Música tradicional açoriana

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Biblioteca Breve SRIE MSICA

MSICA TRADICIONAL AORIANA A QUESTO HISTRICA

COMISSO CONSULTIVA

JACINTO DO PRADO COELHO Prof. da Universidade de Lisboa

JOO DE FREITAS BRANCO

Historiador e crtico musical

JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

JOS BLANC DE PORTUGAL

Escritor e Cientista

DIRECTOR DA PUBLICAO

LVARO SALEMA

J. M. BETTENCOURT DA CMARA

Msica Tradicional Aoriana A Questo Histrica

MINISTRIO DA EDUCAO E CINCIA

Ttulo Msica Tradicional Aoriana Biblioteca Breve / Volume 56 1. edio 1980 Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao e Cincia Inst i tuto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases Tiragem 4 500 exemplares ____________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal ____________________________________ Composto e impresso nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova - Amadora Portugal Novembro de 1980

N D I C E

Pg.

I Da situao da etnologia aoriana ao assunto deste trabalho

1 Os estudos etnomusicolgicos nos Aores .......................8 2 A dimenso histrica da msica tradicional ................... 13

II O ponto de partida histrico e metodolgico 1 Heterogeneidade do povoamento aoriano.................... 16 2 Meios para o estudo das origens da msica

tradicional aoriana ................................................................ 19 III Uma forma antiga: o romance

1 A descoberta do romance: da palavra msica............. 25 2 O romance popular e a expanso ibrica no

mundo........................................................................................ 29 3 Um espcime recolhido nos aores................................... 34

IV Formas recentes

1 A Chamarrita .......................................................................... 40 2 Outras formas msico-coreogrficas comuns a

todo o Arquiplago ................................................................ 51 3 Concluses de ordem histrica .......................................... 65

Bibliografia.................................................................. 106

Ao Srgio, Ana e Madalena, meus sobrinhos, crianas das Ilhas.

Ano Internacional da Criana

Este pequeno trabalho devido tambm aos amigos que, nos Aores ou em Lisboa, de modo diverso, me ajudaram na sua preparao. Em S. Miguel, o prof. Afonso Quental (Maia), o sr. Joo Octvio Lima e seu filho, sr. Horrio Lima (Lagoa); na Terceira, o dr. Antnio das Neves Leal (Angra do Herosmo) e, de S. Jorge, Jos Isidro de Morais. Em Lisboa, Santiago Kastner acompanhou atentamente a sua redaco. Agradeo igualmente ao prof. Artur Santos as informaes que me proporcionou sobre a sua prospeco etnomusical nas ilhas Terceira, S. Miguel e Santa Maria e nas Beiras.

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I / DA SITUAO DA ETNOLOGIA AORIANA AO ASSUNTO

DESTE TRABALHO

1 OS ESTUDOS ETNOMUSICOLGICOS NOS AORES

A especificidade da situao geogrfica dos Aores tem sido tomada como premissa para concluses nos mais diversos domnios. No caso da etnografia, as condies de isolamento determinadas por tal situao e outros aspectos de natureza diversa, deram ao Arquiplago, nas concepes de muita gente, o estatuto de paraso para etngrafos, onde os arcasmos persistem com denodo nos laos sociais, nas tcnicas que garantem a sobrevivncia e nas mentes dos que, nas Ilhas, nascem e morrem murados pela fronteira mar-cu.

Esse estatuto, tanta vez referido por estrangeiros e portugueses das Ilhas ou do Continente, no levou, todavia, s consequncias prticas que naturalmente teria em condies que no aquelas de que o nosso Pas ainda no saiu. A etnografia aoriana no teve melhor sorte que a etnografia continental. Clamar pelo carcter insuficiente do que j foi feito, apesar da valorosa persistncia de alguns, de tal modo prtica corrente dos que matria

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do o melhor do seu esforo e talento que, aos olhos do pblico, os mesmos j ganharam, pelo menos, algo de comum queles que mendigam: o vcio da lamria. Mas vale a pena, com certeza, continuar a fazer ouvir o maior nmero possvel de vozes, at que um dia Se, acaso, for tempo ainda!

Tambm nos Aores, a etnografia questo de urgncia. O levantamento etnogrfico das Ilhas uma das suas necessidades prementes: cada dia que finda significa o desaparecimento de documentos imprescindveis para o estudo da cultura popular nestas paragens.

Neste panorama, a recolha e o estudo da msica tradicional no constitui excepo. Deve dizer-se, sem riscos de exagero pessimista, que j muito tesouro inestimvel se perdeu, nem restando o testemunho indirecto que, s vezes, fica a confirmar a existncia de um valor passado. No domnio da etnomusicologia, o que at hoje foi realizado ainda de volume consideravelmente menor do que noutros campos da cultura popular aoreana. Pelo menos ao nvel da anlise, do estudo monogrfico ou de sntese, as carncias no necessitam de ser comprovadas.

Ao curioso e erudito locais no estimularam os horizontes fechados da regio, ressentindo-se os mesmos da ausncia duma formao especfica, mal de quase todos ns que, em Portugal, vimos escrevendo sobre msica tradicional. Ao colector e estudioso forasteiro, no dominando convenientemente a lngua no caso de algum estrangeiro que daqui arrastou para arquivos universitrios alheios os traos vivos da nossa cultura, faltou o conhecimento profundo das condies prprias das Ilhas e, em parte, os meios de aceder ao significado autntico dos elementos culturais que recolheu.

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Aqui, as excepes honrosas, pois que existem, vm confirmar a regra. Uma, por fora da justia, necessrio salientar. A prospeco de Artur Santos nas trs ilhas da Terceira, S. Miguel e Santa Maria, de 1952 a 1960, prospeco cujo financiamento a Junta Geral do ento Distrito Autnomo de Angra do Herosmo e o Instituto Cultural de Ponta Delgada em boa hora resolveram empreender, e da qual resultou o envio de vrias sries de discos para importantes instituies culturais e particularmente de investigao etnomusicolgica em todo o mundo, exemplo do que de mais correcto se pode fazer a nvel da recolha e publicao de msica popular. Tivesse a sua aco prosseguido nas outras seis ilhas do Arquiplago e poderamos, decerto, dispor hoje de um levantamento etnomusical dos Aores efectivamente representativo.

A responsabilidade dos organismos regionais e centrais nesta matria seguramente grande. Do mbito das suas iniciativas deveria constar o apoio formao de especialistas que, constitudos em equipas, lanassem mos ao levantamento etnogrfico geral dos Aores, o que, para muitos domnios da cultura popular nas Ilhas, , sem dvida, j muito tarde. Porque a sociedade aoriana entrou recentemente num processo de transformaes tais que relegaram para museus e instituies congneres grande parte das manifestaes culturais que nos habitumos a considerar de interesse etnolgico.

No nos referimos propriamente s incidncias no Arquiplago dos acontecimentos verificados no nosso Pas a partir de Abril de 1974, acontecimentos esses que muito contriburam para acentuar as ditas transformaes. Temos em mente, sim, uma srie de factores que, um pouco antes, determinaram o esboroar

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progressivo da sociedade tradicional que /era a sociedade aoriana. No os podendo estudar em si e ao impacto que tm na vida social e no produto desta que a cultura, a sua referncia, pelo menos, necessria para a compreenso das actuais condies de subsistncia da msica tradicional aoreana.

Podemos consider-los de duas ordens: os que so mais ou menos especficos dos Aores e aqueles em que as ilhas se revelam subsidirias das transformaes gerais por que esto passando, em maior ou menor grau, as sociedades actuais. Dentro do primeiro grupo, h que incluir a emigrao que, a partir das ltimas dcadas do sculo XIX, levou parte da populao aoriana a procurar nos Estados Unidos da Amrica, Bermudas, Venezuela e, mais recentemente no Canad, as condies de vida que a permanncia em solo ptrio lhe negava. Quanto ao segundo grupo, consideramos igualmente imprescidvel referir o advento e divulgao nos Aores dos grandes meios de comunicao modernos, primeiro a rdio e, s recentemente (1975), a televiso.

A msica popular aoriana expresso e em parte produto esttico do sistema social e ideolgico vigente nas ilhas anteriormente incidncia de um conjunto de factores entre os quais pontificam estes que acabmos de enunciar. Mesmo pessoas no muito idosas assistiram na sua infncia aos primeiros sinais de inanio desse sistema, em que elementos culturais como a msica, de que aqui focaremos determinado aspecto, eram ainda fenmenos vivos com significado existencial para aqueles que nele intervinham. Actualmente, essa mesma msica o povo aoriano quase a no pratica ou, quando a faz, motivam-no razes que no so as mesmas de alguns anos atrs.

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O problema no s de l. Um pouco por toda a parte, as diminutas medidas de preservao e estmulo ao chamado folclore resultaram numa visvel sensao de mal-estar. Ouvir o Pezinho da Vila ou o Balho Furado por determinado rancho folclrico no exactamente o mesmo que escut-lo ou, melhor, dan-lo numa aldeia de S. Miguel pelas domingas do Esprito Santo, como h duas dcadas ainda se fazia. A arte, a msica popular tambm, s assim se pode adequadamente compreender: reconduzida, viva, vivida, ao meio social que a produz.

E aqui vemos a etnologia que d mo histria, sua irm. A antropologia cultural tambm parte, e cada vez mais, de material que j histrico, porque, mesmo quando persistindo no presente, sempre como resto do passado que ele chega, fragmentado, at ns.

Ao estudar a msica tradicional dos Aores, lidamos, efectivamente, com algo de perdido, no apenas porque elementos imprescindveis sua compreenso completa so, alguns, irrecuperveis, mas, acima de tudo, porque o contexto a sociedade, e portanto a economia, as estruturas mentais, as formas de vida quotidiana em que surge e ganha os sentidos que a explicam, um sistema realmente morto ou, pelo menos, em irremedivel desagregao.

No somos apenas aqueles que nos interessamos pelo estudo das formas socio-culturais arcaicas a ter e a exprimir conscincia deste facto. Sabe-o o prprio povo aoriano e constantemente o manifesta, principalmente os seus elementos mais idosos, comparando quotidianamente os tempos em que se criaram com os dias da sua velhice, ou quando os abordamos em busca

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de testemunhos dessas formas de vida antiga, para utilizarmos a expresso de Leite de Atade.

No fazemos coro com as jeremiadas dos que choram o passado porque, interesseiramente, gostariam de o perpetuar; salientamos a importncia de que para ns se deve revestir o seu conhecimento rigoroso e, na medida do possvel, a salvaguarda dos seus valores.

2 A DIMENSO HISTRICA DA MSICA TRADICIONAL

O que acabamos de afirmar acerca das relaes ntimas

da etnologia com a histria leva-nos segunda parte desta introduo em que, de certo modo, pretendemos justificar o assunto que, brevemente, nos ocupar.

Um dos domnios da etnologia aoriana onde mais frequentemente se tem cado em conjecturas fantasiosas o da dimenso histrica da cultura popular nos Aores. Com facilidade, os autores que sobre folclore tm escrito se apressam a afirmar o carcter arcaico deste costume, desta dana ou deste espcime. No se precisam, habitualmente, as dimenses desse arcasmo, mas em grande parte dos casos a prpria altura do povoamento dos Aores que se invoca quase como ponto de partida mgico em que tudo teria comeado. Esquece-se, muita vez, que, apesar das condies de grande isolamento em que subsistiram as ilhas, e apesar de a sociedade aoriana manter ainda hoje um cunho francamente tradicional, alteraes e inovaes se deram ao longo da sua histria, seja por transformao das condies internas seja por introduo de elementos culturais vindos do exterior.

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Se bem que o terreno que pisamos seja ainda praticamente terra de ningum, achamos que os poucos conhecimentos de que dispomos e um saudvel exerccio das nossas capacidades crticas nos permitem avanar algumas concluses, estabelecer distines importantes e, assim, evitar erros, abalar convices que desnecessariamente perduram.

Justifica-se por si prprio o interesse em estudarmos o problema histrico da msica tradicional aoriana. Contudo, a experincia pode, agora num plano mais geral, revelar-se estimulante, dado que menos habitual vermos os etnlogos debruados sobre a dimenso temporal da cultura popular. Nada existe fora da histria. No podemos, por mais que isso custe a determinadas naturezas, omitir o estudo da dimenso diacrnica das culturas. E , sem dvida, cultura popular que, de entre todas, nos temos revelado menos propensos a fazer a histria.

No diremos que os especialistas ignoram estas questes. Mas tendo as mesmas sido, por eles, menos consideradas, no admira que aos olhos dos no especialistas a cultura popular ainda surja, estranhamente, sem histria: como as essncias puras, no se lhe conhece origem nem evoluo, no tem destino histrico.

Este livrinho quer ser uma contribuio para que esta questo seja trazida para a zona luminosa que merece. No se trata duma explorao sistemtica do assunto: a dimenso histrica da msica popular aoriana. As dimenses impostas pela coleco em que se insere este trabalho, assim como o estado actual da investigao no se compadeceriam de tal pretenso.

Assim, sendo impossvel o exaustivo, imps-se a preocupao pelo representativo quanto aos espcimes

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analisados. Procurou-se tambm a linguagem prudente que salvaguarda no s a complexidade das questes mas tambm o carcter bravio da terra que nos atrevemos a pisar.

Cremos natural que, posto tudo isto, predominem aqui as perguntas sobre as respostas. No por uma dependncia inconsciente de quem por estas linhas responsvel, relativamente moda intelectual (tambm as h!) de s respostas preferir, por sistema, as perguntas. Antes porque, sobre esta matria, so, de facto, as perguntas em maior nmero do que as respostas. E porque, se perguntas existem, h que existir tambm a coragem de as trazer, todas, ao reino da palavra, mesmo que palavra fatalmente interrogativa. A cincia isso: o homem, dipo resolvido face da esfinge, em luta contra todas as perguntas.

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II / O PONTO DE PARTIDA HISTRICO E METODOLGICO

1 HETEROGENEIDADE NO POVOAMENTO AORIANO

Um dos traos mais salientes do povoamento quatrocentista aoriano , sem dvida, a sua heterogeneidade. A uma maioria de povoadores portugueses vieram juntar-se, segundo as notcias de que dispomos, outros grupos em que se destaca um conjunto assaz numeroso de flamengos que se fixaram nalgumas ilhas, particularmente do Grupo Central.

Que houve uma certa diversificao do povoamento dos Aores relativamente a diferentes zonas de Portugal continental concluso para que apontam as fontes historiogrficas e certos dados fornecidos pela etnografia.

Assim, a m de brao que, segundo Orlando Ribeiro, hoje se encontra s no Algarve e que vinha citada nas cartas de capitania como objecto isento do monoplio dos moinhos, engenhos e atafonas do senhor capito ainda utilizada actualmente na ilha de S. Miguel, com o nome de moinho de mo. Segundo o mesmo gegrafo, a ilha de Santa Maria uma rplica do Algarve. Nas

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casas, tanto na aparncia exterior como na disposio interior, no arranjo dos campos, no aspecto das povoaes. A seguir vem S. Miguel. Em S. Miguel encontram-se ainda muitos traos do Sul, mas encontram-se de preferncia traos do centro. O aspecto da povoaes recorda a Estremadura Nas restantes ilhas dos Aores, que se sabe terem sido ocupadas em poca mais tardia, uma paisagem do Norte de Portugal, do Minho, das montanhas da Beira, que foi quase integralmente transposta para a (Aspectos e Problemas da Expanso Portuguesa, p. 23-24).

Quanto aos demais grupos tnicos representados no povoamento das ilhas, h uma circunstncia particular que pelas dimenses das suas consequncias devemos salientar. Transcrevemos parte das notas que, no chamado Globo de Nuremberga, de Martim Behaim, se referem aos Aores (Velho Arruda, Coleco de Documentos, p. 12): As ilhas dos Aores foram habitadas em 1466 quando El-Rei de Portugal as do, depois de muitas instancias Duqueza de Burgonha, sua Irm, por nome Izabel. Havia ento em Flandres huma grande guerra, acompanhada de huma extrema fome; e a Duqueza mandou para estas Ilhas grande quantidade de homens e mulheres de todos os ofcios, e igualmente Sacerdotes, e tudo o mais que pertence ao Culto religioso; tambm mandou varios navios carregados de mveis, e o necessrio para a cultura das terras, e edificao das casas, e lhes fez durante dois anos tudo aquilo de que podio ter necessidade para subsistir, a fim de que pelo tempo adiante, em todas as Missas, cada huma pessoa rezasse por ella huma Ave Maria, e subiam estas a duas mil; de sorte que, com aquelles que ali passaro e nascero depois, formaro alguns milhares. Em 1490 havia ainda

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alguns milheiros de pessoas, tanto Alemans como Flamengas, que ali tinham vindo com o nobre Cavalheiro Job de Huerter, senhor de Moerkirchen em Flandres, meu caro Sogro, a quem estas ilhas foro dadas para elle e seus descendentes, pela dita Duqueza de Burgonha. Cresce nelas o aucar de Portugal: os fructos amadurecem duas vezes por anno, porque no ha Inverno; e todos os viveres so baratos, de sorte que muita gente poderia l achar a subsistencia.

O senhor de Moerkirchen na Flandres, Jobsten von Hrtter, tornou-se capito donatrio do Pico e do Faial e os flamengos, que Leite dAthade calcula em dois mil, transformaram-se at fins do sculo XV, numa importante colnia que depois se foi estendendo pelas outras ilhas do arquiplago (Leite dAthade, Notas sobre Arte, p. 9).

Alm de portugueses, flamengos e alemes, outros pases e culturas castelhanos, franceses (?), norte-africanos, escravos negros devem ter participado no povoamento da terra aoriana, de modo menos representativo e, consequentemente, com menos peso na feio cultural que assumiriam as formas de vida nas ilhas. Desta complexa situao, algumas concluses bvias se devem explicitar pela importncia evidente que tm para o nosso tema.

Os grupos de povoadores que se estabeleceram nas ilhas atlnticas trouxeram consigo do pas de origem para uma terra ainda pertena exclusiva da natureza as suas formas de cultura prprias. Assistiu-se seguidamente a um processo de trocas culturais, processo esse talvez mais rpido que o outro, tambm verificado, de progressiva transformao das populaes aorianas, at atingirmos a

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actual situao do arquiplago em matria de antropologia fsica.

Ser possvel destacar, no todo que hoje a cultura popular aoriana, elementos representativos das diversas culturas que contriburam para a sua formao? Tal j tem sido realmente tentado em diversos domnios, desde o vesturio quele que aqui nos interessa, a msica; contudo, a fundamentao, quando apresentada, o que nem sempre acontece, parece, regra geral, insuficiente.

2 MEIOS PARA O ESTUDO DAS ORIGEM DA MSICA TRADICIONAL AORIANA

Particularizando no tema que nos ocupa, perguntamo-

nos quais tero sido as formas de expresso musical originais (relativamente terra a que chegaram) de que foram portadores esses primeiros habitantes e que durante algum tempo decerto reproduziram sem alteraes significativas? De que elementos instrumentos, formas, sistemas constava essa bagagem musical que com eles desembarcou nas ilhas?

No so decerto as mesmas que hoje constituem o conjunto de espcimes de que o etnomusiclogo dispe (deveria dispor!) para estudar a msica tradicional aoriana. Por outras palavras, a msica que nas ilhas era praticada nos tempos imediatamente subsequentes ao povoamento no , evidentemente, a mesma que hoje entendemos como a msica tradicional aoriana. O prprio conceito de msica tradicional no indiferentemente aplicvel a situaes histricas to diversas como as de ento e aquelas em que nos situamos ns prprios. (O que , alis, Msica tradicional?

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Msica tradicional ou Msica popular? Como se articula, em cada situao concreta, a realidade assim designada e a estrutura social em que ela se inscreve?) Alm disso, muitos elementos do actual corpo etnomusical aoriano dependem de criao e aquisies posteriores, o que implica que o problema das origens da msica tradicional das ilhas no est circunscrito ao mbito cronolgico do povoamento das mesmas. E, dos espcimes indubitavelmente arcaicos, at que ponto ser lcito pretender que escaparam aco do tempo, conservando at ao presente, em miraculosa integridade, todos os traos da sua forma original?

Mas poderemos ns, apesar de tudo, aceder a um conhecimento, por parcelar que seja, das formas de expresso musicais dos primitivos habitantes do arquiplago?

A existir essa possibilidade, h que considerar dois tipos de meios para a sua concretizao: por um lado, socorremo-nos de toda a informao de ordem histrica susceptvel de nos elucidar sobre o assunto; por outro, e apesar da observao acima feita acerca das alteraes eventualmente provocadas pelo tempo nos espcimes antigos, contar com a anlise desses mesmos espcimes para a indagao da primeira msica praticada pela gente das ilhas.

Quanto ao primeiro desses dois tipos de meios, a fonte originalmente aoriana de que temos que partir , nesta matria como em tantas outras, Gaspar de Frutuoso. Outras, mais prximas dos tempos da descoberta e chegada dos primeiros grupos humanos que se fixaram no arquiplago (cfr. Velho Arruda, Coleco de Documentos Relativos ao Descobrimento e Povoamento dos Aores) no nos oferecem, pelo que verificmos, informaes que

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respeitem explicitamente prtica musical desses mesmos grupos.

As referncias musicais nas Saudades da Terra so abundantes. Relevando muitas delas da formao de letrado humanista que era Gaspar de Frutuoso mais do que da observao e descrio do meio que o cercava, nem todas nos podero socorrer na busca das origens da msica tradicional aoriana. Notcias como as que nos informam da existncia nos Aores, logo nos tempos subsequentes ao povoamento, de instrumentos como o clavicrdio e a viola, vm confirmar (outra coisa no era de esperar!) a insero da primitiva msica aoriana na msica europeia dos fins da Idade Mdia e Renascimento.

Carreiro da Costa, falando genericamente da cultura popular aoriana, confirma: Com efeito, atravs dos materiais que tm sido recolhidos nos Aores, desde Garrett, e atravs do quanto, ainda agora, podemos observar, o folclore com que deparamos neste arquiplago filia-se declaradamente nas tradies populares do continente, muito embora nos apresente muitos elementos que so produto do meio e das condies de vida que aqui se tm verificado (in Livro da Primeira Semana de Estudos dos Aores, 1964).

Daqui importante dependncia a assinalar ao nvel da metodologia: no possvel separar o estudo da msica tradicional nos Aores do da msica tradicional em Portugal Continental. O conhecimento do destino histrico da primeira e inseparvel da investigao sobre a segunda, e se o reverso se no puder afirmar, estamos pelo menos convencidos de que o conhecimento desta muito ficar a lucrar com o sabermos da outra. De qualquer modo, a msica tradicional aoriana parte indissocivel da msica tradicional portuguesa e uma

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questo que sinceramente nos pomos se, dentro da totalidade que esta ltima e mau grado a fora dos fatalismos geogrficos, o seu grau de individualizao ser maior que o da msica de qualquer outra regio do continente. Pense-se, por exemplo, nas diferenas de caractersticas que apresenta a msica alentejana relativamente do noroeste portugus ou a outra bem vizinha, a do Algarve.

Assim, a nossa pretenso de estudarmos a origem da msica tradicional dos Aores leva-nos ao reconhecimento de que essa origem afinal provisria (como todas?!), visto remeter-nos para outra, a investigar tambm.

O segundo tipo de meios acima apontados, ou seja aquele que consiste na utilizao de espcimes provavelmente arcaicos, pressupe sem dvida dispormos desses espcimes. A necessidade de um levantamento etnomusical dos Aores , deste modo, reafirmada. At sua realizao, todas as nossas concluses de natureza mais ou menos geral sobre a msica tradicional nas ilhas so reconhecidamente provisrias.

At que ponto ele ainda possvel? H mais de quatro dcadas, queixava-se R. Gallop dos efeitos nocivos da expanso da rdio na preservao da msica tradicional. Em 1979, que diremos ns ao verificarmos que, entretanto, esse levantamento no se realizou seno de forma fragmentria e portanto insuficiente?

Mesmo que ele j no possa fazer-se com resultados representativos, achamos que, apesar de tudo, h que lutar pela sua realizao, no sentido de salvaguardar de desaparecimento irremedivel aquilo que ainda for possvel salvar.

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No podemos, todavia, para lanar mos ao estudo da msica tradicional aoriana, esperar que nos sejam oferecidas as condies ideais de concretizao do projecto. H que avanar com determinao para tal estudo, partindo, com realismo, daquilo de que actualmente j dispomos, tendo sempre presente os cuidados a ter na formulao de afirmaes, particularmente as mais generalizantes, que sabemos fundadas num conhecimento parcial.

A anlise de espcimes provavelmente arcaicos imprescindvel para o estudo das origens da msica tradicional aoriana. Esta anlise dos espcimes individuais, incidindo sobre os diversos parmetros musicais, ser o caminho para a insero dos mesmos em conjuntos maiores formados por todos os que, revelando caractersticas idnticas, suficientemente se relacionem entre si.

A anlise da estrutura msico-potica dos espcimes , assim, meio imprescindvel para a determinao ou confirmao da poca em que, aproximada e provavelmente os devemos inserir. Como nos captulos seguintes tentaremos fazer. De qualquer modo, o alcance da anlise dos espcimes para a determinao da sua insero histrica limitado: s nos pode, cremos, levar determinao de grandes pocas, como fazemos neste livrinho em que, prudentemente, distinguimos apenas espcimes antigos de espcimes recentes. Pelos primeiros entendemos aqueles que com probabilidade datam dos tempos da colonizao ou a ela so imediatamente subsequentes. Apresentam estes, naturalmente, traos que aos olhos do musiclogo apontam para o sistema modal, enquanto que os segundos, os tais espcimes recentes, exibem contorno

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francamente tonal, por isso apontando para momentos posteriores da evoluo musical do Ocidente.

possvel que mais tarde um estudo vasto e aprofundado do conjunto da msica tradicional dos Aores e simultaneamente, como dissemos, da de Portugal Continental, conjugado com um recurso tanto quanto possvel exaustivo s ditas informaes de natureza no musical, permita um conhecimento mais detalhado da evoluo da msica tradicional aoriana.

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III / UMA FORMA ANTIGA: O ROMANCE

1 A DESCOBERTA DO ROMANCE: DA PALAVRA MSICA

Das vrias formas de literatura tradicional portuguesa, o romance entendido aqui o termo no sentido de texto narrativo do Romanceiro popular foi talvez aquela que mais favores recebeu de investigadores e eruditos a partir do momento em que uns e outros, com o romantismo, passaram a interessar-se pelos valores da cultura popular. No nosso Pas, a aco de Garrett , com justia, citada como a do pioneiro que, nesta matria, abriu caminhos felizmente trilhados depois por sucessores vrios. Os temas e a origem histrica desta forma, vindo ao encontro do interesse dos romnticos por tudo o que fosse medieval, explicam tal sucesso.

Com este interesse ficaram a lucrar os que hoje continuam a preocupar-se com o estudo da literatura popular como tal. O mesmo no se pode dizer do etnomusiclogo que porventura resolvesse debruar-se sobre o estudo do texto musical dos romances, supondo que a curiosidade dos eruditos do sculo XIX

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relativamente a esta forma os teria levado a recolher (sabe-se que Garrett nem sempre se contentou com fixar no papel, tal qual, o que a boca do povo lhe cedia!) no apenas o texto literrio mas a totalidade palavra-msica, no cuidado de preservar a integridade do produto cultural que abordavam. Tal no se verificou, como sabido. Quase todas as colectneas do sculo XIX, desde Garrett (1843) s de Tefilo Braga (1867, 1869), de Hardung (1877) e Leite de Vasconcelos (1886) nos oferecem apenas a parte literria do romance.

Isto mau grado a profunda impresso que em Garrett continuemos a tom-lo como ponto de referncia deixavam as velhas melodias dos romances: De pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos reunamos ns, os pequenos todos da casa, nas longas noites de Inverno, recitar-nos meio cantadas, meio rezadas, estas xcaras e romances populares de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e esforados cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um no sei qu de sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia to profunda impresso e me enlevava os sentidos em tal estado de suavidade melanclica, que ainda hoje me lembram como presentes aquelas horas de gozo inocente, com uma saudade que me d pena e prazer ao mesmo tempo (Prefcio a Adosinda, 1828).

De algumas destas melodias encontramos a primeira fixao conhecida numa edio bilingue de vrios espcimes da literatura popular portuguesa dada a lume em Leipzig no ano de 1864 (Portugiesische Volkslieder and Romanzen Portuguiesische and Deutsch, mit Anmerkungen herausgegeben von Dr.

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Christ. F. Bellermann, Nachgelassenes Manuscript des Herausgebers).

Nas primeiras dcadas do nosso sculo surgem coleces vrias, circunscritas umas a determinadas regies do Pas, outras englobando zonas diversas, coleces que incluem muitas vezes verses diferentes dos textos literrio e musical de alguns dos mais conhecidos romances portugueses. Salientamos as de Pedro Fernandes Toms, Velhas Canes e Romances Populares Portugueses (1913), Francisco Serrano, Romances e Canes Populares da Minha Terra (1921), Fernando Lopes Graa, A Cano Popular Portuguesa (1. ed., 1953) e Lima Carneiro, Cancioneiro de Monte Crdova (1958).

So em menor nmero os registos fonogrficos de romances. Apontamos alguns: Michel Giacometti inclui no disco G. U. OCM5, O Canto do Mundo, Col. Ethnologie Vivante, os romances Conde Ninho, em verso recolhida em Trs-os-Montes e Dona Mariana, recolhida no Algarve; na srie de dez discos Folk Music of Portugal, editada pela B. B. C., Artur Santos publicou os seguintes romances, por ele recolhidos na Beira Baixa e Beira Alta: A Pastorinha e Dom Flores (LP 23757), Quadra de Santa Iria e Dona Silvana (LP 23758); nos Aores, ilha de Santa Maria, o mesmo prospector recolheu o Romance do Cego, Dona Helena e Caa de D. Humberto, inseridos todos na colectnea O Folclore Musical nas Ilhas dos Aores, 2. srie, 12 discos a 45 r. p. m. (ASF/034 a ASF/045).

Evidenciemos o facto de hoje dispormos de uma dupla forma de acesso ao romance: a do etnomusiclogo que o recolhe do povo, onde por via da tradio se manteve vivo, quer dizer, sujeito a transformaes, at aos nossos dias, e a do musiclogo erudito que, baseando-se em fontes escritas, o estuda j como produto de criao bem

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individualizado e no necessariamente annima. No primeiro caso, o romance apresenta-se sob forma mondica, no segundo assume estrutura polifnica.

O estudo das relaes entre ambas as formas, particularmente no que diz respeito msica, ainda est por fazer, ao que sabemos. fcil supor que o romance mondico precede historicamente o romance polifnico, sem desaparecer pelo simples desenvolvimento deste ltimo. Sabe-se tambm que a melodia do romance mondico ter constitudo, em alguns casos, material de que partiram os autores dos romances polifnicos para a composio das suas obras. Cremos que depois da publicao de diversos cancioneiros Cancioneiro Musical do Palcio, primeiro (1890) por Ansejo Barbieri e depois (1947) por Higino Angls; Cancioneiro Musical e Potico da Biblioteca Pblia Hortnsia, por Manuel Joaquim (1940); Cancioneiro Musical da Casa de Medinaceli por Miguel Querol (1949); Cancioneiro Musical dElvas, por Manuel Morais (1979) alm de obras como os Romances e Canes de Manuel Machado, Romances e Letras (Sculo XVII) tambm publicado por Miguel Querol (1956) e conhecido j um nmero porventura suficiente de melodias dos chamados romances populares, esto talvez criadas as condies para que o estudo acima referido possa ser concretizado. Estudo que decerto mostraria como os campos de aco do etnomusiclogo e do musiclogo erudito no so necessariamente estanques.

O aspecto mais relevante do romance popular como forma potica reside na sua natureza essencialmente narrativa. Os temas versados so de cunho lendrio ou histrico (aqui estes dois termos no so antagnicos como na concepo que hoje temos da histria!), ertico,

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militar, religioso O contedo geralmente vazado em versos septisslabos (os espanhis contam mais uma slaba: octosslabos) e em boa parte dos casos inclui a existncia de um refro que, para alm de proporcionar uma certa pausa, cumpre no conjunto uma funo de unificao e pode, de quando em vez, aparecer variado.

Simplicidade, monotonia mesmo, caracterizam os esquemas rtmicos: predomnio da terminao feminina, repetio excessiva de determinadas frmulas verbais, forte tendncia para a monorrmia, rima deficiente ou at inexistente

Dada a natureza narrativa do romance popular, a qual implica um texto de certas dimenses, a menos que parte dele se tenha perdido, a estrutura musical que o serve apresenta caractersticas estrficas. Tal justifica a possibilidade de tomarmos como critrio para a diviso do poema em estncias o retorno da melodia ao seu incio. Estas observaes so tanto aplicveis ao romance mondico como ao romance polifnico.

2 O ROMANCE POPULAR E A EXPANSO IBRICA NO MUNDO

A propsito do Cancioneiro Musical do Palcio, J. Romeu

Figueras afirma: A nossa coleco reflecte com fidelidade o grande favor de que gozou o romance durante a poca dos Reis Catlicos, junto dos prprios soberanos, de toda a corte, dos msicos e poetas cultos e entre o povo. Os romances velhos eram ento recordados e cantados segundo a tradio; estes e os romances artsticos so musicados, alis, pelos melhores compositores do momento, pertencentes s capelas

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palacianas em sua maioria, e os primeiros glosados e imitados por bons poetas. Florescem os romances informativos, entre narrativos e pico-lricos, precisamente quando se extingue este gnero destinado a ser cantado pelo povo; so romances surgidos, na sua maioria, por ocasio das guerras de Granada, compostos por jograis do palcio real ou poetas assalariados que, chegados corte, cumpriam uma dupla funo poltica e social, com fins propagandsticos (La Musica en la Corte de los Reyes Catolicos, IV-1, p. 69).

Um breve desenvolvimento desta citao nos permitir construir uma ideia concisa mas suficiente sobre o romance popular e o seu destino histrico.

Sob as formas que hoje lhe conhecemos, o romance data do sculo XIV. As suas origens remotas so, todavia, anteriores aos primeiros momentos da expanso ibrica para alm dos limites geogrficos da Pennsula. Segundo Menendez Pidal, nas velhas canes de gesta que h que buscar as fontes para os romances velhos, designao usada posteriormente ao sculo XIV para distinguir os romances anteriores a essa poca dos que a partir de ento foram compostos.

Como toda a forma de arte, o romance por um lado produto da circunstncia de um tempo e lugar especficos e por outro cumpre uma funo relativamente a essa circunstncia. Ele reflecte assim uma Espanha que procura atingir ao sul as suas fronteiras modernas e ao mesmo tempo busca, por via martima, outros horizontes para essa expanso. Uma anlise dos temas que ultrapassaria o mbito deste trabalho demonstr-lo-ia, assim como dupla funo poltica e social referida pelo autor acima citado.

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O estudo do romance dos sculos XV e XVI constitui, por outro lado ainda, mais uma das vias atravs das quais nos possvel constatar a unidade cultural que durante muitos sculos nos oferece a Pennsula Ibrica, para alm dos regionalismos mais ou menos acentuados que, neste ou naquele domnio, podemos constatar. Do Bernal Francs, arranjado e inserido por Garrett no seu Romanceiro, diz este autor que originariamente portugus: no aparece em nenhum dos Romanceiros castelhanos. Mais tarde, porm, Menendez Pidal revelou verso espanhola do referido romance. O mesmo se verifica com inmeros outros temas comuns aos romanceiros portugus e castelhano.

Contudo, nem de todos os romances portugueses encontraremos verso castelhana. quase hbito referir o romance de Santa Iria (ver verso literria e musical deste espcime em Fernando Lopes Graa, A Cano Popular Portuguesa, 2. ed., p. 80) como exemplo desta individualizao, pelo menos ao nvel da origem, do romanceiro portugus dentro do romanceiro peninsular.

Na nossa busca de identidades no romanceiro popular no podemos circunscrever-nos aos limites fsicos da Pennsula Ibrica. O j citado Bernal Francs e um outro tema do romanceiro ibrico, a Silvana, tambm glosado por Garrett que o baptizou de Adosinda, encontram-se com designaes diversas em vrios pases da Amrica Latina. De muitos outros romances, originalmente ibricos, surgem nesses pases numerosas e curiosssimas variantes. No Brasil, um estudioso do folclore nacional (cfr. Cmara Cascudo, Dicionrio de Folclore Brasileiro), distingue a partir da temtica, os romances que para aquele pas foram

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levados pelos portugueses dos que ali surgem por criao local.

O veculo da difuso do romance tradicional at paragens to longnquas , evidentemente, o formidvel movimento de expanso martima que, a partir de fins do sculo XIV, empreendido pelas duas naes peninsulares. Com os portugueses e espanhis, impelidos pela circunstncia poltico-social dos dois pases para a aventura do mar que a lenda medieval povoava de monstros, chegaram s terras descobertas simultaneamente o desejo dos valores materiais que se esperava retirar delas e as formas culturais trazidas da terra de origem, incluindo formas potico-musicais populares ou popularizadas como o romance.

Sendo a descoberta e povoamento das ilhas atlnticas uma das primeiras etapas dessa expanso, agora no que respeita a Portugal, era natural que na Madeira e nos Aores os estudiosos do romance encontrassem rico manancial a recolher e estudar. Assim aconteceu de facto. Desde o sculo XIX que os Aores, graas principalmente a Tefilo Braga, foram a seara farta onde os estudiosos do romance popular colheram uma boa parte e do melhor que o nosso romanceiro pode contar.

O mesmo Tefilo Braga explica, sua maneira e de acordo com o estado da investigao na altura: Ao estudar-se o romanceiro das ilhas dos Aores devemos ter em vista: que as tradies cavalheirescas foram para ali levadas nos princpios do sculo XV pelos primeiros descobridores e colonos mandados pelo Infante D. Henrique; que no sculo XV, os romances eram considerados como propriedade do baixo povo, e por isso desprezveis, nfimos lhes chamava o Marqus de Santillana; que at ao presente os povos dos Aores

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viveram quase, por assim dizer, incomunicveis; que o sculo XV o perodo em que na Pennsula se formou a parte mais bela dos romanceiros, que principiou a ser recolhida no Cancionero-General de Hernando del Castillo em 1491 e no Cancionero de Anvers de 1550; finalmente, que o nmero de romances perfeitamente annimos e belos andar pouco mais ou menos por cem. Portanto, os romances aorianos esto em estado de pureza e originalidade tal, que uma grande parte dos costumes jurdicos do tempo das cartas de foral l se encontram, no compreendidos mas ainda lembrados; e a lngua falada nessas pequenas epopeias a do sculo XV, contempornea do Cancioneiro de Resende (Cantos Populares do Arquiplago Aoriano, Introduo).

Os povoadores primitivos trouxeram para as ilhas no apenas um vasto conjunto de espcimes que nas terras donde partiram faziam parte de um autntico patrimnio colectivo, mas tambm a prpria tradio a que ali foi dada continuidade com o aparecimento de romances originalmente aorianos. Conhecem-se exemplares de contedo histrico que narram acontecimentos ocorridos nos Aores logo a seguir ao povoamento, tal como o terramoto que destruiu Vila Franca do Campo em 1522 (cfr. Tefilo Braga, Cantos Populares do Arquiplago Aoriano, p. 335). Alguns revelam no esmero da linguagem autor de erudio, mas outros, pela saborosa ingenuidade da ideia e rudeza espontnea da expresso, acusam a sua autntica raiz popular.

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3 UM ESPCIME RECOLHIDO NOS AORES No Vero de 1970, ouvimos a Humberto Leite

Barbosa, na Lombinha da Maia, aldeia da costa norte da ilha de S. Miguel, o texto de um romance de contedo religioso de que mais tarde fomos encontrar variante nos Cantares Aorianos de Jos Lus de Fraga, variante esta recolhida no outro extremo do arquiplago, em ilha mais determinada que a de S. Miguel pelas condies de isolamento comuns s nove ilhas aorianas: nas Flores. Aqui tivmos a agradvel surpresa de deparar com uma transcrio do suporte musical do romance, o que no conseguimos ns em S. Miguel, onde o escutmos simplesmente recitado.

o seguinte o texto que recolhemos:

Noite escura, noite escura, ao rigor de todo o tempo! L vou esperar uma alma sem receber sacramento. Quando a alma expirou logo foi ver face a Deus. Donde vens aqui, ovelha, ovelha desgarrada? Eu botei-te neste mundo, no me serviste de nada. Eu ensinei-te a benzer, no o soubeste fazer. Ensinei-te a rezar, no me soubeste louvar. Ensinei-te a ir missa, no ias com devoo: entre o clix e a hstia, sempre te achava a dormir. Vai-te agora encaminhando para o caminho do inferno.

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A Virgem se levantou, de joelhos se deitou: meu Filho, meu Filho, pelo leite que mamaste, anda pesar aquela alma que assim se vai perder. minha Me, to bem amada, siga, siga o seu mandado. A Virgem se levantou, de joelhos se deitou. Pelo milagre da Senhora, a balana aliviou. Quem a souber que a diga, quem a ouvir que a aprenda: l no Dia do Juzo vir ordem que o defenda.

Esta verso, mais curta do que a outra j referida (ver

Apndice Musical), est sem dvida truncada de alguns versos, conservando, todavia, o essencial da estrutura narrativa.

Julgamos encontrar-nos perante um romance de provenincia efectivamente popular e para tal estribamos a nossa opinio nas caractersticas de forma e contedo que a seguir salientaremos.

A expresso tosca, irregular, avessa a requintes de linguagem. A anlise do contedo revela, igualmente, a rudeza de pensamento e a concepo mtica do cristianismo que lhe est subjacente. Detemo-nos neste ltimo aspecto.

Quem conhece com alguma profundidade a ideologia dos camponeses aorianos sabe que determinada compreenso do cristianismo ainda, por excelncia, a

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fora estruturante da viso do mundo da gente do Arquiplago. No podemos aqui demonstrar todos os aspectos dessa ideologia e pretend-lo a propsito da anlise de uma pequena amostra da cultura popular seria por demais ousado. Incidiu sobre este romance a nossa escolha por, apesar de tudo, o considerarmos bem representativo da estrutura mental que conserva ainda o campons das ilhas e, assim, um excelente meio para a explicitao de certos traos da mesma.

Os temas do Juzo Individual e do Juzo Final, aliados ao terror da Morte, do fim do Mundo e do Inferno so ainda hoje constantes na expresso verbal quotidiana da gente dos Aores, pelo menos no que respeita populao rural que, como sabido, constitui o grosso da populao do arquiplago. Textos como o do romance que escolhemos correspondem necessidade de criao de garantias de segurana contra a instabilidade psicolgica que esses temas implicam.

Os ltimos quatro versos do romance constituem autntica frmula que encerra no apenas este espcime mas ainda vrios outros que recolhemos, de temtica idntica. O conhecimento e a recitao da orao-romance garantem infalivelmente a salvao, devida por outro lado intercesso da Virgem que no contexto o princpio feminino benfico capaz de fazer face ao princpio masculino do rigor, incarnado no Cristo Justiceiro.

A expresso entre o clix e a hstia tambm a encontramos em vrios outros espcimes por ns recolhidos, alguns dos quais ligados a prticas de carcter mgico: referindo-se a determinada altura da missa, exprime, na concepo popular, o momento concentrador por excelncia das foras mgicas universais.

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No se trata, estamos convencidos, de mera impreciso ou incompreenso teolgicas, antes sim das dimenses e configuraes concretas que, nas mentes insulares, assumem o mito e a magia. H assim que estud-las como formas de pensamento arcaico, prprias das estruturas de tipo comunitrio que fazem a sociedade aoriana.

Quando as procuramos compreender historicamente, devolvendo-as circunstncia da sua gnese, somos irresistivelmente levados a pensar nesses tempos finais da Idade Mdia de modo nenhum, tenha-se presente, desligados dos momentos de descoberta e povoamento das ilhas tempos esses em que a sucesso regular de epidemias, assolando a Europa, originou condies psico-sociais generalizadas de extrema instabilidade pela presena do espectculo da morte na existncia de todos os dias.

nesta poca que devemos inserir o romance analisado, que bem parece ilustrar essa situao histrica?

Percorremos o romanceiro portugus na busca de variantes continentais do espcime recolhido e verificmos efectivamente que, j em 1867, Tefilo Braga tinha fixado este romance segundo verso colhida no Minho (cfr. Romanceiro Geral, p. 129). Cerca de vinte anos depois, Leite de Vasconcelos acrescentava a esta variante outra que indica ser procedente de Braga (cfr. Romanceiro Portugus, 1886, p. 31-32).

Estamos assim, certamente, na presena de um elemento do vasto conjunto de exemplares de que os primitivos povoadores das ilhas foram portadores, conjunto em que se incluem variantes recolhidas nos Aores, como j dissemos, desde o sculo XIX, dos temas mais vulgarizados do romanceiro nacional.

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Podemos tomar o texto musical, cuja fixao se ficou devendo a Jos Lus de Fraga, por mais um apoio resposta afirmativa para que nos inclinamos quanto insero histrica do romance estudado nos finais da Idade Mdia e primrdios da expanso portuguesa no mundo? As caractersticas modais e o contorno da melodia, a dependncia do ritmo musical relativamente ao ritmo da palavra, tudo na estrutura musical nos remete para o cantocho medieval. O transcritor entende-a do mesmo modo: A sua toada uma espcie de salmdia lenta, fnebre, quase dantesca quando assim cantada por uma grande massa de vozes (Cantares Aorianos, p. 13).

Assim, estaremos perante um daqueles raros casos em que as j muito citadas condies de isolamento geogrfico nos tero preservado, no essencial, os traos meldicos originais de um espcime to antigo como deve ser este romance?

No podemos, por um lado, deixar de reafirmar as transformaes que este espcime, ao longo do tempo, no deixou certamente de sofrer antes de chegar at ns com a forma que lhe conhecemos. Por mnimas que sejam e mesmo sem referncias concretas que as confirmem, a hiptese provvel de essas transformaes se terem verificado parece-nos que deve ser mantida.

Por outro lado, com a evidncia ainda maior dos factos que perante os nossos prprios olhos se exibem, a esto as caractersticas internas do espcime analisado: o ondular salmdico da estrutura meldica, a liberdade do ritmo musical fundamentalmente determinado pelo ritmo do texto literrio

Ou podemos (devemos?) antes pr a hiptese ainda no considerada de nos encontrarmos na presena de melodia recente criada nas ilhas para texto pr-existente,

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por influncia do cantocho que o povo aoriano, pelo que sabemos, nunca ouviu frequentemente?

Aqui damos com nova questo, no aflorada ainda neste trabalho: a dos condicionalismos que determinam o povo criador de formas de expresso artstica, particularmente o j velho problema da influncia da msica eclesistica na msica popular. Mesmo que esta influncia, no caso da msica tradicional aoriana, se venha a revelar mais significativa do que neste momento pensamos ter sido, resta muito a fazer no sentido da afirmao ou refutao da antiguidade da estrutura musical que serve o texto literrio do romance aqui analisado.

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IV / FORMAS RECENTES

1 A CHAMARRITA DUAS QUESTES: A ORIGEM E AS TRADIES

Conhecem-se espcimes com a designao de Chamarrita em todas as nove ilhas dos Aores e numa zona bastante circunscrita da ilha da Madeira (Machico, Santa Cruz, Gaula e Camacha). Ao contrrio de outras danas que tambm encontramos no Continente ou temos notcia de no passado terem sido aqui conhecidas, a Chamarrita passa por ser uma dana caracterstica dos Aores, tambm existente na Madeira. Assim, a Grande Enciclopdia Portuguesa Brasileira define-a nos seguintes termos: Dana popular e espcie de fandango bailado, onde se trai uma certa influncia do corte rtmico da valsa.

Desta situao que podemos concluir quanto origem da Chamarrita? Trata-se duma criao originalmente aoriana, explicando-se, neste caso, a existncia de espcimes com a mesma designao na ilha da Madeira por contactos entre aorianos e habitantes da referida zona desta ilha, ou no estaremos antes perante uma dana de origem madeirense que por razes

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desconhecidas se no expandiu no centro difusor e, tendo passado aos Aores, aqui gozou de tal popularidade que rapidamente atingiu todo o Arquiplago?

Inclinamo-nos para a primeira das duas hipteses, sabendo no ser de excluir a priori mesmo uma terceira, que consideraria a Chamarrita de provenincia exterior aos dois arquiplagos. Todavia, e ao contrrio do que se verifica com muitas outras danas populares das ilhas, no dispomos de qualquer informao que aponte para uma origem no aoriana nem madeirense da enigmtica Chamarrita. Como diz Carlos Santos, que do seu livro Trovas e Bailados da Ilha dedicou um captulo Chamarrita da Madeira, esta dana oculta a sua origem sob denso e impenetrvel vu.

A primeira fixao escrita da Chamarrita que conhecemos devemo-la a Adelino Antnio das Neves e Mello (Msicas e Canes Populares Coligidas da Tradio, Cap. IV: Cantigas dos Aores), datando a sua publicao de 1872. So a transcritos os textos literrio e musical de uma Chamarrita Velha e outra Chamarrita Nova.

Cronologicamente, aparecem depois (1895) as transcries de Csar das Neves que, no Cancioneiro de Msicas Populares, n. 313, nos apresenta quatro variantes. Destas, apenas a ltima traz uma indicao de procedncia: Micaelense. A primeira designada simplesmente como Variada, a segunda Velha e a terceira, Nova.

Estas duas ltimas parecem basear-se nas transcries de Adelino das Neves e Mello, alterando Csar das Neves apenas a tonalidade da Chamarrita Velha de D M para Sol M e as notas anacrsicas dos dois exemplares. No caso de ambas as fixaes serem totalmente independentes uma da outra, teremos aqui

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uma prova assaz convincente da fidelidade por parte de ambos os colectores aos modelos vivos que ento eram executados nas ilhas.

Nenhum dos dois autores nos informa sobre o modo como chegaram ao conhecimento dos exemplares que transcrevem. Csar das Neves limita-se a acrescentar a uma colectnea de quadras que serviriam de texto aos quatro exemplares, a seguinte nota pitoresca: Estas danas pertencem aos bailados aorianos. costume, nas ilhas, nas casas onde se esteja a cantar a Chamarrita, no se negar a entrada a qualquer indivduo, mesmo que seja estranho, que pea para assistir ao divertimento.

A figura de Tefilo Braga, aoriano em contacto com aorianos que, como o dr. Joo Teixeira Soares, da ilha de S. Jorge, lhe facultava material etnogrfico insular, ter alguma coisa a ver com a questo? Sabemos das relaes que Csar das Neves mantinha com Tefilo Braga, dele recebendo a ideia de que veio a resultar o Cancioneiro de Msicas Populares.

De qualquer modo, se no conhecemos a metodologia, so para ns mais evidentes as concepes e os objectivos que presidiram compilao que deu origem a essa obra e que no so os mesmos da etnomusicologia contempornea. Sem ser necessrio entrar numa anlise dessas concepes e objectivos, compreendemos o valor assaz relativo dessas transcries.

Apesar disso, achamos que de se lhes manter uma certa importncia. Por duas razes: elas serviram de ponto de partida para outras posteriores (cfr. Jlio Andrade, A Chamarrita, in Boletim do Ncleo Cultural da Horta, vol. I, n. 2, 1957, e, do mesmo autor, Bailhos, Rodas e Cantorias, 1960), e talvez possam, apesar de tudo, fornecer-nos elementos para uma discusso da

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dimenso diacrnica da forma em estudo, visto tratar-se de fixaes que datam das ltimas dcadas do sculo XIX.

De facto, se compararmos estas transcries com as chamarritas que conhecemos ao vivo nas ilhas, espera-nos a desconcertante surpresa de verificarmos que, pelo menos ao nvel da melodia, pouco ou nada tm a ver as primeiras com as segundas. o que somos obrigados a concluir quando cotejamos os exemplares a que Adelino das Neves e Mello e Csar das Neves designam por Chamarrita Velha e Chamarrita Nova com os espcimes homnimos actuais que conhecemos do Pico ou das Flores, ou aquele que chamado Micaelense e que apresenta pouco de comum com a Chamarrita como sabemos que hoje cantada (raramente) em S. Miguel e em Santa Maria.

Ser-nos- lcito, para j, concluir sobre a importncia do estudo das variantes diacrnicas de cada espcime, ou seja, dos resultados das alteraes que, dentro do mesmo espao geogrfico, o tempo introduz na msica tradicional ao lado da necessidade, tambm evidente, do estudo das variantes sincrnicas, quer dizer, daquelas que, no mesmo momento histrico possamos estabelecer para determinado espcime em toda a dimenso geogrfica da sua existncia?

Sabemos que em muitos casos se torna praticamente impossvel distinguir entre as variantes que deveramos considerar de ordem sincrnica daquelas a que chammos diacrnicas. Mas se acaso dispusssemos dos resultados de um levantamento etnomusical dos Aores que datasse de h cem anos e os pudssemos estudar comparativamente com os de outro efectuado mais perto

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de ns, permitimo-nos julgar teoricamente relevantes as concluses a que levaria tal estudo.

ANLISE DAS ESTRUTURAS LITERRIA E MUSICAL

O TEXTO LITERRIO

Relacionado com a origem desconhecida da prpria dana est o nome que a mesma recebeu, Chamarrita, e sobre o qual tambm so poucas as certezas. Todavia, o acordo geral entre aqueles que sobre o assunto tm escrito (Leite de Athade, Carlos Santos) em que a palavra tem origem na aglutinao ou justaposio (consoante a grafia adoptada, Chamarrita ou Chama-Rita) do verbo chamar e do nome Rita. Tal interpretao , alis, confirmada pelo texto de determinada chamarrita de S. Jorge (Loural):

Chama-Rita, Chama-Rosa, venham ambas janela ver uma cara formosa de uma to linda donzela. Chama-Rita, Chama-Rosa, venham ambas ao porto ver um moo to bonito, ver um cravo em boto.

No se justifica, naturalmente, perdermos tempo

volta da questo da existncia ou no existncia histrica da pessoa que ter inspirado o criador do texto. Basta-nos atentar no prottipo de mulher brejeira que nos

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traado pelas conhecidas quadras da Chamarrita de S. Miguel e, com algumas variantes, de certos exemplares doutras ilhas:

A senhora Chamarrita uma santa mulher: d os ossos ao marido, come a carne com quem quer A senhora Chamarrita uma santa mulher: sai de manh para a missa entra noite quando quer. Volta minha Chamarrita, minha Chamarritinha; se no tens a cama feita, vem c, deita-te na minha.

Esta tendncia para a brejeirice, que se fica no entanto

pela sugesto e est na origem da assimilao da palavra chamarrita a msica ordinria (cfr. Alberto Bessa, A Linguagem popular, I: A Gria Portuguesa, p. 79) , a nosso ver, uma das principais tendncias do folclore aoriano. No por isso exclusivo da Chamarrita. Tem uma das suas realizaes paradigmticas nAs Velhas da ilha Terceira e est presente nos textos caractersticos de vrias outras danas aorianas.

No cabe na Chamarrita apenas a aluso brejeira; outras quadras oferecem-nos o lirismo fresco e despretensioso que to bem caracteriza a nossa poesia popular:

Volta minha Chamarrita para o lado do meu peito; no cabe um amor to grande num palcio to estreito.

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Estas quadras, a que imposta a estrutura mtrica da

redondilha maior e de que os versos, de acordo com o texto musical, so repetidos dois a dois, resultam, supe-se, da fixao de improvisaes ocasionais que, ganhando os favores das populaes rurais, se generalizaram. Muitas delas so, alis, comuns a mais do que um balho e conhecidas em vrias ilhas; talvez mesmo no Continente. o caso da seguinte quadra que no Pico escutaremos nalgum Pezinho e em S. Miguel podemos ver introduzida num Balho Furado ou noutra dana ainda:

meu amor nada, nada, meu amor nada, no: nada te trago em meu peito que no te faa quinho.

Trata-se de um fenmeno que , de certo modo, o

inverso daquele que Lopes Graa assinala: Reconhecendo-se embora as numerosas excepes, cremos poder assentar como norma geral que a cano popular portuguesa no fundo e essencialmente do tipo voix-de-ville, isto : melodias a que constantemente se adoptam letras diferentes, novas ou velhas, isto no s no decorrer do tempo, como de regio para regio (A Cano Popular Portuguesa, 2. ed., p. 31). Aqui, o mesmo texto empregue, com ligeiras alteraes, sobre melodias diversas. Permite-o uma identidade mnima verificada nas estruturas musicais a que aplicado, identidade decorrente da estrutura do prprio texto literrio, a eterna redondilha maior.

H, contudo, quadras que so especficas de algumas danas, identificando-as literariamente entre as demais. Assim, a que transcrevemos a seguir prpria da

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Chamarrita do Caracol (Pico, Faial e Flores), por seu contedo literrio estar relacionado semanticamente com o ttulo da dana, justificando-o:

A vida do caracol uma vida penada: anda com a casa s costas onde quer faz a morada

O esquema rmico habitual contenta-se com a rima

consonante, raramente assonante, entre o segundo e quarto versos. Registamos no conjunto de quadras prprias Chamarrita a seguinte que, nesta matria, nos parece excepcional dentro do cancioneiro potico aoriano; o primeiro verso relacionado rimicamente com o segundo e o terceiro com o quarto:

Chamarrita vai e fica como o vinho vai pipa. Chamarrita vai e torna como o vinho vai dorna.

O TEXTO MUSICAL

O aparecimento de espcimes diversos que em todas as ilhas do Arquiplago Aoriano e, j o dissemos, numa zona muito delimitada da ilha da Madeira apresentam a mesma designao, leva-nos a pr o seguinte problema: estamos perante variantes de um nico espcime original, as quais foram surgindo por um processo de difuso e desenvolvimento deste ltimo, processo cujos trmites so agora difceis de reconstituir, ou tratar-se- antes de

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uma forma msico-coreogrfica de realizaes concretas diversas? Cremos que esta ltima maneira de ver que mais adequada se revela situao presente, nem sendo sequer incompatvel com certos aspectos da primeira.

Das ilhas de Santa Maria e S. Miguel, conhecemos um nico e mesmo espcime, de que as duas verses, micaelense e mariense, no se distinguem entre si, a no ser numa ou noutra nota da melodia, conservando-se idnticas as estruturas rtmica e harmnica. Trata-se portanto de simples variantes como as que, alis, encontramos na ilha de maiores dimenses, S. Miguel, duma regio para outra.

J o mesmo no se verifica relativamente Terceira e a outras ilhas dos Grupos Central e Ocidental que tm a sua chamarrita prpria ou o seu grupo de chamarritas: Chamarritas de Cima, de Baixo, do Meio, Chamarrita do Caracol ou Caracolada, Chamarrita Velha e Chamarrita Nova. A ilha das Flores oferece-nos, ao que sabemos, o conjunto mais numeroso de espcimes assim designados, os quais, na estrutura, escapam um pouco descrio tpica que adiante se far do sistema de repetio de cada um dos versos das quadras.

Trata-se, na nossa opinio, de uma forma msico-coreogrfica que apresenta como caracterstica comum, para alm da mesma designao, uma estrutura rtmica ternria que, no caso da Chamarrita da Terceira, inserida no Apndice, executada em andamento menos vivo, justificando-se neste caso a escrita em compasso ternrio simples e no caso das chamarritas de praticamente todas as outras ilhas se aviva num andamento que j poderamos estabelecer em compasso binrio composto (convertendo-se aqui em um tempo o

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que no exemplo referido da Chamarrita da Terceira formara um compasso simples).

Julgamos que originalmente ter a Chamarrita sido executada no andamento moderado em que se revelaria a citada influncia do corte rtmico da valsa, andamento esse que progressivamente foi sendo acelerado por razes que tm a ver com transformaes de gosto nas gentes aorianas. O fenmeno foi, alis, registado por Jos Lus de Fraga (Cantares Aorianos, p. 67), a propsito dos espcimes coreogrficos da ilha de S. Jorge: As suas modas so, regra geral, de ritmo tranquilo, tendente para vagaroso. Tem-se porm, recentemente, observado uma acelerao que no do agrado dos velhos tocadores e cantadores, em alguns povoados do concelho das Velas ().

evidente que no ser pelos vulgarssimos compassos de 6/8 ou 3/4 que a Chamarrita, como afinal tantos outros balhos aorianos, se distinguir das inumerveis danas que, pela Europa fora, utilizam os mesmos compassos. A sua individualidade ter de buscar-se fundamentalmente nas caractersticas de colorido local que lhe so dadas pelo sotaque de cada uma das ilhas, pelos padres estticos que impem determinada colocao e conduo da voz e pelo conjunto instrumental que a acompanha.

Quanto melodia, a anlise revela-nos a simplicidade de estrutura que se manifesta no predomnio dos intervalos de segunda maior ou menor, ou seja numa movimentao por graus conjuntos. Especialmente no incio da frase, a melodia trai a sua forte dependncia harmnica, no aparecimento de troos do harpejo dos acordes que na altura so fornecidos pelo acompanhamento dos instrumentos de corda dedilhada

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(viola da terra e violo, aos quais antigamente se juntava o cavaquinho). Caracterstica assinalada por Rodney Gallop em boa parte da msica popular portuguesa: A maioria dos cantares regionais vazada nos modernos modos maior e menor, estritamente simtrica no desenho e adaptada ao acompanhamento por acordes alternados de tnica e de dominante, apesar de menos obviamente condicionada por eles (Cantares do Povo Portugus, 2. ed., p. 21).

A estrutura da melodia idntica nas diversas chamarritas, o que se explica pela grande dependncia da mesma relativamente ao texto literrio e pelo carcter essencialmente silbico do canto. Oito pequenas unidades meldicas, correspondentes aos quatro versos da quadra que, j referimos, so repetidos dois a dois, agrupam-se em duas grandes seces, cuja fronteira assinalada por uma cadncia perfeita ao fim do segundo verso.

Na primeira dessas pequenas unidades, a harmonia que envolve a melodia progride da tnica para a dominante; na segunda move-se da dominante para a tnica e assim de seguida Nesta simples alternncia periste at cadncia final.

Tal carcter elementarmente tonal acentuado pelo envolvimento harmnico proporcionado pelo acompanhamento, no qual o acorde da dominante aparece habitualmente guarnecido da stima.

Na determinao das tonalidades em que tradicionalmente so executadas as chamarritas pesaram as caractersticas dos instrumentos que lhes fornecem o contexto harmnico. Assim, temos para a Chamarrita micaelense a tonalidade de R M, para a Chamarrita do Caracol (Pico), R m, a Chamarrita de Cima (Faial), L M e a do Meio (tambm do Faial), R M. Uma enumerao

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exaustiva das tonalidades em que so executadas as danas aorianas revelaria um predomnio do modo maior sobre o modo menor.

As designaes de Cima, do Meio ou de Baixo no tm uma conotao geogrfica como talvez se pudesse, primeira vista, entender; referem-se, sim, s zonas do brao da viola da terra que o seu acompanhamento utiliza predominantemente. As mesmas designaes so, como veremos, tambm aplicadas, e com o mesmo significado, a pelo menos outra dana tradicional aoriana: o Pezinho.

2 OUTRAS FORMAS MSICO-COREOGRFICAS COMUNS A TODO O ARQUIPLAGO

O PEZINHO

Com a Chamarrita, o Pezinho e a (o) Sapateia so formas msico-coreogrficas de que encontramos exemplares diferentes em todas as nove ilhas dos Aores. Constituem assim, a nvel da msica, expresso da identidade cultural do Arquiplago e um dos traos caractersticos de primeira ordem que permitem falar-se efectivamente de um corpo etnomusical aoriano. Deste ponto de vista, a Sapateia e a Chamarrita so sem dvida mais representativas do que o Pezinho, uma vez que deste tambm se encontram exemplares, diferentes, em Portugal Continental.

Vimos que uns escrevem a Chamarrita em compasso binrio composto, preferindo outros o ternrio simples. Dissemos ainda que um critrio possvel de orientao da nossa opo poderia ser o andamento mais ou menos vivo da execuo do espcime cuja estrutura musical

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pretendemos fixar no papel. Nesta matria, o Pezinho no ostenta ambiguidades, devendo a sua estrutura rtmica enquadrar-se no compasso binrio simples.

Tal no impede que das Flores nos surjam um Pezinho do Meio (cfr. Jos de Fraga, Cantares Aorianos, p. 43) construdo sobre o texto de uma Chamarrita de Cima da mesma ilha:

Meu corao fecha, fecha, fecha com dois cadeados: numa banda fecha amores, noutra penas e cuidados.

este texto aplicado, no caso do Pezinho referido,

estrutura do compasso binrio simples e, no da Chamarrita, ao binrio composto; o que resulta num duplo tratamento musical do texto, evidenciando capacidades tcnicas que a msica tradicional intuitivamente explora. (Ver no Apndice Musical os n.os 8 e 13, onde os dois espcimes so transcritos na ntegra).

Temos, assim, que as potencialidades rtmicas da estrutura literria so, na Chamarrita, exploradas do seguinte modo:

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No Pezinho:

Note-se que esta dupla utilizao musical do ritmo da

palavra , em ambos os casos, conseguida dentro de completo respeito pelas leis da prosdia. Verifica-se, na Chamarrita como no Pezinho, o natural acordo entre o ritmo literrio e o ritmo musical, coincidindo regularmente as slabas tnicas das palavras com os valores longos da melodia, parte a excepo, de modo nenhum violenta, do tratamento musical dado no Pezinho palavra corao.

Aqui tambm se verifica o fenmeno atrs referido da utilizao da mesma letra sobre textos musicais diferentes. Dado que no Pezinho o texto literrio est algumas vezes organizado em sextilhas, quando na execuo desta dana se empregam letras originalmente constitudas em quadras, so alguns dos versos repetidos de modo a obterem-se os seis versos necessrios estrutura meldica.

Igualmente se verifica com o Pezinho um intercmbio de letras de ilha para ilha, encontrando-se muitas vezes num extremo do Arquiplago estncias que, provavelmente, so originais de ilhas situadas no extremo oposto. o caso da seguinte sextilha utilizada em certo

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Pezinho do Meio das Flores (cfr. Jos Lus de Fraga, obra cit., p. 46) e que conhecemos na ilha de S. Miguel, onde deve ter sido criada antes de se difundir pelo arquiplago fora, como sugere a referncia toponmica do segundo verso:

Minha sogra uma raia, mora na Lomba da Maia, abaixo do Benjamim. A todos chama canalha, antes a boca lhe caia do que mo chame a mim.

Nas Flores ainda, o nmero de espcimes diferentes

com a designao de pezinho parece ser, tal como acontece com a Chamarrita, bastante mais elevado que noutras ilhas do Arquiplago.

Em S. Miguel, o Pezinho gozou de favores idnticos Chamarrita, continuando a ser praticado, em algumas zonas, juntamente com o Balho Furado, mesmo depois de a Chamarrita ter cado em desuso. Se bem que menos profusamente, tambm se conhecem aqui mais do que um exemplar, uns de andamento vivo, outros mais moderados. Entre vrios salientaremos, para fins de anlise, aquele que nos parece mais belo e que, ao que sabemos, conheceu na ilha maior expanso: o Pezinho da Vila (Franca do Campo? Ribeira Grande?)

notvel a pujana desta dana, uma das mais belas dos Aores, pujana que lhe dada pelo carcter fogoso do seu ritmo e pela vivacidade que as gentes da ilha punham habitualmente na sua execuo. Porque, naturalmente, esta impresso depende do nvel tcnico e disposio dos intrpretes a cuja execuo nos seja dado assistir. Conhecemos verses mais frouxas do

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Pezinho da Vila, mas tambm outras singularmente arrebatadoras. Impulsionados pelo ritmo caloroso das violas da terra e pela agilidade vocal dos cantores, se possuidores de bom peito, como ali costuma ouvir-se, os pares desenham uma coreografia plena de alegria e vivacidade. A mera transcrio da melodia e do texto literrio insuficiente para comunicar esta impresso, que s uma execuo ao vivo, dentro do seu prprio contexto geogrfico e social, sem a interveno de motivaes comerciais (ou de outro tipo), nos pode eficazmente transmitir.

As estncias mais conhecidas do texto literrio compendiam, por vezes cada uma delas, o tal pendor aoriano para a mordacidade ou humor ingnuo por um lado e expanso lrica por outro.

Namorei uma criada que tinha hora marcada debaixo duma varanda. Nas costas tinha um repolho ela era torta dum olho via mal da outra banda. Fica aqui, d-me o pezinho, devagar, devagarinho, aqui na ponta do p. Peixinhos beira da gua, ai meu amor, nadando contra a mar Eu fui at Vila Franca escanchado numa tranca, morte duma galinha. O que ela tinha no papo: sete arrobas de tabaco prs soldados da marinha.

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Fica aqui, d-me o pezinho, devagar, devagarinho, se vai Ribeira Grande. Eu tenho uma carta escrita para ti cara bonita, no tenho por quem a mande.

No texto literrio de todos os espcimes designados

por Pezinho, das ilhas ou do continente, a referncia ao membro locomotor humano, com papel particularmente importante na movimentao coreogrfica, funciona como ideia aglutinadora, por entre a amlgama das mais desencontradas sugestes para que possam apelar os outros versos de cada estncia, dando assim origem ao ttulo da dana e justificando-o. A prpria coreografia sublinha esta referncia, mimando-a habitualmente.

No que respeita ao texto musical desta dana, o canto no apresenta a mnima tendncia melismtica: cada nota da melodia corresponde rigorosamente a uma das slabas das palavras. Pensamos, alis, que uma das caractersticas primeiras da cano tradicional aoriana reside precisamente na sua natureza silbica.

Verifica-se que num ou noutro espcime a melodia comea, menos canonicamente, sobre o acorde da dominante. As frases, curtas, so constitudas a partir dos intervalos diatnicos, predominando as segundas, maiores e menores.

O ritmo da melodia, como noutras danas aorianas, mantm uma certa isocronia decorrente da diviso igual da unidade de tempo, ou seja, predomina a figurao em colcheias, se como unidade de tempo estabelecermos a semnina. Nalguns casos, essa isocronia interrompida por uma ou outra nota pontuada seguida de semicolcheia.

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Aqui deparmos, por momentos, com reais dificuldades na fixao do ritmo da melodia, dada a diversidade de verses que conhecemos e, nalguns casos, uma indefinio clara entre a diviso igual da unidade de tempo e a diviso desigual com unidade de tempo, bem como entre a diviso desigual com a primeira nota pontuada seguida de semicolcheia.

Evidencia-se por mais este facto o fosso que separa a msica viva da msica escrita, a natureza necessariamente redutora e esquematizante desta em relao primeira. No caso das msicas de tradio oral o problema particularmente relevante, visto tratar-se de objectos vivos que, em princpio, nunca foram transformados em texto escrito. Se bem que devamos manter o saudvel primado da recolha fonogrfica do material etnomusical, evidente que, para determinados fins, como o da anlise musical, se torna til e mesmo necessrio o recurso fixao, pela escrita, do texto musical. Manifestam-se ento as insuficincias do conjunto de smbolos de que dispe o sistema de escrita da msica ocidental. O problema no se pe apenas quando se trata de fixar espcimes que se inserem em tradies musicais pouco ou nada tendo a ver com a msica erudita europeia, mas tambm no caso de espcimes pertencentes ao patrimnio cultural de comunidades rurais do mundo ocidental que nos foram preservados graas a processos de transmisso oral. Experimentmo-lo no domnio da msica tradicional aoriana, como se verifica pelo exemplo acima relatado e atinente apenas a um dos parmetros do fenmeno sonoro, o ritmo.

J no caso do Pezinho do Pico de cuja fixao tambm somos responsveis (cfr. Apndice Musical), o problema no se verificou. Sncopas frequentes do

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melodia um carcter anguloso que se impe vigorosamente ao executante, preservando assim com clareza a organizao temporal da matria sonora.

No podemos perder a oportunidade de chamar a ateno para este espcime, sobre o qual poderamos repetir aquilo que h pouco afirmmos a propsito do Pezinho da Vila micaelense. Trata-se, como este, de uma das mais frescas melodias entre todas as que servem as coreografias populares aorianas. Repare-se no contorno quase diramos clssico da melodia, perfeitamente enquadrada nos cnones da quadratura. A uma frase de oito compassos em que so facilmente detectveis duas subfrases de que a primeira (antecedente: tnica dominante) corresponde ao primeiro verso da sextilha e a segunda (consequente: dominante tnica) ao verso seguinte, seguem-se, repetidas, trs outras frases estruturadas da mesmssima maneira. Destas, as duas ltimas correspondem parcialmente a variantes ou repeties de subfrases anteriores.

Assim, se das duas primeiras frases simbolizarmos as subfrases sucessivamente por A, B, C e D (o sinal : significar repetio como na escrita musical tradicional), teremos que toda a melodia da pea apresenta a seguinte estrutura: A B :: C D :: A D :: A D.

Procedemos do mesmo modo relativamente a todos os outros espcimes designados por pezinho que at hoje conseguimos reunir de diversas ilhas, no sentido de verificarmos a existncia de uma estrutura meldica estvel que, como padro, se mantivesse em todos eles. Tal no ocorre. Constatamos que nem mesmo o aparecimento de quatro subfrases uma constante, como antes da verificao talvez fssemos levados a supor,

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dada a profunda dependncia do texto musical em relao ao texto literrio.

Deparmos com diversas estruturas em que o nmero de subfrases e, consequentemente, o sistema de repetio das mesmas, varia de duas (A B A B) a seis (A B C D E F), passando por muitas outras estruturas possveis. (Enumeramos algumas: A B A B C; A B C B; A B C D A B C; A B C D C C).

Os dois espcimes provenientes de S. Miguel (inseridos no Apndice) apresentam as estruturas seguintes: Pezinho da Vila A B A B A B; Pezinho A::A.

A anlise harmnica revelar no Pezinho, como na Chamarrita, a mesma oscilao (quase exclusiva!) entre os acordes da tnica e da dominante. Com estes dois acordes se basta a estrutura harmnica de quase todas as danas tradicionais dos Aores. No estabelecemos nenhuma estatstica rigorosa dos casos de emprego da subdominante no conjunto dos espcimes msico-coreogrficos do arquiplago mas estamos convencidos da raridade significativa da sua utilizao. No deixa de ser sintomtico que ele surja de forma bem afirmativa em espcimes de inteno coreogrfica menos clara e provenincia erudita evidente como Olhos Pretos da Terceira e doutras ilhas do Grupo Central. Tambm uma possvel modulao ao tom da dominante, frequente na msica tradicional de outras regies da Europa, no se verifica, ao que sabemos, na estrutura musical das danas tradicionais aorianas.

O Pezinho do Pico, que temos vindo a citar, de todas estas caractersticas um bom exemplo. J falmos na alternncia exclusiva dos acordes da tnica e

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dominante e das imposies decorrentes do uso da tcnica do antecedente-consequente. A dependncia da melodia relativamente harmonia est bem patente na subfrase D, precisamente aquela que, sem alteraes, mais vezes repetida ao longo do discurso musical: o acorde da dominante, fornecido na altura pelo acompanhamento instrumental, reproduzido pela voz em harpejo, tanto na forma ascendente como descendente.

A anlise do texto musical do pezinho vem, pois, conifrmar determinados aspectos gerais da estrutura musical das danas populares aorianas, os quais poderamos designar como tendncias fundamentais da mesma: um marcado diatonismo da melodia, a isocronia do ritmo (ressalvando-se, nalguns espcimes a referir em breve, a tendncia contrria para a movimentao sincopada do ritmo da melodia que no do acompanhamento instrumental) e um uso rudimentar das funes tonais.

A SAPATEIA

A Chamarrita e o Pezinho no so as nicas formas

msico-coreogrficas comuns s nove ilhas dos Aores. Muitas outras h que referir, apresentando tambm, desde o extremo oriental do Arquiplago s suas duas ilhas mais ocidentais, espcimes homnimos e pondo anlise histrica e antropolgico-cultural os mesmos problemas que aquelas duas formas. Esto nestas condies a Bela Aurora, a Saudade, a Tirana, o Meu Bem, o Mangerico e a Sapateia.

A Sapateia pouco se distingue da Chamarrita naquilo que diz respeito forma musical. Difere desta a nvel da

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coreografia, mas a sua estrutura rtmica muito semelhante daquela forma. A mesma organizao ternria do material sonoro que, consoante o andamento for mais moderado ou vivo, somos levados a escrever em compasso ternrio simples ou binrio composto. Cremos no haver maior razo para encontrar na Chamarrita influncia do corte da valsa do que na Sapateia. As execues dos exemplares de ambas as danas que conhecemos da ilha de S. Miguel no se distinguem quanto ao andamento habitualmente adoptado, tornando-se numa verdadeira valsa se os trs tempos no fossem igualmente valorizados e o segundo fosse alargado e acentuado como acontece nesta dana.

Verificamos na Chamarrita uma certa tendncia para uma movimentao sincopada da melodia, tendncia esta que mais acentuada em alguns espcimes dos Grupo Central e Ocidental e menos evidente na Chamarrita micaelense.

No caso de chamarritas que optmos por inscrever no compasso ternrio (Chamarrita de Cima, Faial, compassos 1 7):

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No caso de outras em compasso binrio composto (Chamarrita, S. Jorge, compassos 1 4):

A Chamarrita do Caracol (Pico) inserida na colectnea

que fecha este trabalho exemplo paradigmtico desta caracterstica, tratando-se de uma melodia em compasso ternrio sobre um acompanhamento em compasso binrio composto. Um bom exemplo fornecido pela msica tradicional do caso, repetidssimo ao longo da histria da msica ocidental (a partir do momento em que esta passou a ser medida), da dupla possibilidade de diviso inteira do nmero seis por dois e por trs:

No Pico, alis, parece ter-se desenvolvido a

sensibilidade popular relativamente a este padro rtmico. Repare-se na Tirana da mesma ilha, cujo texto tambm fixmos para o Apndice Musical deste livro:

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Pelo contrrio, a Sapateia respeita a diviso ternria da

unidade de tempo (no caso em que for escrita em compasso binrio composto), no se verificando ao longo da melodia a agitao que introduzida na chamarrita pela ocorrncia de sncopas.

Tal no se deve certamente ao facto de o texto literrio habitual da Sapateia ser mais coibido que o da irreverente Chamarrita. Mesmo figuras tradicionalmente prestigiadas nas comunidades rurais de boa parte do nosso Pas no escapam veia mordaz da Sapateia:

Se o padre cura soubesse o que a Sapateia tem, largava de dizer missa, sapateava tambm.

Referncias menos jocosas se incluem ainda no texto

da Sapateia, como a impressionante aluso s condies scio-econmicas da maioria da populao micaelense at h cerca de duas dcadas ainda:

Sapateia, meu bem, sapateia, ai vira e volta a Sapateia: ai quantas vezes, ai quantas o jantar serve de ceia!

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E a sempre presente nota lrica:

Muito bem fica o sapato porta do sapateiro; mais bonito fica ua moa ao p dum rapaz solteiro. Sapateia amor aqui, amor do meu corao. Se tu choras tambm choro: v l se te quero ou no.

Estas so algumas das quadras que mais

frequentemente se escutavam em S. Miguel. As sapateias das outras ilhas apresentam textos literrios que variam aquele em maior ou menor grau: as mesmas referncias Sapateia em termos suficientemente ambguos para no sabermos se se trata de figura feminina ou, tal como acontece na Chamarrita, simplesmente o nome da prpria dana, cuja etimologia reforada por aluses idnticas do sapato porta do sapateiro. Assim a quadra proveniente das Flores:

Sapatos pr Sapateia borda dgua os deixei: no me importa que tu logres amores que eu enjeitei.

Outra, da mesma ilha, constitui precioso exemplo,

dentro do nosso cancioneiro popular, da utilizao potica do absurdo e da associao mais ou menos livre de ideias que, apesar da presena unificadora da referncia ao mar, parece justificar-se apenas pela urgente necessidade de rima:

Eu fui ao mar s laranjas que coisa que o mar no tem: como h-de vir enxuto quem das ondas do mar vem?

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O absurdo da situao impele-nos aqui a outro nvel de compreenso das palavras. Estas, constitudas afinal em metfora, remetem-nos, com extrema habilidade e grande qualidade potica, para sentidos que expressos de outro modo seriam de mais difcil aceitao.

A unidade temtica que se verifica tanto no texto literrio da Sapateia como no de outras danas comuns s diversas ilhas dos Aores mais um dos aspectos que, apesar da diferena das estruturas meldicas que impem, como vimos, considerar cada uma das sapateias espcimes diferentes e no simples variantes, parecem apontar, apesar disto, para qualquer remota origem comum. Contudo, no podemos, por enquanto, avanar, sobre esta questo, hipteses minimamente seguras e que por fundamento apresentam mais do que certas impresses que nos deixa a anlise comparativa de quantos espcimes homnimos vimos reunindo das diversas ilhas do arquiplago aoriano.

3 CONCLUSES DE ORDEM HISTRICA

Cremos que os elementos fornecidos pela anlise das estruturas musicais da Chamarrita, do Pezinho e da Sapateia so suficientes para confirmar a leitura tonal que fizmos desses espcimes.

A concluso de natureza histrica que se impe na sequncia desta anlise a da modernidade evidente dos mesmos. Nada nos permite julgarmo-nos na presena de produtos culturais datando da segunda metade do sculo XV ou da primeira metade do sculo XVI, por exemplo.

No podemos, nas nossas tentativas de insero histrica da msica tradicional europeia, dar-nos ao luxo

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de ignorar os caminhos trilhados pela msica ocidental desde, ao menos, a Idade Mdia. A msica popular europeia no escapou, de uma forma significativa, aos traos gerais do desenvolvimento histrico da msica ocidental.

Sem dvida, aquilo que entendemos por msica popular , na maior parte dos casos, produto de etapas passadas desse desenvolvimento histrico, tendo chegado at ns graas a um complexo sistema de preservao constitudo por um conjunto de condies diversas, desde o isolamento geogrfico marginalizao de certos estratos sociais relativamente ao progresso. Mas tal no quer dizer que, no momento da sua gestao histrica, a msica tradicional ignore os referidos traos do desenvolvimento da msica ocidental, escapando s caractersticas gerais apresentadas pelo sistema musical nesse mesmo momento.

No podemos, assim, fazer recuar espcimes estruturalmente tonais a momentos anteriores elaborao do sistema tonal, realizao esta que sabemos ter sido morosa e no estar completa antes das ltimas dcadas do sculo XVII.

No existem, ademais, quaisquer traos de modalismo no tipo de estruturas musicais que analismos, nem dispomos de documento algum que nos permita afirmar relaes de parentesco com estruturas anteriores caracteristicamente modais.

A minha opinio que o folclore portugus assumiu a sua forma definitiva no sculo XVIII (R. Gallop, Cantares do Povo Portugus, 2. ed., p. 22). Uma afirmao como esta necessita da definio tanto quanto possvel exacta do seu domnio de aplicao. Parte da msica tradicional portuguesa, inclusive a aoriana, data de muito antes do

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sculo XVIII como, alis, pressupe a afirmao de Gallop; contudo, naquilo que diz respeito quase totalidade, seno totalidade, dos espcimes coreogrficos aorianos consideramo-la adequada. Parece-nos temerria a ideia de lhes recuar a existncia para alm dos fins do sculo XVII.

Na sequncia desta afirmao, uma pergunta se impe: que aconteceu s primitivas danas aorianas? Desapareceram, pura e simplesmente substitudas pelas que actualmente subsistem e cuja anlise revela o seu carcter indubitavelmente recente? Persistem nestas traos herdados das danas antigas?

Da anlise das estruturas coreogrficas das actuais danas populares do Arquiplago, terreno que no nos consideramos autorizados a pisar, devemos decerto esperar valioso contributo para o esclarecimento desta questo, como, em geral, a da insero histrica da msica tradicional dos Aores.

Conhecemos o caso curioso de danas como o Charamba que, no sculo XVIII, gozou de grande popularidade em Lisboa e que, nos Aores e na Madeira, se mantiveram por via da tradio at aos nossos dias, continuando a ostentar no corte sincopado da melodia origem ou pelo menos influncias exticas que apontam para a frica e Brasil coloniais. Fontes literrias confirmam-nos a existncia de toda uma srie de danas e cantares que, desde o sculo XVII, se vulgarizaram por quase todo o pas, mau grado a opinio reprovadora de alguns (D. Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados, XI: No louvo o trazer (a mulher) castanhetas na algibeira, o saber xcaras, e entender de mudanas do sarambeque, por serem indcios de desenvoltura.)

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As provenincias eram mltiplas, complexo o sistema de influncias: desde as longnquas paragens coloniais, donde nos tero chegado fofas e lunduns, at vizinha Espanha e a menos prxima Itlia que, respectivamente, nos cederam tiranas e melodias como os j citados Olhos Pretos da ilha Terceira.

Destas danas, algumas, inexoravelmente alteradas pelo tempo, persistem em determinadas regies do continente, mas parece-nos que nos Aores que as podemos encontrar ainda em maior nmero. As ilhas ofereceram a estes produtos culturais do passado as condies ideais de conservao que as fizeram chegar at ns.

Trata-se de um assunto que ainda no foi estudado em si mesmo e sobre o qual se tm produzido apenas referncias ocasionais. Contudo, evidente que o conhecimento das origens duma parte da msica tradicional portuguesa no pode prescindir do seu conhecimento.

Sem este, no nos poderemos pronunciar com algum fundamento sobre questes to importantes como, por exemplo, a da originalidade ou no originalidade da msica tradicional portuguesa.

So conhecidas as posies que, relativamente a este problema, assumiram dois dos mais prestigiosos nomes que se tm pronunciado sobre a nossa msica tradicional: Rodney Gallop e Fernando Lopes Graa.

O primeiro: Parece-me distinguir certa influncia italiana e francesa, cujo veculo foi, sem dvida, a guitarra. Vejo-a em determinados pormenores e, tambm, na trama geral. As melodias francesas e italianas so certamente aquelas que mais afinidade tm com as portuguesas. Logo a seguir, R. Gallop precisa o seu

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pensamento: E no se pense que trato de roubar nao portuguesa a capacidade de criao musical. Em primeiro lugar, no me refiro seno ao intercmbio de influncias culturais, tais como sempre se verificam entre pases civilizados. Em segundo lugar, uma coisa fabricar tijolos e argamassa, outra ser construir um edifcio. Se parte dos tijolos e da argamassa que serviram para a construo do esplndido edifcio que a msica popular portuguesa, foram importados, nem por isso o edifcio deixa de ser obra bem nacional (Cantares do Povo Portugus, 2. ed., p. 23-24).

Fernando Lopes Graa, sem negar as influncias assinaladas por Gallop, acentua a traa original da nossa msica popular: A cano portuguesa conserva, como poucas, a essncia, o aroma da terra, a marca da sua origem rstica, o selo da sua autenticidade e inspirao populares. quase sempre um produto verdadeiramente nativo, e n