra e vida tenho ultimamente me dedicadoa pesquisar” (MACEDO, 2005).

Rafael dos SANTOS (2004), pianista, arranjador e professor da UNICAMP, comenta sobre aparte de piano vencedora:

“. . . é um que trabalho que tem simplicidade, fundamental numa parte de acompanhamento, semdeixar de ser interessante. A textura não encobre a linha do solista; usa materiais temáticos retiradosda parte de contrabaixo; os recursos de acompanhamento e a linguagem harmônica contémcromatismos estão de acordo com o estilo romântico; o ritmo harmônico é adequado, e as cadênciassugeridas pela melodia são realizadas com clareza. Além disso tem uma linha de baixo interessante.”

Na parte de piano vencedora (veja a partitura completa de Impromptu nesse número de PerMusi, às p.86-94), pode-se observar como Roberto Macedo Ribeiro cria unidade entre a

6 Os outros quatro finalistas, em ordem de classificação, foram Ernst Ueckermann (Alemanha), Rafael Nassif(UFMG), Gilberto Carvalho (UFMG) e Antonio Celso Ribeiro (UFU).

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Ex.8 (a, b, c, d, e) - Início das introduções dos cinco finalistas do concurso de composição paraescolha da nova parte de piano de Impromptu de Leopoldo Miguez.

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introdução e o restante da obra recorrendo ao ágil material motívico que é, mais à frente,apresentado pelo contrabaixo. Paul RAMSIER (2004), também concorda que Macedo

“. . . has supplied  by far the best piano part realization. . . is consistent harmonically throughout. Its [the piano part´s] harmonic progressions flow smoothly and logically. It is a musical realizationthat never tries to overshadow the solo line, and would provide an attractive compliment to thebass writing . . . clearly understands the straightforward nature of the bass part. As to thepianistic aspects, I’ll add that it fits both the fingers and the ear very well.”

7

O pianista Harmon LEWIS (2004), que tem se apresentado nos últimos 33 anos em duo com GaryKarr, este tido por muitos como o maior virtuoso do contrabaixo no século XX, observa que, emboraa Sonata Op.14 para Violino e Piano de Miguez seja harmonicamente rica, Impromptu não demandaharmonias tão densas. RAMSIER (2004) compartilha da mesma opinião e afirma que, apesar docromatismo wagneriano do qual era adepto, Miguez compreendeu a necessidade de clareza na linhamelódica do contrabaixo e, por isto, contentou-se com uma tonalidade mais conservadora emImpromptu. Patrick NEHER, contrabaixista e compositor norte-americano (2004;www.isgpublications.com) observou que o vencedor pautou-se por respeitar o material temático originaldo contrabaixo e a condução de vozes tradicional na parte de piano, característica do período.

Tony OSBORNE (2004), um dos mais prolíficos e respeitados compositores britânicos de obraspara o contrabaixo (www.britishacademy.com/members/osborne), diz que, apesar de sua texturaleve e que “deixa a obra respirar” (“lets the air in”), a parte de piano vencedora contem idéiascriativas e soluções orgânicas. O também compositor e jurado Oiliam LANNA (2004) ressaltouuma delas: sua sutileza na modulação para o tom homônimo maior no início da Seção B.

Em relação à versão de piano do alemão Ernst Ueckermann, segundo lugar no concurso, FrankPROTO (2004), contrabaixista e, possivelmente, o compositor norte-americano mais importante naatualidade (www.liben.com), observou que esta permitiu que o contrabaixo aparecesse sem o perigomais comum que atormenta todo contrabaixista: ter de tocar constantemente em fortisimo. OSBORNE(2004) elogiou as qualidades dessa parte de piano por ser composicionalmente econômica e dentrodos limites técnicos de um pianista menos experiente. Por outro lado, LEWIS (2004) percebeu quemuitos de seus acordes de 2 ou 3 notas deveriam ser preenchidos, algumas vezes com a inclusãode oitavas na mão esquerda, o que, por outro lado, não invalida algumas de suas soluções, comoa de ligar um acorde de Sol # para evitar um choque com a nota Sol natural do solista.

Em relação ao terceiro colocado Rafael Nassif, LEWIS (2004) disse que, embora suaintrodução tenha caminhado excessivamente no sentido de construir uma “fantasia”, queinclui as indicações senza riogore e una corda ped. ad libitum, a parte de piano exibiu grandeimaginação, com um contraponto criativo e vozes internas de grande interesse para o ouvintee de grande satisfação para os intérpretes.

7 Tradução: ". . . proveu de longe, a melhor realização do piano. . .é consistente durante toda ela. Suas progressõesharmônicas fluem com naturalidade e lógica. Trata-se de uma realização musical que nunca oblitera a linha dosolista, mas oferece um complemento atraente à escrita do contrabaixo. . .claramente compreende a naturezasimples e direta da parte do contrabaixo. Em relação aos aspectos pianísticos, acrescento que se adequamuito bem tanto aos dedos quanto aos ouvidos."

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OSBORNE (2004) elogiou o estilo grandioso do quarto colocado Gilberto de Carvalho, comsua escrita enérgica e capaz de trazer à tona o lado dramático de Impromptu, e cujo contraponto,desde que nas mãos de um pianista sensível, poderia gerar contraste e clareza suficientespara suportar o solista sem obstruir seu caminho.

A escrita inusitada (texturas, cruzamento de mãos, espacialização de intervalos) do quintocolocado Antônio Celso Ribeiro também foi elogiada por OSBORNE (2004), embora tenhademonstrado certa preocupação com um possível desvio da atenção sobre o solista, que poderiaacarretar um “debate” entre os dois instrumentistas, ao invés de caracterizar umacompanhamento eficiente para um solo memorável.

Já em relação à realização da parte original do contrabaixo, alguns jurados compartilharam damesma preocupação a respeito dos c.61-66, onde o Mi

e o Fá# em harmônicos naturais no

extremo agudo do instrumento (a serem tocados na corda Ré) podem facilmente soardesafinados (KARR, 2004) ou como “alguém enforcando um gato!” (“somebody strangling acat !”; PROTO, 2004). Em respeito à tradição de uso desses harmônicos no repertório dasegunda metade do século XIX (comuns em algumas obras de Bottesini, por exemplo), elesforam mantidos nessa edição, mas foram também incluídas na partitura alternativas (ossias)para os mesmos uma oitava abaixo (veja Ex.6 acima).

A disponibilização gratuita da partitura vencedora completa foi feita no exterior pela revista britânicaDouble Bassist (BORÉM, 2005) e, no Brasil, se dá neste número de Per Musi (p.86-94). A estréiada nova versão de Impromptu, no Brasil, aconteceu no festival Verões Musicais 2005 – FestivalInternacional de Música no dia 24 de fevereiro na Catedral de Canela, RS, com Fausto Borém(contrabaixo) e Catarina Domenici (piano) e sua estréia internacional, com Fausto Borém eFrancisca Aquino (piano), ocorreu no dia 11 de junho de 2005 na International Society of BassistsConvention, na Western Michigan University, em Kalamazoo, nos EUA.

4 - ConclusãoHá fortes indícios para se acreditar que Leopoldo Miguez compôs apenas Impromptu paracontrabaixo e piano em 1898, e não um “Concerto para Contrabaixo”, com o objetivo de proveruma peça de câmara para a formatura do virtuoso Alfredo Aquino Monteiro, aluno de RicardoRoveda, então colega do compositor no INM. Concorrem para esta conclusão os dadosdocumentais, históricos, e técnico-musicais apresentados neste artigo. A forma ABA e o estiloligeiro de Impromptu, aliados ao contexto da exígua produção musical de Leopoldo Miguezfortemente sugerem que os manuscritos M2, M2 e M3, depositados na UFRJ, correspondamao “Concerto de Contrabaixo”, que é a única peça a constar de qualquer lista de obras docompositor (contraditoriamente, como “Música de Câmara” ou “Duo”).

Verifica-se que houve uma maciça predominância de virtuosos da tradição italiana no cenáriomusical carioca na segunda metade do século XIX e, em particular, na cadeira de contrabaixodo INM (Roveda, Aquino e Leopoardi). Esta tendência reflete-se em elementos da escrita deMiguez em Impromptu, quais sejam a utilização do contrabaixo de três cordas, a notação emsuono reale e os recursos idiomáticos de cordas soltas, cordas duplas, harmônicos naturais emotivos rápidos contidos na mesma posição de mão esquerda (capo tasto ou extensão).

5 5

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A restauração da parte do contrabaixo foi possível com a correção de um erro de clave em M3, aposterior confirmação da caligrafia de Miguez em M1, as diferenças entre os três manuscritos(M2, M2 e M3) e o reconhecimento de elementos característicos da escrita virtuosística docontrabaixo italiano no período romântico. A importância histórica e as qualidades técnico-musicaisda parte do contrabaixo motivaram a realização do IV CICC – Concurso Internacional de Composiçãopara Contrabaixo, cujo objetivo foi a criação de uma nova parte de piano para substituir o originalextraviado. Sob o crivo avaliador de um corpo de jurados, constituído por 13 renomadoscompositores, pianistas e contrabaixistas do Brasil e do exterior, Roberto Macedo de Ribeiro foiapontado como vencedor do IV CICC. Assim, Impromptu renasce em uma nova versão para voltara fazer parte do repertório original brasileiro do contrabaixo como obra de domínio público.

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Fausto Borém é Professor da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista PER MUSI. Idealizoue organizou o I Seminário Nacional de Pesquisa em Performance Musical. Coordena o gruposde pesquisa PPPMUS (“Pérolas” e “Pepinos” da Performance Musical) e o grupo de pesquisainterdisciplinar ECAPMUS (Ensino, Controle e Aprendizagem na Performance Musical), apoiadospelo CNPq, FAPEMIG e Fundo FUNDEP/UFMG, cujos resultados de pesquisa incluem umlivro, cerca de 30 artigos completos sobre performance e suas interfaces (composição, análise,musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, erecitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversosprêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

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* Sinais de parênteses, ligaduras tracejadas, cordas e dedilhados são sujestões do editor

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PASCOAL, Maria Lúcia. A Prole do Bebê n.1 e n.2 de Villa-Lobos. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.95-105.Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p. jan - jun, 2005

Recebido em: 11/10/2004 - Aprovado em: 01/03/2005.

A Prole do Bebê n.1 e n.2 de Villa-Lobos: estratégias da textura comorecurso composicional

Maria Lúcia Pascoal (UNICAMP) [email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar um estudo de investigação do material de acordes, ritmos,textura e timbre nas peças de Villa-Lobos: A Prole do Bebê n.1 e n.2, observando também as técnicas de composiçãoquanto à textura nas dimensões vertical e horizontal. A metodologia constou de levantamento do material, seleçãodos exemplos musicais mais representativos e aplicação de técnicas de análise de SALZER (1982), quandopertinente. A conclusão mostra que Villa-Lobos utilizou processos composicionais que combinam aspectos musicaisrítmicos e melódicos do ambiente brasileiro em uma síntese original.Palavras-chave: música brasileira, Villa-Lobos, análise musical, textura musical, técnicas de composição.

Villa-Lobos’s A Prole do Bebê N.1 and N.2: aspects of texture andcomposition techniques

Abstract: This study presents an investigation that aims at observing harmonic, rhythmic, textural and timbrematerials in Villa-Lobos’s A Prole do Bebê N.1. and N.2, and the compositional techniques in the aspects concernedto texture in vertical and horizontal dimensions. The methodological procedures involved the selection of materialsand the more representative musical examples and the application of SALZER (1982)’s techniques of analysiswhen necessary. One concludes that Villa-Lobos’s compositional processes combine Brazilian aspects of rhythmand melodic lines into an original synthesis.Key words: Brazilian music, Villa-Lobos, music analysis, music texture, compositional techniques.

A- INTRODUÇÃONas primeiras décadas do século XX, a criação artística buscava novas técnicas e formas deexpressão que, na música, manifestaram-se principalmente na ampliação e na negação dosistema tonal, prática sonora vigente nos três séculos anteriores. O grande desafio e a pesquisaa que se lançaram os criadores musicais foi o da procura de caminhos técnicos para estruturaras idéias, através do uso de novo material e de novas formas de discurso.Hoje, com a devida distância, procuramos assimilar, compreender e refletir sobre a música doinício do século vinte, investigando aspectos técnicos, estéticos, históricos, interpretativos e osque mais se apresentarem na pluralidade de interesses em que vivemos. Assim, se pode dizerque, comparado aos tempos da tonalidade, quando existiam princípios estruturais comuns,passou a haver uma abertura de possibilidades e escolhas. Observamos como o discursomusical se transformou, por não mais fazer uso de balanço e equilíbrio proporcionado porfrases e seções de conteúdo temático; por não haver mais a combinação de sons em acordesque se relacionavam entre si e com um centro; pela variedade do material escalar e pelosaspectos das vozes condutoras (síntese de harmonia e contraponto), que se tornamindependentes.

Comentando a respeito dessas transformações, Bryan Simms lembra como as principaismudanças se caracterizaram por uma série de “emancipações” – termo de Schoenberg paradescrever o tratamento da dissonância na sua composição

1– através das quais um novo

1 Entenda-se dissonância em relação ao sistema tonal, pois os termos consonância e dissonância são relativos.

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material estava à disposição do compositor (SIMMS,1995, p.xiii). Essa independência tambémse relacionou aos aspectos do ritmo, do timbre e da textura. Tudo isso levou à criação de novastécnicas de composição, bem como a outras formas de compreensão e escuta, no desenvolverde novas teorias e ferramentas de análise. Os termos como acordes, motivos, melodias, entreoutros até então usados, também passam a ter outros sentidos e denominações, pelo fato deestarem representando novos conceitos (KOSTKA, 1999, p. 47).

Na observação de como estas idéias se desenvolveram no Brasil, o nome que se lembra é o deum compositor que, nas primeiras décadas do século vinte tentava firmar sua linguagem: HeitorVilla-Lobos. É reconhecido como uma referência para a música brasileira, com sua composiçãoque é chamada de nacionalista, porém, como bem observa o musicólogo Gerard Béhague, (...)“nacionalismo multifacetado e não exclusivo, uma vez que sua concepção e tratamento donacionalismo tendiam a se integrar nos numerosos experimentos estilísticos, resultando emuma complexa e variada linguagem musical” (BÉHAGUE, 1994, p. 43).

Os estudiosos da música brasileira, Carlos KATER (1990), José Maria NEVES (2000), VASCOMARIZ (2000), além do já citado Gérard Béhague, são unânimes ao relacionarem a década devinte e os anos que imediatamente a antecederam, às inovações e experiências que seconstituiram na definição da expressão do discurso de Villa-Lobos. Na vasta produção docompositor, só considerando essa época, entre as composições representativas, contam-seos Quartetos de cordas n. 1 a 4; os balés Uirapuru e Amazonas; o Sexteto Místico; as Sinfoniasn. 1 e 2. E os anos vinte, continuam com Choros, no total de quatorze, o Quatuor (QuartetoSimbólico); o Noneto (Impressão rápida de todo o Brasil), os Doze Estudos para violão; asSinfonias n. 3 a 5. É significativa também a contribuição de Villa-Lobos à literatura de pianosolo, através da coleção A Prole do Bebê n. 1 e 2, das Cirandas e do Rudepoema.No número especial em homenagem a Villa-Lobos por ocasião do quadragésimo aniversáriode sua morte, a revista da Academia Brasileira de Música publica um Panorama da BibliografiaVillalobiana, da qual constam, entre biografias e outros, trabalhos de crítica musical e os deanálise, que se referem principalmente à estética e ao estilo (BITTENCOURT, 1999, p. 39).Ainda não são muitos os que tratam das suas técnicas de composição e do estudo do materialutilizado. Outra fonte de informação sobre pesquisas relacionadas a Villa-Lobos é tambémpublicada na revista da Academia, por Luis Nascimento de Lima, sintetizando os trabalhosapresentados no I Congresso Internacional Villa-Lobos, em Paris (LIMA, 2002, pp. 2-8). Maisrelacionado à análise estilística, às influências e à escrita pianística, situa-se o ensaio “Villa-Lobos e Chopin: diálogo musical das nacionalidades” (BARRENECHEA. GERLING, 2000) equanto a considerações harmônicas e estruturais da música de Villa-Lobos, contam-se, entreoutros, trabalhos dos compositores Lorenzo FERNANDEZ (1946), Jamary de OLIVEIRA (1984)e Ricardo TACUCHIAN (2001).

Procurando associar esse estudo do material a peças que representam período tão fecundona criação de Villa-Lobos, a proposta aqui é apresentar uma investigação nas peças A Prole doBebê n. 1 e n. 2. Inicia pelo estudo da superfície, segundo Andrew Mead, no artigo em quesintetiza com muita clareza entre as principais linhas de pesquisa voltadas ao estudo da teoriada composição no século vinte, as que investigam a gramática da superfície musical, dandoênfase aos processos básicos de agrupar eventos como entidades inteligíveis (MEAD, 1989,

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p. 40). Esse estudo da superfície trata do material utilizado pelo compositor, como escalas,acordes, particularidades rítmicas, textura e timbre, entre outros. Tornou-se importante no estudoda música que se emancipa da tonalidade, pois apresenta variado desenvolvimento e campopara análise, possilbilitando a esta agrupar e tornar inteligíveis os eventos musicais. A textura,que era conhecida principalmente como melodia com acompanhamento, acordal econtrapontística é ampliada e desenvolvida em timbre.

O objetivo é observar as estratégias da textura nas dimensões vertical e horizontal. Para issotoma por base os trabalhos de KOSTKA (1999) e STRAUS (2000), quanto à teoria, novostermos e considerações para descobrir como estão constituídas essas texturas e como serelacionam na estrutura das peças.

À leitura da coleção seguiu-se a análise do material que constitui cada uma das peças, em umlevantamento geral. Foram então reconhecidos como formadores das texturas: acordes desegundas, quartas e quintas, células rítmicas, conjuntos de dois e de quatro sons, escalaspentatônicas e de tons inteiros, faixas sonoras, e níveis polifônicos independentes, tratadosem ostinatos e em superposições. Os exemplos mais representativos, quando necessário,estão apresentados em gráficos de vozes condutoras (SALZER, 1982)

2.

B - A PROLE DO BEBÊA primeira série consta de oito peças, com o subtítulo “A família do bebê” e foi estreada em1922, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por Arthur Rubinstein e em seguida apresentadaem New York e Paris. A segunda, com nove peças, subtítulo “Os bichinhos”, estreou em1927 na Salle Gaveau em Paris, pela pianista Aline von Barentzen. Tanto estes dadoscomo as datas que estão sendo utilizadas, são as que constam nas partituras e em Villa-Lobos, sua obra, catálogo do compositor (1989, p. 142), pois é sabido haver polêmicaquanto às datas das composições de Villa-Lobos. É fato perfeitamente reconhecível emuma primeira audição, que na coleção A Prole do Bebê, Villa-Lobos utilizou canções tonais,como “Garibaldi foi à missa”, “A canoa virou”, “Fui no Itororó” e muitas outras da tradiçãobrasileira. Essas canções aparecem sobrepostas a um material de base, formador da texturamusical, principal material objeto deste estudo. Na tabela abaixo é possível observar umasíntese dos aspectos desse material e das técnicas nas quais foram tratados, consolidandoas principais características das peças.

2 Como parte da análise shenkeriana proposta por Felix Salzer, os gráficos de vozes condutoras apresentam omovimento harmônico-contrapontístico nos pontos que formam a estrutura e simbolizam o processo da audiçãoestrutural. Privilegiam as vozes que conduzem o discurso (SALZER, Felix. 1982. pp 142-3 e 206-7). Nestetrabalho, os exemplos das Figuras 1, 2, 3, 7 e 10 estão apresentados nas vozes condutoras.

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Material Peça Volume/número3 TécnicaAcordes de segundas Branquinha I, 1. Ostinato

A bruxa I, 8.

Acordes de segundas A pobresinha I, 6. Ostinatoacrescentadas Mulatinha I, 4.

O camundongo de massa II, 3. Movimentos paralelosO ursosinho de algodão II, 8.

Acordes de quartas O camundongo de massa II, 3. Movimentos paralelosO cachorrinho de borracha II, 4.O passarinho de pano II, 7.

Acordes de quartas e quintas O passsarinho de pano II, 7. Movimentos paralelos

Acordes de quintas aumentadas Branquinha I, 1. Ostinatos

Célula ritmica O cavalinho de pau II, 5. OstinatoCélula ritmica (variação de A baratinha de papel II, 1. “habanera”) O boisinho de chumbo II, 6.

Conjuntos de dois sons Caboclinha I, 3. Ostinato (intervalos decom transposições O gatinho de papelão II, 2. segundas)

Moreninha I, 2. Ostinato (intervalos deterças)

Conjuntos de quatro sons com A bruxa I, 8. Ostinatotransposições O camundongo de massa II, 3.Conjuntos de quatro sons sem O cavalinho de pau II, 5. Ostinatos sobrepostostransposições Pobrezinha I, 6.

Escala pentatônica Moreninha I, 2. Exploração do timbreMulatinha I, 4. pianístico e OstinatoNegrinha I, 5.

Escalas de tons inteiros Branquinha I, 1.A bruxa I, 8.O passarinho de pano II, 7.

Faixa sonora4 O polichinelo I, 7. Exploração do timbreO lobozinho de vidro II, 9. pianístico

Níveis independentes5 Caboclinha I, 3. Textura em camadasA bruxa I, 8. OstinatosA baratinha de papel II, 1.O boisinho de chumbo II, 6.

Superposiçãodiatônica/pentatônica Polichinelo I, 7. OstinatoUm som repetido O cachorrinho de borracha II, 4.

TAB.1. Tabela com as características do material e das técnicas de composição em Villa-Lobos – A Prole doBebê n. 1 e n. 2.

3 Nos exemplos musicais, os dois volumes da coleção estão indicados por algarismos romanos e os númerosdas peças por arábicos.

4 Termo que indica um movimento muito rápido e repetido, com mais de quatro sons envolvidos, quando apercepção passa a ser de um timbre e não mais da articulação de sons separados (WIDMER, 1982. p. 16).

5 Significa um conjunto de sons em camadas independentes, formadas por material diferente (KOSTKA, 1999.p. 234-5).

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Por esta tabela observa-se, principalmente, a grande variedade de material: acordes, célulasrítmicas, conjuntos, formações de escalas e superposições. São tratados em ostinatos,movimentos paralelos e exploração dos timbres do piano. Há constantes de células rítmicascomo base de peças inteiras, bem como de conjuntos de dois e de quatro sons que se repetemtambém durante toda a peça. Quanto às técnicas, chamam a atenção os acordes de variadasformações em movimentos paralelos e os ostinatos, estes últimos presentes em todas as peças,o que leva então a poder considerar o material de A Prole do Bebê segundo duas dimensões:a vertical e a horizontal, sintetizando assim as técnicas formadoras das texturas desenvolvidaspelo compositor para criar sua linguagem. A seguir, uma seleção de exemplos para ilustraridéia e localização nas peças.

B.1 -Texturas na Dimensão verticalAo mesmo tempo difícil de sintetizar em uma definição, textura é algo que tanto pode se referirao relacionamento entre as partes (vozes) de uma composição, como entre ritmo e contornomelódico, ou ainda entre espaço e dinâmica (KOSTKA, 1999, p. 220). Na música que secaracteriza pela emancipação da tonalidade, a textura tem papel muito importante na articulaçãodo discurso, bem como na formação dos sons simultâneos que passam a ser ouvidos comotimbres.

Considerando-se como Dimensão vertical combinações de sons simultâneos, é possívelobservar a prática dos movimentos paralelos, resultando na emancipação dos relacionamentosdos acordes entre si e com um centro

6 . Além disso, as estruturas dos acordes são formadaspor intervalos de segundas, quartas e quintas, entre outras variadas combinações, o que vema se constituir em mais uma emancipação, pois os movimentos verticais passam a serconsiderados como texturas relacionadas ao timbre.

E possível ouvir estes dois tipos de emancipações nos exemplos que se seguem, poisapresentam acordes em movimentos paralelos e acordes de segundas, quartas e quintas,formando timbres.

B.1.2 - Movimentos paralelosA combinação de sons simultâneos é realizada em formações e superposições de acordesde terças, quartas e quintas, tratados em movimentos paralelos. Entre muitos exemplosdeste tratamento, podemos ouvir a linha melódica da canção e movimentos paralelos, comoem O ursinho de algodão, A Prole do Bebê II (Fig. 1): 7

6 Dimensão vertical (KOSTKA, 1999.p. 47) é um dos termos usados para substituir Harmonia, pois este serefere exclusivamente à música tonal, quando havia relacionamentos entre os acordes entre si e um centro(tonalidade), movimentos contrários entre as vozes e a maioria dos acordes estruturados em terças. A libertaçãodestes aspectos passa a ser a característica do material da composição musical desde o início do século vinte.

7 Nos gráficos de vozes condutoras as figuras não são ritmicas, porém resumos das estruturas. Os númerosacima das pautas referem-se aos compassos e as alterações valem como um só compasso.

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Fig. 1. Movimentos paralelos. Villa-Lobos- A Prole do Bebê II, 8. O ursinho de algodão. Compassos 76-79.

B.1.2.1 - Acordes com segundas acrescentadas - Às notas dos acordes de terças, sãoacrescentadas segundas, constituindo estruturas timbrísticas independentes, É o que ouvimosna peça Branquinha, A Prole do Bebê I (Fig. 2):

Fig. 2. Acordes com segundas acrescentadas. Villa-Lobos – A Prole do Bebê I, 1. Branquinha, comp. 39-41.

B.1.2.2 - Acordes de quartas superpostas - Observam-se vários usos dos acordes de quartasem movimentos paralelos. Um deles é o exemplo encontrado em O cavalinho de pau, A Proledo Bebê II, entre os compassos 49 e 53 (Fig. 3):

Fig. 3. Acordes de quartas em movimento paralelo. Villa-Lobos – A Prole do Bebê II, 5. O cavalinho de pau,comp. 49-53.

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B.1.2.3 - Acordes de quartas e quintas – O próximo exemplo apresenta acordes de quartase quintas em movimentos paralelos, que desenvolvem um timbre pianístico em O passarinhode pano, A Prole do Bebê II (Fig. 4):

Fig. 4. Acordes de quartas e quintas em movimentos paralelos. Villa-Lobos – A Prole do Bebê II, 7.O passarinho de pano, comp. 81.

B.2 - Texturas na Dimensão horizontalO que mais se nota nas peças A Prole do Bebê são camadas formadas por linhas independentes.Em todas as peças estão presentes as repetições de desenhos ritmico-melódicos conhecidoscomo ostinatos, termo que se refere às sucessivas repetições de um padrão musical(SCHNAPPER, 2001, p. 782). Esses ostinatos aqui estão considerados com o nome de Bordões,segundo a classificação realizada por Ernst Widmer, que vai desde um som até os conjuntosde faixas sonoras (WIDMER, 1982, p. 14-16). Villa-Lobos cria bordões para constituir a textura,aos quais vai acrescentando acordes, linhas melódicas e as canções conhecidas emsuperposições, formando uma grande polifonia. Há desde bordões de um som até os maiscomplexos formados por vários sons; casos do mesmo bordão estar presente durante a peçainteira e ainda outros exemplos nos quais os bordões se apresentam em variações melódicase transposições.

B.2.1 - Bordão de um som - O exemplo da Fig. 5, O cachorrinho de borracha A Prole doBebê II, mostra um bordão no baixo e acorde de quartas aos quais se superpõe uma linhamelódica em ritmo que altera a métrica, contrastando com o movimento repetido:

Fig. 5. Bordão de um som e acorde de quartas. Villa-Lobos – A Prole do Bebê II, 4. O cachorrinho de borracha,comp. 1-5. (Copyright by Max Eschig. Used by permission).

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B.2.2 - Bordão de dois sons - Uma célula é repetida durante a peça inteira. O ritmo é umavariação da “habanera”

8, ao qual vão sendo acrescentados acordes, linhas melódicas e uma

canção, criando uma superposição a esta base. A Fig. 6 apresenta este exemplo em Caboclinha,A Prole do Bebê I:

Fig. 6. Bordão de dois sons. Villa-Lobos – A Prole do Bebê I, 3. Caboclinha.

Este ritmo também é encontrado nos bordões das peças A Prole do Bebê II, 1. A baratinha depapel e nos acordes de A prole do Bebê II.6. O boisinho de chumbo.

B.2.3 - Bordão de dois sons com transposições - Bordão de dois sons, conjunto que vaisendo transposto durante toda a peça. Na Fig. 7. Moreninha, A Prole do Bebê I, ouve-se estabase à qual se superpõem linhas melódicas e acordes:

Fig. 7. Bordão de dois sons transpostos. Villa-Lobos – A Prole do Bebê I, 2. Moreninha.

B.2.4 - Bordão de quatro sons - Uma célula de quatro sons sobre dois acordes é repetida emmovimentos ascendente/descendentes, durante a peça inteira. A Fig. 8 mostra este exemplo emA Pobresinha, A Prole do Bebê I, bordão ao qual é acrescentada a linha melódica da canção.

Fig. 8. Bordão de quatro sons. Villa-Lobos – A Prole do Bebê I, 6. A pobresinha.

8 O ritmo da “habanera” está presente no Brasil nas danças tango, maxixe, samba e choro. (BÉHAGUE, 1994,p. 60-2). Ao ritmo binário simples, subdividido em quatro, Villa-Lobos emprega uma variação, formando osritmos 3 + 3 + 2.

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B.2.5 - Bordão de quatro sons com transposições - Células de quatro sons, em váriastransposições de alturas estão presentes no baixo e articulam as seções da peça O camundongode massa, A Prole do Bebê II, na Fig. 9:

Fig. 9. Bordão de quatro sons com transposições. Villa-Lobos – A Prole do Bebê II, 3.O camundongo de massa.

B.2.6 - Faixa sonora – Muitos sons envolvidos em movimento rápido, repetido, formam umafaixa ou massa sonora. Representam uma emancipação na percepção de alturas, pois os sonsnão podem ser entendidos separadamente, mas como um timbre. Os sons desta faixa sonorasão trabalhados em movimentos rápidos e alternados de mãos, como Toccata. Neste caso, étratado por acumulação e as repetições deste conjunto de sons articulam as seções das peçasO Polichinelo, A Prole do Bebê I e O lobosinho de vidro, A Prole do Bebê II. Segue um exemplode faixa sonora na peça O lobosinho de vidro na Fig. 10:

Fig. 10. Faixa sonora. Villa-Lobos – A Prole do Bebê II, 9. O lobosinho de vidro, comp. 1-10.

C- CONCLUSÃOA observação do material e de como foi tratado nas texturas que constituem as dimensõesvertical e horizontal nas peças de Villa-Lobos – A Prole do Bebê I e II mostraram: (1) a ampliaçãoda prática tonal, caracterizada pela variedade de texturas nas dimensões vertical e horizontal;(2) os acordes de diversas formações, tratados em movimentos paralelos e independentes,valorizando o timbre; (3) os bordões, presentes nas dezessete peças, bases para linhasmelódicas, ritmos e acordes, como elementos formadores das texturas; (4) as texturasdesenvolvidas em planos independentes, criando novos interesses polifônicos; (5) o piano,tratado na procura da ampliação de timbres; (6) o emprego de células ritmicas praticadas noBrasil, como elemento estrutural da composição; (7) o uso de linhas melódicas de cançõestradicionais ou não, superpostas aos planos polifônicos, como mais um ornamento da texturae do timbre; (8) o timbre, tratado como valor característico da sua música.

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O conhecimento do material utilizado pode servir como base para outros trabalhos, bem comopara a compreensão de aspectos da linguagem do compositor, o que vai se refletir na audiçãoe na interpretação das peças.

Os processos de composição praticados por Villa-Lobos na coleção de peças A Prole do Bebêrevelam a experimentação que o compositor praticou através do material diversificado, dosmovimentos paralelos de acordes e bordões e principalmente, da criação de texturas queprivilegiam o timbre, em uma elaboração que incorpora o ambiente musical do Brasil, atravésde ritmos e linhas melódicas, em uma grande síntese formadora de sua linguagem musical.

Como sempre polêmico, deixemos ao compositor a última palavra, “Eu não escrevo dissonantepara ser moderno, nada disso! O que escrevo é a conseqüência cósmica de meu estudo, deminha resultante numa natureza como é a natureza do Brasil” (KATER, 1991, p. 94).

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Maria Lúcia Pascoal é Doutora em Música (UNICAMP), professora e pesquisadora na áreade Linguagem e Estruturação Musical no Departamento de Música do Instituto de Artes daUnicamp. Colabora nas publicações especializadas em música no Brasil e é autora deEstrutura Tonal: Harmonia (Companhia Editora Paulista; www.cultvox.com.br) Entre recentesparticipações em congressos, contam-se o I Congresso Internacional Villa-Lobos, em Paris(2002) e o Seminário Orpheus Music Theory, em Ghent (2003). Editora da revista OPUS daANPPOM (2003-4).

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CHUEKE, Zelia. Reading music: a listening process, breaking the barriers of notation. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.106-112Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 07/10/2004 - Aprovado em: 05/02/2005.

Reading music:a listening process, breaking the barriers of notation

Zelia Chueke (Observatoire Musical Français-Sorbonne, ParisIV)[email protected]

Abstract: In order to build an individual relationship with the works they perform, musicians should be able tobreak the barriers created by pre-established models or "performance’s tradition" which is normally the result ofreading mistakes. Notation, analysis and other resources that exist to help musicians explore and assimilate amusical message, have become in many cases a source of misunderstandings, sometimes replacing the musicitself. Combining the opinion of music psychologists, musicologists, theorists, philosophers and musicians, theauthor explores three stages of listening during the preparation and execution of a piano performance, emphasizingthe value of theoretical and musicological information to not impose, but enrich interpretation, making eachperformance an unrepeatable event and guaranteeing the immortality of great works.Keywords: music reading, listening process, music performance, music notation

Lendo música:um processo de escuta, quebrando as barreiras da notação

Resumo: Na construção de uma relação pessoal com as obras que toca, os músicos deveriam ser capazes dequebrar as barreiras criadas por modelos pré-estabelecidos ou da "tradição de performance", o que geralmenteresulta de erros de leitura. A notação, a análise e outros recursos que existem para auxiliar músicos a explorar eassimilar a mensagem musical, em muitos casos, se tornaram uma fonte de mal-entendidos, algumas substituindoa própria música. Combinando a opinião de especialistas em psicologia da música, musicólogos, teóricos,filósofos e músicos, são explorados três estágios da escuta durante uma preparação e performance no piano,enfatizando-se o valor da informação teórica e musicológica, não para impor, mas para enriquecer a interpretação,tornando cada performance um evento insubstituível, garantindo assim a imortalidade das grandes obras.Palavras-chave: leitura musical, processo de escuta, performance musical, notação musical

1- Three Stages of ListeningLet’s first consider that music doesn’t need to be written in order to exist. From the beginning ofmusic history until the beginning of the 19th century, performer and composer were almostalways the same person, who eventually used the score as a personal guide. It is not difficult toimagine how natural, fluent and convincing sounded their performances; music came from whereit was conceived: each phrase was anticipated before being performed and while the physicalresult was being listened to, the next one was anticipated, in a continuous motion until therewas no more to be said.

This process can also be observed in jazz players’ improvisations: fluent and naturally coloredby dynamics and quality of sound. Since interpreters access the music they perform throughthe score it becomes evident that they need to redo the compositional process from the printedmusic back to the composer's inner-ear, absorbing the music as if is was their own, recreatingthe sense of improvisation.

According to BLACKING (1979, p.4-5), "the composition of music has always required its re-

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composition by performer and audience, if it is to move out of the private mind of the individualcomposer." He also states that "some, if not all, of the mental processes involved in compositionare also required for intelligent listening." Indeed listening is present in all stages of musicmaking. REIMER & WRIGHT (1992, p.231) consider it the "foundational interaction with music,"and summarize the whole process: "the composer listens while composing, the performer whileperforming and both produce sounds to which others will listen."

Within this concept, three stages of listening can be defined involving musical performance: thefirst stage basically consists of "listening from the score"; during this stage, a sounding image ofthe piece is built which will guide the entire preparation process. The second stage involvespracticing consciously guided by inner hearing; physical hearing is also activated, checkingwhether the live sound matches the model previously shaped in the mind. There will be momentsfor re-reading and re-listening, for thinking about the music, considering and deciding, whistlingor humming the melodic line or reading about the composer and his work. There will also bemoments to let the piece aside for a while to give place to what Jonathan DUNSBY (1995, p.10-11) calls "unconscious assimilation." The final stage, the performance itself, gives evidence ofwhat the performer was able to hear from the score; it involves primarily the process of monitoringthe performance. The musical stimulus comes from the inner-ear before playing, the results arechecked and the connection to the next musical stimulus is made. Combining alertness andprofound involvement with the music, the performer will also enjoy the music as a listener.

We will dedicate most of this paper to the first stage of this listening process, namely the act ofreading music: decoding what is registered in the score, involving the understanding of notation,the visual grouping of the elements accordingly to the relationship among them and finally, theability to make sense out of it. This is already lots of work since it builds the foundation overwhich the architecture of individual performances will be sustained.

2- Rebuilding the path from the score to the composer ’s mind."How did musical ideas appear there?" Certainly using sensory-perceptual schemas stored inthe long-term memory. We will call this stored sounding material auditory memory, accumulatedthrough life-time musical experience - from the most primitive musical manifestations one mayhave access to, to the most sophisticated acts of listening and analyzing works by composersfrom all periods of music history. Supported by a great amount of curiosity and creativity andenriched by all kinds of extra-musical experience, it is the indispensable tool for composers togenerate and develop their own musical ideas and for performers to perceive them – in thewords of C.P.E BACH (1949, p.148) "to make the ear conscious of the true content and effect ofa composition."

Unfortunately, notation, analysis and other resources that should help musicians to exploremusical texts, became a source of continuous misunderstandings, sometimes even occupyingthe place of music itself. Music being a performing art, there is not too much sense in developingtheoretical, analytical or musicological knowledge which won’t serve to enrich the activity ofmusic making.

For instance, if one of us happened to read a text aloud leaving aside the meaning of its contents,in spite of correct pronunciation and the ability to classify all the language aspects, this person

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would be immediately diagnosed as illiterate. An analogy can be made with vocal or instrumentalexecutions: no matter how perfectly decoded and analyzed, if what is written in the score is nottransformed into meaningful sounding material, the musician in question could be diagnosed as"musical illiterate."

As a first possible cause of musical illiteracy we could mention the fact that musicians havebeen divided into categories - composers, performers, teachers, musicologists. Relying on thiskind of division, many performers comfortably began to consult fellow musicians to help themsolve problems related to basic skills of music reading. In other words, they depend on someoneelse’s reading of the texts they are supposed to incorporate. Another common practice is to call"interpretation" or "tradition" all the bad habits one may achieve through incorrect reading. Theimmediate consequence is that performances are not any more the result of a long term individualrelationship between performer and work; consistent and unique interpretations are disappearing,threatening the immortality of great works.

We could consider as a second cause, the general acceptance that interpretation and accuracyare not correlated. Todd, quoted by AIELLO & SLOBODA (1994, p.260) describe "two extremeways of approaching a score," based on "the amount of license given to interpreters": one is totry to transcribe what is indicated as accurately as possible, the other is to regard the score asproviding a series of basic forms which musical meaning should be re-created by the player.Long before him and in a more radical way, the Greek philosopher Aristoxene de Tarente (BELIS,1986, p.210) stated that "when auditory impression and theory contradict each other, it is thetheory which has to yield." My question is "why should they contradict each other?" The fact thatreaders belong to different areas of music making, doesn’t change what is in the text and thereforeshouldn’t alter the essence of the message that’s extracted from it. In my opinion, what isactually happening is that an incredible emphasis is being made on interpretation, neglectingthe fact that in order to interpret we should first read what is written.

Accuracy yes, because we want to bring to life what is in the score having already to acceptthat:

a) it is impossible to actually know what was in the mind of the composer sincemusical ideas sound for the performer out of written information.

1

b) interpretation will always be present, in the same way that the reading of the sametext by two different actors will never sound alike for the simple reason that theyare two different individuals.

3- What is in the score?As a performer, I would like to begin with what we first see when looking at it: structure, form andthe notes. No matter how musical ideas were conceived in the composer’s mind and how originallythey were registered in the score, the final result has structure and form. For many musicians,structure consists the essence of musical meaning; it is within the structure that musicians willexplore the contents of the score in a organized and meaningful way.

1 The maximum we can have, mostly involving twenty century music, is the composer’s statement about anspecific performance as being in accordance to his conception; even then we cannot be totally sure.

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Structure and form’s main function is to model a line of musical thoughts; a line which may beneither melodic nor harmonic, but needs to be coherent This line is formed by all the elementsand resources of music notation, including the notes. These elements are connected to eachother, in a constant interrelationship: supporting, completing and sometimes explaining eachother, but above all, transporting musical ideas. Combined with the awareness of structure andform, the "line of coherence" will lead the performer through the musical text, making him ableto later, conduct listeners through the sounding product he captured from it.

Sir Adrian BOULT ([n.d], p. 21) suggests that performers have to present to the public one bigscore opened as a picture to be admired and profited from; a whole and complete work withmeaning. However, it first needs to be stored in the performer’s mind as such.

I would like to go through a first reading of Debussy’s Étude No.3 Pour Les Quartes. It can beapproached as a story telling, full of surprises. The beginning of the piece suggests a peacefulenvironment (measures 1-6) suddenly invaded by an avalanche of fourths sonore and marteléin Stretto (measure 7). The peaceful mood returns in measures 8-9 and prevails through measures10-17 until a new surprise erupts; this time Risoluto in poco stretto (measure 18) and then moltodiminuendo into a new tender theme (measures 20-28) which transforms into a dance (measures29-36) Balabile e grazioso (poco animando). Everything seems calm until the avalanche offourths returns (measure 37) and after giving the impression that it is going to calm down(measures 38-39), it reappears (measure 40). This time the Ritenuto introduces the listener toa mysterious setting in sostenuto (measures 43-45). Still mysterious but sempre animando(measures 46-48) and then scherzando, accelerando, a new avalanche of fourths appears, thistime in p leggiero (measure 54) and is repeated enlarged with punctuating G sharps marqué(bars 56-57). The molto crescendo provokes a more powerful avalanche (measures 59-61)until it stops in p (measure 62), which sounds subito since it appears right after a crescendoindication. The last part of the piece (measures 65-85) suggests a peaceful setting, p, dolcesostenuto, leggiero, piu p, pp, con tristezza, lointain, pp volubile, until it disappears (estinto).

Of course, since the above paragraph is the description of a sounding image built out of printedmaterial, it won’t have a meaning unless the reader decides to pick up the score and explore it.It has been proved to be almost impossible writing about music using only excerpts as examples;they won’t make sense unless the reader has a sounding reference of the whole musical messageregistered in his mind. That is probably the explanation for the increasing number of publicationsabout music including a CD;

2 authors began to be concerned not only about their ideas being

misunderstood but also about really achieving the goal of their writing. (CHUEKE, 2000, p.64).

4- What is in the notes?Now that we’ve talked about the main picture, let’s consider what is in the notes: SCHOENBERG

2 Charles Rosen publications are some more excellent examples. The very dissertation which originated thispaper – Chueke, Zelia. Stages of Listening During Preparation and Execution of a Piano Performance. Universityof Miami, 2000 – included an attached CD with all the musical examples recorded integrally. It is thereforerecommended to look for the scores of the works mentioned in this paper, read them and build a soundingimage out of them, in order to actually know what is being talked about.

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(1975, p.326) states that "among a thousand musicians scarcely one will be found who has thewill and ability really to decipher and play what is in the notes." The main reason, according to him,is the fact that music doesn’t present a material-subject. Indeed, music is sound. Jeanne Bamberger(AIELLO & SLOBODA, 1994, p.31) believes that "musicians are more likely to talk about theirhearing of a piece than about knowledge." Musicians should keep in mind that theoretical andmusicological knowledge are not meant to transform sound into something palpable, but to serveas an aid for musicians to make reference to certain aspects of their "hearings" of a piece.

Analytical techniques are not meant to put the music in a pre-existing frame, but to enrich interpreters’approach to the works by composers from different periods. What I am suggesting is that we couldlet all these techniques collaborate together in our search for the line of coherence. Musicians shouldbe attentive and avoid being imprisoned by knowledge, breaking all the possible barriers whichblock the discovering of the new even in familiar contexts. The most correct and thorough analysis orall the musicological information about composer, period and style are good guides to the groupingof related elements during the act of reading, but will never substitute the sounding experience.

3

A good antidote for this kind of attitude is the experience with works from which there is noauditory memory: it prepares performers to deal with eventual surprises in musical texts from allperiods, liberated from any kind of prejudice or anticipation. In fact it forces the interpreter toexercise actual reading skills, namely, transform written music in sound, instead of exploring italready immersed in previous auditory experiences.

The Austrian pianist Rudolf Buchbinder affirms that the most difficult pieces to play in public arethose that "every aunt and cousin play." He says that when pianists play Schumann’s Traumerei,nobody is actually listening because they are singing their own interpretations in their minds.The same happens to musicians which begin to explore pieces that they already know andinstead of "making the ear conscious of the true content and effect of a composition" (C.P.E.BACH 1949, p.148) they just have a look at the score listening to their own auditory memory.

Ideally, theoretical and musicological information should serve to reinforce our relationship withthe text. For example, the introduction of Beethoven’s ninth symphony could be defined as aV-I

4 which would be a very poor description, to say the least. However, realizing how ingeniously

Beethoven created this unique passage with only those two chords, may help the conductor tosustain the proper tension implied by the sounding image formed in his mind. The informationabout Brahms intentions concerning the indication < > (COBBET 1930, p.182)

5 confirms what is

already clear through score reading; we can take as an example the opening Capriccio in Dminor of the Fantasien Op.116 (measures 25-28). Another example is the association between

3 “Strictly speaking, music can only be produced by performance, and its meaning is the sense that individualsmake of it.” (BLACKING 1979, p. 3).

4 V (measures 1-16), resolves in measure 16 with the root D; although both are missing the third, the V-I functioncan be clearly heard. The confirmation of the whole passage can be heard in the beginning of the theme(measures 17-22).

5 The score corroborates Fanny Davies’s comments: “the sign <> as used by Brahms, often occurs when hewishes to express great sincerity and warmth, applied not only to tone but to rhythm also. He would linger not onone note alone, but on a whole idea, as if unable to tear himself away from its beauty. He would prefer tolengthen a bar or a phrase rather than spoil it making up the time into a metronomic bar.”

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Beethoven’s Piano Concerto in G major Op.58. with the legend of Orpheus entering Hades’sdomains to rescue his beloved. No matter how pertinent and inspiring this comparison may be,we go on stage neither to represent Orpheus nor Eurydice but to perform Beethoven 4th pianoconcerto for piano and orchestra. Otherwise, Beethoven himself would have provided a libretto.

Apparently, beginning with Beethoven, composers have been feeling the effects of leavingeverything to performers’ imagination and becoming more accurate in their indications. However,things seems to be getting worse, considering the kind of remarks composers have been findingnecessary to make nowadays, explaining what should be obvious to any professional musicianjust by looking at the score. In one of his studies (Fanfares) Ligeti explains in a footnote that the"the bar lines are only meant to help the synchronization of the hands. The articulation of themotifs does not depend on the bar-division." However, bar lines have already been justified onlyas a means of reference in the works by composers from all periods. For instance, in the middlesection of Brahms’ Capriccio n.7 in D minor Op.116 (measures 21-46), the main melody sings indifferent registers as if dialoguing with itself, through the other melodic design in triplets whichseems to be doing the same, "dividing themselves between both hands as waves entering oneanother in syncopation, legato, sostenuto" (CHUEKE, 1996).

5- Conviction: the main goal of educationFinally arriving to the last stage of the listening process, in order to communicate the soundingimage, fruit of their exchange with composers’ musical ideas, performers need to be convincedand conviction comes from knowing the composition: how the notes are organized, related,structured and composed to the point of having music coming from within.

Accepting that musicality cannot be taught and interpretation shouldn’t, teachers are left with themission of encouraging students to access musical ideas through their own listening experienceproviding them with as many tools as possible, beginning with consistent reading skills. After all, ifit is true that on stage what matters is the interpreter, it is not because he is more important thanthe composer or the piece being played but because he is the one who will bring music into life. Achoice is proposed by Alfons Kontarsky (CHUEKE, 2000, p.51): the school who prepares performersto enter the stage "to show what they made with the music" and the other who teaches them "toshare what the music made with them." À nous de choisir!

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herméneutique de la musique. Strasbourg: Presses de l’Université, 283-296, 2001.

Since her first recital at age 8, Zelia Chueke has been developing her career in the UnitedStates, Europe and South America with almost 200 solo and chamber recitals and concerts withorchestras, including many works dedicated to her by composers from all over the world. Sheholds a DMA in Piano Performance from the University of Miami School of Music with AcademicMerit, a Master of Music from The Mannes College of Music (New York) and a Bachelor in Pianofrom the Federal University of Rio de Janeiro, Summa Cum Laude. Her teachers include pianistsGrant Johannesen, Hans Graf and Homero Magalhaes and conductor Sergiu Celibidache. Sheserved as Professor of Music at the University of Miami and University of Florida and MusicDirector of the "Notes, Strokes and Movement" concert series at the Lowe Art Museum and ofthe University of Miami Dance Program. Presently, she works as an associate researcher withthe Observatoire Musical Français-Sorbonne, Paris IV. Her most recently released CD includesworks by Debussy and Brahms (www.cdmail.fr).

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CARVALHO, Any Raquel; HEUSER Martin Dahlström Tendências pandiatônicas na obra para... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.113-129.Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p. jan - jun, 2005

Recebido em: 15/12/2004 - Aprovado em: 10/03/2005.

Tendências pandiatônicas na obra para órgão solo de Calimerio Soares

Any Raquel Carvalho (UFRGS)[email protected]

Martin Dahlström Heuser (UFRGS)[email protected]

Resumo: A utilização de diversos tipos de formações escalares em um contexto que não depende das progressõesharmônicas tradicionais e nem do tratamento da dissonância constitui o fundamento da técnica pandiatônica. Oobjetivo deste artigo é investigar o uso dessa técnica na obra para órgão do compositor mineiro Calimerio Soares.Palavras chave: composição musical, órgão, pandiatonismo, Calimerio Soares.

Pandiatonic tendencies in the organ works by Calimerio SoaresAbstract: The use of various types of scalar formations in a context, which does not utilize harmonic progressions,and dissonance in a traditional manner form the basis of the pandiatonic technique. The purpose of this article isto investigate the use of this technique in the organ works of the Brazilian composer Calimerio Soares.Keywords: compositional techniques, organ, pandiatonic technique.

O objetivo deste artigo é investigar o uso de pandiatonismo nas obras para órgão do compositor,cravista e organista mineiro Calimerio Soares. Sua obra abrange mais de 50 peças para diversosinstrumentos, entre eles cravo, piano, violino, flauta doce, voz, flauta, viola da gamba, violão,orquestra de câmara e banda sinfônica. Calimerio Soares está entre os compositores brasileirosatuais que produzem peças para órgão solo, tendo escrito oito até 2003. Este fato deve-se nãosó pela sua familiarização e contato com o órgão, mas também pelo crescente número decursos superiores deste instrumento no país. Sua atuação na Associação Brasileira deOrganistas1 certamente tem lhe servido de inspiração devido à possibilidade de ter suasobras executadas. Suas obras para órgão incluem: Toccata Breve (1980), Pedaladas 1 e 2(1985)2 , Paralelos (1986), Quatro Diferenças sobre “Veni Sancte Spiritus” (1992), Toccata Longa(1992), Cinco Pequenos Prelúdios Folclóricos/1° Caderno (1997), Aulos (2002) e CincoPequenos Prelúdios Folclóricos/2° Caderno (2003).

Ao analisar este conjunto de peças constata-se uma forte influência de tradições diatônicas,tanto tonal quanto modal. Todas utilizam escalas das mais diversas, ao invés de séries ou outrostipos de organização de alturas. Essas escalas são, na maioria das vezes, utilizadas de maneiradistinta, remetendo-nos à tradição modal ou tonal, incluindo as técnicas de composição comescalas sintéticas.3 Escalas cromáticas são menos freqüentes, mas também são encontradas.

1 A Associação Brasileira de Organistas (ABO), criada em 1992 em Mariana, MG, tem por objetivo promover edivulgar a atividade organística no Brasil através de cursos, encontros, seminários, concertos e editoração detrabalhos/partituras. A ABO realiza seu Encontro Nacional de Organistas anualmente e, a cada dois anos, umEncontro Latino- americano de Organistas e Organeiros.

2 As peças Pedaladas 1 e 2 e Aulos não serão abordadas aqui por não serem pertinentes a este estudo.3 Dallin define a escala sintética como aquelas que apresentam combinações de notas não existentes nos modo

maior e menor. “Uma variedade infinita é possível ao construir escalas desse tipo” (1974, p. 38). Como exemplode escalas sintéticas encontramos a escala de tons inteiros (ou hexacordal) e a octatônica.

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1- PandiatonismoStefan KOSTKA (1999, p.107), em seu livro Twentieth-Century Music, observa que

“A maior parte da música atonal, assim como uma grande parte de outras obras compostas nofinal do século XIX e no decorrer do século XX, é baseada na escala cromática. Provavelmentecomo uma reação contra este cromatismo, alguns compositores empregaram um estiloconhecido como pandiatonismo.”

Conforme Kostka, alguns autores afirmam que passagens pandiatônicas podem ser tonais ouatonais, triádicas ou não-triádicas. O termo pandiatônico é usado para “descrever uma passagemque utiliza apenas as notas de alguma escala diatônica, mas que não depende das progressõesharmônicas tradicionais e nem do tratamento da dissonância” (KOSTKA, 1999, p. 107).

PERSICHETTI (1961, p. 223) afirma que qualquer escala pode ser usada como base para opandiatonismo. Ele define a escrita pandiatônica como

“. . . um tipo específico de harmonia estática na qual uma escala é usada para formar osmembros de um acorde estático implícito, formado por segundas. As estruturas verticais sãocombinações de qualquer número de notas da escala predominante, dispostas emespaçamentos variáveis. A sucessão horizontal de acordes não possui direção tonal; as notasda escala são manipuladas como material cordal básico sem criar movimentação harmônicafora da escala estática e inalterada. A harmonia não tem funções características; o contrapontoé ritmicamente ativo, e o espaçamento de acordes errático. . .”

A utilização de escalas modais e tonais no repertório organístico de Soares nos remete aotermo pandiatonismo. A análise constituiu-se na verificação do uso dessa técnica na obraorganística de Calimerio Soares.

2- O repertório organístico de Calimerio Soares2.1 - Toccata Breve (1980)“Originando-se de um improviso para órgão do compositor, Toccata Breve desenvolve-se emseções contrastantes nas quais algumas possibilidades tímbricas do instrumento são exploradas,utilizando recursos dinâmicos e clusters. [...]”

4 .

Nome da obra Toccata BreveData de composição 1980 (Uberlândia) 4p.

Edição Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 1988 (esgotada)Edição especial do autor (1998)

Estréia 12/11/80 - Catedral Santa Terezinha, Uberlândia.

Solista: o autor.Gravação Álbum “Futuros Mestres em Música: O Órgão da Escola de Música”,

n. 008/009 - 1989, EM/UFRJ, disco n. 008, lado A, terceira faixa.

Solista: Marco Aurélio Lischt.

Quadro 1. Dados sobre a Toccata Breve

4 Comentário do compositor anotado na partitura.

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As características dessa peça quanto às alturas são recorrentes em outras obras para órgãodesse compositor, incluindo tríades e tétrades em movimento paralelo, assim como os trêstipos clusters

5, isto é, com teclas brancas, com teclas pretas e cluster cromático. O uso de

teclas brancas é bastante acentuado, mas a forma rapsódica dessa toccata permite aocompositor alternar entre seções puramente diatônicas, na maioria das vezes sem acidentes

6,

e outras com alguns acidentes.

Seção

Andamento Andante Lentíssimo - Vivo – Lento e maestoso

Nº de compasso 1-3 4 5 6-8

Característica Introdução:principal Cluster cromático, notas longas. Arpejos, Linha na pedaleira,

pedaleira, tétrades Sem métrica sinal de repetição acorde suspensivo.paralelas

Meio(s) sonoro(s) Escala diatônica Escala Acordes Predominantementediatônica com sobrepostos, diatônico

notas alteradas pedal na nota Sol

Seção

Andamento Calmo Andante Lentissimo AllegroMaestoso – semínima = 40

Nº de compasso 9-20 21-29 30-33 34-42

Característica Melodia no primeiro Tétrades e tríades retorno da melodia clusters rápidosprincipal manual, pedal em paralelas, clusters de “calmo”, nos manuais,

contraponto, acordes diatônicos, cluster prolongado tríades paralelas,longos no segundo arpejo com de quatro notas. acorde final demanual notas alteradas. ré menor com

sétima e nona.

Meio(s) sonoro(s) Escala diatônica Diatônico,com notas aletradas Escala diatônica Escala diatônicaapenas no acordefinal.

Quadro 2. Estrutura da Toccata Breve

5 Conforme Dallin, clusters são acordes formados por três ou mais segundas consecutivas (1974, p.95). Nocaso de clusters pentatônicos (nas teclas pretas), há intervalos de segunda maior e terça menor.

6 Segundo Straus, em alguns casos é difícil ou musicalmente irrelevante identificar a nota central de uma escala.É recomendável referir-se às escalas diatônicas de uma maneira mais neutra, sem vinculá-las a algum centrotonal ou ordem de notas, apenas referindo-se ao número de acidentes necessários para escrever o conjuntode notas (2000, p.118).

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O compositor inicia a peça com um cluster cromático no primeiro manual e logo depoisdesenvolve idéias usando a escala diatônica sem acidentes (Figura 1). Tétrades paralelas,como nos compassos 2-3, fazem parte de um grupo de características claramente pandiatônicas,uma vez que todas as notas da escala foram usadas livre e simultaneamente, tornando aharmonia estática.

Fig. 1: Introdução da Toccata Breve, c. 1-3

No próximo exemplo há o uso de clusters pentatônicos, ou seja, com teclas pretas, enquantouma melodia diatônica é tocada pela pedaleira.

Fig. 2: Toccata Breve, c. 6-8

A seção do c. 9-20 possui diversas características que nos remetem ao uso da técnicapandiatônica: escala diatônica, dissonâncias seguidas de saltos, acordes de seis notas nãoresolvidos tradicionalmente, e um cluster formado pelas sete notas da escala no último acordedo c. 20 (Figura 3):

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Fig. 3: Toccata Breve, final da seção “Calmo”, c. 19-20

A seguir, nos c. 21-29, há uma seção construída por tétrades paralelas (ainda com teclasbrancas) (Figura 4), tríades distintas em movimento paralelo entre as mãos (Figura 5) e clustersdiatônicos (também em movimento paralelo). Por fim, um arpejo com vários acidentes contrastacom a pureza da escala que o antecede.

Fig. 4: Toccata Breve, tétrades paralelas, c.21-22

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Figura 5: Toccata Breve, final da seção Andante Maestoso, c.26-29

Na última seção (c. 34-42) pequenos clusters de três notas em movimento rápido (Figura 6)intercalam-se com linhas melódicas na pedaleira:

Fig. 6: Toccata Breve, clusters em movimentos rápidos, c.34-36

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2.2 - Paralelos (1986)

Nome da obra PARALELOSData de composição 1986 (Uberlândia) 5p.Edição Edição do autor

Estréia

Gravação

Quadro 3. Dados sobre a peça Paralelos.

O paralelismo, tanto de acordes quanto de intervalos, é encontrado em todas as peças paraórgão de Soares, constituindo uma das suas características mais importantes. Em Paraleloshá um esforço consciente e sistemático no uso de paralelismo de maneira mais abrangente,obviamente implícito no seu título. Essa técnica nos remete ao organum, procedimento depolifonia realizada a duas vozes, em quartas ou quintas paralelas, como teorizado nos tratadosmusicais do século IX. A forma desta peça é A - B - C - B - D, conforme o quadro abaixo:

Seção A B C D EAndamento Andante Allegro Lento Allegro Lento

Nº de compasso 1-21 22-60 61-74 22-60 75-83

Característica Quartas e quintas Textura Notas longas, Textura Quartas e quintasprincipal paralelas. Meio contrapontística escala contrapontística paralelas na

sonoro predomi- com imitação à cromática com imitação à pedaleira.nantemente quarta acima. descendente quarta acima. Acordes quartaisdiatônico. Meio sonoro na pedaleira. Meio sonoro de três notas nos

Textura cordal. diatônico. diatônico. manuais.Escalas Escalasascendentes e ascendentes edescendentes. descendentes

Meio(s) sonoro(s) Inicia sem escala Modo dórico; Escala Modo dórico; Escala diatônicadefinida. Segue escala de cromática escala decom escala Ré maior, Ré maior,diatônica escala de escala de

Réb maior Réb maior

Quadro 4. Subdivisão da peça Paralelos

A caracterização de cada seção não é realizada através de temas, pois os materiais se limitama escalas, arpejos, e melodias com baixo grau de conteúdo melódico

7. As escalas utilizadas

são geralmente diatônicas, porém, em alguns trechos, não há uma definição clara.

7 O grau de conteúdo melódico refere-se à quantidade de saltos em uma determinada melodia.

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Algumas seções são totalmente cromáticas, enquanto outras são explicitamente pandiatônicas.O uso dessa técnica evidencia-se logo no início, após uma breve introdução sem uma definiçãode escala diatônica. Gradualmente os acidentes começam a ser substituídos por bequadros,restando uma escala diatônica sem acidentes, a partir do segundo tempo do c. 11 (Figura 7).Tanto a linha da pedaleira quanto a dos manuais, nesse trecho, são formadas por intervalos dequarta justa em movimento paralelo.

Fig. 7: Paralelismo de intervalos em todas as vozes, em Paralelos, c.7-15

Na segunda seção (c. 22-62) há a um trecho específico (c. 31-51) onde são utilizadas trêsescalas diatônicas distintas (Figura 8) com o predomínio de terças paralelas:

Escala sem acidentes Escala com dois sustenidos Escala com cinco bemóis(c. 22-33, 38-42) (c. 34-37) (c. 48-51)

Fig. 8: Escalas utilizadas no trecho dos c.22-51

A última seção (D) é formada pela escala diatônica sem acidentes, com sonoridadespredominantemente quartais como no início da obra. O último acorde reafirma o uso da técnicapandiatônica, pois, além de não ser triádico, as notas Dó, Sol, Fá, Si e Mi pertencem à escaladiatônica (Figura 9).

Fig. 9: Paralelos, c. 79 - 83

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2.3 - Quatro Diferenças sobre “ Veni Sancte Spiritus” (1992)

Nome da obra QUATRO DIFERENÇAS SOBRE “Veni Sancte Spiritus”Data de composição 1992 (Uberlândia)Edição Manuscrito

Estréia 23/04/92 - Salão Leopoldo Miguez, Escola de Música da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro.

Solista: Albert RichenhagenGravação

Quadro 5. Dados sobre a obra Quatro Diferenças sobre “Veni Sancte Spiritus”

O termo diferença é utilizado para designar variações na música instrumental espanhola doséculo XVI (SADIE, 2001). A melodia Veni Sancte Spiritus é uma seqüência ou prosa cantadana Missa durante a semana de pentecostes, atribuída a Stephen of Langton (1228). Subdivide-se em versetes (estrofes) formados por três frases cada um. Soares utiliza apenas as duasestrofes iniciais e a final dessa prosa.

O quadro a seguir apresenta as características principais de cada seção:

Seqüência Diferença I Diferença II Diferença III Diferença IV

MD Arpejos e tríades Quintas paralelas Quintas paralelas Tríades paralelas /

ME paralelas Tema Intercalação entre Tema Tríades arpejadas

tema e tríades FragmentosPedal Tema Ostinato derivados do Tema

tema

Quadro 6. Subdivisão da obra Quatro Diferenças sobre “Veni Sancte Spiritus”

A apresentação do tema é realizada sem acompanhamento, intercalada por arpejos sustentados(Figura 10, c. 6 - 10). A escala utilizada no tema, presente em cada diferença, oscila entre o usoou não de um bemol, dando a idéia de Ré menor ou de modo dórico.

Fig. 10: Início do tema de Quatro Diferenças sobre “Veni Sancte Spiritus”, c. 1-10

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O pandiatonismo é evidente no final da exposição do tema, quando vários acordes sobrepostos,com uma nota pedal (Ré), não nos remetem a qualquer uso de regras contrapontísticastradicionais ou harmonia funcional. As sete notas da escala são tratadas como uma únicaharmonia estática (Figura 11).

Fig. 11: Final do tema, uso de tríades paralelas em Quatro Diferenças sobre “Veni Sancte Spiritus”, c. 14-18

DIFERENÇA I: a melodia inicial (m. e.) sofre várias transformações e é acompanhada por umasucessão de quintas paralelas, apoiadas por um ostinato na pedaleira. A sobreposição delinhas distintas não segue regras tradicionais de resolução de dissonâncias (Figura 12).

Fig. 12: Textura da Diferença I, c. 21-23

DIFERENÇA II: A melodia principal sofre apenas variação rítmica. Há a alternância entre trechosmelódicos em uníssono e outros em tríades paralelas sobrepostas, processo semelhante aoinício da peça (Figura 13). O meio sonoro é o mesmo do tema, ou seja, a escala diatônica queoscila entre o uso ou não de um bemol.

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Fig. 13: Textura da Diferença II, c. 37-40

DIFERENÇA III: esta Diferença assemelha-se à primeira no seu uso de sobreposição de linhas.O tema, na mão esquerda, é acompanhado por um motto em quintas (m. d.) e contraponto livreno pedal.

Fig.14: Textura da Diferença III, c. 46-50

DIFERENÇA IV: “As duas estrofes iniciais aparecem em tutti soladas na pedaleira. A primeira éentremeada por uma sucessão de acordes e a segunda, por uma progressão de acordesarpejados em movimento contrário, culminando com a escala do primeiro modo gregoriano(Protus) executada na pedaleira”

8.

8 Comentário do compositor anotado na partitura.

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As duas estrofes iniciais na pedaleira sofrem transformação rítmica (Figura 15), enquanto osegundo versete é reexposto apenas com aumentação rítmica (c. 71-79). Este último éacompanhado por acordes arpejados que se estendem até o final.

Figura 15: Início da Diferença IV, c. 63-65

2.4. Toccata Longa (1992)

Nome da obra TOCCATA LONGA

Data de composição 1992 (Leeds, Inglaterra) 12p.

Edição Edição especial do autor (1998)Estréia 10/08/95 – II Festival Internacional São Bento de Órgão,

Mosteiro de São Bento, São Paulo.Solista: Marco Aurélio Lischt

Gravação “Toccata”, CD CSCD 001/Faixa 17, São Paulo, 2001.Solista: Marco Aurélio Lischt

Quadro 7. Dados sobre a obra Toccata Longa.

A Toccata Longa é considerada a peça para órgão mais importante do compositor até o momento.Seu objetivo principal foi o de “centrar-se na pedaleira do instrumento, desenvolvendoprogressões melódicas ascendentes e descendentes por toda a sua extensão”9 . A obra foiescrita a partir da idéia melódica extraída dos primeiros compassos de sua Toccata Breve,descrita acima. São empregados meios sonoros variados como modos eclesiásticos, escalahexacordal e escala cromática. Sua linguagem harmônica é não-funcional. Desde o início apeça apresenta a distinção entre a pedaleira e manuais, resultando em solista versusacompanhamento.

9 O compositor comenta isto na introdução na partitura.

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TERCEIRA SEÇÃOSeções PRIMEIRA SEÇÃO SEGUNDA SEÇÃO

Reexposição Cadência CodaCompassos C. 1 a 116 c. 117 a139 c. 140 a 185 c. 186 a 201 c. 202 a 212

Características Ritmo de toccata, Melodia na Retorno da Solo de pedaleira Maestoso,acompanhamento pedaleira melodia em linha com grand finalede acordes e acompanhada de principal em muito cromatismo.clusters nos arpejos nos manuais semicolcheiasmanuais atmosfera mais lírica

Quadro 8. Estrutura da Toccata Longa

A Toccata Longa é claramente dividida em três grandes seções (Quadro 8). A primeira (c. 1-116) apresenta a melodia principal no pedal em ritmo típico de tocata, com acompanhamentoem clusters diatônicos e acordes de sétima:

Fig. 16: Início da Toccata Longa, c. 1-12

Nos c. 59-65 há a utilização da escala de tons inteiros, ou hexacordal, primeiro em intervalosparalelos de terça maior e, em seguida, em movimento contrário arpejado, no segundo manual10

(Figuras 17a e 17b). A melodia do pedal apresenta notas estranhas a essa escala (notas Lá eSol) que, no entanto, não interferem na sonoridade hexacordal do trecho. Nos trechos do c.107 – 108 e c. 162 –167 também há predominância de uma escala hexacordal.

10 Indicado como “swell”.

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Fig. 17a: escala hexacordal usada nos c.59-66

Fig. 17b: Exemplo de utilização da escala hexacordal na Toccata Longa, c. 59-67

Na seção final da Toccata Longa há o uso consistente de tétrades paralelas (Figura 18). Aescala utilizada nesse trecho não possui acidentes, sugerindo o retorno ao campo harmônicoinicial da peça, após explorações por diversos tipos de escalas.

Fig. 18: Toccata Longa, c. 202-206

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A Toccata Longa possui grande quantidade de material harmônico. As passagens pandiatônicasencontram-se às vezes intercaladas com seções que utilizam outros materiais, como escalascromáticas, ou seções onde não há uma escala predominante.

2.5 - Cinco Pequenos Prelúdios Folclóricos – Cadernos 1 e 2 (1997 e 2003)A obra Pequenos Prelúdios Folclóricos é formada por dois cadernos, cada um com cinco peçasde curta duração. As tonalidades são distintas e não obedecem a qualquer tipo de ordem. Aspeças utilizam melodias folclóricas brasileiras de caráter regional ou nacional.

As indicações de registração limitam-se à inserção da palavra solo acima das melodias principais.No início de cada peça o compositor acrescentou parte da letra da melodia folclórica, facilitandoseu reconhecimento pelo intérprete.

A linguagem harmônica é tradicional na maioria dos prelúdios com a inserção de dissonânciasnão resolvidas. Há uso de texturas corais, procedimentos contrapontísticos, melodiaacompanhada e freqüente utilização de imitação.

Primeiro Caderno11

Nome da obra PEQUENOS PRELÚDIOS FOLCLÓRICOS Primeiro Caderno 5p.

Data de composição 1997 (Uberlândia)Edição Edição do autor

Estréia 16/04/2000 - III Série Internacional de Órgão – Paróquia Martin Luther,Porto Alegre-RS.Solista: Anne Schneider

Gravação

Quadro 9. Dados sobre Pequenos Prelúdios Folclóricos, Primeiro Caderno.

Segundo Caderno

Nome da obra PEQUENOS PRELÚDIOS FOLCLÓRICOS Segundo Caderno 5p.

Data da composição 2003 (Uberlândia)Edição Edição do autor

Estréia 04/05/2003 – 495º Concerto Barroco na Bahia - Catedral Basílica deSalvador (BA); Solista: Anne Schneider

Quadro 10. Dados sobre Pequenos Prelúdios Folclóricos, Segundo Caderno.

11 A numeração de compassos de todo o caderno é corrida.

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Como os Prelúdios Folclóricos possuem uma linguagem harmônica predominantementetradicional, o uso consistente de pandiatonismo não foi encontrado. A única exceção restringe-se a uma inclinação em direção ao pandiatonismo no Prelúdio I (Primeiro Caderno). Nesteprelúdio (Marcha Soldado), cuja melodia folclórica é absolutamente tonal, há uma preocupaçãomaior com a textura contrapontística do que com funções harmônicas. Pode-se dizer que essapeça é modal, pois faz uso de apenas uma escala sem movimentação harmônica claramentedirecional (com exceção da nota Si bemol nos c. 5 e 18). As sonoridades são bem menosconsonantes do que se espera de uma composição modal tradicional. Por que considerar essapeça como pandiatônica? Na verdade essa parece estar no limiar entre um estilo modal, noqual acordes com sétimas, sextas e notas pedais são permitidas, e o pandiatonismo, que incluitodas as categorias de sobreposição de notas dentro de uma escala.

Fig. 19: Marcha Soldado, Pequenos Prelúdios Folclóricos, Primeiro Caderno, c. 1 – 7

3 - ConclusãoAs peças para órgão de Calimerio Soares podem ser classificadas de acordo com o grau deutilização do pandiatonismo:

1. Peças exclusivamente pandiatônicas:- Quatro Diferenças Sobre “Veni Sancte Spiritus”.

2. Peças parcialmente pandiatônicas:- Toccata Breve;- Toccata Longa;- Paralelos.

3. Peças com pouco uso de pandiatonismo:- Cinco Pequenos Prelúdios Folclóricos – 1° Caderno.

No primeiro caso, todas as alturas utilizadas na peça pertencem a uma única escala diatônica.Os contrastes harmônicos provêm da maneira como o compositor utiliza as notas dessa escala.

Nas peças parcialmente pandiatônicas existem seções claramente definidas. Outros tipos deorganização de alturas também são usados. Nesse conjunto de peças, as seções pandiatônicassão as de maior estabilidade harmônica, mesmo contendo clusters e outros tipos de acordes

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não usuais. Um exemplo ocorre na Toccata Longa, na qual a primeira e a última seção empregama mesma escala. No terceiro caso, apenas a primeira peça do conjunto de Cinco Prelúdios fazuso de pandiatonismo, mesmo assim, de maneira pouco clara.

Em resumo, o pandiatonismo na obra para órgão de Calimerio Soares é uma de suascaracterísticas mais fortes. Esse aspecto é essencial na sua estruturação harmônica,tornando-se um elemento básico de sua linguagem musical.

Referências BibliográficasDALLIN, Leon. Techniques of Twentieth Century Composition: A Guide to the Materials of Modern Music. 3. ed.

Dubuque, Iowa: WM. C. Brown Company Publishers, 1974.KOSTKA, Stefan. Twentieth-Century Music. 2. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1999.PERSICHETTI, Vincent. Twentieth-Century Harmony: Creative aspects and practice. New York: W.W. Norton &

Company, 1961.SADIE, Stanley, ed. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2.ed. London: Macmillan Publishers

Incorporated, 2001.STRAUS, Joseph. Introduction to Post-Tonal Theory. Upper Saddle River, NJ: Prentice Hall, 2000.

Any Raquel Carvalho, doutora em música pela University of Georgia (USA) é professora noPPG-Música e no Departamento de Música do Instituo de Artes da UFRGS. Atua como organista,concertista e conferencista no Brasil e no exterior. Como pesquisadora do CNPq temdesenvolvido trabalhos na área de contraponto, fuga e música brasileira para órgão.

Martin Dahlström Heuser possui bacharelado em composição pela UFRGS (2004), soborientação do Prof. Dr. Antônio C. B. Cunha. Atua como bolsista de Iniciação Científica/UFRGS,orientado pela Profa. Dra. Any Raquel Carvalho e como bolsista voluntário no Centro de MúsicaEletrônica/UFRGS, sob orientação do Prof. Eloi Fritsch. Várias peças de sua autoria já foramtocadas em recitais, incluindo a XV Bienal de Música Brasileira Contemporânea em 2003.

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ROCHA, Júnia Canton. Entrevista com o compositor Almeida Prado sobre sua coleção de Poesilúdios... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.130-136Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.11, 136 p., jan - jun, 2005

Recebido em: 07/10/2004 - Aprovado em: 05/02/2005.

Entrevista com o compositor Almeida Prado sobre sua coleção dePoesilúdios para piano solo.

Interview with Brazilian composer Almeida Prado about his Poesilúdioscollection for solo piano.

Júnia Canton Rocha (UEMG)[email protected]

Esta entrevista com o compositor paulista José Antônio Rezende de Almeida Prado,nascido na cidade de Santos a 08 de fevereiro de 1943 e hoje residente em SãoPaulo, foi realizada na Sala Sérgio Magnani da Fundação de Educação Artística (BeloHorizonte/MG), em 25 de outubro de 2003.Trata-se de uma versão revisada de parteda minha Dissertação de Mestrado Decisões Técnico-Musicais e Interpretativas noSegundo Caderno de Poesilúdios Para Piano de Almeida Prado, defendida em marçode 2004, na Escola de Música da UFMG. Ao elaborar as questões, procurei absorverao máximo a visão pessoal do compositor sobre os Poesilúdios, nas quais foramabordadas questões sobre estética musical, pedalização, técnicas de composição,

elementos inspiradores de sua criação, timbre e recursos composicionais utilizados nessa coleção de 16 obraspara piano solo, e possíveis correspondências com outras obras de Almeida Prado.1

O nome poesilúdio foi criado pelo próprio compositor e, segundo ele, esta obra representa um microcosmosdentro da sua produção pianística. São organizados em dois cadernos: o primeiro, composto em 1983, constitui-se de 5 peças que, segundo Almeida Prado, contém contornos bem definidos retratando alegria, o dia e a luz,sendo eles: Poesilúdio nº 1- “Calmo , floral”, Poesilúdio nº 2- “Com múltiplas cores e intenções, eloqüente”,Poesilúdio nº 3- “Feliz”, Poesilúdio nº 4- “Calmo”, Poesilúdio nº 5- “Contínuo, calmo”. O segundo caderno, de1985, contendo 11 obras que completam a coleção, foi inspirado em noites de várias cidades ou locais, retratandosentimentos de solidão e saudade, possuindo contornos indefinidos e difusos, assim chamados, respectivamente:Poesilúdio nº 6- Noites de Tóquio, Poesilúdio nº 7- Noites de São Paulo, Poesilúdio nº 8- Noites de Manhattan,Poesilúdio nº 9- Noites de Amsterdan, Poesilúdio nº 10- Noites de Madagascar, Poesilúdio nº 11- Noites deSolesmes, Poesilúdio nº 12- Noites de Iansã, Poesilúdio nº 13- Noites do Deserto, Poesilúdio nº 14- Noites deCampinas, Poesilúdio nº 15- Noites de Málaga, Poesilúdio nº 16- As Noites do Centro da Terra.

Júnia Canton: O meu primeiro contato com sua escrita pianística foi através do 1o caderno

de Poesilúdios, e confesso que não compreendia o sentido musical, ou seja, as imagenssonoras naquela obra. Nessa ocasião, tive a oportunidade de ler a dissertação da AnaCláudia ASSIS (1997), onde ela revela que a obra de Almeida Prado deve ser ouvida doponto de vista do timbre e da ressonância, e ainda cita uma célebre frase sua dita aHideraldo GROSSO (1997): “ Eu amo o piano, eu penso piano, como Chopin, orquestrocomo um grande piano e suas ressonâncias” . Este foi um ponto chave para o início daminha compreensão a respeito de sua obra.

1 A presente entrevista foi formulada de forma a não se repetirem as questões colocadas na entrevista sobre osPoesilúdios feita por Adriana Lopes da Cunha MOREIRA (2002), a não ser quando outras dúvidas pudessemser elucidadas.

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Almeida Prado: A minha estética é uma estética da cor e da forma, lógico. Mas eu não souum compositor que pensa a forma; eu penso timbres, eu penso em cores, ataques,ressonâncias e a forma virá submetida a esses estímulos de timbres; ela não vem emprimeiro lugar. Se, por exemplo, eu fizer uma sonata que quero que seja uma sonata ortodoxacom dois temas, com desenvolvimento e reexposição, ela vai estar subordinada ao gestodo timbre. Se o gesto do timbre pedir um outro tema que é o segundo tema, ele virá. Se oprimeiro tema vier de maneira completa eu abandono o segundo tema, quer dizer, eu mudoa estrutura formal por causa do timbre. O timbre é o “rei” da minha música. Esta tese daAna Cláudia é uma tese maravilhosa e muitas pessoas que querem me conhecer melhortêm lido a tese dela.

JC: O senhor comenta na entrevista com a pesquisadora Adriana Lopes da CunhaMOREIRA (2002) sobre sua liberdade no momento de compor, como por exemplo, utilizao nacionalismo repetindo alguns cacoetes de Guarnieri, Villa-Lobos ou vai para a músicajaponesa. . . não tendo um álibi que lhe prenda.

AP: Não. Nada, nada.

JC: E isto vai criando um novo pianismo.

AP: Claro.

JC: Conduz o intérprete a uma pesquisa profunda, para que ele possa lidar com essasnovas situações técnicas e sonoras. A minha dissertação se baseia exatamente nadescrição do estudo e soluções técnico-musicais que encontrei para certas passagensinovadoras do ponto de vista da escrita pianística tradicional, principalmente no 2

o

caderno de Poesilúdios.

AP: Esta abordagem é muito nova, muito interessante. Por exemplo, os 55 Momentos, quena verdade são prelúdios, curtos, flashes sonoros, croquis eu diria, mas que não têmpreocupação de título; são momentos 1, 2, 3, 4, 5... Já os Poesilúdios são descritivos,principalmente os do segundo caderno. O primeiro caderno descreve quadros que meusamigos pintaram e me presentearam, que ora é uma paisagem, ora é o interior de umasala, como é o caso do Poesilúdio nº 2, o Múltiplas Intenções, onde o quadro tem um sofáe atrás do sofá tem uma paisagem e é lunar; tem Marte e é uma coisa surreal, e depoisaquele que tem a guirlanda de cirandas, o nº 3, é um quadro com crianças brincando,cirandando; então é descritivo. Agora, as Noites, a série das Noites, é uma viagem atravésdo tempo, tem Noites de Tóquio ... então você viaja para Tóquio. Em Noites de Armsterdan.. . então você está em Armsterdan. Noites de Solesmes. . . você está em um mosteiro,ouvindo os monges cantarem. Noites de São Paulo é o rock da Rita Lee; cidade com néone bastante barulho. E Noites de Manhattan é Nova York... Noites do Centro da Terra é umaimagem do livro de Júlio Verne, “Viagem ao Centro da Terra”, o âmago do âmago, por issoque se faz aquela situação que vai por um “funil”, ficando só uma quinta sem a terça, querdizer, não é nem um acorde maior e nem menor, superou o maior e o menor, é a essência.Esta é a minha proposta.

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JC: Em alguns momentos o senhor utiliza uma linguagem idiomática referente a outrosinstrumentos, como é o caso do instrumento japonês chamado koto em Noites de Tóquioe a guitarra espanhola , em Noites de Málaga.

AP: Sim e também em Noites do Deserto, onde há a imitação de uma flauta árabe e do ventono deserto, e a guitarra elétrica em Noites de São Paulo.

JC: Durante a elaboração da minha dissertação e o estudo dos Poesi lúdios noinstrumento, observei que este idiomatismo suscita no piano situações inusitadas parao instrumentista do ponto de vista técnico e sonoro. Um exemplo seria a passagemRápido Estelar, em Noites de Tóquio, onde temos notas repetidas de duas a duas noagudo, em movimento rápido e que, por utilizar a escala pentatônica, resulta em extensosintervalos, algumas vezes difíceis de serem realizados. A propósito, além de tratar-se deuma linguagem idiomática para o koto , o senhor atribui a idéia desta escrita a algumapassagem do seu conhecimento na literatura pianística?

AP: Que eu me lembre, ela tem muita ligação com as minhas próprias Cartas Celestes e nestemomento eu faço uma analogia às estrelas. Eu não me lembro de ter me inspirado em nenhumoutro compositor. Justamente Noites de Tóquio é um piano que sai do pianismo brasileiro etenta imitar aquela timbrística japonesa.

JC: Considero o Rápido Estelar como revolucionário do ponto de vista da linguagempianística.

AP: É. Outro momento revolucionário muito interessante ocorre em Noites do Deserto, porquevocê tem uma melodia que é circuncidada; em torno dela circula uma aura de ressonânciaescrita, que eu chamo de “uníssono”, porque tem reverberação. Você ouve um uníssono quenão é preciso, ele é impreciso e isso cria uma espécie de “sujeira” harmônica, que é típico damúsica árabe. O árabe não tem harmonia, são oitavas, mas não oitavas muito afinadas, sãodesafinadas. . . desafinadas para nós, não pra eles. Isso também ocorre nos 15 Flashes Sonorosde Jerusalém. Eu fiz um uníssono atrapalhado, “sujo”, porque quando os árabes tocam 4, 5, 6violinos árabes, eles têm uma afinação oriental; portanto, tem comas a mais; mas no piano nãoposso fazer comas, então, “sujo” as oitavas com semitons no baixo. É movimento paralelo,porém, um paralelo “sujo”. Como tudo é muito pianíssimo e com muito pedal, você escuta umuníssono atrapalhado. Um uníssono que parece não ter centro, que fica no ar. Eu demoreimuito para conseguir esse efeito que é algo que outros compositores não têm. Como um culto.

JC: Charles ROSEN (2000) cita, em seu livro “ A Geração Romântica” , o recurso acústicomuito utilizado pelos compositores românticos, de colocar a nota da melodia repetidano baixo, enriquecendo a ressonância da melodia de maneira sutil. Mas a forma como osenhor utiliza este recurso é diferente.

AP: Porque é um uníssono “enviesado”; Se você pega, por exemplo, os 15 Flashes Sonoros deJerusalém, a penúltima peça Bethânia- El Azarieh e a Mesquita De El- Aqsa, eu utilizo essemesmo processo; os árabes ficam lá em cima no minarete, na nave das mesquitas cantando um

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canto “mal” cantado, e aqueles edifícios de Jerusalém têm ecos. Esse eco repete um cânone,muito perto, com a própria voz do árabe. E para reproduzir este efeito de cânone acústico nopiano e o desafinado próprio destes cantos religiosos, o compositor tem que ter muita experiência.Imagine as procissões das cidades do interior do Brasil, onde as pessoas cantam uma melodiade igreja desafinando e desencontrando umas das outras, reproduzindo um cluster e formandoum fluxo defasado com a bandinha que toca mais afinada, criando uma coisa de Charles Ives, eque as pessoas não se dão conta de que aquilo é altamente vanguardista. O compositor paracaptar este “errado” e reproduzir no piano, precisa de uma técnica abismal de composição. Vocêtem que captar o anasalado de uma tradição folclórica, o errado de uma procissão; a pessoa nãovai cantar afinado e nem impostado, mas, sim, com desafinados e com melismas. O compositortem que saber “sujar” a escrita para alcançar estes efeitos.

Você deve ter reparado no Noites de Tóquio uma coisa, um cluster no grave, vira e mexe temuma pontuação; é o tantam, é o gongo. Aquela escala japonesa deve soar desafinada, porqueo koto não tem a afinação temperada, e para eu imitar este desafinado tenho que “sujar” paradar o eco. Então tudo é timbre. Os Poesilúdios são uma obra em que você se diverte com otimbre o tempo todo. A guitarra elétrica é aquele piano que o roqueiro toca de pé e mal tocado,não é o piano de Chopin; é o piano batido que você fez muito bem, muito bem mesmo. Pareciamil guitarras elétricas. Roberto de Carvalho com a Rita Lee, ficou muito interessante! Já oNoites de Tóquio é um cromo, é uma seda; uma pintura japonesa, tudo é meia tinta, é delicadocomo a pintura e a porcelana japonesa. Noites de Madagascar são “nuvens”; é uma coisa meioabstrata. Noites de Amsterdan é erótico, lembra as harmonias wagnerianas.

JC: Algumas pessoas que me ouviram tocar Noites de Amsterdan lembraram-se deScriabin.

AP: Sim, Scriabin, Wagner, Strauss. Tem que tocar de maneira passional, cafona até. ÉHollywood. Noites de Amsterdan é Hollywood. É o único de todos os Poesilúdios que é erótico.Agora você sabe que erotismo é uma coisa muito pessoal para cada um. Tem gente que tem oerotismo porque vê a mão, outros porque vêem o pé, outro que vê o olho; então o objeto deerotismo é pessoal, mas o arrebatamento não. É cinema.

JC: A expressão “ Nuvens que passam...” poderia ser considerada um sub-titulo do Noitesde Madagascar ?

AP: É. Este Poesilúdio foi inspirado em um cartão de Madagascar que recebi. Depois eu tinhavisto um filme na televisão em que apareciam aquelas flores estranhas, aparecia um lagarto dequatro a cinco metros, tinha marimbondos, era um lugar muito bizarro. É como a Austrália; temanimais que só tem lá, como serpentes estranhas... Você imagina o seguinte: quando falo emNoites de Madagascar, geralmente é uma noite de inverno; geralmente nuvem você vê de dia,branca, formando figuras, parece um patinho, um gato. Não! É noite: estrelas, uma enorme luacheia, mas as nuvens estão cobrindo a lua. Aí aparece a lua inteira!. . . “pá”. . . e as nuvens acobrem. O acorde que aparece em forte no penúltimo compasso seria um aparecimento súbitoda lua, que em seguida é encoberto com o acorde em pianíssimo; novamente as nuvens.

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JC: O senhor comenta com a Adriana Lopes que quando compôs os Poesilúdios já oshavia “ preparado” em todas as suas obras.

AP: Ah, sim! Tem coisas ligadas a outras obras. Tem traços de Cartas Celestes, de Savanas, deIlhas; mas eles são únicos, porque eles tiveram momentos descritivos; nada a ver com os toquesda minha música anterior, nem posterior. Em Noites do Deserto, sim. Ele será a matriz dos Flashesde Jerusalém; tem muita coisa árabe. O rock não, não tem outro exemplo de rock, ele veio sozinho.

JC: A respeito do Poesilúdio nº 2, a melodia da parte central lembra o tema do Prelúdioe Fuga em Si b menor, volume I do Cravo Bem-Temperado de Bach. Isto foi proposital?

AP: Não, eu não havia pensado nisso, mas agora que você falou, vejo que é parecido e tem omesmo espírito.

JC: Adriana Lopes comenta com o senhor, na entrevista, sobre o efeito visual em Noitesdo Centro da Terra.

AP: Sim. Este é o último. E que vai ficando cada vez mais com menos notas.

JC: Devo dizer que encontrei dificuldades na “ encenação” desta peça e sugiro em minhadissertação que o pianista se filme tocando, porque a parte visual realmente é muitoimportante. Cheguei à conclusão que ele tem que ser tocado de cor, porque o mínimogesto da cabeça para olhar para a partitura já quebraria o clima.

AP: Ah, é! Se você se mexer muito, quebra a atmosfera enigmática, zen do Poesilúdio. Tantoque ele não é um Poesilúdio para ser tocado na rádio, a não ser que você toque o ciclo inteiro.Mas, se você coloca, por exemplo, no programa o número um e o último, dá a impressão deque a rádio está fora do ar, porque dá um enorme silêncio.

JC: É interessante a sensação de meditação que ele causa no intérprete, pois quandoacabo de tocar tenho a impressão de que estou completamente interiorizada, concentrada.

AP: Quando eu fiz esse Poesilúdio eu fazia psicanálise com um psicanalista lacaniano, que é umalinha muito austera, que mexe muito com o silêncio. O médico que trabalha com a terapia Lacaniana,de repente fica na sua frente e não diz nada; e vai dando uma aflição. Quando você pergunta: o queo senhor acha? Ele vai te “empurrando contra a parede”. Ou você grita, ou você dá um tapa nele, setem essa vontade; ou não volta mais. É uma reação violenta que isso provoca. Esse Poesilúdio[Noites do Centro da Terra] é isso, é dedicado ao médico com o qual eu fazia este trabalho.

JC: Então eu posso provocar uma reação violenta do público?

AP: Pode. Ele é a anti-construção de uma peça musical. Ele está despojando, ele vai sedesinteressando, vai esvaziando a harmonia, não tem tese, fica no ar, é como se tivesse umamúsica tonal que acabasse suspensa. Se você tem uma música tonal sem a tônica, você ficamal, tem que chegar em casa e tocá-la, senão você não dorme

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JC: Na minha opinião, de todos os Poesilúdios, sem dúvida este é o mais difícil de estudar,porque é muito árido.

AP: Aí você me pergunta por que termino a coleção com ele; Eu digo que na hora terminouassim, não fui eu que a prendi. Haveria os de número 17, 18, 19, mas eu acabei não compondomais. Eu não consegui compor mais, tinha acabado, com o silêncio, e aí? O que é que vocêpode fazer depois do número16? Mais nada.

JC: Eu gostaria de saber a sua opinião pessoal a respeito do emprego do pedal empassagens onde é possível utilizá-lo de duas ou mais formas diferentes, como porexemplo, a introdução do Noites do Deserto .

AP: A minha opinião é que não pode ficar sem pedal nesta introdução, mas que é perfeitamentepossível eu gostar de mais de uma maneira. Quando eu o toco, é tão meu, que eu não possodizer “põe pedal, porque é assim”. Você tem que encontrar a sua ressonância.

JC: Em minha dissertação eu comento sobre os contrastes de atmosfera entre umPoesilúdio e outro, reforçando a idéia de que eles devem ser tocados na seqüênciacorreta. O que o senhor acha?

AP: Sim, é uma seqüência de microcosmos, e acho que o ideal é tocar os 16, assim fica umuniverso inteiro.

JC: É interessante o fato de o senhor ter encadeado o Noites de Solesmes, Noites deIansã e Noites do Deserto, respectivamente os Poesilúdios 11, 12 e 13 por eles conteremsímbolos religiosos. Foi proposital?

AP: Acho que não, acho que foi espontâneo. As religiões são diferentes; uma tem uma místicapagã, e outra uma mística católica e outra muçulmana. Para o ponto de vista musical, notebem, o canto do candomblé é tão místico quanto o canto gregoriano. Em Noites de Solesmestambém tem o eco como em Noites do Deserto, mas o tratamento dado a esse efeito é diferentenos dois. O canto árabe tem um tipo de vocalize, de trêmulo desafinado; tem que “sujar” aressonância. Já no gregoriano não existe trêmulo; é diatônico e as ressonâncias são modais.Eu adoro essa música. E está perfeita a maneira como você toca. Você entendeu as ressonânciasmuito bem.

JC: Por ser um compositor essencialmente tímbrico, considero muito importante buscarinspiração nas descrições extra-musicais. Para interpretar suas obras. O que o Sr. Achadisso?

AP: Sim, temos que buscar estas coisas, explorar estes símbolos, senão não há vida na música.Ela é morta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSIS, Ana Cláudia de. O Timbre de Ilhas e Savanas de Almeida Prado. Uma Contribuição às Práticas

Interpretativas. Rio de Janeiro, 1997. 179 f. Dissertação (Mestrado em Técnicas Interpretativas da MúsicaBrasileira, Centro de Letras e Artes, UNIRIO).

GROSSO, Hideraldo. Os Prelúdios para Piano de Almeida Prado: Fundamentos para Uma Interpretação. 1997.247f.Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PortoAlegre.

MOREIRA, Adriana Lopes da Cunha. A Poética nos 16 Poesilúdios para Piano de Almeida Prado: Análise Musical.Campinas, 2002. 411f. Dissertação (Mestrado em Música, UNICAMP).

ROCHA, Junia Canton. Decisões Técnico-Musicais e Interpretativas no Segundo Caderno de Poesilúdios ParaPiano de Almeida Prado. Belo Horizonte, 2004. 125f. Dissertação (Mestrado em Performance Musical, UFMG)

ROSEN, Charles. A Geração Romântica. Trad. Eduardo Seincman. São Paulo. EDUSP, 2000. 946p.

Júnia Canton Rocha é Bacharel em piano pela Escola de Música da UFMG, Especialista emTécnicas Interpretativas da Música Brasileira pela ESMU da Universidade Estadual de MinasGerais e Mestre em Performance pela Escola de Música da UFMG. Como recitalista já seapresentou nos estados de SP, RJ, PA, SC, MS, ES e MG. É detentora de nove premiações emconcursos nacionais de piano. Atualmente é professora de piano da ESMU / UEMG, onde temrealizado trabalho didático com seus alunos, que se destacam pela conquista de cinqüenta ecinco premiações em concursos nacionais de piano.

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