Na travessia do rio

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anos bam vividos. Isto é. sua manei- ra. Canoa de vara, leva e traz os passageiros que transitam entre a vila e o porto de Parna· rama. Tampo. e tempos cortando o rio. conhaceu gente de toda A parte e de todo o jeito. Andando de sol a sol rompeu a passa· gem de muita invernada, vendo rUlrem os balseiros, o rio alargar·se e o caudal revolven· do as plantações ribeirinhas. Bom conhecedor das águas, pesca da anzol nas noites escuren- tas. Quando não lua, nem pirilampos. São "iratingas, fidalgos e mandubés. JIl teve !amllia. Melh'or dizendo, teve uma mulher, muitos anos. Primeiro filho, parto gorado.. se foi a pobrazinha com o filho que não nasceu. Homem ou mulher? Ninguém tirou de dentro pra ver. Foram enterrados os dois na terra esponjosa e escura do do serrado. O filho mais ocultado ainda. No esconderijo do útero assassino não se mostrou ao pai .. No lugar deixou cruz de madeira que ele mesmo fez e o tempo desfez no des: sarazoado de sua passagem fulminante. Ven- cido esse passado, foi ficando por ali meSmo. Sem mulher, sem o filho que ficou de vir. Abraçou a solidão. Conv(vio amigo com o tédio no espelho das águas sempre descendo. Às vezes, a corrente cantando modinhas brejeiras comandada pela viração do tempo seco. Às vezes disparando vigorosas sinfonias na torrente caudalosa dos grandes invernais. Fortunato Romão ali parou. No tempo, no espaço. Deixou que a vida fosse aconte- cendo no seu corpo. Modificando feições. Enfraquecendo a visita. Engrossando a palma das mãos. Apenas seus músculos conservam a rigidez. E do exerc(cio constante pelo corte da corrente. Tem consciência de não haver muito mais para acontecer em sua vida. Viu muitas coisas já. pelejou com muitas desavenças. Aprendeu a respeitar mistérios e a enfrentar pelejas. Medo mesmo, s6 tem da assombração da cujuba. Noite de chuva, não sai. Noite de lua, fecha os olhos, se por acaso olha para o remanso do rio. Ela pode estar lá. Sempre ouviu contar que busca as vir- gens donzelas. Mas, se encontra um preto velho como ele, também usa de assombração que a sua maldade é de correr na veia do sangue. Carrega consigo o corredor de boi, borduna maldita. A vida materna não pou- pada. Tudo anda com ele preso ne mesma corrente. Nossa Senhore do Desterro que o leve pre bem longe do rio na pessagem das malvadas horas. Por isso, não vai atravessar o caixeiro-viajante aquela noite. Ainda que não chovesse, pelos seus cálculos é lua cheia. Hora propicia ao malfadedo filho da Oes- graçe. Poda. sim, ir ficando em sua cesa. Armar 8 rede nas traves do telhado. Fica cofa, sim. Como n30 ficarial Vê-se bem o a.(guo aspaço de sue coberta. Mas é ume nol· te sO. Dia seguinte. o sol renascido, se irão os dois. Cingindo 8S dgues sem medo. leva muilo tempo, n30. se a correnteza engros- sou com o aguacairo. palu cabeceiras, 's vauS, tam mult. dgu. asperando um am· purrlo da chuVl. Amanhl vai·se IIber se dascau. - quanto tampo acontacau an. filO? - perguntou Oiogo da Mala. COJt8S daitadas no comprido da rada, as pernas do· brada nos joalhol, conquistando o CU/lO aplco anlra o fundo da lípóle • o chio. -E ... COIIl li! tam dila. seo moçOI Onde ali chagou. Ouva faler no filho do "aldito qua mllOU a pobra mia com um cOllador da boi. E oar anec-. ,n.pulto no P"natbt. na;'. I .i"nhl anu. o Piaul a ° "a lo. p ndo p.na. o rIo ravessla Sonia Leal Freitas nlll tOI d. I O. GI nd.. Ico"er. , ",ra. 0111 1101 1101 ° fi' II0S III '01 ° O ele e IIQui elo ela '0111 I •• _I' So oc '.tlll o .. oro. F eI •, .. ral COII IIt I, 1110 d o Q • IIItIrelldo. 11Il1O no II tal o alor QUI d....I •. buscanelo O co 1010. Luao com lOUpa 1110 ° •. re,n nho d. brim I ado. II omblt',.. I .. lçando-lh. • raQuílitl dOI omblos III to ntllhos, .m confolm' dllllOS o c-o II. tente m.gr.ze do COlpO e10ngldle btWQ. d.sc.ndo d. ponte d. cab.ça •• '$;Ilch.ndo QU'. dois metlos p.las planllS dos P's. S.U O iogo d ....10 I.z • ronde das v.n· d.s. I.vando .mOSlras d. bram.nte per. as moças c.sadol"s; ",ças d ... ludo liras d. encontraI; cetim d. duas "ClI p.re .s lOU"'S d. cama; novelos d. II ClII"'is d. liln cololidas; pap.ls da .IIlnat.s, coleh.tn a pressões de metal; rendes. bico d. antrama'o. 9'egas a zig-ug d. ponltl. Tudo isso a muito mais "pousando no mostruêrio lesguardado n. mala. pronto para 81pOl vista do fll uls cheio de dengues no regataio do preço. Anos e anos refazendo aquelas visitas. llPrendilu a minar·lhes. IIsist'ncia sam dar a perceber. Quando assina um. encomeAda. deiu satit- leito o comprador Que acredite tl-Io engana' do. Mes. em sillncio. calculou d. cabeça o qua genhalé por 1011. Naquele di. é Que houve um contra· IIlmpo_ A chuva pegada. melhol ell atllvessar o rio até Parnerama. Tinha negocios e conhe· cidos lê. Onde estava o passadOl? A canoa letir.da das égu.s, ainda podia v'·la fustigada pela chuve. Vazia. A vara compride amllllda num dos "ancos. era forçada pela fúria dos ventos_ Mas. o passador? Onde est.va o passa- dor? Não tardava. a noite fechar-s8-i •. sobre todas as coisas. elemantos e humanidada. Onde estava o passador para levd·lo a Parna· rama? Foi por ai que alguém lhe indicou e casa do Fortunato Romão. Prato da cinqüenta - E é por .1 qUll $8 .nd ••• 0 moço, qui istora d_s nio d. st bom d. du idt. Cai. nio cai. sa a gentl u"' uupeço. I de cara cum o bicho. E cumê QU' fica? Mult. g.ntl por .1. Qua jura i' ter vi.o. , num se ntura ma' n. tr ... ssõt do 110. quando a lu •• spi. d. b.lliton. ch' •. Espe,. pIO dia cl8,ja, • vai .m busca d. COIM d_ jeda. Eu digo de mim m.smo. P.lo sim. p.lo não. cuido de nio cheger pe'-s b.ires do rio nessas épocas d. b.,st,o. Não QUI .ja home de tamê o ignolado. 01S almes do ou 110 mundo. inté sei contê ClUSOS ""Ios. Todos eles garantido. Alguns pUI g.nte d. min'. famia mllmo. Mais deSSlsmonstro hOllOlOSO gosto de falar. não sin·lI. E so conto ° 'ato prus :str.n·os que vio s'imbora cum. ° sin'lI e num fice .palliando plU mode • g.nte Ir inté lê. ficé n. esplat. do bicho. assunltlndo a hora da a lua impratiar a cujub•. A chuva dololosa e tempoli oculltlva ° céu distan". lesplandecente p.ra gum outro mundo onda • névoa nio desci •. Ali tudo estalla tomado pela ploximid.de d.s nuvens a dellamarem·se pesadas e vapoloms. Chovia muito. E lento. Chovi. como um pranto. Triste sobre a tristeza. Tão nho. Os pingos tão juntos. Que a égua desci. como um véu de espessa liQuefação. No ent.n· to. era um chover de tranQüilas trovoadas. Apenas de longe. roncava ° barulho enrouque- cido daquela força bruta. Como um enúncio saudoso. A evocação de Que a natureza dorme às vezes. mas sonhando com e volta. Assim. o corisco se epagare e não alumiava ° céu por cima. Tudo ali estava vedado para a luz a sO o aquoso anoitecar resguardava a passagem liquida das horas. Tinha parado ali por acaso. Não fazia pouso de suas viagens por aquelas bandas. Hospedagem onde dormir não encontrara no lugarejo. Tinha necessidade de muito zelo com ele. não. Apenas um teto bam tapa.do de palha de carllaúba. Uma escora segura - lugar acolhedor onda desenrolar a rede que trazia consigo. Também a mala de couro. dentro. numa ordem irrepreens(vel. jaziam os seus

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Na travessia do rio

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anos bam vividos. Isto é. vivido~' sua manei­ra. Canoa de vara, leva e traz os passageirosque transitam entre a vila e o porto de Parna·rama. Tampo. e tempos cortando o rio.conhaceu gente de toda A parte e de todo ojeito. Andando de sol a sol já rompeu a passa·gem de muita invernada, vendo rUlrem osbalseiros, o rio alargar·se e o caudal revolven·do as plantações ribeirinhas. Bom conhecedordas águas, pesca da anzol nas noites escuren­tas. Quando não hé lua, nem pirilampos.São "iratingas, fidalgos e mandubés. JIl teve!amllia. Melh'or dizendo, teve uma mulher,hé muitos anos. Primeiro filho, parto gorado..lá se foi a pobrazinha com o filho que nãonasceu. Homem ou mulher? Ninguém tiroude dentro pra ver. Foram enterrados os doisna terra esponjosa e escura do pé do serrado.O filho mais ocultado ainda. No esconderijodo útero assassino não se mostrou ao pai.. Nolugar determi~ado, deixou cruz de madeiraque ele mesmo fez e o tempo desfez no des:sarazoado de sua passagem fulminante. Ven­cido esse passado, foi ficando por ali meSmo.Sem mulher, sem o filho que ficou de vir.Abraçou a solidão. Conv(vio amigo com otédio no espelho das águas sempre descendo.Às vezes, a corrente cantando modinhasbrejeiras comandada pela viração do temposeco. Às vezes disparando vigorosas sinfoniasna torrente caudalosa dos grandes invernais.

Fortunato Romão ali parou. No tempo,no espaço. Deixou que a vida fosse aconte­cendo no seu corpo. Modificando feições.Enfraquecendo a visita. Engrossando a palmadas mãos. Apenas seus músculos conservama rigidez. E do exerc(cio constante pelo corteda corrente. Tem consciência de não havermuito mais para acontecer em sua vida.Viu muitas coisas já. Já pelejou com muitasdesavenças. Aprendeu a respeitar mistériose a enfrentar pelejas. Medo mesmo, s6 tem daassombração da cujuba. Noite de chuva, nãosai. Noite de lua, fecha os olhos, se por acasoolha para o remanso do rio. Ela pode estarlá. Sempre ouviu contar que busca as vir­gens donzelas. Mas, se encontra um pretovelho como ele, também usa de assombraçãoque a sua maldade é de correr na veia dosangue. Carrega consigo o corredor de boi,borduna maldita. A vida materna não pou­pada. Tudo anda com ele preso ne mesmacorrente. Nossa Senhore do Desterro que oleve pre bem longe do rio na pessagem dasmalvadas horas. Por isso, não vai atravessaro caixeiro-viajante aquela noite. Ainda quenão chovesse, pelos seus cálculos é lua cheia.Hora propicia ao malfadedo filho da Oes­graçe. Poda. sim, ir ficando em sua cesa.Armar 8 rede nas traves do telhado. Ficacofa, sim. Como n30 ficarial Vê-se bem oa.(guo aspaço de sue coberta. Mas é ume nol·te sO. Dia seguinte. o sol renascido, lê se irãoos dois. Cingindo 8S dgues sem medo. levamuilo tempo, n30. Só se a correnteza engros­sou com o aguacairo. lá palu cabeceiras,'s vauS, tam mult. dgu. asperando um am·purrlo da chuVl. Amanhl vai·se IIber sedascau.

- Hé quanto tampo acontacau an.filO? - perguntou Oiogo da Mala. COJt8Sdaitadas no comprido da rada, as pernas do·brada nos joalhol, conquistando o CU/lOaplco anlra o fundo da lípóle • o chio.

- E... COIIl li! tam dila. seo moçOIOnde ali chagou. Ouva faler no filho do

"aldito qua mllOU a pobra mia com umcOllador da boi. E oar anec-. ,n.pulto noP"natbt. na;'. I .i"nhl anu. o Piaula °"a lo. p ndo p.na.

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• IIItIrelldo. 11Il1O no II ~. talo alor QUI • d....I•. buscanelo Oco1010. Luao com lOUpa 1110 • ° •.re,n nho d. brim I ado. II omblt',..I..lçando-lh. • raQuílitl dOI omblos III tontllhos, .m confolm' dllllOS o c-o • II.tente m.gr.ze do COlpO e10ngldle btWQ.d.sc.ndo d. ponte d. cab.ça•• '$;Ilch.ndoQU'. dois metlos p.las planllS dos P's.

S.U Oiogo d....10 I.z • ronde das v.n·d.s. I.vando .mOSlras d. bram.nte per. asmoças c.sadol"s; ",ças d...ludo liras d.encontraI; cetim d. duas "ClI p.re .s lOU"'Sd. cama; novelos d. II • ClII"'is d. lilncololidas; pap.ls da .IIlnat.s, coleh.tn apressões de metal; rendes. bico d. antrama'o.9'egas a zig-ug d. ponltl. Tudo isso a muitomais "pousando no mostruêrio lesguardadon. mala. pronto para 81pOl • vista do fll ulscheio de dengues no regataio do preço. Anose anos refazendo aquelas visitas. llPrendilua minar·lhes. IIsist'ncia sam dar a perceber.Quando assina um. encomeAda. deiu satit­leito o comprador Que acredite tl-Io engana'do. Mes. em sillncio. jé calculou d. cabeça oqua genhalé por 1011.

Naquele di. é Que houve um contra·IIlmpo_ A chuva pegada. melhol ell atllvessaro rio até Parnerama. Tinha negocios e conhe·cidos lê. Onde estava o passadOl? A canoaletir.da das égu.s, ainda podia v'·la fustigadapela chuve. Vazia. A vara compride amlllldanum dos "ancos. era forçada pela fúria dosventos_ Mas. o passador? Onde est.va o passa­dor? Não tardava. a noite fechar-s8-i •. sobretodas as coisas. elemantos e humanidada.Onde estava o passador para levd·lo a Parna·rama?

Foi por ai que alguém lhe indicou ecasa do Fortunato Romão. Prato da cinqüenta

- E é por .1 qUll $8 .nd•••0 moço,qui istora d_s nio hé d. st bom d. du idt.Cai. nio cai. sa a gentl dé u"' uupeço. lé Idê de cara cum o bicho. E cumê QU' fica?Mult. g.ntl por .1. Qua jura i' ter vi.o. ,num se • ntura ma' n. tr...ssõt do 110.quando a lu••spi. d. b.lliton. ch'•. Espe,.pIO dia cl8,ja, • vai .m busca d. COIM d_jeda. Eu digo de mim m.smo. P.lo sim. p.lonão. cuido de nio cheger pe'-s b.ires do rionessas épocas d. b.,st,o. Não QUI .ja homede tamê o ignolado. 01S almes do ou110mundo. inté sei contê ClUSOS ""Ios. Todoseles garantido. Alguns pUI g.nte d. min'.famia mllmo. Mais deSSlsmonstro hOllOlOSOgosto de falar. não sin·lI. E so conto ° 'atoprus :str.n·os que vio s'imbora cum. ° sin'lIe num fice .palliando plU mode • g.nte Irinté lê. ficé n. esplat. do bicho. assunltlndoa hora da a lua impratiar a cujub•.

A chuva dololosa e tempoli oculltlva °céu distan". lesplandecente p.ra • gumoutro mundo onda • névoa nio desci•. Alitudo estalla tomado pela ploximid.de d.snuvens a dellamarem·se pesadas e vapoloms.Chovia muito. E lento. Chovi. como umpranto. Triste sobre a tristeza. Tão celr.d~

nho. Os pingos tão juntos. Que a égua desci.como um véu de espessa liQuefação. No ent.n·to. era um chover de tranQüilas trovoadas.Apenas de longe. roncava °barulho enrouque­cido daquela força bruta. Como um enúnciosaudoso. A evocação de Que a natureza dormeàs vezes. mas sonhando com e volta. Assim. ocorisco se epagare e não alumiava °céu porcima. Tudo ali estava vedado para a luz a sOo aquoso anoitecar resguardava a passagemliquida das horas.

Tinha parado ali por acaso. Não faziapouso de suas viagens por aquelas bandas.Hospedagem onde dormir não encontrara nolugarejo. Tinha necessidade de muito zelocom ele. não. Apenas um teto bam tapa.do depalha de carllaúba. Uma escora segura - lugaracolhedor onda desenrolar a rede que traziaconsigo. Também a mala de couro. lá dentro.numa ordem irrepreens(vel. jaziam os seus