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157 BUSCAR A IDENTIDADE NA ALTERIDADE: LOPES-GRAÇA E O CONCEITO DE ‘POVO’ NA MÚSICA TRADICIONAL Mário Vieira de Carvalho* O tema desta comunicação, no contexto de um seminário dedicado a Alves Redol, foi suscitado pela edição recente em DVD (12 volumes), dos programas Povo que Canta, de Michel Giacometti, produzidos pela RTP no início da década de 70. 1 Esses programas permitiram ao etnólogo dispor, pela primeira vez, dos meios necessários para registar em filme, captando som e imagem, muitos dos momentos mais emblemáticos da extensiva investigação de campo de música tradicional portuguesa que ele vinha empreendendo desde cerca de 1960 com a colaboração de Fernando Lopes- Graça. Tinham-se tornado amigos e colaboradores desde o seu encontro em 1959, quando Giacometti apresentou à Comissão de Etnomusicologia da Fundação Calouste Gulbenkian um projeto de investigação que foi recusado (só Lopes-Graça deu parecer favorável). Giacometti não desistiu, procurou fundos alternativos e avançou com o projeto. Lopes-Graça aceitou o convite para colaborar nas pesquisas, na posição de consultor para a avaliação e a análise musicológicas do material registado em trabalho de campo. Ambos tinham em comum um grande interesse por formas musicais arcaicas ligadas a manifestações arcaicas da vida rural e consideravam prioritária a tarefa de identificar e documentar esses testemunhos culturais de uma herança histórico-antropológica que corria o risco de se perder para sempre. Enquanto Giacometti, como etnólogo, se concentrava nas dimensões antropológicas, Lopes-Graça insistia que o seu particular interesse pela música tradicional era enformado pela perspetiva do compositor e pertencia à esfera da estética. * Universidade Nova de Lisboa, CESEM. 1 A filmografia completa de Michel Giacometti acaba de ser publicada em colaboração com a RTP. Nova Síntese, 7, Edições Colibri, Lisboa, 2012, 157-166.

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BUSCAR A IDENTIDADE NA ALTERIDADE:

LOPES-GRAÇA E O CONCEITO

DE ‘POVO’ NA MÚSICA TRADICIONAL

Mário Vieira de Carvalho*

O tema desta comunicação, no contexto de um seminário dedicado a Alves Redol, foi

suscitado pela edição recente em DVD (12 volumes), dos programas Povo que Canta,

de Michel Giacometti, produzidos pela RTP no início da década de 70.1 Esses

programas permitiram ao etnólogo dispor, pela primeira vez, dos meios necessários

para registar em filme, captando som e imagem, muitos dos momentos mais

emblemáticos da extensiva investigação de campo de música tradicional portuguesa que

ele vinha empreendendo desde cerca de 1960 com a colaboração de Fernando Lopes-

Graça.

Tinham-se tornado amigos e colaboradores desde o seu encontro em 1959, quando

Giacometti apresentou à Comissão de Etnomusicologia da Fundação Calouste

Gulbenkian um projeto de investigação que foi recusado (só Lopes-Graça deu parecer

favorável). Giacometti não desistiu, procurou fundos alternativos e avançou com o

projeto. Lopes-Graça aceitou o convite para colaborar nas pesquisas, na posição de

consultor para a avaliação e a análise musicológicas do material registado em trabalho

de campo.

Ambos tinham em comum um grande interesse por formas musicais arcaicas ligadas a

manifestações arcaicas da vida rural e consideravam prioritária a tarefa de identificar e

documentar esses testemunhos culturais de uma herança histórico-antropológica que

corria o risco de se perder para sempre. Enquanto Giacometti, como etnólogo, se

concentrava nas dimensões antropológicas, Lopes-Graça insistia que o seu particular

interesse pela música tradicional era enformado pela perspetiva do compositor e

pertencia à esfera da estética.

* Universidade Nova de Lisboa, CESEM. 1 A filmografia completa de Michel Giacometti acaba de ser publicada em colaboração com a RTP. Nova Síntese, 7, Edições Colibri, Lisboa, 2012, 157-166.

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Com efeito, a ideia de “música nacional” desempenha um papel fundamental na teoria e

prática de Lopes-Graça como compositor. Primeiro como resultado da sua formação no

Conservatório, em meados dos anos 20, quando o “nacionalismo” se tornara

hegemónico, influenciando discursos ideológicos de sinal contrário. Na sua primeira

obra, concluída em 1927 (Variações sobre um tema popular português, para piano),

Lopes-Graça segue a corrente dominante, que tinha como grandes referências Alfredo

Keil e Viana da Mota e era também advogada por mestres do Conservatório como

Eugénio Vieira ou Alexandre Rey Colaço: “buscar inspiração nas raízes nacionais”.

Contudo, o envolvimento de Lopes-Graça no ativismo político, designadamente na

chamada Organização Comunista de Tomar e no jornal A Acção, que ele próprio fundou

e dirigia desde 1928, tornaram-no subitamente avesso a qualquer forma de

nacionalismo, inclusive nas artes. Os seus ideais internacionalistas não eram

compatíveis com as correntes estético-ideológicas que se reclamavam do nacionalismo,

sobretudo aquelas que entretanto haviam emergido e que refletiam posições políticas

diametralmente opostas às suas. Refiro-me, nomeadamente, à corrente populista do

nacionalismo, representada por Rui Coelho, com ligações ao saudosismo e ao

movimento sidonista, decididamente apoiada por António Ferro, bem como à corrente

do “Renascimento Musical”, representada por Ivo Cruz e Mário Sampaio Ribeiro, com

ligações ao Integralismo Lusitano, focada na recuperação da música portuguesa antiga,

e que, na sua expressão mais radical – a dos ideólogos da revista neotomista Ordem

Nova (1926-1928) –, 2 condenava como obra do demónio toda a música que não fosse

“humilde serva” da liturgia.3

O seu empenhamento político no internacionalismo (relacionado com convicções

socialistas e comunistas) desempenhou um papel fundamental nesta mudança de

2 A revista autodefinia-se no frontispício como: “Revista anti-moderna, anti-liberal, anti-democrática, anti-burguesa e anti-bolchevista; contra-revolucionária; reaccionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente; insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais, das letras, das artes e da imprensa”. 3 Cf. Domingos Araújo, “O diabo feito músico”, in: Ordem Nova, n.º 1 (1926): “O falso aristocratismo espiritual gerado sobre a música é um documento vivo da corrupção moderna. A música é a arte mais próxima do materialismo”. Cf. ainda Mário de Albuquerque, “O veneno musical”, in: Ordem Nova, n.º 10 (1926): “O problema musical não é mais do que um aspecto da grande insurreição feminina... Separada da razão, a música tornou-se como o ópio... Ergue paraízos artificiais ... - todo um universo rubro de pecado. [Produz uma] emoção toda carnal. [...] continua a ser a voz do tentador”. Cf. discussão mais aprofundada das correntes ideológico-culturais em presença in Vieira de Carvalho (1993: 176-193; ou 1999: 221-244).

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atitude, como decorre dos textos que então publicou em A Acção4 ou – já depois da

interdição do jornal, no âmbito do processo da Organização Comunista de Tomar de

que resultou a sua primeira prisão – na revista Seara Nova:

Decididamente: eu sou um desnaturado, um déraciné... A-pesar-de nado e criado em Portugal, cada vez sinto mais a minha incapacidade para sentir e compreender as coisas portuguesas; e assim é que estou em me considerar uma monstruosíssima excepção àquela geniam lei etno-psicológica, formulada por um conhecido jornalista português: de que para sentir e compreender as nossas coisas é absolutamente indispensável ter nascido em Portugal… Atribuo eu esta deficiência do meu espírito à ausência de três virtudes rácicas fundamentais: versejar, gostar de toiros e amar o fado. (Lopes-Graça 1931: 149-155).

Contudo, no seu exílio em Paris Lopes-Graça mudou mais uma vez de atitude, em

resultado da influência de um conjunto de fatores, mormente o conhecimento mais

extensivo da obra de Bartók, que então conheceu pessoalmente e por quem passou a

nutrir uma profunda admiração. Para essa mudança contribuíram também o livro

publicado por Rodney Gallop (1936), reunindo os resultados da sua investigação de

música tradicional portuguesa, bem como o estímulo duma cantora polaca (Lucie

Dewinsky) especializada na interpretação de arranjos de canções tradicionais. Assim,

desde cerca de 1938 Lopes-Graça desenvolveu uma “política de identidade” contra-

hegemónica, baseada num particular conceito de “música nacional”: um conceito que

rompia com a identidade hegemónica – a identidade dada – e lhe contrapunha uma

identidade ainda a ser construída.5

No caso de Lopes-Graça, a ruptura com uma identidade musical dada e hegemónica

corresponde exatamente ao período em que o Estado Novo, uma ditadura de tipo

fascista, começara a organizar gradualmente o folclore como propaganda. Ao tomar

posição contra esse folclore “administrado”, disseminado pelos mass media e também

adotado como fonte inspiração pelos compositores, Lopes-Graça fundamentava-a nos

seguintes pressupostos:

- o maior inimigo de um “autêntico nacionalismo musical”, de uma “autêntica

música portuguesa”, é o “nacionalismo de cartaz”, essa “famosa música

portuguesa”, esse “confusionismo político-artístico”, “que nunca conheceu técnica

4 Jornal político-regionalista de Tomar, fundado e dirigido por Lopes-Graça (1928-1930). 5 A atitude de Lopes-Graça é, neste sentido, muito semelhante à de Béla Bartók, que também rompe com uma identidade húngara dada (cf. Frigyesi, 1994).

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própria, nem disciplina interna”, que era “vazio de conteúdo e nulo como forma

de arte elevada”, enquanto o conceito de música nacional não devia ser nem

político, nem étnico, mas sim étnico-estético;

- a sua atitude quanto à música popular não era a do folclorista mas sim a do

compositor: ele estava interessado no seu aspecto estético, nas suas “virtualidades

psicológicas e morfológicas”, no seu “potencial, ora dramático, ora patético, ora

lírico”, na sua expressividade e musicalidade;

- ao trabalhar-se sobre uma canção popular, devia-se respeitar a sua “identidade”, o

que significava, nomeadamente, não a sua adaptação às normas da harmonia tonal

(por exemplo), mas sim a tentativa de corresponder às potencialidades que ela

própria oferecia, na sua estrutura modal e em outros arcaismos, tendo em vista

justamente explorar os pontos de contacto com modernos da música europeia;

- a este respeito, Lopes-Graça acentuava que “a arte de todos os povos” era um

processo dinâmico, baseado na interação entre o individual e o coletivo (Lopes-

Graça 1941: 41f.).6

Lopes-Graça (1941: 48) opunha o “folclore autêntico” à “contrafacção folclórica”,

isto é, à produção em massa de estereótipos de “música popular” destinada ao teatro

de revista, filmes, cançonetistas da rádio ou ranchos folclóricos – àquela espécie de

folclore encenado que Alves Redol tão bem descreve no Cancioneiro do Ribatejo:

... não posso nem devo deixar no esquecimento a monstruosa mascarada a que assisti na Azinhaga quando do concurso para a aldeia mais portuguesa. Vi, espantado, os disvelos de um ensaiador geral a corrigir farpelas de há muito abandonadas nas arcas; suissas que se mandavam retocar, porque os homens que as deixaram crescer nem já sabiam — e o que sabia o ensaiador? — o seu tamanho apropriado; cenas de namoro, aos portais, com burguesinhas mascaradas de camponesas e conjuntos em posições estudadas, bem como passagens de toiros e bailaricos e descantes que fora preciso ensinar para reconstituição de usos já caducos. Inventou-se, digamos, todo este tradicionalismo burocrata para enganar um júri, o que não tem importância de maior, mas que aviltava o verdadeiro espírito de um povo, o que já comporta graves inconvenientes... (Alves Redol, 2011: 18)

A alternativa ao folclore como mercadoria ou como propaganda do Estado era, para

Lopes-Graça, o folclore “autêntico” – os verdadeiros “tesouros” desconhecidos que

tinham sido revelados nomeadamente pela investigação de campo de Rodney Gallop:

6 Citado in Vieira de Carvalho (2006; 2012b).

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[algumas melodias populares] não são nada coisas simples e ingénuas, mas belíssimas melodias, largamente elaboradas, de um equilíbrio plástico perfeito, de uma ampla “respiração”, e carregadas de um potencial ora dramático, ora patético, ora simplesmente lírico, que faz delas pequenas maravilhas de expressão e musicalidade (Lopes-Graça, 1940).

Todas as versões achadas na investigação de campo eram “autênticas”. Não havia uma

mais autêntica do que outra. A diferença estava no juízo estético: no interesse que elas

lhe despertavam enquanto compositor (Lopes-Graça, 1940: 139). O critério étnico-

estético assentava, pois, em duas noções complementares: a de autenticidade (étnica) e

a de modernidade (estética).

Quanto ao conceito de autenticidade, a teoria de Habermas de “dissociação”

(Entkoppelung) de sistema e mundo vivido (Lebenswelt) pode ajudar a dar contornos

mais fortes ao ponto de vista de Lopes-Graça. Ao tratar da diferenciação sistémica das

sociedades complexas, Habermas examina o processo através do qual os sistemas

económicos e administrativos se tornam autónomos e autorregulados, desvinculando-se

dos mecanismos de integração, crenças, valores, que dão sentido à vida ou são

assumidos como pressupostos existenciais da comunidade e dos seus membros. O

“mundo vivido” é, deste modo, “degradado” (herabgesetzt) a apenas um sistema entre

outros, o que significa que aquele deixa de desempenhar qualquer papel de controlo

sobre os sistemas autónomos que se diferenciaram e sobre a sua respetiva lógica

imanente. Pelo contrário, o “mundo vivido” torna-se cada vez mais exposto à sua

“colonização” pelos sistemas (Habermas, 1985: II, 229-293).

Tendo em conta estas categorias, o que Lopes-Graça chamava “contrafacção folclórica”

era o folclore organizado e difundido pelo sistema dos media e da indústria cultural,

reproduzido por uma rede de relações comerciais e controlado pelo Estado Novo,

transformado em clichés banais pela produção de massas, em conformidade ora com

objectivos de propaganda, ora com as leis do mercado. Pelo contrário, o “folclore

autêntico” ainda não se dissociara das funções essenciais do quotidiano em que se

reconhecia uma comunidade local; correspondia a formas de comunicação coloquial

inseparáveis de um contexto holístico: oração, trabalho, festa, etc.; não se constituíra

ainda como sistema autónomo, mais ou menos comercializado ou administrado, antes

se inscrevia inteiramente no mundo vivido de uma comunidade rural. E, embora não

fosse estático, mas sim dinâmico — como acentua Lopes-Graça —, as suas mudanças, a

sua contínua recriação e transformação tinham as suas raízes numa experiência

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individual e social realmente vivida: estavam intimamente relacionadas com as funções,

as crenças e a idiossincrasia de uma comunidade concreta, onde a distinção entre

competências musicais ativas e passivas e a correspondente divisão do trabalho, ou não

existiam, ou eram raras e incipientes.

Na estratégia de resistência cultural desenvolvida por Lopes-Graça, esta política de

identidade que partia da noção de “folclore autêntico” requeria mediação estética: ... ao reclamar para a música portuguesa um mais estreito contacto com o povo, não entendo dever imolá-la, como arte, a qualquer doutrinação ideológica, num sacrifício ou compromisso que não aproveitaria nem à arte nem à ideologia... [...] “música portuguesa” há-de ser definida por um critério essencialmente estético... (Lopes-Graça, 1941: 60-61).

Que entender por “critério estético”? Lopes-Graça (1941: 61) fala, neste contexto, de

“critério suficiente para categorizarmos a obra de arte como produto superior de

cultura”. Mas, assumindo-se ele próprio como artista empenhado na modernidade

musical, é por via desta que encontramos a chave do conceito – ou seja, nomeadamente,

e em síntese:

- a concepção da arte como uma “actividade de conhecimento” (texto publicado na

revista, Manifesto, 1936, cf. Lopes-Graça, 1935);

- a articulação de modernidade em arte com modernidade na ciência e modernidade

na política, estabelecendo um paralelo entre atonalidade, teoria da relatividade e

comunismo (exemplos: Schönberg, Einstein, Lenin) (conferência proferida em

1933 – cf. Lopes-Graça, 1987: 37, 45);

- a tomada de posição decididamente antirromântica, a qual é formulada em termos

que deixam entrever a influência da obra de Ortega y Gasset La Deshumanización

del Arte, adquirida por Lopes-Graça em 19297 e que, não obstante algumas

reservas e objeções, teve notória influência na elaboração do seu discurso estético.

Lopes-Graça contrapunha a “vontade de simplificação”, a “nitidez de linhas”, a “pureza

da forma”, a “força de construção”, o “ascetismo de ideias” às “inchadelas da música

post-romântica” e ao “invertebramento impressionista”. Em vez de “simbolizar” ou

“representar” – mesmo quando ligada a textos literários – a música devia ser “pura”,

“absoluta” (exemplo: Lehrstück de Brecht/Hindemith, 1929).8 A música tendia a

“desumanizar-se”, “a libertar-se do delirante subjectivismo romântico”, mas não devia

7 O exemplar, assinado e datado na capa, encontra-se na sua biblioteca, conservada no Museu da Música Portuguesa em Cascais. 8 Texto sobre Hindemith, 1934 – cf. Lopes-Graça (1987: 67, 69; cf. ainda ibid., 19-21).

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cair no pólo oposto: o mero exercitium aritmeticae. Era preciso encontrar o equilíbrio

entre as duas correntes (texto sobre Stravinsky, 1931 – cf. Lopes-Graça, 1987: 204).

Na sua Introdução à Música Moderna (Lopes-Graça, 1942), a modernidade musical é

definida nos seguintes termos:

Em contraposição à música do século passado, para a qual o som era um sinal ou símbolo, a música moderna reintegrou o som na sua realidade material, concreta … Para o Romantismo, o som era um meio, a música um pretexto, o compositor um medianeiro, um profeta, um inspirado. Para o modernismo o som é, antes de mais nada, um material, a música uma realidade em si mesma, o compositor um obreiro… (Lopes-Graça, 1984: 96)

Consequentemente, também a questão da “expressão” em música tinha de ser

reequacionada:

..entre uma obra expressiva, mas na qual o sentido da pureza e da essencialidade musical se acha obliterado, a ponto de nós nos perdermos na floresta das suas transposições visualistas ou literárias, entre essa obra expressiva e uma obra inexpressiva, que conserva sempre desperto o nosso sentido musical, nos instala na sua própria duração, nos não deixa sonhar, mas nos obriga a segui-la, a ser activos e como que comparticipantes na sua mesma actividade — entre essas duas obras não hesito um instante: adiro à inexpressiva (Lopes-Graça [1940], 1987: 198-199).

Finalmente, noutro texto, este de 1973 (“Entrevista com Mário Vieira de Carvalho”),

Lopes-Graça resume retrospetivamente a sua posição estética:

O que me repugna, o que à minha sensibilidade e às minhas concepções musicais repugna é a inchação, o desbordamento, a hipertrofia da expressão, o transformar-se a música em veículo de sentimentos ou ideias que, se lhe não são inteiramente estranhos, tendem a sobrepôr-se-lhe, a tomar-lhe o passo, a volverem-se ‘drama’, ‘confissão’, ‘ideário’ – literatura que não sabe ser, por impotência, literatura, música que se recusa a ser, por ambição, música (Lopes-Graça, 1978: 127-128).

A convergência com Theodor W. Adorno, que já procurei demonstrar noutras ocasiões,

manifesta-se não só nesta ideia de que “o supra-estético é mediado esteticamente” e a

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liberdade em arte “pressupõe a emancipação de finalidades heterónomas”,9 mas

também na posição quanto à questão da comunicação entre artista e público. Na

Introdução à música moderna ([1942], 1984: 103-116), Lopes-Graça critica, por um

lado, o público mais culto das salas de concertos, saturados do idioma clássico,

cristalizados em preconceitos; e, por outro lado, a organização comercialista da vida

musical, a “cultura demagógica” disseminada por rádios, especialmente as privadas,

“um verdadeiro flagelo social”. A resposta a esse estado de coisas não consistia, porém,

em encarar as massas como o Outro inferior e em solicitar ao artista música “fácil” à

medida da ignorância daquelas, mas sim, pelo contrário, “em esforçarmo-nos por

trazermos [o povo] ao conhecimento e à aceitação do muito que ele não conhece e do

melhor que o engenho humano tem criado”.10 O que antes de mais importava a Lopes-

Graça era, pois, tal como a Adorno, não pactuar com “a chamada “incapacidade das

massas para compreenderem o complexo”; não pactuar com a exclusão das massas da

educação ou formação.11

Destas e doutras fontes do pensamento de Lopes-Graça12 infere-se, pois, em síntese:

- “arte como conhecimento” e “arte autónoma” são conceitos sobreponíveis: arte é

manifestação de autoconsciência e/ou de consciência do mundo e da vida que

concorre com outras atividades de conhecimento;

- a arte não se subordina a “finalidades heterónomas” (entre elas, por exemplo, as

ideias de entretenimento ou acessibilidade às massas ou ao público em geral);

- a utilização demagógica e populista da música abre caminho à manipulação, pactua

com o status quo de exclusão do “povo” de um pensamento crítico, capaz de lidar

com a complexidade do mundo.

Na medida em que a música popular “autêntica” era radicalmente local, em

contraposição ao consenso sobre “música nacional” hegemónico nos mass media,

indústrias culturais e discurso do poder, e na medida em que a “arte autónoma”,

enquanto “actividade de conhecimento”, se exercia como crítica da ideologia

(igualmente hegemónica na esfera pública), o critério étnico-estético implicava, assim,

necessariamente, uma política de identidade que rompesse com a cultura de

massas.

9 “Kritik des Musikanten”, Adorno (1998: XIV, 71). 10 Lopes-Graça, Seara Nova, 20 de Abril de 1940; cf. Lopes-Graça (1990: 147). 11 “Die gegängelte Musik”, Adorno (1998: XIV, 59). 12 Ver fundamentação mais extensiva in Vieira de Carvalho (2012a; 2012b).

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Como resulta das situações registadas nos filmes de Giacometti, o canto individual ou

coletivo, nos mais diversos rituais do quotidiano, manifesta-se através de faculdades e

destrezas bem como duma entrega expressiva surpreendentes pela sua radical

singularidade – tão radical que o torna inapropriável como objeto de consumo pela

cultura de massas. Trata-se de expressões musicais porventura ainda de mais difícil

assimilação “popular” (no sentido hegemónico do termo) do que aquelas ditas de

vanguarda que deixavam perplexo o público das salas de concertos... O que servia a

Lopes-Graça como material para construir a identidade nacional manifestava-se, pois,

paradoxalmente como alteridade radical. A ideia de nacional e as suas manifestações

na cultura de massas eram denegadas pela diferença local. Em suma: a política de

identidade de Lopes-Graça consistia na busca do não-idêntico: não-idêntico na música

rústica como momento dialógico da busca do não-idêntico (da busca da sua

individualidade musical) como compositor.

Por isso, apesar da sua militância comunista – e ao contrário do que se lê usualmente a

este respeito –, a posição de Lopes-Graça quanto ao folclore e quanto ao conceito de

música nacional nada tem a ver com a doutrina estética do realismo socialista ou

neorrealismo. Lopes-Graça afasta-se do neorrealismo tanto quanto converge com

Adorno e se aproxima de Bartók.13

Referências bibliográficas

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13 Cf. discussão mais aprofundada em Vieira de Carvalho (2012a).

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