Nacionalismo e Patriotismo - Gustavo Corção

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NOTA LEGAL

Esta não é uma obra virtual autorizada. Portando armazenar, divulgar, imprimir pode trazer responsabilidades legais perante o detentor dos direitos autorais da obra de

Gustavo Corção que não quer que o autor seja lido.

Os admiradores de Gustavo Corção talvez achem esse um risco pequeno a se correr. Vale a pena ler Gustavo Corção!

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Este livro inclui os principais escritos sôbre oassunto até agora publicados pelo autor, a maioriacomo artigos de ;ornal.

O primeiro trabalho apresentado aqui é a con-ferência pronunciada por Gustavo Corção na sede daV.D.N. em 1950, a nosso ver sua mais importante con-tribuição pora uma formação cívica mais generosa,mais equilibrada e mais fina do que aquela que senutre de orgulhos nacionais ou de ressentimentospessoais.

Os demais são escritos ou artigos que abordamo mesmo tema sob outras perspectivas e que enca-minham a formação do verdadeiro patriota para opanorama internacional em que também se inscreve,como contexto necessário, o problema inicialmentetrotado da relação do homem com suo pátria, seupovo e sua família.

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(*) "Conferência pronunciada na sede da U.D.N., em 1950.Transcrita do livro "Fronteiras da Técnica" por licençaespecial da editôra Agir."

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No presente trabalho, como se vê pelotítulo, pretendo comparar dois sentimentos eduas atitudes morais que nascem da relaçãoentre o indivíduo e o país a que pertence. Emambos os casos como de antemão já se sabe,existe uma valorização do vínculo que nosprende a uma determinada comunidade políti-ca marcando assim uma certa separação dasoutras comunidades. Mas, apesar dessa seme-lhança, que provém da identidade da coisasôbre a qual se aplicam nossas disposições,pode diferir de um modo profundo o espírito,a perspectiva e o critério que determinam avalorização, como por exemplo diferem mo-ralmente os sentimentos de atração por umamulher conforme seja desejada para espôsa oupara amante.

O primeiro obietivo dêste trabalho é jus-tamente o de assinalar o contraste moral quepode existir, e que efetivamente existe, entredois indivíduos que exaltam a mesma coisacom critérios profundamente diversos que noscasos extremos chegam a se opor como à vir-tude se opõe o vício.

Comecemos pois por encarecer essa neces-sidade de bem distinguir o critério que presidea uma determinada inclinacão afetiva, isto é,comecemos por afirmar que' a mesma fôrça deinclinação pode ser moralmente boa ou máconforme o espírito que a governa. Esta é aclave em que se coloca êste trabalho. Diremos

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que o homem vive o intenso campo gravitacio-nal criado pela comunidade política e tombémpelos elementos físicos em que se instala essacomunidade. O homem é atraído pela terra epelo próximo, mas essa fôrça não é puramen-te física, ou melhor, não é determinada pelaspropriedades das coisas como no caso do fer-ro e do ímã. A gravitação a que nos referimosé de natureza moral e assim, na sua últimadeterminação, cada movimento será bom oumau, conforme seja governado por um espíri-to virtuoso ou por um espírito vicioso. Exaltaro Brasil não é necessàriamente bom. Pode serbom, pode ser mau. E quem disser que é sem-pre bom já está sendo mau. l:ste é o primeiroponto a assinalar.

o segundo ponto refere-se ao vocabulá-rio: ao sentimento bom, virtuoso, darei o no-me de patriotismoj ao vício darei o nomede nacionalismo, mas devo logo acrescen-tar que, a rigor, não me prendo demais à ques-tão do têrmo próprio. Poderíamos trocá-Iosdesde que saibamos bem o que é a coisa equais são as características do que chamamosde patriotismo e do que chamamos de nacio-nalismo. Não faço muita questão de fixar ovocabulário; o que desejo é fixar idéias.

Mas seria de um mau gôsto imperdoávelescolher os nomes das coisas sem consultar oseu uso corrente. Eu poderia, evidentemente,escrever uma geometria em que a figura decinco lados se chamasse triângulo e a de trêsse chamasse pentágono. Poderia, em casa, con-vencionar que chão se chama teto e que tetose chama chão, desde que continuasse a an-dar, como todo o mundo, no chão, isto é, noteto.

O que me interessa, qualquer que seja onome, é comparar as atitudes cívicas de umMaurras, de um Mussolini, de um Plínio Salga-do, de um Getúlio Vargas, com as atitudes cí-vicas de um Kosciusko, de um Saldanha da Ga-ma e de um Capistrano de Abreu. Mas obser-

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vem agora que o têrmo nacionalismo, que éposterior a patriotismo, apareceu no mundoquando ganhou singular destaque a mentali-dade que Mussolini, Salgado e Vargas tão bemencarnaram. Mais exatamente o têrmo apare-ceu, ou pelo menos foi lançado no uso corren-te, com o "affaire Dreyfus", em que se conde-nou um inocente, por superiores motivos na-cionalistas.

Quer isto dizer que eu chamo de naciona-lismo o mesmo fenômeno que seus próprios en-tusiastas assim denominam. Concordo inteira-mente com Plínio Salgado que seja nacionalis-mo o seu ideal integra lista. A nossa divergên-cia não é de nomenclatura. Aceito-a, e justa-mente o que me proponho provar é que aquiloque os Srs. Vargas e Salgado acham bom éna realidade mau, e que o entusiasmo dêles éum vício. Vejam pois que não é minha, neminteiramente arbitrária, a atribuição de nomes.

Mas devo aqui abrir um parêntese paradizer que o fenêmeno nem sempre tem a niti-dez que se encontra quando se compara umKosciusko com um Mussolini. Na maior partedas vêzes o problema é mais confuso, apresen-tando uma composição de vício e de virtudeque exige uma análise cuidadosa e difícil. Asreaçães do homem comum são geralmente mis-tas, vacilantes, disponíveis, e sua polarizaçãomais acentuada dependerá de um completoconjunto de circunstâncias. E é por causa des-sa enorme zona indistinta que o vocabuláriose tornou também um pouco neutro. Encontra-

remos em autores muito respeitáveis, uma cer-ta equiparação entre os dois têrmos, patriotis-mo e nacionalismo, mas observem que êssesmesmos autores, pressentindo o equívoco dovocábulo moderno, apressam-se a dizer que háum bom e um mau nacionalismo, um justo eum exagerado nacionalismo.

Conforme já assinalei, o que me interessaaqui é mais a coisa do que o nome, mas nãooculto o meu desejo de obter também comosub-produto do esfôrço necessário a êste estudo,uma fixação de vocabulário. Teria uma grandesatisfação, embora seja isto secundário, se pu-desse lançar à execração o próprio vocábuloque tem servido de senha a idéias execráveis.

Vamos agora entrar na análise da questão,mas antes disso, a título de ilustração, aqui dei-xo uma lista de exemplos de fenômenos históri-cos que caracterizam o nacionalismo e o pa-triotismo e que entrego, numa primeira apro-ximação desarrumada, ao bom instinto dosleitores.

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cer o direito dos espanhóis, contribuiu para omalôgro do tratado de Madri.

Camões, que no melhor de sua obra con- \dena a expansão imperial, cuja glorificação '.muitos pensam ser o objetivo de sua obra. Ve-jam nos Lusíadas. (IV, 94-104) o episódio do .velho do Restelo.

o "affaire Dreyfus" que levou o povofrancês, no princípio dêste século, a praticaruma estridente injustiça contra um oficial judeu.Foi por êsse tempo que apareceu o vocábulonacionalismo. O espírito que dominava o pro-cesso pode ser sintetizado nesta mesma frasecom que os judeus condenaram Jesus: "maisvale que morra um só do que pereça tôda anação". Razões de Estado recomendavam ainjustiça.

"á glória de mandar, ó vã cobiçaDesta vaidade a quem chamamos fama."

e depois:

"Buscas o tncerto e incógnito perigoPor que a Fama te exalte e te lisonjeChamando-te senhor, com larga cópia, l/LDa fndia, Pérsia, Arábia e~ Etiópie. "9 r cf\.\..

A vida de Kosciusko, o polonês que inces-santemente lutou pela libertação de sua' pátriaentão invadida pelos russos. Batido pelos ini-migos, que receberam socorro dos prussianos,Kosciusko veio para a América. Foi patriotano exílio como na pátria. Lutou na Guerra daIndependência ao lado de Washington.

Cherles Maurras. A "adion française".

Patriotismo

Soltando séculos para trás: Cornélia, amãe dos Gracos.

A política do marquês de Pombal, cujoanticastelhanismo cego, incapaz de reconhe-

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Péguy e Bernanos, morrendo o primeiro nofront em 1915 com uma bala no testa; vindoo outro para o exílio no Brasil, "cuver sohonte".

o poema de Longfellow que Rooseveltenvia a Churchill, por telegrama, abrindo as-sim com a poesia o caminho que será depoispercorrido pelos comboios de armas e muni-ções.

Brasilidade, Hispanidade, língua brasilei-ra. Vovô Indio. Anauê.

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Vamos agora marcar mais nitidamente adiferença que existe entre as duas espécies defenômenos que acabamos de enumerar.

Começo por dizer que não há somenteuma diferença de grau como se poderia con-cluir quando se ouve dizer que o nacionalis-mo é um patriotismo exagerado.

Essa maneira de apresentar a questãopretende caracterizar o fenômeno mais pelaextensão de sua matéria do que pela perspec-tiva racional que em relação a ela se adota.Com essa idéia, o patriotismo irá muito bematé certo ponto - tantos graus centígrados deardor cívico - e o nacionalismo começa ondeé ultrapassada essa escala, estando assim pa-ra o verdadeiro civismo como a febre estápara a saúde.

Fôsse assim, o problema consistiria em de-marcar os limites dos sentimentos para evitarque o patriota, num momento de maior entu-siasmo, se transformasse em nacionalista. Se-ria isto o mesmo que dizer que um Saldanhada Gama um pouco esticado daria um Floria-no Peixoto; ou que o patriota Roosevelt, seem vez de ter enviado um poema tivesse te-legrafado a Churchill as obras completas de

longfellow, se aproximaria do nacionalista Hi-tler que presenteou o nacionalista Mussolinicom as obras completas de Nietzsche.

E um êrro, e não pequeno, caracterizarum problema moral pela medida das coisassôbre a qual se apiica; e é um êrro pensar quea normalidade nesse domínio se pauta pelamediana eqüidistante entre uma deficiência eum exagêro.

Basta pensar um pouco nos diferentes fe-nômenos apresentados para descobrir, sem som-bra de dúvida, que êles não têm o mesmo es-pírito, que não se norteiam pelo mesmo crité-rio e que, por conseguinte, não se podem me-dir ao longo da mesma escala.

E por isso não se pode dizer que o na-cionalismo seja simplesmente um exagêro depatriotismo.

Ao contrário, há entre os dois capítulosuma oposição. No patriotismo, como veremosmelhor, há uma reta conformidade com umjusto critério; no nacionalismo uma oblíqua dis-formidade causada por um injusto critério. Po-deríamos dizer, num paralelo que me pareceperfeito, que o nacionalismo se opõe ao pa-triotismo como a super:ltição que é um víciose opõe à religião que é uma virtude.

Mas há dois modos de oposição em tôrnodas virtudes morais, sendo assim a virtude umjusto meio têrmo. A religião, virtude de justi-ça pela qual prestamos o culto que é devidoao nosso Criador, é um justo meio têrmo en-

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tre a incredulidade e a superstição. Nos dire-mos que o irreligioso peca por deficiêncio, eque o supersticioso peca por excesso; 'mas demodo algum queremos dizer que .q" po~~ç~ocerta e virtuosa esteja numa médlà .'.equldls-tante dos dois extremos. Essa maneira de in-terpretar o fato da virtude ser um justo meiotêrmo é grosseiramente defeituosa e tem con-tribuído em larga medida para reforçar as cô-modas posições. da mediocridade porque ne~-sa interpretação não cabe a idéiade,perfe,-cão que é correlata à da virtude. ° ,indivíduoque procurasse a perfeição na linha prolonga-da da virtude estaria arriscado a tornqr-se umviciado se ultrapassasse a linha mediemo tãocômod~ e tão apreciada pela maioria dos ho-mens.

Ir à missa aos domingos, já que ossim opreceitua a Igreja, será bom. Mas ir à missatodos os dias será um exagêro, e portanto umcomêço de vício.

Convém esclarecer melhor o sen.tido emque a virtude é um justo meio têrmo para que,com êsse instrumento aprimorado, não engrosse-mos nós a propaganda da mediocridade quemata nos corações dos homens o gôsto pelaperfeição.

A virtude é um equilíbrio, que pode serrompido por um desv~o num e n?utro:~entido,mas o que a caracteriza como virtude e a re-tidão, a conformidade com o que é certo, avertical que aponta para o zênite de uma ver-

dade, e que, nesse sentido pode crescer e de-ve crescer na direção do mais perfeitot semque êssecrescimento possa ser chamado deexagêro. ° que se pode chamar de exagêroé o desvio para o lado que materialmente secaracteriza por um transbordamento. Em ou-tras palavras, chamaremos de exagêro, pejo-rativamente, o acréscimot não simplesmente porser acréscimo e sim por ser uma excrescênciaque rompe o equilíbrio e que arruína O crité-rio. Em matéria de crença, por exemplot O cri-tério é ciquêle' que nos é dado pela revelaçãodivina e que é em nós recebido pela razão ilu-minada pela fé. Admitida a verdade católica,eu direi que crê com justeza quem adere àsverdades reveladas por Deus e ensinadas pelaIgreja, nem mais nem menos. Se recusa um dosartigos peca por deficiência, por incredulida-de, mas convém notar cuidadosamente quenão é pelo fato de crer em menos um artigoque peca, e sim pelo fato de pôr em dúvida ocritério fundamental que é a revelação divinae a infalibilidade da Igreja. Mas também pecase por sua conta acrescentar, como artigo defé, o temor no saleiro entornado; e peca pelomesmo motivo, ou seja, porque viciou, comêsse acréscimo, o critério fundamental.

Há porém uma linha em que se pode ese deve crescer sem que essa extensão sejaum vício. Ao contrório será uma perfeição. Ea linha que se oriento fielmente, inflexlvelmen-'tet pelo critério da reveloção divinat mas vaimais longe em fõrçot em profundidadet em con"

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sequencia. o santo, por exemplo, fica rigoro-samente adstrito àquele depósito de fé a quenada se pode tirar e nada se pode acrescen-tar, mas constrói mais alto, por êsse mesmoprumo comum, a tôrre de sua alma.

Não é mais religioso quem crê em maiscoisas; mas é mais religioso quem crê melhornas coisas críveis.

E nesse sentido que a virtude é um meiotêrmo, sendo um equilíbrio entre duas tendên-cias viciadas mas equilíbrio de uma verticalque pode e deve crescer na sua justa direção.De outro modo, definida a virtude pelo meiotêrmo medido no nível das coisas sôbre asquais se aplica, haveria oposição entre o con-ceito de virtude e o conceito de perfeição, quese traduziria concretamente por um universalapêlo à mediocridade.

E é nesse sentido que a virtude se opõeao vício como a vertical, a retidão do crité-rio, se opõe ao desvio. Nós diremos pois as-sim: o vício da superstição se opõe à virtudeda religião por excesso. Mas não diremos: asuperstição é excesso de religião. Porque nes-ta última fórmula a idéia principal de oposiçãofica eclipsada deixando crer que é na mesmalinha, na mesma escala prolongada que a virtu-de se transforma em vício.

E curioso notar, entretanto, que êsse êrro éhoje divulgadíssimo. Numerosas pessoas, nãosomente contadas entre as de cultura menor,pensam que a normalidade é sinônimo de mé-

dia, e que a virtude consiste no baixo meio tê r-mo das coisas e não no elevado equilíbrio darazão. Sociólogos e psicólogos de renome, se-guindo consciente ou inconscientemente asidéias de Durkheim expressa em "Regles deIa Methode Sociologique", alimentam êssecôro já volumoso do hino à mediocridade e,valendo-se de estatísticas, estabelecem a equi-paração entre o conceito de normalidade e demédia.

Voltando ao nosso tema, depois dessa di-gressão provocada pela existência muito difun-dida dêsse êrro, diremos que à virtude do pa-triotismo se opõem dois vícios, um por exces-so, o nacionalismo, outro por carência, o in-ternacionalismo. Mas teremos todo o cuidadode não dizer, e sobretudo de não pensar queo nacionalismo é um exagêro de patriotismo.Ninguém se arrisca a se tornar nacionalistapor se tornar mais patriota. Mas qualquer umse arrisca a se tornar nacionalista se deixarentortar-se o critério justo do patriotismo.

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o patriotismo é uma virtude moral anexada justiça. Como tõdas as virtudes morais, tema universalidade que não conhece fronteiras,mas deve exercer-se concretamente no desejo ena promoção do bem comum de uma determi-nada comunidade humana definida por fron-teiras culturais, geográficas, lingüísticas e his-tóricas. O homem procura o bem sob o duploângulo do universal e do concreto. Se a idéiade justiça manda que se dê a cada um o quelhe é devido, de um modo geral, a virtude dajustiça é inclinada ao exercício, ao particular,ao concreto, ao próximo. Segue-se então queo homem precisa de grupos que se escalonemem zonas concêntricas de densidade crescen-te. Em cada um dêsses grupos concêntricos -nação, província, cidade, paróquia, família -há limites para mais intensa concretização davida moral, e em cada um dêsses grupos amesma idéia geral de justiça se manifesta deum modo particular que vai mudando de as-pedo de uma para outra dessas zonas da hu-manidade. O homem precisa dêsses limites edessa descontinuidade, para a aplicação dosmesmos princípios de justiça.

Uma família é um todo bem definido eperfeitamente destacado de outra família; uma

ciddde .é bem limitada e distinta de outra ci-dade; um país é uma realidade que tem fron-teiras nítidas; fronteiras geográficas, lingüísti-cas, históricas e culturais. O que porém im-porta assinalar é que êsses limites da família,da cidade, da nação, não podem ser barrei-ras morais que confiram ao grupo assim defi-nido o direito de procurar o bem próprio emdetrimento da justiça. Este é o ponto capital.E é aqui, neste ponto, que melhor se eviden-cia a radical oposição entre o nacionalista eo patriota.

O patriota deseja a nitidez de suas fron-teiras; cultiva-a, exalta-a; mas ao mesmo tem-po, num aparente paradoxo, é capaz de com-preender o patriotismo dos outros. Ele sabeperfeitamente que suas muralhas são porosaspara o sentimento universal da justiça.

O nacionalista, ao contrário, se caracte-riza por um isolamento moral, e portanto imo-ral. Ele deseja fronteiras refratárias, onde sedetenham, como inúteis para aquela comuni-dade à parte, as lendas dos heroísmos distan-tes, as histórias de homens como Kosciuskoque lamentaram em polonês a servidão de suaterra natal.

Um patriota brasileiro, sendo realmentepatriota, é capaz de chorar de emoção ouvin-do contar histórias de patriotismo húngaro ouchinês. Simpatiza intensamente com a dor deKosciusko ainda que. não saiba pronunciar oesquisito :nome' d!'l sua cidade natal.

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E sabe, sendo realmente patriota, que po-derá lucrar, e traduzir no coração as lágrimashúngaras e o sangue polonês; e sabe que as-sim, nesse exercício, pode tornar-se mais pa-triota e mais brasileiro.

O nacionalista ao contrário, não acharágraça nenhuma no heroísmo húngam ou chi-nês que lhe parecerá um cômico equívoco. Overdadeiro nacionalista, de um daqueles tiposque há pouco enumeramos, achará esquisitís-simo e inteiramente incompreensível o amor deum polonês pela Polônia. E nos advertirá, comsua ênfase peculiar, que a formação de umBrasil forte e unido exige que suas criançassó conheçam heróis brasileiros, ainda que al-gum dêles nunca tenha sido heróico.

Quando eu tinha sete anos minha ;mãeensinava-me o patriotismo num livo italiano,"O Coração" de D'Amicis. Líamos juntos ashistórias do Escrevente Florentino e do Peque-no Vigia Lombardo, e muitas vêzes eu me de-tinha na leitura, com um nó na garganta, sen-tindo, compreendendo a grandeza, a pureza,a beleza daquela dedicação que chegava aodom de si mesmo naqueles bons meninos deoutras terras. E nesse curto instante de emo-ção havia entre nós dois uma corrente de ge-nerosidade. A boa mãe, já ali, naquele instan-te, naquele minuto de lição, começava a lon-ga despedida de seu filho, incitando-o aos jus-tos combates, como a romana Cornélia, obs-cura Cornélia, apagada heroína; como tôdasas mães generosas. E eu, naquele tempo, no

meu coração de menino queria ser no meuBrasil como aquêles meninos da Florença e daLombardia.

Quando porém meus filhos tinham seteanos "O Coração" de D'Amicis tinha sido afas-tado das escolas. Haviam descoberto que olivro italiano Ihes impediria o desenvolvimen-to da brasilidade. Haviam decretado que astabuletas dos colégios fôssem traduzidas parao português - ou para a língua brasileira co-mo quiseram alguns. Depois mandaram distri-buir nas escolas públicas o Sorriso do Presi-dente e a História do Menino de S. Boria.

Vejam bem a diferença, não só dos livros,mas dos dois espíritos.

I: claro que, em condições iguais, compre-ende-se que os meninos devam conhecer me-lhor as coisas de sua terra, da terra dos seuspais, porque é do conhecimento dêsse patri-mônio que procede o amor do patriotismo.Mas pensar que o patriotismo só pode seraprendido na língua do país e com fatos dopaís é tão insensato como pensar que a tem-perança, a coragem e a castidade só podemser adquiridas no vernáculo e com exemplo damais pura brasilidade; e é tão estúpido comopretender que as virtudes domésticas do vizi-nho sejam um mau exemplo para o desenvolvi-mento das virtudes domésticas de minha fa-mília.

O ponto central das distinções que esta-mos traçando é a radical incapacidade que

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tem o nacionalista de opreender o teor moraldo patriotismo e sua dependência da iustiçaie, por conseguinte, a total incapacidade desimpatizar com o patriotismo alheio. Falta-lheo que Chesterton em Barbaria de Berlim tãobem chamou senso de reciprocidade.

O nazismo foi sem dúvida a forma maisexasperada e mais extremada de nacionalis-mo. Da completa falta de senso de reciproci-dade não há talvez melhor exemplo do que afamosa frase de Hitler diante de Varsóvia:"Criminosa loucura a defesa desta cidade!"

O patriotismo é uma forma de reverênciaque tem apoio na tradição. É um sentimento,raro hoiet de respeito pelos antepassados. Éum modo peculiart racional e afetivot de verno chão de uma terra o sinal de pés antigos.É um modo especial de adivinhar numa paisa-gem os sinaist os comoventes sinais de anti-gas mãos. É um modo sem igual de simpatizarcom dores passadas e de se alegrar com pas~sadas alegrias. É ter uma história comumt quev~m de longe, cantada na mesma língua e vi-vida no mesmo grande e permanente cenário.

Eu disse as dores e as alegrias evocados i

mas deixei passar a nota contraditória que re-ge essas evocações e que põe um quê de tris-teza nas alegrias de outrora e um quê de ale-gria nas tristezas vencidas. Vejam por exem-plo os monumentos públicos. São os nossosmortos que vêm pôr um ar de festivo cemité-rio nos bons iardins públicos onde brincam ascriançast o futurot em tôrno dos pedestais dopassado.

Mas os nossos primeiros antepassados sãopai e mãe. Não é pois fora de propósito di-zer que o patriotismo começa pela reverên.ciados paist êsses elos vivost êsses nós entre dois

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mundos. A etimologia nem sempre é argumen-to; freqüentemente é sofisma; mas aqui, nes-te problema que hoie nos ocupa, a etimologiavale por definição. Pátria deriva de pai. Pa-triotismoderiva de uma lei natural que foielevada à dignidade de mandamento divino:honrar pai e mãe.

Patriotismo é pois a virtude da longacontinuação e da grande fidelidade. Funda-menta-se no passado, como raiz, e valendo-sedo que houver de genuíno nesta tradição pro-jeta-se para o futuro. O patriota deseja umBrasil melhor, deseja com tôdas as fôrças davirtude bem equilibrada a perfeição do seupovo, de sua cultura, de suas instituições.

O nacionalista também deseja um Brasilmelhor, mas num outro sentido. Na verdade oque êle deseja é um outro Brasil. Seu critérioestá mais numa invenção do que numa conti-nuação, é mais idéia do que realidade. Os di-rigentes nazistas, no apogeu de seu delírio, jápouco falavam de pátria, da Vaterland, daterra de seus pais. Falavam da Idéia, lutavampela Idéia, morreram pela Idéia. Desejavamrealizar numa espécie de fotomontagem, commateriÇlI colhido aqui e ali em lendas germâ-nicas (porque o barro é necessário às modela-gens mais ousadas), um nôvo Reich, como aquientre nós se desejou o Estado Nôvo e a Ida-de Nova.

. ,.Existe· po.is, 5Gb êste ponto de vista,utrra~d~fe~ença radical, entre os dois espíritos. O pa.t~lotJ5mo é uma reverência diante de uma rea.IIdade que continua. O nacionalismo é umaexultação diante de uma idéia a ser realizadade uma coisa que não existe, sonho de uns pou~cos, pesadelo de muitos.

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Sendo o patriotismo uma virtude moralanexa da justiça e inscrita na esfera do Quar-to Mandamento, é óbvio, para os católicos,que não pode haver vida cristã perfeita ondefaltar essa forma de piedade. Dai se segueque um católico não pode desinteressar-se dasorte de seu país, da sua história, de seus des-tinos, e principalmente dos fatos políticos, semtrair um preceito. l: vão o seu patriotismo se sedesloca dos dramas da convivência humanapara as preciosidades geográficas ou para ocampeonato de futebol.

Sendo o patriotismo uma virtude moral, éclaro que o sentimento mais se dirige para oshomens do que para as coisas. E mais uma fOI""ma de fraternidade do que uma admiraçãopela bacia hidrográfica do Amazonas.

Do ufanismo não se pode talvez dizerque esteja na linha do nacionalismo; mas pormais forte razão não está na linha do patrio-tismo. E um fenômeno lateral que se alastrana enorme zona neutra reservada à prolifera-ção de tôdas as tolices. Mas, num certo senti-do, pode.se mostrar que essa idéia meio vagae meio disponível pende mais depressa para olado mau porque, fundamentando nas riquezas

acidentais do país o sentimento de nacionali-dade, priva-o do conteúdo moral. Para o ufa-nista tudo se reduz a um sentimento bocó deadmiração pelo lote de mamíferos, de fôlhase de montanhas que por acaso histórico nosfoi adjudicado. O patriota se transforma noirresponsável felizardo que tirou numa rifa oPão de Açúcar e a Vitória Régia.

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Permitam-me insistir num ponto. Disseatrás que não bastava apresentar o naciona-lismo como um exagêro de patriotismo. Ora,o que foi dito depois poderá induzir alguémem êrro, a ponto de pensar que o. nacionali~-mo consiste em acrescentar barreIras moraisonde já existem barreiras culturais, históricase geográficas. Seria assim um refôrço, ou, co-mo se costuma dizer, um exagêro. Em outraspalavras, o nacionalista seria injusto apenasem relacão ao estrangeiro, sendo melhor pa-ra o na~ional, mas de um melhor que não épermitido.

Ora, quero demonstrar-Ihes que não é as-sim. A mudança de espírito é completa, a, SU?-versão é profunda, a tal 'ponto que a p.ro~~.tOmatéria geográfica, histÓrica, cultural e Ilngu~s-tica, a própria vida interna do país não é VIS-

ta com os mesmos olhos por um e por outro.

Para o nacionalista, como já Ihes disse,não importa o que as coisas são e sim o quedeveriam ser à luz de uma idéia. Para o pa-triota também importa o que as coisas devemser mas êsse deve ser moral está na linha dasre~lidades humanas que são perfectíveis e nãona linha de uma invenção.

Umo das características mais torvas dessamentalidade idealista, no sentido clássico dapalavra, é o irrealismo que oscila entre a de-mência, como fenômeno mental, e a impostu-ra como fenômeno moral. O homem normaltambém é idealista, se por tal se entendequem tem ideais, mas ideais de perfeição,ideais concretos como diz Maritain, isto é,ideais que estão contidos nas coisas. Nesse sen-tido é que nós desejamos, como ideal concre-to, a realização de uma nova cristandade comtais e tais características. Charles Journet, paroexprimir êsse ideal, e assinalar sua nota deprofundo realismo, diz assim: "Une nouvellechretienté demande a naitre".

Para nós também há um nôvo Brasil quequer nascer, e que já existe em raízes nas as-pirações, às vêzes desordenadas, que estão pe-dindo os nossos esforços de coordenação eCloroveitamento.

Mas o nacionalista tem outro tipo de idea-:ismo, onde a idéia domina a realidade. Elenão se atém às realidades históricas, lingüís-7icas, culturais e geográficas. No clima do seuidealismo mágico êle compõe, inventa, proje-ta, fabrica. As realidades, desde a geografiaaté as almas, serão apenas a matéria com quedeve ser montada sua obra de arte. Tudo estáà sua disposição. Se faltam heróis, inventam-se. Se a história é feia, modificam-se os fatos.O próprio fenômeno da linguagem fica à mer-cê dos decretos, e a própria geografia tor~na-se plástica, ou para ser alongada em forma

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de império, como sonharam Hitler e Mussoli-ni, ou, na falta de material bélico apropriado,para ser simplesmente mexida e remexida in-ternamente nos nomes de cidades, como porexemplo Limeira do Rio Doce que ficou sendoGovernador Benedito Valadares, e ltabira quese transforma em Presidente Vargas.

Se estendêssemos o alcance de nossas in-vestigações, poderíamos mostrar que há sem-pre na base do nacionalismo um profundosentimento de aversão pelo homem, uma náu-sea, um desejo de reforma, não de reformamoral, mas de reforma física que nos dê umanova humanidade - como nos dizem os inte-gralistas - em lugar desta nossa antiga e fa-tigante humanidade.

O nacionalismo é por isso um sentimentoduro, implacável, destituído de ternura e opos-to à reverência. Concepção da vida e do mun-do mais teatral do que moral, apetite de apo-teose mais do que um desejo de humana feli-cidade. O nacionalista acha absolutamente ne-cessário que o objeto do seu culto seja visto-so e grandioso. Se os fatos o não ajudam, tan-to pior para os fatos. Ele não hesitará em lan-çar mão das mais estridentes mentiras para su-prir a deficiência das realidades. Mentirá. Men-tirá com eficiência. Mentirá com método. Menti-rá com entusiasmo, para manter acesa a flamade ideal, como dizem os integralistas. E sobretu-do mentirá com um esquisito sentimento de sin-ceridade, por estar convencido de que é tão

legítimo mentir em política, como é legítimousar árvores de papelão no teatro.

Em resumo, o que eu quero dizer é que onacionalista mais se parece com um cenógra-fo, com um ator, e às vêzes com um palhaço,do que se parece com um bom pai de famíliaque ama e reverencia o pequeno grupo huma-no que dirige, ainda que seja pobre e feio.

O ponto onde agora desejo chegar, sebem me entendem é o seguinte: Seria um êrrosupor que o nacionalista é apenas injustocom os homens que vivem fora de suas fron-teiras. Não. Ele é principalmente injusto comos homens que vivem dentro de suas frontei-ras. O horror ao estrangeiro é sobretudo no-civo para o nacional, o que aliás era de espe-rar, porque a justiça não pode ser mutilada econtinuar a ser justiça. Quem faz acepção depessoa, protegendo esta em detrimento da-quela, é injusto com ambos, aqui por excesso,ali por deficiência. E, como nada se multipli-ca e se reproduz mais ràpidamente do que ainjustiça, depressa se transforma um país na-cionalista numa sementeira de privilégios, depistolões e de favoritismo. E logo após, comofôrças de devastação física, a injustiça criafavelas, endurece o pão, turva a água, e falsi-fica o leite.

No caso do Brasil, a xenofobia é algo tãoestúpido que se torna cômico; e o desejo denacionalizar a Light ou de restringir a imigra-ção é algo tão cômico que se torna trágico.

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Anos atrás, por exemplo, quatro irmãs de ca-ridade canadenses tentaram desembarcar aqui.Ofereciam-se para tratar de leprosos. Mas asuscetibilidade do Estado Nôvo estomagou-secom essa pretensão das quatro intrusas que vi-nham ver de perto as nossas mazelas. Funcio-nou ó bloqueio da burocracia e as filhas des. Vicente voltaram. Não passava a caridadenas alfândegas do Brasil. Fica assim eviden-ciado que o fato de traçar em tôrno das bar-reiras naturais um anel de injustiça não fun-ciona sàmente como um acréscimo de separa-ção, mas também, e principalmente, como umaprofunda deterioração daquilo mesmo que sedeseja guardar. A cultura, fechada nesse cír-culo de isolamento moral, azeda e apodrece.A história se altera, e se cobre de figuras efatos parasitários com que se ilude e se ador-mece a vigilância de um povo. O próprio idio-ma, em desrespeito aos seus fundamentos na-turais, torna-se jôgo de reformas ortográficasou de brinquedo de nacionalização nas mãosde improvisados filólogos. E assim todo o pa-trimônio de um povo se corrompe quando lhefalta essa ventilação da universalidade moral.

Procurei até agora mostrar que a boa so-lução dos problemas internos de um país exi-ge um genuíno patriotismo com a nota essen-cial de idéia universal da justiça e da solida-riedade humana. Agora proponho-me demons-trar que a boa solução dos problemas inter-nacionais exige um profundo sentimento de so-lidariedade humana com essa nota essencialde um genuíno patriotismo. Em outras pala-vras, quero dizer que uma sociedade de na-ções não poderá funcionar com representan-tes nacionalistas; funcionará mal com interna-cionalistas; e só poderá dar resultados bons efecundos com representantes verdadeiramentepatriotas.

A idéia, aliás, é muito mais simples doque à primeira vista parece; e deriva direta-mente dêste postulado fundamental: uma so-ciedade de homens se torna mais perfeita emais feliz, na medida em que se torna maisfraterna. f nesta atmosfera da amizade cívicaque uma sociedade humana se torna verda-deiramente humana e realiza o seu bem.

Ora, sendo o homem uma criatura racio-nal, composta de corpo e alma espiritual, temde tomar consciência de seu bem, e procurarracionalmente, aprendendo e exercitando, o

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seu fim. Ressalva feita da clencia dos primei-ros princípios que está em sua natureza, o ho-mem aprende tudo, exercita-se em tudo. Nemé anjo que vê num relance, e num relance es-colhe; nem é animal instintivo que recebe aonascer tôdas as disposições necessárias à rea-lização de seus fins. O homem, pelo espírito,tem de imprimir um cunho de racional idade atodos os seus atos propriamente humanos;mas, por causa de sua animal idade, e por cau-sado precário equilíbrio em que se encontra,obriga-se ~ um exercício penoso, arrastado,prolongado, para a aquisi~ão das necessáriasvirtudes.

Precisamos pois receber lições de tudo.Aprendemos a falar, aprendemos a ler, apren-demos a pensar, e aprendemos a amar. Tudoo que nos concerne está sujeito à lei da per-fectibilidade pela lição e pelo exercício. Apren-de-se em chinês, em latim ou húngaro; mas sópode exercitar-se no concreto, isto é, num re-cinto que se isolei num grupo que se constituaà parte, como sociedade menorl mais próximae mais densa, dentro da sociedade maior. Porisso pede a natureza humana que o mundodo homem se divida em nações; que as naçõesse dividam em províncias; que as provínciasse dividam em municípios. E assim, uma suces-siva contração, com graus de marcado descon-tinuidade, se processa para que o homem en-contre o homem,e -nessa pequena liça, comum mundo ao redorl inicie o brioso torneio daconvivência.

. !" contração continua. Não é ainda noa.mblto por demais esparso do município ou dac~da?e que se. pode preparar aquela fina subs-tancla da amizade cívica.

. On~e ser.á então que se prepara, com adevida intensidade, com a justa composiçãoe~sQ atmosfera da fraternidade? Em que ga~sometros de amor se destila e se concentraêsse cordial oxigênio? Em que limites maisapertados, .mais. resguardados, podem os ho-mens exercitar efetivamente as regras dos en-contros?

Só pode ser na Casa. Na casa de família.~a casa que se fecha, não para isolar-se dac,d~de, como um covil de ladrões, mas paraabrigar da chuva e do vento a boa sementei-ra da amizade.

Em relação aos muros das casas de famí-lia há porém um problema semelhante ao dasfronteiras das nações. Há casas patrióticas ec?sas nacionalistas. Poderíamos também men-clon~r as casas internacionalistas, onde entrae sal quem quer, onde todo o mundo faz o~ue lhe passa pela cabeça, e onde, em suma,Impera tamanha tolerância que não seria im-próprio chamá-Ias casas de tolerância.

As nacionalistas são aquelas que mais abri-gam uma quadrilha do que uma família. Nãoporque sejam os seus membros ferozmentedesunidos; antes porque são unidos ferozmen-te. Unidos contra as outras casas.

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Nesse ambiente, por mais educados quesejam os hábitos, cor.spira-se contra a cidade.Nesse reduto, nesse covil, em lugar da semen-teira cívica, o que se prepara é o favoritismo,o que se manipula é o pistolão. Nessa casa,o de que se cuida é de arranjar empregos evantagens para todos, desde que um tio ou umcunhado logrem atingir uma altitude de poderque Ihes permita a distribuição privada da coi-sa pública.

I: também postulado nosso que uma so-ciedade é o que são suas famílias. Ora, é inú-til disfarçar a situação em que hoje nos en-contramos sob êsse ponto de vista. De um Io-do vê-se a vertiginosa decomposição de nos-sas melhores tradicões.As famílias se desman-cham. Os casame~tos são cada vez mais efê-meros. E as casas funcionam apenas como pla-taforma de estação, como ponto de baldea-cão entre as correrias do dia e as correrias da~oite. De outro lado, entretanto, assistimos àfossilização de nossas piores tradições. As fa-mílias que resistem ao vento de destruição seaglutinam com tôdas as fôrças do egoísmo, co-mo se vivessem em terra de inimigos.

Os moralistas se inquietam com a instabi-lidade dos casamentos e com as repetidas rei-vindicações dos divorcistas; mas não se inquie-tam na mesma proporção com o filhotismo ecom o pistolão. Ora, ambos os fenômenos,cada um a seu modo, afligem a sociedade eafligem a família. Escancarada, a casa se di-lui; isolada da cidade, a casa se perverte.

Eem ambasas hipóteses tanto se perdena família como na pátria.

I: de uma importância capital a compre-ensão do estreito nexo entre os sentimentos fa-miliares e os cívicos, e é essa compreensãoque falta em tôdas as teorias, da direita e es-querda, que pretendem resolver o problemada reestruturacão da sociedade sem a amiza-de cívica e p~rtanto sem a casa que é a ofi-cina dessa amizade.

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Voltemos à nossa idéia de um mundo hu-mano formado de zonas concêntricas.· Em con-trações sucessivas chegamos à casa de famí-lia que é (ou deve ser) o lugar onde se destilaa amizade cívica. O ar da amizade está ali(ou deve estar) em densidade maior e maisalta pressão. Por isso a casa se fecha. Escola,sala de armas onde se exercita a difícil esgri-magem da justiça, a casa tem o recato neces-sário a êsse aprendizado que não deixa deter o seu ridículo, como todo o aprendizado.Por isso a casa é um segrêdo. Lá dentro, entreas quatro paredes bem opacas - contra asidéias arquitetônicas do Sr. Niemeyer - a fa-mília aprende e exercita, entre alegrias e afli-ções, as regras dos atritos humanos.

Há muito esbarro no vaivém apertado davida familiar, muitos cachações, como dirá Ma-chado de Assis - mas é nesses mesmos cho-ques cotidianos, e eu direi até nesse atrito con-tínuo, que cada um encontra as mais ricasoportunidades de exercer as virtudes. E quemdiz exercer, nessa matéria, diz adquirir.

A luta mora. tem uma característica quevale a pena encarecer. Enquanto nas lutas fí-sicas, como nas guerras, o vencedor sai muti-

lado, ferido, exausto, mal se distinguindo dovencido; nas batalhas morais o vencedor saisempre mais forte do que entrou. Não é tro-féu, botim, prêmio material o que aí se con-quista, mas um nôvo vigor. Nas lutas morais,ao contrário das físicas, quem vai resistindo evencendo, vai se tornando cada vez mais for-te, mais armado, mais ágil,. mais pronto. Daía imensa utilidade dêsse exercício em ambien-te fechado onde são múltiplas as oportunida-des de lucro. E daí o terrível inconveniente dese armar a chamada harmonia familiar emtêrmos de evasão.

Os moralistas de convencão referem-sefreqüentemente às doçuras da ~ida familiar eao suave remanso do lar. I: mentira dêles.São ufanistas da casa. Mentem como os idóla-tras da Vitória Régia, ou como os locutores derádio pagos para dizer ao microfone, em setede setembro, que o país inteiro, de norte asul, está vibrando de ardor cívico.

I: certo que a casa tem doçuras de mel;como é certo que tem agruras de fel. Tem tudoo que é do homem em mais espêssa e densahumanidade. Às vêzes a atmosfera fica tãosufocante, dentro de casa, que a rua se tornaum paraíso apetecido. Saímos a respirar umpouco, para gozarmos o descanso das multi-dões indiferentes, da humanidade neutra, dosvultos que não nos cobram nada, dos rostosque não nos dizem respeito. E às vêzes· tem-sea impressão de uma irreparável destruição,de uma incompatibilidade sem remédio. Pare-

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ce inútil lutar, tempo perdido insistir. E êssespensamentos uma vez que se instalem, vãocorroendo em nós aquelas mesmas reservasem que deveríamos buscar a recuperação.

A fragilidade do matrimônio decorre deuma desmedida exigência de felicidade, ou me-lhor, da aplicação dessa exigência a uma coi-sa que não suporta tal pressão. Há uma inso-lência nossa nessa impaciente cobrança de ven-tura, e há sobretudo um equívoco, porque pre-tendemos tirar da casa, do matrimônio, doamor humano, um infinito rendimento, quan-do é finita e sempre muito exígua a nossa pró-pria contribuição. Depositamos com mesqui-nharia e queremos juros generosos, infinita~mente generosos. E no desejo dêsse absurdobalanço nós somos injustos com o próximo, einjustos com Deus. Realmente, por mais esque-sito que isto pareça, se alguém imagina quea sua noiva, e mais tarde a espôsa, lhe possadar plena felicidade, não terá direito de quei-xar-se nos dias de decepções, porque foi êle,inicialmente, o primeiro culpado de injustiça.

Só se restabelece o equilíbrio dêsse pro-blema em que se põe num dos têrmos um de-sejo aberto para o infinito, quando no outrotêrmo se coloca a lembrança muito conscien-te, muito reverente, do depósito de sangue in-infinitamente precioso que um Outro colocou ànossa disposição, e quando, conseqüentemen-te, para êsse Outro orientamos todos os nos-sos anseios de felicidade perfeita.

Mas voltemos ao nosso ponto de partida,à casa, à casa fechada para o exercício daamizade. Disse que a casa é um segrêdo. Defato o é. Ou deve ser. Deve ser uma. interio-ridade. Uma intimidade. Uma intimidade deafeições e uma intimidade de aflições. Ummundo de recato. Uma história escondida.Mas dentro dêsse segrêdo que. abriga umafamília há um outro segrêdo que se escon-de da família. Naquela gruta de pedra háuma concha fechada e dentro dessa concha umsegrêdo maior, escondido na intimidade e nosegrêdo da casa. Os esposos se escondem. Es-condem-se da casa, dentro da casa. Fecham-se dentro do que já é fechado. Abrigam-se nointerior do que já é abrigado. E assim é que,nesse último reduto, nesse último pôrto, nes-se abrigo, nessa concha, preparam não só oamor e a justiça, mas também o huto dessajustiça e dêsse amor.

Vejam, vejam senhores como o mundo dohomem é feito de sucessivas e concêntricasfronteiras que vão, desde aquelas que vemosno mapa com rios e cordilheiras até a portafechada da câmara conjugal. Mas agora apre-ciam o reverso do fenômeno: cada uma dessasmuralhas é sucessivamente superada,' como

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barragem de açude que se quer cheio paraque transborde em serviço. O dinamismo dasfronteiras está voltado para fora. E agora, ve-jam, vejam nessa nova direção como se ex-pande o mundo do homem!

De fato, se é verdade que os esposos seescondem, em compensação não há nada me-nos escondido do que o fruto de seu segrêdoe não há nada mais apregoado, mais publica-do, do que a criança que nasce. Toca cem vê-zes o telefone, êsse pequeno sino familiar donatal dos homens. I: menino ou menina? Ex-pedem-se cartões. Abrem-se as janelas. Comose chama? <!uanto pesa? Com quem se pare-ce? As vizinhas comentam; as criadas, esque-cidas de tudo, enternecem-se, e varrem melhor,lavam melhor, como se o filho, sendo da casa,fôsse um pouco delas também; e as tias e asavós emitem vaticínios, ou confirmam profe-cias de que aliás ninguém mais se recorda.

O segrêdo tornou-se público. A porta mis-teriosa foi arrombada por um ladrão recém-nascido. E o aroma de alfazema que sai pe-las frestas da casa, que se dilui no ar, no arda rua, da paróquia, da cidade, já é a primei-ra suave emanação da amizade cívica, o oxi-gênio das almas.

A casa nesse dia deu o seu fruto. Fêz asua entrega.

Nasceu hoje uma criança. Nem é precisotelefonar para saber que naqoela casa nasceuhoje uma criança. Vê-se de longe. Quem aca-

so estiver à janela pelas cercanias logo veráque alguma coisa aconteceu, naquela casa,naquele navio ancorado: porque no seu exí-guo convés, em sinal de festa, tremula umacarreira de fraldas ao vento - bandeiras bran-cas de júbilo e de paz.

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Há certos fenômenos, de tal modo com-postos, que à primeira vista parecem contra-ditórios e que, por isso, induzem fàcilmenteem êrro os observadores superficiais. Tomo umexemplo tirado de André Gide, embora emsentido diferente: o papagaio que o garôtoempina no fundo do quintal. Papagaio de fle-cha e papel. Em forma de pipa e com rabo deduas tiras de pano. Um observador que nun-ca tivesse soltado um papagaio, ou que per-tencesse a essa esquisita raça de homens deonde saem certos sociólogos ou certos peda-gogos, vendo a pipa lá no alto, gingando aovento como que se debatendo para fugir, se-ria capaz de pensar que é o cordão que im-pede o papagaio de subir mais alto. Ora, éjustamente o cordão, ou melhor, a esquisitaaliança entre o cordão e o vento, que lhe per-mite subir. O papagaio só consegue subir mui-to alto porque está prêso. Cortado o fio queo retélm, ao contrário do que pensaria o nos-so desvairado filósofo que apostrofa os limi-tes, sejam êles fronteiras ou dogmas, a pipairá se espetar nas árvores, ou ficar ridiculamen-te pendurada pela cauda nos fios telegráficos.

Assim é a condição humana. Nós preci-samos de cordão -e de vento. A idéia que es-

tou aqui desenvolvendo, para salientar a dife-rença entre patriotismo, nacionalismo e inter-nacionalismo, tem êsse duplo aspecto. Que-rem u~s que o homem suba sem o vento dajustiça; querem outros que lá no alto se man-tenha sem cordão. Nós mostramos, de forapara dentro, que o homem se prende volun-tàriameilte em células concêntricas e livremen-te obedece a êsses sucessivos limites. Agora, aocontrário, na direção oposta, no sentido dobom vento da justiça, vemos crescer o mundodo homem, da casa para a paróquia, da pa-róquia para a cidade, da cidade para a pro-víncia~ da província para a pátria. E finalmen-te, do pátria para um mundo realmente huma-no, universal, católico.

E em cada um dêsses limites se aplica amesma idéia aparentemente contraditória dautilidade do limite e do imperativo do trans-bordamento. E em cada um dêsses limites hálugar para um dos dois erros que já assinala-mos. O nacionalista, por exemplo, pensaráque o bairrismo e a emulação entre as pro-víncias são ameaças para a unidade nacio-nal. Se puder, mandará queimar em praça pú-blica as bandeiras estaduais e destruirá a au-tonomia dos municípios, como aqui aconteceudurante a ditadura, sem perceber que estádestruindo a nação.

O nacionalismo, de fato, destrói a nação;transforma a diferenciada organicidade de umpaís num monólito sem vida; e, o que é pior,destrói nos homens as suas últimas reservas de

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cIvismo porque, quebrando as célu,las co~cê~-tricas a autonomia estadual, a vida propnados ~unicípios, e o segrêdo da casa, está .fur-tando ao homem, uma por uma, as sucessl~asoportunidades de exercer o verdadeiro· patno-tismo, que nasce na casa, qu~ s~ exp;a~de no.sbairros - amarrando-se em SinaiS proxlmos VI-síveis um campanário de igreja, uma paisa-gem 'de infância - e que assim se alarg~, .sedilata, detendo-se um instante em cada limiteque atinge e vence, recuando um POUC? n.asbordas do limite para transpô-Io com mais for-ça - como o braço do arqueiro recu~ a fimde que a flecha vá mais longe -. e assim co~-tinua êsse transbordamento sucessIvo que o di-namismo da justiça impõe.

Para o verdadeiro patriota, IStO é, paraum homem verdadeiramente sensato e retamen-te afetivo, a tôrre da sua igreja e a paisagemdo seu bairro é o Brasil. E redprocamente, oBrasil é a igreja e o bairro. Cada coisa é sinalda outra, conforme a perspeetiv~. E é_na d~-pIa perspectiva que ambas. as cOisas.. sae;>reC:1se conexas. l: claro que o lusto equlllbno naoé fácil. Essa, aliás, é uma das notas caracte~ís-ticas do que nós entendemos ~or demo~~ac!a:'é um equilíbrio difícil entre dOIs deseqUlllbnos

Háceis. E êsses desequilíbrios são fáceis porque. agradam mais depressa aos povos do que aesdrúxula proposta de lágrimas, suor e sangue.

O problema que até agora ab~rdamo~ po-deria ser colocado em têrmos mOls gerOls deconcepção política, e não seria difícil mostrar

que o patriotismo está para a democracia co-mo o nacionalismo está para a demagogia.Permitam-me uma breve análise dêsses doisconceitos, que me parece aqui de alguma uti-lidade.

A democracia e a demagogia têm algumacoisa de comum. Ambas procuram exprimir ovoz do povo. Tonto na democracia como nodemagogia o que se procura é um tipo de go- /vêrno, umf formo de sociedade, uma norma. (Jv

de convivência de acôrdo com os aspirações·de um povo. Mos agora vejamos a diferença.A oposição. Enquanto o democracia procuraexprimir e representar um povo por suas virtu-des, o demagogia procura exprimi-Io e repre-sentá-Io por seus defeitos. Nesse sentido eu po-deria dizer, sem falsear a realidade, que hojesão muitos, em nosso país, os que desejam bemrepresentar o que nós temos de mau.

Como se vê, o combate é desigual. Tôdanosso dificuldade - e esta é o nosso grandemissão - está em conseguir representar bem oque nós temos de bom. E poro isto, mesmo como risco do impopularidade - o que em políti-ca é heroísmo! - e mesmo com a certeza dederroto eleitoral, é preciso resistir 00 tôrvopendor do xenofobia, de ódio 00 estrangeiro,de nacionalismo bocó, que foi uma dos he-ranças mais tristes do Estado Nôvo.

Há muitos problemas em que um partidopolítico realmente democrático deve sustentaruma posição difícil. Este de que hoje trotamosé um dêles. Trata-se de defender o patriotis-

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mo contra o nacionálismo, eé inútil disfarçara gravjdade do vício que ficou gravado emnosso povo. Esta defesa, como tentei provar;tem dois aspectos complementares: em re-lação à vida interna do país nós defendere-mos a casa, a cidade, o município e o Estado;em relação à vida externo, defenderemos o pa-triotismo, tendo sempre em vista a universali·dade da justiça. Eu insisto no caráter compó-sito e difícil do problema, lembrando a ima-gem do fio e do vento. E insisto na necessi-dade de descer em contrações sucessivas parapoder subir em sucessivas dilatações.

O universo físico; segundo as modernasteorias, é apresentado como qualquer coisaque cresce em tõdas as direções. Os físicos nosfalam de um universo em expansão. Pois bem,o universo dos homens, o universo das almas,é também qualquer coisa que cresce. l:: umuniverso de amizade em expansão. Mas o mun-do do homem não cresce simplesmente comouma nuvem se dilata; não cresce uniformemen-te; não incha;.o mundo do homem cresce emdois sentidos e em dois tempos, contraindo-see expandindo-se. O mundo do homem cresce,e só pode crescer, à imagem de seu própriocoração.

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Vi outro dia o "filme" intitulado "últimoAto" que representa o episódio final da lou-cura nazista. Fui com minha filha de dezes-sete anos, e portanto transgredindo a proibi-ção que estava marcado para os menores dedezoito. A meu ver, entretanto, o "filme" de-via ser exibido nos colégios secundários, paraque os nossos meninos de treze anos pudessemapreciar o que aconteceu com os meninos detreze anos na Alemanha nazista. Não sei di-zer se o "filme" era bom, como obra de arte,porque o tempo todo estive a misturar o quevia na tela com o que me corria na memóriadespertada. O tempo todo, com um nó na gar-ganta, estive a reviver aquêle período espan-toso da vida do mundo e da minha própria.lembrei-me de um cinema a que fui na PraçaSêca em 1929 ou 30. Nesse tempo, como jácontei em outro lugar, andava eu tão mergu-lhado na técnica que pouco sabia do que sepassava no Rio, e nada do que acontecia emRoma ou Berlim. Ora, quando passaram um"filme" documentá rio com uma cena em queHitler discursava, meu susto foi tamanho queme levantei e fiz um pequeno tumulto na es-curidão da sala: "Aquêle sujeito é um louco!"Minha mulher puxou-me a aba do casaco efêz-me sentar.

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Mais tarde foi na própria Alemanha, numhotel de Berlim, a um modesto engenheirochamado Osterbind, que fiz a mesma nervosae inútil advertência. Numa semana de estadaeu sentira no ar um cheiro esquisito, e adivi-nhara nas fisionomias uma espécie desconhe-cida de alienação e de euforia sonambúlica.Uma tarde, num majestoso café de Friedrichs-trasse, vi a sala escurecer e ouvi estrugirem ri-bombos wagnerianos, entre relâmpagos lumi-notécnicos, enquanto os berlinenses de nucaraspada deglutiam saladas de batatas . cominabalável convicção. Fui recebido por um en-genheiro-chefe da "TelefunkenH como um jo-vem tenente é recebido por um marechal. Tudomuito solene, muito hierárquico" muito pesa-do. O marechal das telecomunicações recomen-dou ao pobre Osterbind que me mostrasse asestações de rádio e que, à noite, me levasseao teatro onde havia um espetáculo com milmulheres nuas. Expliquei tImidamente que pa-ra meu gôsto eram demais, mas o super-ho-mem não entendeu ou não ouviu. Tocou umacampanhia e fomos reconduzidos para um sa-lão de espera espessamente ata peta do, ondeuns jovens gigantes louros nos ofereceram re-vistas e charutos... Por isso, naquela tardede despedida, quando o simpático Osterbindme perguntou se gostara de Berlim, respondi-lhe que não, e tentei explicar-lhe. Lembro-mebem do nariz dêle, que ficou alongado paradentro da xíca.ra de chá; e lembro-me de suaespôsa, que era bonita, que sorria vagamentesem entender nosso inglês, e que ofereceu à

minha mulher uma rosa escarlate colhida noseu ja;dim. Soube depois que morreram naguerrQ ..

O leitor de certo já percebeu que eu estouaqui a me gabar de ter adivinhado coisas.Acho que não é muito difícil prever o ribom-bo do trovão depois da evidência do relâmpa-go. Mas não me defendo muito das suspeitasde presupção. Gabo-me dêsse sexto sentido.Publico-o e ofereço-o de graça aos homens domeu País, como o ofereci, inutilmente, àqueleengenheiro alemão, em sinal de amizade, eem trocado sorriso e da rosa.

Vendo o "filme", com o permanente nó nagarganta, eu revia os dias horrorosos em queos exércitos invencíveis de Hitlerse alastravampela Europa. Naquele tempo nós aqui tambéméramos totalitários e nacionalistas. Nossos guiasinspirados recebiam condecorações de Berlim,e decretavam a traducão das tabuletas doscolégios franceses e inglêses. Decretaram de-pois o número obrigatório de música brasilei-ra nos concertos, que até hoje, para vergonhanossa, permaneceu obrigatório. Ora, eu per-gunto ao leitor de quarenta anos, como umteste, se ainda se lembra da música que os in-glêses, no auge do bombardeio de Londres,escolheram para o hino de sua vitória. Lem-bram-se? Foi a Quinta Sinfonia de Beethoven.Bem sabemos que os inglêses não são muitoricos em música, mas que diacho! Sempre po-deriam achar num Purchell alguns acordes pa-ra abrir o programa da B.B.C. Mas não. Fo-

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ram buscar o hino no universal depósito, e porhumorístico e civilizado acaso, a escolha re·caiu na música da mais ardente das almas ale-mãs.

E eram essas pequenas coisas, o V da vi-tória, a Quinta Sinfonia, o pequeno armazémdestruido com o seu cartaz dizendo depois deum terrível bombardeio: "More open thanusually", o charuto de Churchill, a gaita do es-cocês do batalha de Alamein - eram essas pe-quenas coisas enormes que nos alentavam na-queles dias de pesadelo. Sempre pensei queo humorismo podia vencer o nacionalismo; sem-pre pensei que o humanismo havia de prevale-cer. E venceu. E prevaleceu. Ali estavam, no "fil-me", os cenas finais, os estertores do fanatismovencido. Ali estava o "Fuehrer" que esbofeteavaos disciplinados generais, o chefe hidrófobo aquem não se podia servir, sem perigo de vida,um copo de Iímpida verdade. O môço do "filme"morre assassinado porque tentou dizer o ver-dade ao grande chefe. Minha filha, sentada naponta do banco, angustiada, de vez em quan-do perguntava: "Meu Deus! isso existiu?" Eeu lhe dizia que a realidade fôra ainda pior.Expliquei-lhe depois que o drama de tôdas aschefias é a solidão, o acesso difícil da verda-de, e que a tragédia dêsses regimes de chefiaabsoluta é o satânico comprazimento no men-tira. Por isso têm de cair, e caem como se viano "filme". O jovem capitão assassinado dei-xà seu último conselho a um soldado-menino:

"Nunca mais esqueças, e nunca mais obedeçaso tudo". Bom conselho. Sábio conselho. Por-que no verdade aquilo a que assistimos era ofim de dois pavorosos crimes: o crime dos di-rigentes que em nome do nacionalismo exas-peraram o sentimento coletivo; e o crime es-pantoso dos que obedeceram. Sim, o Crimedo Obediência. Será preciso lembrar que avirtude da obediência é a que exige o maisfino e intransigente dos discernimentos?

Mos o conselho do jovem oficial não pa-rece estar ·.••ívo nos corações doze anos depoisdo queda do nazismo. O mundo esquece oque o mundo sofreu. Na mesma sessão emque assistimos 00 "Oltimo Ato" havia dois "fil-mes" documentá rios. O primeiro exibia os bri-lhantes festejos em homenagem 00 GeneralCraveiro lopes; o segundo, muito bem filma-do, apresentava cenas idas de esportes argen-tinos patrocinados por Juan Perón. Havia umbonito certame hípico que se tornara, por de·ereto, o esporte nacional dos argentinos. Opúblico não vaiou Craveiro; não vaiou Perón.A sala repleta estava abafada. Uma sonolên-cia modorrava os espíritos. Os que não na-moravam, tinham ido ao cinema para matar otempo. Saímos. lá fora, diante do passeio pú-blico, passava uma camioneta com um alto-falante roufenho a anunciar: "Frente Naciona-lista! reunião na A.B.L" Mais tarde li no jorndlque aquêle é o nacionalismo do coronel NemoCanabarro e que, na anunciada reunião, al~guns oradores, com arroubos de eloqüência,iriam denunciar a política de luís XV e de luís

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XVI a propósito, creio eu, do perigo que cor·rem nossas riquezas minerais.

A tarde estava maravilhosamente azul. Mi·nha filha e eu íamos tristes. E 'se 11 aquilo;' tor-nasse a acontecer? Se acontecesse no nossoBrasil? l: claro que 11 aquilo"; acontecendoaqui no Brasil, não teria perigo de incendiar omundo porque não temos armas nem índoleguerreira. Seria apenas um desastre de uso in-terno. Seria apenas um môfó nas olmas con-finadas, ou um grelado no fundo de um cor-redor, como disse o poeta português, e comoacontece na pátria infeliz dêsse mesmo poeta.Por isso íamos tristes e apreensivos, com umchumbo no coração, embora a tarde estivesseradiosamente azul. Mas não é por engenhonosso que o nosso céu ostenta uma pintura as-sim tão perfeita e tão lisa. Saberemos nós res-ponder à doçura daquele azul? Deus nos pro-teja! Não é também por engenho nosso queo petróleo apareceu em nossa terra, nem ain-da por engenho nosso que se inventaram osmeios de extraí-Io e de utilizá-Ia. Saberemosnós utilizar as riquezas e aprender a ciênciaproduzida pelo gênio universal? Saberemosnós crescer sem apoucar os outros, dilatar oBrasil sem incriminar os reis da França? Deusnos ajude. Naquela tarde, entretanto, estáva-mos tristes, porque de nosso o que se via, alina Cinelândia, era a arapuca nacionalista quetransformara o pobre Chopin num pássaro ca-tivo (que falta faz o humorismo !), e pela qualcompreendemos que o petróleo nacional devesobrepor-se à música estrangeira.

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Anos atrás, nos bons tempos em que ospartidos da resistência democrática procura-vam nortear seus rumos por princípios e idéias,pronunciei na sede da União Democrática Na-cional, a pedido de seus dirigentes, uma con-ferência intitulada "Patriotismo e Nacionalis-mo", que mais tarde foi incorporada no vo-lume de "Fronteiras da Técnica". O ângulo deabordagem do problema era o da filosofiamoral, e o estudo procurava caracterizar asvirtudes ou vícios que fazem um cidadão soerpatriota ou nacionalista.

Como todos sabemos desde Aristóteles, obom desempenho dos atos humanos exige aaquisição e o desenvolvimento de certos "ha_bitus" estáveis, de certas faculdades enraiza-das na alma do homem. Essas segundas natu-rezas são as virtudes. A mesma clássica dou-trina enumera as quatro virtudes fundamen-tais: a primeira, a Prudência, é a virtude dointelecto prático que preside as outras três,chamadas virtudes morais no sentido estrito,que se radicam na vontade, e que só funcio-nam bem em conexão com a Prudência. Sãoelas, como sabemos, a Justiça, a Fôrça e aTemperança. Cada uma dessas virtudes temum imenso campo de ação, e é costume dar

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nidode morcadapor unidade cultural e políti-tro do mesmo quadrante, se especificam poralguma matéria particularizada. Assim, porexemplo, diremos que a piedade filial é umavirtude anexa da Justiça. A amicitia dos esco-IÓ!lticos, que hoje, chamamos de civismo, ou,em sentido largo, de solidariedade humana, étambém uma virtude anexa do Justiça. E assimo patriotismo: é a virtude reguladora ~os at~shumanos especificados pelos laços de convl-vência que prendem os homens de uma comu-nidade marcado por unidade cultura e políti-ca. Pela lei de um profundo realismo, e até di-ria pela lei da Incomação que é a supremaconcretização do Bem, nós nos devemos o to-dos mas a começar pelos mois próximos. Asleis' morais são universais, mas o exercício de-las tem exigências de moior densidade nas re-lações mais próximas. A iustiça não tem fron-teiras, mas o aprendizado e o exercício delase realizam em círOJlos concêntricos com gra-dacões de densidade, mas com continuidadeda' substdncia ética. Assiln as famílias são, oudevem ser viveiros de iusfic;a. Assim tambémas nações: Não pode ~ virtudes familia-res onde o bem da fall.rlO é pmcurado em de-trimento das outras. O obietNo dos grupos hu-manos só pode ser o de coatribuir para o con-cêrto da universal solidariedade, só pode sero da cooperação para a paz universal; masnote-se que Paz, aqui •. não quer dizer apenasausência de tiros e de embairque de tropas,não quer dizer apenas aursência de guerra, esim a boa convivência dos homens numa

atmosfera de justiça. A paz é o fruto da jus-tiça. A verdadeira paz, que é muito diferenteda mera suspensão das operações bélicas, éinseparável da justiça. "Justitia et pax oscula-tae sunr'. Por isso, todo o grupo humano, quedeve zelar por sua unidade, tem de se orien-tar pelo bem maior e universal. E por isso, os·vícios que se opõem à virtude da justiça sãoaquêles que fomentam as inimizades e queexasperam os ressentimentos.

Em regra geral há dois modos de rugir aoequilíbrio da virtude. Há dois modos de des-vio. No caso do chefe de família, por exem-plo, há um modo de faltar ao dever por ne-9 ligência, por abandono, por desinterêsse, poranarquia; mas há também um modo (às vê-zes mais grave) de ser viciado, que consistena prática do filhotismo, do nepotismo e detôdas as modalidades de acepção de pessoaque tornam odiosa para a sociedade civil asociedade familiar. Assim também, no que con.cerne à pátria, haverá dois vícios opostos aoverdadeiro e bom patriotismo. E \,1m dêss€ls -o que pretende servir à pátria com os ins-trumentos da inimizade e da agressividade,como se fôsse ela um fim absoluto - é o que,por seus próprios fautores, e não por mim, foichamado de nacionalismo. O nadonalismo erapois, até anos atrás, um vício que se opunhaà virtude do autêntico patriotismo. E digo queera porque parece, a julgar pelos múltiplos-nacionalismos que hoje brotaram nos meiosmais diversos, que houve ou que pretendem

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que tenha havido uma ~ijn semântica dotêrmo. Cuidaremos disso .ais tarde. No mo-mento air.da nos servi.- ••• sentido que aêsse têrmo emprestovmD. _ aIrós, seus pa-ladinos: Hitler, Musso1ini.PIinio Salgado eVargas.

O fenômeno é onIigD. Poderiomos dizerque tomou vulto no •••••_ •• , Gvilização Mo-derna, a partir da RetMO&~ e que foi, paraas nações, um fenômeno ••••• lgDc'o do surtodo individualismo poro _ • HI5 Assim, comose instaurou a filosofia ••• aIiciolização doegoísmo dos indivíduos.-..-ou-se no mun-do também a apologia •••• -AO das nações.A filosofia e a teologip .1' - '6 ensinam quehá um abismo de dir.6iiipIi 8IIre o amor desi mesmo, que é 0110 _~ e o egoísmo ouamor próprio, que é a .- e G or:gem de to-dos os pecados. Essa.g til fundamental,que Erich Fromm aam ••• éscobrir maravi-lhado, estêve escondidu _ ..- t ti da socieda-de liberal burguesa. E pca== qIJe para muitosainda continua escondillll _ tlilerença essencialque existe entre o ••••••• 0 patriotismo eisso que chamam de •• ie- 5 l, e que se ca-racteriza pelo fo ••••••••• Íllimiízode e pelaexasperação dos rcss5 Ens Nõo há amorconstituído de desanD_ .ao há justiça quese alimente de iniuslipls. .Al:ide,1Iolmente, en-tende-se que um amor •••••• u.ldido com ira,que um direito sejo.as- 5 •• com armas namão. O mundo é •••••••••••••• m moralistasensato tem a esh""" ••• deso,cooselhar a

ira, a cólera, a indignação e a luta; mas tam-bém nenhum moralista autêntico chega à lou-cura de pensar que êsses acidentes, por maisfreqüentes que sejam, tenham fôrça para fir-mar uma filosofia de essencial e programadainimizade. Ora, o nacionalismo é, ou era umadessas atitudes do espírito marcadas pela con-vicção da essencial inimizade entre os homens.Em âmbito internacional, é uma aplicação dasfilosofias do egoísmo, que marcaram a atmos-fera do mundo moderno, e que Hobbes formu-lou com o conhecido apotegma: "Homo homi-ni lupus".

O fenômeno é antigo, mas a consclenciadêle e o vocábulo que o designa são relativa-mente modernos. O têrmo "naciona Iismo" ga-nhou destaque e entrou na moda com o famosoe vergonhoso "affaire Dreyfus" em que se con-denou um inocente por elevadas razões, de in-terêsse nacional. Charles Maurras, da funestaAction Française, também foi um convicto econsciente nacionalista. Mas foi o advento dasfórmulas mais agudas e dramáticas da políti-ca totalitária que deu ao têrmo o seu máximoesplendor. Para quem tenha um mínimo dememória política, é impossível ignorar que otêrmo "nacionalismo" tem sua história e suaglória ligadas à filosofia totalitária, e mais es·pecialmente às formas fascistas. E por isso, se-ria de esperar que o militante democrata, queprofessa um sagrado horror pelas formas dapolítico totalitária, tivesse a mesma acentua-

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da aversão ao vocábulo forjado naquelas ofi,cinas.

Essa é a minha primeira reclamacão noassunto. Acho que aquêles que militara~ sob O

estandarte das liberdades cívicas não deviamusar êsse vocábulo para designar suas posi-ções diante de tais ou quais problemas eC07nômicos. Mas pelo amor de Deus, leitor, nãopense que minha reclamacão se estende aosque eram totalitários e co~tinuam sendo. Nãotenho a desvairada esperança de convencer umtotalitário, como não tenho a presunção de,abalar o Pão de Açúcar; mas tenho a modes-ta esperança de desejar que os democratas •.continuem a ser democratas. E: só isso que juk90 estar em meu alcance. Só isso, e nada mais.Quando reclamei a propósito das homena-gens tributadas ao representante do salazaris-mo, o sr. Gilberto Freyre, em artigo num jor-'nal, achou "hilariante" meu apêlo à sensibili-dade dos democratas. O festejado sociólogoenganou-se, creio eu, pensando que eu escre-vi aquêle apêlo para todo o mundo e para êle'mesmo. Não, eu não sou tão ingênuo assim.Da maioria das pessoas que andaram atrásdo general Craveiro eu não esperava outracoisa. Do sr. Gilberto Freyre eu também nãoesperava que se considerasse alvejado pormeu artigo. Esteja pois à vontade, e ria-se com.gôsto o sociólogo.

No que concerne ao nacionalismo eu tam-bém não pretendo atingir os comunistas, em7bora pudesse dizer-Ihes que fôssem pregar o

nacionalismo nas ruas de Budapeste; nem pre-tendo atingir os integralistas e os ex-integra-listas que sob a mesma bandeira estão empol-gados com os programas de desenvolvimentoeconômico. Mas dos democratas autênticos,que um dia chegaram a entender e a sentir napele o valor das liberdades cívicas - o valorda liberdade de opinião, por exemplo - dês-ses eu reclamo não só o uso do vocábulo co-mo também o uso das idéias que atrás dêlese escondem.

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(Lç6L-L-a; - "OlnVd O'!tS 30 oaV1S3 O.)

OWSnnflll'9'lOl :I OWSIl'9'NOIJ'9'N

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A palavra "nacionalismo", antes mesmoda proliferação de nossos dias, tinha dois sen-tidos, duas acepções diversas e de origens di-ferentes. Na primeira acepção, de que já nosocupamos, nacionalismo significa exaltaçãomórbida do sentimento de nacionalidade, ouainda, se me permitem essa abstrusa expres-são, significa uma espécie de egoísmo coleti-vo. 1:, como vimos, um vício que se opõe à vir-tude do patriotismo. Em linguagem filosóficacostuma-se dizer: um vício que se opõe porexcesso, mas não se deve concluir daí que setrate de um exagêro apenas, ou de um grauexcessivo de sentimento patriótico. Não. Maisdo que isso, é um desvio, uma perversão. Nasegunda acepção, que já basta para trazerboa dose de ambigüidade aos debates, na~cionaJismo significa política de socializaçãodos meios de produção, sendo sinônimo deestatismo e oposto de liberalismo. Em outraoportunidade cuidaremos dessa segunda acep-ção. Por ora ainda temos alguma. coisa a di-zer do nacionalismo que se opõe à virtude dopatriotismo.

Mostramos antesnifestou seu máximolíticas totalitárias, e

que o fenômeno ma-vigor nas formas po-

mais particularmente

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nas formas totulilíilias de inspiraçõo ou detipo fascista. HiIIer e Mussolini foram des-vairadamente ~ Entre nós tivemoso Integralismo e o fsIodo Nôvo de Vargas.No fundo de lodos êmes Wrios fenômenos hásempre um agudo IeSISlE!IInmentocom a pre-visível conseqiiêDãa de ..-a reaçõo neuróticacoletiva. E:sse i E' E f ' • acumula numa co-letividade cargas - ••••sei,entes de agressi-vidade e de des.. 5 FFiiiÇD pora com os outrosgrupos nacionais.. I: _ tensão difuso, implí-cita, subjacente. •••••• _ que aparece umexplicitador, Os •••••• SIIIrios de nacionalis-mo tiveram seanpm • iAlJ técnica: a explo-ração, a exaspea ••••••••• ressentimento coleti-vo. O líder nac:ioee 57 .., sempre à mesmoinvariável recurso:: I e as multidões deque seus males •••• , ••••••• das outras na-ções. E trata logo ••• ·••••• lIIIII'I ideal a ser rea-lizado. Se o país •••••• Ios.:::S tradições, co-mo a Itália, o ideal oovo Império Ro-mano que devol. •• iiiIaIicncs o poder e ariqueza de que ~.' E CIfOOcs.No caso daAlemanha, o idool ••••••• fa,i também o dodomínio do mu. _ • .arivação buscavabases na crenca ••• _ ~:oridade racial.E cumpre not~r •••• _ ím,o:iente afirmaçãode superioridade •••• lIIiio p<Jssava de ummecanismo psicolétlii'- de u,:lt:-:xorreção deum sentimento de • f iaiall:de. Entre nós, nafalta de grandezas.Ii"-'· e de uma razoá-vel base de uma ••• • Sü;::'eriori~ade ra~cial, o ideal pro~ __ eúxo pelos inte-

gralistas do que pelos fautores do Estado Nõ-vo, foi o de um naturismo com laivos de india-nismo. Nosso nacionalismo sempre foi maisuma atitude de isolacionismo emburrado doque de agressividade belica.

Proposto o ideal adequado ao específicoressentimento, o profeta do nacionalismo tratade prometer sua realização e a cura dos gran-des males nacionais, desde que a multidãoconsinta em se despojar, ao menos provisoria-mente, de certos direitos que não enchem bar-riga de ninguém. E aqui se estabelece o nexoentre o nacionalismo e o totalitarismo.

Para a reta filosofia política, que em sen-tido tato chamamos democracia, o têrmo detõdas as atividades políticas é o bem-estar daspessoas, bem-estar que inclui, evidentemente,os elementos econõmicos, mas que só mereceo nome de bem-estar humano se começa porconsiderar a humana dignidade. Na base detal política tem de haver um fundamental eintegral humanismo. Para o totalitário não énas pessoas e, sim, no bloco, na nação, e àsvêzes na Idéia, que reside o têrmo de tõdas asatividades políticas. E assim sendo, torna-seadmissível que o poder e a riqueza do bloco,de todo nacional, sejam procurados em detri-mento da segurança das outras nações, e comprejuízo da liberdade dos cidadãos da próprianação engrandecido. Há, portanto, uma in-trínseca injustiça na estrutura totalitária: injus-tiça agressiva contra as outras nações e injus-tiça humilhante e vergonhosa contra a digni-

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nós/proporções alannantes. Somos hoje umPaís de miséria crescente. O trabalho de mui-tos é contrariado pela orientação calamitosaque uns poucos vêm imprimindo aos destinosdo Brasil. Entende-se pois o ardor e o fervoraplicados na tarefa do recuperação econômi-ca que é a saúde físiaJ do País. Mas não seentende que essa Iorefa se realize com indife-rença da estrutura poIiIicu. e muito menos quese faça com declarado sinIpotia/ com evidentepreferência pelos insII FRIos da política totali-tária. Estamos, nesse CDSO, no êrro oposto ao doliberalismo econônüc:D que ocredita no automa-tismo dos fenômenos da -=nnomia/ e que desa-conselha qualquer ialuwealÇÕO do Estado nes-se domínio. O dirrJ ~ econômico fundadona indiferença da __ político é já o primei-ro passo para o ••••• islrlto, porque nessamatéria não há equiMwrio possível em situaçãointermediária. AüdI •• o fórmula fôsse boa(mas não foi o que.m h lE" na Alemanha ena Itália)/ um paIriuIu. de alma bem formada

. não pode desejar •••• -.:I pcítria um engran:'decimento material _ delrimento da univer-sal concórdia e do ••••• Mdude humana. Mui-to menos pode de •••. êSI5e engrandecimentoem troca de capihA,,"" que despem o ho-mem de suas in5Ígllil& r.a minha Pátria/ pe-lo que aprendi no a~f -Fil!III[) e na democra-cia/ não posso desEt-. e mo desejo realmen-te uma prosperidade e _ poder com a con-figuração da RússiQ .a.m. Nõo é êsse ti-po de contribuição ••• U8IIKlIS ao mundo. Eé preciso nõo escpB8' •• codo Pátria deve

alguma coisa ao mundo/ à terra dos homensa. êss~ te:rível e misterioso grupo de sêres ra~ClonQlS tao. pouco r~zoáveis que talvez seja/em todo o Imenso universo/ a única humanida-de. O nacionalista/ ao contrário/ pensa quenada deve ao mundo; ou então/ como se vêpor aqui/ que o mundo lhe deve tudo.

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o têrmo "nacionalismo" tem uma signifi-l...:lção diferente daquela que representa iJllKJ

desvirtuação do patriotismo e que gera a ini-mizade entre as nações: designa a doutrina,de origem socialista, que recomenda a sociaH-zaçiio dos meios de produção e que se opõeà livre iniciativa das emprêsas particulares eaos postulados da economia liberal. Nessesentido, os americanos do norte poderiam rei-vindicar a nacionalização do próprio petróleo.Nessa acepção do têrmo não há pois nenhu-ma conotação aparente de xenofobia e de iso-lacionismo nacional. O que se quer, sob a ban-deira dêsse nacionalismo, é combater a estru-tura clássica do capitalismo e da economia dalivre concorrência. Até onde julgo ter bemcompreendido, é êsse o nacionalismo de al-guns colaboradores do "Diário de Notícias",e creio que é êsse também o nacionalismo ra-cional de alguns militantes da Frente de Reno-vação. f entretanto lamentável que a ambi-güidade do têrmo, e direi até a ambigüidadeda dialética empregada por êsses socialistas,se preste às aproximações equívocas. Dianteda opinião pública, o antiamericanismo moti-vado pelos postulados socialistas se aproximaperigosamente do antiamericanismo suscitado

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pela xenofobia e pelo ressentimento col,etivo.E assim, aparecem de braço dado o asprranteao totalitarismo e o militante que sempre seopôs e sempre combateu o totalitarismo. E épor essas e outros que eu acho qUê os verda-deiros democratas deviam ser extremamentecautelosos no uso do estandarte nacionalista,e chego até a achar que deviam ter uma sa-grado aversão pelo vocábulo traiçoeiro.

Deixando de lado agora os inconvenientesdo ambigüidade do têrmo, consideremos oproblema da socialização no seu mérito. Come-co por declarar que 000 tenho o menor empe-~ho em defender os postulados do sociedadeliberal e da estrutura capitalista tal como seconcretizou histõricamente dentro da socieda-de liberal. Não aaedito no automatismo dos.processos econômicos, no laissez.faire, e naconcepção de um Estado Gendarme a quemcompetiria apenas a defesa daq~eles. proces-sos. Mas daí não se segue que simpatize comtodos os movimentos que se apresentam comoopostos do liberalismo econômico. Nem sem-pre quem se opõe a um êrro está certo .. Omundo pagou caro preço por essa gros.selraindistinção. No que concerne ao comunIsmo,por exemplo, não tenho dúvida em. afirmarque muitos formas de reação c~nsegul:am serainda piores. Nõo basto ser antlcomu~lsta pa-ra estar certo. No problema que nos Interessanão basta ter direito à nossa simpatia.

"Nem liberal individualista, nem socialis-ta, ocupa a doutrina social da Igreja incomo-

da terceira posição, igualmente distanciadadaqueles erros" diz muito bem Fábio Alves Ri-beiro (A Ordem, abril, 1954). E acrescenta:"Voltando 00 problema da socialização ounacionalização lembremos com Pio XII quedesde o Quadragesimo Anno é ponto pacíficoaceitar a Igreja a passagem para o direito pú-blico de certas categorias de bens que desse r-viriam os legítimos interêsses da comunidadese permanecessem nas mãos particulares". Po-demos considerar o caso do petróleo brasilei-ro como um bom exemplo de aplicação dessaregra admitida. "O Papa atual - continua Fá-bio Alves Ribeiro - acrescenta entretanto quefazer dessa nacionalização a regra normal deorganização pública da economia, seria inver-ter a ordem das coisas. (Alocução de 7 demaio de 1949 CIOS delegados da União Interna-cional das Associações Patronais Católicas."Rev. Ecl. Bras.", vol. 9, fase. 3). Lutando comextrema decisão em defesa do indivíduo e dafamília contra a voragem que na socializaçãode tôdas os coisas procura sorvê-Ios, bate-se aIgreja em particular igualmente pelo direito doindivíduo à propriedade. (Radiomensagem aoKatholikentag de Viena)".

Por aí, e pelo resto do citado artigo, quevale a pena consultar, vê-se que o mais moder-no pensarilento católico admite a prática dasocialização de certos bens, mas recomendagrande reserva no que concerne às indevidasextrapolações da regra. Em outras polavras,aceitamos a medida como quem aceita um re-

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médio necessano em certos casos, mas nãocomo quem vê nisso uma regra normal a serlevada tão longe quanto possível. Sem recusarao Estado o direito de intervir na marcha dosprocessos econômicos, o pensamento católicoprocura resguardar os direitos da livre inicia-tiva. A posição é delicada, e como disse Fá-bio A. Ribeiro, incômoda. Mais fácil é errarde um lado ou de outro, como aliás sempreacontece com os problemas humanos.

Há nas tendências socialistas que reco-mendam com entusiasmo as nacionalizacõesum êrro curioso que se encontra também' nosliberais. Empolgados pelos problemas econô-micos, que constituem sem dúvida alguma omais direto e corpóreo dos problemas huma-nos, o socialista faz abstracão da realidadepolítica e das aflições, não ~enores, causadaspelos abusos de poder. E então, para resolveresquemàticamente um problema de distribui-ção de riquezas, concede tudo à ordem polí-tica, e dá ao Estado um poder desmedido.Ora, qualquer pessoa de mediano bom-sensosabe que o poder é perigoso. Não é só a ri-queza e o apetite dela que gera injustiça eproduz sofrimentos; é, também, o poder. Nãoé só a riqueza que deve ser distribuída segun-do aquela fórmula lapidar de Bacon ("o capi-tal é como o estrume, só funciona bem quan-do espalhado"); o poder também deve ser dis"tribuído. O Estado sobrecarregado de funçõesse desgoverna por diversos motivos, entre osquais avulta o da embriaguez do poder. Os

dois problemas estão ligados numa difícil in-teração, e é por isso qu'e se torna necessáriodesenvolver ao mesmo tempo a sensibilidadepolítica e a sensibilidade econômica. Mutiladabrutalmente a questão chega-se às fórmulasdementes de uma boa solução econômica con-seguida em troca de uma tirania, isto é, emtroca da capitulaçao e do desprêzo pelos di-reitos do homem.

Está muito longe ainda a conquista con-solidada de um sistema elaborado até o deta-lhe, mas desde já temos os princípios que de-vem reger a pesquisa, e desde já podemos adi-vinhar a boa tendência. Como quem estivessea profetizar, diria que a história nos reservauma curiosa surprêsa nessa matéria: a de mos-trar, talvez pela voz de algum futuro Papa,que a doutrina social da Igreja está muito maisperto dos delírios de alguns anarquistas do quedos delírios dos totalitários. A mim me parece,mas nisto eu imagino que contrario muitoscatólicos, que nós deveríamos ser particular-mente sensíveis às impertinências do poder.Nós deveríamos ser uma raça especialmente pre-venida contra os aparatos e prestígios do po-der. Mas isso é outra história que nos levarialonge. No problema que agora nos interessabasta dizer que nós não somos entusiastas dosprogramas. de nacionalização, porque temossempre em mente o receio de ver passada amedida do poder. E não temos um esquema

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simples, que os aplique com um abaco, por-que o prbblema é de· ordem prudencial, e nãopuramente técnico.

No caso brasileiro parece-me de reful-gente evidência que é pequena a capacidadeestatal. Os exemplos estão aí a gritar. Saltaaos olhos que nossos homens públicos têm re-velado uma extraordinária e notável incompe-tência, e que ultimamente essa situação se temtornado ainda mais evidente. Neste ponto eume dirijo aos militantes da oposição. E ou nãoé verdade o fato a que acabo de aludir? Co-mo se explica então que os mesmos militantesda oposição, que tão bem conhecem a fraque-za de nossos governantes, sejam os primeirosa querer reforçar seu poder? Parece que o le-ma pôsto em jôgo é o reverso do bom-senso.Alguma coisa assim como: quem não pôde omenos poderá o mais.

Resta-me ainda neste capítulo uma pon-deração: a acepção dada ao têrmo naciona-lismo foi aqui sempre a mesma, a do sociali-zação, e portanto diferente daquela que repre-senta uma desvirtuação do verdadeiro patrio-tismo. Há entretanto um ponto comum entre asduas, ou melhor, há no ideal de socializaçãoprogressiva um certo pendor irresistível na di-reção do totalitarismo. O crédito ilimitado aber-to às possibilidades do Estado é justamenteuma das peças ess~nciais da mentalidade to-

talitária. E assim sendo, posso dizer que nacontinuacão os dois nacionalismos se encon-tram - e' se encontram nos campos de concen-tração, nos vagães de gases, e no amordaça-mento da imprensa.

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i, V::>I.LNYW:lS OYÓnl0A:Ivwn oannlo::>o Y1I3.L

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TERA OCORRIDO UMAEVOLUÇÃO SEMÂNTICA?

Consideremos agora um fenômeno singu-lar. O fêrmo que doze anos atrás designavauma idolatria detestada pelos democratas, ousignificava um programa de socialização dosmeios de produção apenas tolerado, tornou-se hoje uma bandeira, um símbolo que maisninguém ousa recusàr. Tudo é nacionalismo.Todos são nacionalistas. Ninguém tem cora-gem de dizer pura e simplesmente que não énacionalista, porque se disser será apontadoà execração pública como entreguista. Em vezde um ou dois nacionalismos temos uma ouduas dúzias dêles. Para começar temos o na-cionalismo dos comunistas e de seus ~impati,-zantes que melhor fariam se fôssem pregá-Ionas ruas de Budapeste. Temos o nacionalismo deum grupo montanhês que, enquanto não enri-quece o país, enriquece seus adeptos. Temoso ingênuo nacionalismo chamado "racional"da Frente de Renovação Nacional, definido co-mo um programa de ação política que bempodia ter outra designação. Temos o naciona-lismo estudantil, que vê na Light o inimigo nú-mero um do estudante brasileiro, quando amim, que sou professorr me parece evidenteque são outros os inimigos dos estudantes. Te-

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mos o nacionalismo particularmente polariza-do em tôrno das nossas riquezas minerais." Te-mos o nacionalismo do general Lott, que foirecentemente procurado pelos artistas e técni-cos do cinema nacional. Temos o nacionalismorelutante do Sr. Carlos Lacerda, que não teveremédio senão adotar o têrmo adocado como adjetivo "patriótico". E temos o na~ionalismodo .Sr. Amaral Peixoto. Sim, disse e repito, onacionalismo do Sr. Amaral Peixoto. No seudiscurso tão comentado, o prócer pessedista,antes de entrar nos pormenores do problema,disse que era nacionalista, mas não acompa-nhava as extremidades a que chegavam osexaltados. Não guardei precisamente as pala-vras do orador, mas guardei a conjunção queé a única coisa que o separa dos outros. Ha-verá pois no Brasil de hoje "nacionalistas" e11 nacionalistas, mas ... "

Diante disso eu pergunto: terão um deno-minador comum todos êsses nacionalismo? Se-rá de fundo residualmente totalitário? ou teráocorrido, nesses últimos anos, uma evolucãosemântica do vocábulo? '

Comecemos pela última hipótese. t possí-vel que para muita gente o têrmo nacionalis-mo tenha vindo preencher a lacuna deixadapelo esvasiamento do têrmo patriotismo. Di-rão que êsse antigo têrmo designa apenas umsentimento, um enternecimento, um estado afe-tivo, um arrepio que dá na gente quando to-cam o hino nacional, ou uma disposição de es-pírito inclinada à retórica e à poesia, e que,

por. isso, é prec.iso buscar um outro têrmo quedeSigne uma Virtude real, racional e eficaz.?u então pode-se dizer que o têrmo patrio-tismo, e o têrmo civismo que lhe é correlato,serve apenas para designar o conjunto de ri-tos que constituem a liturgia nacional. Real-mente, depois das experiências fascistas e de-pois do nosso Estado Nôvo, quando ~e falaem civismo pensa-se em bandeira, em hino na-cional, em paradas de Sete de Setembro masnão se pensa em bem comum e em am'izadecívica, que.é uma. virtude anexa da justiça.Uma das cOisas mais cômicas do mundo, a meuver, é êsse patriotismo dos sinais esvasiados.Vale a pena reparar nas fisionomias dos verea-dores e dos deputados, dos mesmos que pas-sam o ano a fazer negócios e a cuidar de simesmos, na hora solene em que estrugem noa~ os acordes do Hino. Nesse momento são pa-triotas. São cívicos. Diante da bandeira comodiante do altar nas missas de sétimo dia fi-cam compenetrados da excepcional idade 'dascircunstâncias, e assim, nesse curto instante pa-gam à Pátria e a Deus o tributo de um senti-mento bonito e sem grandes conseqüências.

Ora, se assim é, compreende-se a necessi-d.ade de arranjar outro têrmo que designe avirtude real e eficaz, a disposição permanentee conseqüente. E se o têrmo escolhido paraherdar o sentido clássico da virtude patrióticaé nacionalismo, então todos nós temos de sernacionalistas. Se nacionalista é o que trabalhapara o engrandecimento da pátria e para o

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bem-estar dos brasileiros; se é o economist~que busco o solução adequado 00 bem co-mum, se é o técnico brasileiro que se esforçopor dispensar o mais depressa possível o tute~,10 cultural estrangeiro, se é o sábio que proc

cura trazer uma contribuição que devolva 00

mundo um pouco do qué deve o Brasil ao mun- .do, se é o músico que tiro o melhor de si mes-.mo para entrar no primeiro team universal,se é o professor que se esmera nas aulas, o'escritor que se esmero nos artigos mesmo semser suíço ou inglês, se é o estudante que resol- .ve estudar ou o governante que resolve gover-nar - então sejamos todos nacionalistas.

Em suma, se houve uma evolução semân-tico temos de aceitar o resultado do processo,e não vale o peno quebrar lanças poro restau-rar o valor antigo de uma palavra.

Não me parece entretanto que o processoevolutivo tenho chegado o um têrmo que nosobrigue à aceitação do nôvo sentido. E comoescritor tenho o direito de perturbar o meca-nismo e de denunciar o vocábulo que me lem-bro tonto miséria, tonta estupidez e tonta ver-gonha. Não vale o pena lutar pela restauraçãodos palavras nos seus primitivos sentidos, mes-mo porque seria indefinida essa luta; mas va-Ie a pena lutar quando o processo evolutivo sefaz com tão tremendas ambigüidades. Ou me-lhor, vale a pena pelejar para que as palavrastenham algum sentido. No caso presente na-cionalismo significo tanto coisa que por fim,não significo coisa nenhuma.

Um dos pontos nevrálgicos de todos aquê-les nacionalismos, no momento, é o petróleo.É nacionalista quem prestigia a Petrobrás; erelapso, traidor e entreguista, quem duvidarum só instante do sucesso econômico dessaemprêsa. Oro, não me parece razoável usarum têrmo com o sufixo dos ideologias porouma simples opção num coso singular e con-creto. E mais razoável tirar de um "ismo" o so-lução par~ o problema do petróleo, do quetirar do petróleo um "ismo". Não sei se estousendo suficientemente cloro. O que quero di-zer é que não bosta o atitude diante de umcoso concreto poro se aquilatar uma mentali-dade ou uma integridade moral. Num cososingular pode haver concordância por motivosinfinitamente diversos. A polarização de umquadro político em tôrno de um problema,ainda que êle tenho a magnitude material dopetróleo, significo sempre um empobrecimen-to, uma diminuição do pensamento político.Na filosofia político que professo não consi-go identificar os destinos da pátria com os deum empreendimento técnico, e admito sem di-ficuldade que uma pessoa, dotada de alto everdadeiro patriotismo, possa ter uma opiniãodiferente sôbre a maneira que mais nos con-vém para a exploração de nossas jazidos. Masparece que poro os nacionalistas é inadmissí-vel essa tolerância. Para êles é artigo de féque deva ser estatal o monopólio, e que maisninguém tenha o direito de toldar a brasílicapureza do mineral. E com êsse estado de espí-

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rito, como é fácil imaginar, êles estarão dis-postos a qua1quer facção política que desfral-de a bandeira e que prometa fazer dela o cen-tro da política nacional.

Publiquei recentemente minha opinião arespeito da Petrobrás. Sou a favor. Sem gran-de entusiasmo pelas declarações feitas pelopresidente dessa emprêsa, e sem pensar queesteja nela a fórmula da salvação nacional e oremédio que dará aos nossos dirigentes o es-pírito e o devotamento pelo bem comum, eaté sem esperar que em breve prazo serão to-talmente brasileiras as octanas que me levampara casa, sou a favor das medidas que pres-tigiam e que facilitam o desenvolvimento daPetrobrás. Mas ... não sou nacionalista. Arris-co-me a passar por um sujeito que não tem co-ragem de ser contra a Petrobrás, como o Sr.Amaral Peixoto não teve coragem de ser na-cionalista. Na verdade, e sem vislumbre deironia, o que me leva a ser a favor da Petro-brás é mais uma ponderação política do queeconômica: já que está feita, e que todos lhedão tanto valor, então deve ser tocada parafrente com a máxima eficiência e com a maiorlealdade. Nem sempre é admissível que seadote uma solução política para atender àsexplícitas manifestações da opinião pública.Meu credo democrático não tem a estupidezde esperar que os problemas de govêrno pos-sam ser postos a votoi nem posso admitir queum governante adote uma medida contráriaao bem comum para agradar à opinião públi-

<:a. Há casos, entretanto, em que o problemae moralmente neutro, como êste do petróleo,e e_m q,ue. o governante pode aceitar uma so-luçao tecnicamente inferior para apaziguamen-t~ do~ e~pírit?s. Sem entrar no mérito da ques-t~.,?. tecnlca, lá basta a consideração da tran-qUllIda?e pública para indicar uma política deencoralamento da Petrobrás. Mas por favor nãoTaçam ~êsse pr.oblema a pedra de toque de umaIdeologia'. Deixem-me ser simpático a essaobra de engenharia sem ser obrigado a mar-char ao lado do Coronel Nemo Canabarro es~m s~r obrigado a ficar sério diante dos na-clonallsm,os .estud?ntis. Deixem-me desejar que~o~sos tecnlcos tirem o máximo proveito dasllçoes que estudam nos livros americanos nosexcelentes livros editados pela Mac Milla'n oupel~ M.ac Graw Hill, sem ser obrigado a mesen.tlr Ilbe~tado da cultura estrangeira (o quesena ~entlr~) e sobretudo -sem ser obrigado ase: antlamencano (o que seria tolo). O que de-seiO ~rden~emente, nesse capítulo, é que a Pe-trobras deixe de ser bandeira, fanal, lábaro,e se t?~n~ uma emprêsa tão produtiva e tãobem dtrlglda como a detestada Standard Oil.

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Na verdade, estou convencido que há maisdo que um simples fenômeno lingüístico na pro-liferação de nacionalismos que ocorre em nos-sa terra. Certos indícios nos levam a cr:er queatrás dêsses diversos nacionalismos subsiste,ao menos como tendência, o denominador co-mum da mentalidade totalitária. O mundocontemporâneo, a par de algumas manifesta-ções de desvairado apetite de liberdade, quepor sua exasperação já se tornam suspeitas,sofre de um tédio, de uma espécie de cansaço,como se pesasse no homem o difícil ofício deser racional e livre. E quando isto acontece,quando o homem se fatiga de sua própria con-dição/ o que aparece no domínio dos fatospolíticos é sempre a mesma invariável tendên-cia para as formas totalitárias. O totalitarismo,embora muitas vêzes se revista de aspectos deexaltação, é sempre um fenômeno de depres-são, de renúncia de brios, de demissão de di-reitos. t em suma uma espécie de cansaço.Ou uma espécie de covardia coletiva. Ao con-trário/ a política verdadeiramente democráticaé sobretudo uma política viril que afirma e in-transigentemente defende os valores humanos.

Vejamos alguns dos sinais que nos enchemde apreensões. Para começar temos a escolha

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do vocábulo que doze ou quinze anos atrásestêve intimamente associado aos campos deconcentração, aos vagões de gases, e aos ju-deus transformados em barras de sabão. Co-mo explicaremos, senão por um enfraquecimen-to da sensibilidade democrática, a simpatiacom que tantos acolheram o vocábulo totali-tário? Mas além dêsses temos outros sinais.No ano passado, quando ocorreu a coincidên-cia da revolução húngara com o coso de Suez,vimos que boa parte da opinião pública, prin-cipalmente aquela que se diz nacionalista, sen-tiu mais vivamente o aspereza da político co-lonialista da Inglaterra e da França, do que adesumanidade da política totalitária da Rús-sia. As ofensas feitas aos mais inalienáveis di-reitos da pessoa humana foram equiparados,ou até julgados inferiores às injúrias feitas àsoberania de uma nação. Ora, êsse modo desentir que atribui valor absoluto à soberanianacional e valor relativo à dignidade huma-na, como se os homens fôssem feitos para asnações e não as nações para os homens, é tí-pica do nacionalismo totalitário. Para o de-mocrata verdadeiro, cujo filosofia política sefunda na transcendência. da natureza e da sortedo homem, o colonialismo não é um processointrinsecamente mau. E ao contrário um pro-cesso que trouxe e pode ainda trazer enormesbenefícios paro o mundo, desde que as naçõescolonialistas saibam reconhecer o seu carátertransitório e saibam ceder diante das reivindi-cações de uma consciência nacional nascente.Há no fenômeno certa similitude com o exer-

CICIO da paternidade que também, em certoponto da vida, tem de reconhecer a maiorida-de dos filhos. O êrro da política colonialistapraticada em nossos dias pelo Inglaterra oupela França é o de inoportunismo histórico.Terá valor ético negativo dado pelo falso jul-gamento das circunstâncias; será um mal pelofato de quererem aquelas nações contrariar amaioridade de alguns povos; mas apesar detud.o isto será sempre um mal muito menor,mUito menos grave, do que as estruturas polí-ticas que se firmam no primado dos valoresnacionais sôbre os valores fundamentalmentehumanos. Para um democrata, como já disse,não há salvação nacional e razão de Estadoque justifique uma injustiça cometida contra omais humilde dos cidadãos, porque o mais hu-milde dos cidadãos no cerne de sua persona-lidade, é maior do que a maior das nacões.O caso Oreyfus, na França, foi um exemplo tí-pico de fenômeno nacionalista, e foi muitopior, mais clamorosamente injusto do que apolítica colonialista dos franceses. Nós nãoignoramos que coisas atrozes se passaram naépoca dos colonialismos triunfantes, como porexemplo o caso do ópio na China, que podeser considerado como um dos episódios maistristes da história da humanidade; mas seriaum êrro funesto apontar êsse fenômeno comouma decorrência lógica da política colonia-lista. Foi um acidente, como o caso Oreyfusque também não pode ser imputado ao regimerepublicano pelo fato de ter ocorrido em suavigência. Ao contrário, as injustiças produzidas

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pelo nacionalismo totalitário, como o dilúviodelas que caiu sôbre os alemães, são decor-rências da subversão que está na raiz dêssesregimes. E portanto um sinal de enfraqueci-mento da sensibilidade democrática, em nos-so meio, a reação que boa parte da opiniãopública manifestou a propósito da revoluçãohúngara e do Canal de Suez. Cumpre aindaassinalar que, com. malícia ou com a maiscândida das inocências, os nossos nacionalis-tas sempre favorecem o jôgo dos soviéticos esempre reservam suas irritações para a In-glaterra e para os Estados Unidos.

Tivemos depois a visita do General Cra-veiro Lopes para provar que nossOs democra-tas, a começar pelos que mais ardorosamen-te militaram contra o Estado Nôvo, já não sãomuito sensíveis ao que há de triste e vergonho-so numa ditadura.

Tudo isso leva a crer que atrás dos diver-sos nacionalismos apregoados em nosso paísexiste a tendência totalitária. Perdoem-me osleitores o tom profético que não consigo evi-tar. A verdade é que sinto no ar um cheirode papel rasgado ... Sinto a morrinha da di-tadura, a exalação fétida das explorações deressentimentos, o bafio, o cheiro de môfo dasantecâmaras que, como já foi dito por alguém,são sempre piores do que as piores câmaras.E temo pelo futuro de nossa terra. O fato éque os sedutores das multidões se preparam,e os que deviam reagir se despreparam. O f~-to é que está sendo ministrado ao povo brasl-

leiro,às vêzes com o concurso de verbas con-cedidas pelo tesouro nacional, o pior dos ser-viços, que é o de convencer às multidões queo nosso. atraso vem de fora, e que a causaprincipal de nosso sub-desenvolvimento estánas manobras dos agentes internacionais e nãoem nossa própria incúria, e não na irresponsa-bilidade de nossos dirigentes. Pretenderão osnacionalistas estimular os brasileiros com essatécnica?

Não ignoramos a existência da cupidez eda ferocidade dos processos de competição co-mercial que em tôda a parte, aqui e acolá,produzem a atmosfera de inimizade em queo mundo se debate; não pretendemos, de mo-do algum minimizar os perigos da máquinacapitalista que está montada para sugar o san-gue do pobre; não sentimos nenhuma ternurapelo remanescente da sociedade liberal quenas suas contradições gerou os modernos tota-litarismos. E evidente que devemos nos acau-telar, que devemos defender nossos bens, quedevemos reagir contra as más influências quetravam nosso desenvolvimento; mas seria umêrro funestíssimo esquecer que a primeira me-dida consiste em tomar consciência de nossosdescuidos e em trabalhar pelo soerguimentocívico de nosso próprio povo. Porque é na mo-leza de nosso corpo político, na falta de de-fesas morais, na negligência e no impatriotis-mo de nossos dirigentes que está a triste ex-plicação de nossa permeabilidade e de nossapassividade. Se os nacionalistas pretendem es-

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timular os brasileiras com a técnica da. animo-sidade estão completamente enganados, por-que daí só virá a mania de perseguição e aneurose coletiva. O ressentimento exasperadonão. é fecundo. Quando muito pode produzirfebris exaltações que são estéreis, ou que de-sencadeiam guerras, como aconteceu na Ale-m~nha nazista. Como porém não somos guer-relrC~s,.nem temos os maravilhosos apetrechoshomicidas, apesar da fortuna louca que dis-pendemos com as fôrças armadas, não há pe-rigo para ninguém, a não ser para nós mes-mos. Não destruiremos o mundo com nossosestertores nacionalistas, mas talvez consigamosdestruir o Brasil. '

A pregação da hora presente devia seroutra, totalmente diversa, infinitamente diversada pregação nacionalista que pretende nos in-culcar um ridículo orgulho. A pregação deveser a de uma briosa mas modesta e humildetomada de consciência. Será preciso lembrarque só a humildade é veraz e que todo o or-gulho é mentiroso? Será preciso lembrar quesó a verdade é fecunda e estimulante? A pre-gação da hora presente deve ser sobretudo ade um apêlo à responsabilidade. Somos deten-tores de oito milhões de quilômetros quadra-dos, que representam uma fração muito apre-ciável da superfície do planêta que talvez sejao único habitado por sêres racionais em todoo universo. Antes de nos ufanarmos de tãogrande área, e de tudo o que nela se encon-tra, convém sentirmos a responsabilidade que

dêsse tesouro nos advém. Entre as riquezascom que o acaso nos brindou, temos agora opetróleo. Muito bem. Experimentamos as fôr-ças de nossa maioridade cultural. Afirmemosnossa capacidade de explorar os recursos na-cionais, sem ser preciso, para isto, insultar asnações de língua inglêsa, e sem chamar de"entreguista" às môças que passearam e na-moraram os oficiais de marinha americanos.Sendo muito relativa a nossa autonomia cul-tural, êsses vitupérios tomam proporções deuma espantosa cretinice. Sim, porque é precisonão esquecer que tôda a aparelhagem e tôdaa técnica para a exploração do petróleo fo-ram estudadas nos países estrangeiros. E emlivros inglêses, americanos e franceses que osnossos nacionalistas terão de estudar, se al-gum dia resolverem estudar alguma coisa. Te-mos o petróleo. Muito bem. Mas con'vém lem-brar que não foi por arte nossa que o mine-ral se formou. Temos o petróleo mas não te-mos, senão por empréstimo, por imigração es-piritual, a ciência de extraí-Io e de adaptá-Ioao uso. A parte que aos homens compete nãofomos nós que a produzimos. Estamos apren-dendo com os outros, estamos comecando aaprender. E então será bom agradec~r. Serábom lembrar que o resto do mundo não se re-duz aos trustes e aos demais mecanismos de ex-ploração dos países sub-desenvolvidos. Se éverdade que existe êsse mecanismo, contra oqual devemos nos acautelar, é verdade tam-bém, e verdade maior, mais ampla, mais ge-nerosa, que existe um resto do mundo de onde

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nos vem a muslca de Mozart e a penicilina, deonde nos vem tudo o que constitui a v~da ci-vilizada. Na vida das nações como na vidados indivíduos não é boa norma ver nos ou-tros sàmente aquilo, que nos molesta. E pre-ciso completar a desconfiança e a vigilânciacom a parte mais ampla da gratidão e do res-peito. E essa deve ser a estimulante e fecun-da composição do remédio que o Brasil pre-cisa tomar.

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o extraordinário desenvolvimento das téc--=as trouxe ao mundo um nôvo conceito deriqueza das nações. Não é mais no ouro e naprofa, ces deux grands et fideles amis den.omme, como dizia um economista da era doJDer"cantilismo, que reside a riqueza das na-ções. Apesar do valor que ainda conservam~as substâncias que são mais abundantesaqui e mais escassas acolá, e que, por conse-guinte, continuam a constituir vantajosos fatô-~ econômicos para os países que as pos-iUem, não é nelas que reside a parte principal::b riqueza das nações. A parte principal é oi'IIomem, é o saber do homem, é a medida dodomínio exercido pelo homem sôbre os ele-mentos naturais. A grande tendência da econo-:nia moderna é indubitàvelmente a da valori-:Loção do know-how como primordial elemen-;:> de qualquer equacionamento econômico.

Ora, se assim é, se a nossa principal ri-queza tem de ser encontrada em nós mesmos,em nossa capacidade técnica, em nosso sa-::>ar, e nas demais virtudes humanas, então érorçoso reconhecer que o sub-desenvolvimentodo Brasil tem maior profundidade "e maior gra-vidade do que pensam os alarmados economis-tas. Mais do que econômico, nosso sub-desen-

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volvimento é cultural. Quem já trabalhou emalguma das modernas técnicas, em nosso país,poderá dizer com sinceridade que nada ouquase nada encontrou que fôsse nosso, de ori-gem, como dizem que é o petróleo. Permita-meo leitor uma exibicão de títulos. Trabalhei lon-gos anos em ind6stria eletrônica. Esforcei-me,com dedicados companheiros, por fabricaraparelhos de telecomunicações tão bons comoos estrangeiros. Até hoje muitos dêsses apare-lhos estão em funcionamento na rêde da Com-panhia Telefônica Brasileira, no Exército e noDepartamento de Correios e Telégrafos. Tenhoportanto os títulos para informar que êsse im-portante ramo da técnica moderna está, emnosso país, numa situação de total dependên-cia. Não digo que esteja pouco desenvolvidopelo fato de existirem poucos estabelecimen-tos industriais no ramo, ou por ser diminuta asua produtividade. Não me refiro ao volumenem à eficiência. Nossa dependência é maiscultural do que econômica. Se nos tirassem dasmãos os livros e os catálogos americanos ousuecos, nosso trabalho sofreria um instantâneocolapso. Por onde se vê que o estado atual denossa cultura, nesse como em outros ramos, éo da transplantação que ainda não criou raí-zes e não deu frutos próprios.

Não podendo desconhecer êsse estado decoisas, que é gritante, o exaltado nacionalis-ta pensa que a técnica fica sendo nossa umavez que se comprem, com os equipamentos es-trangeiros, as necessárias instruções para uso.

Ouvi outro dia um dêsses dizer que o know-how se compra. Achei divertida a frase que,pelo uso da expressão inglêsa, confessava in-conscientemente a inassimilação da coisa com-prada. Estive para dizer que seria melhor tra-duzir a coisa do que comprá-Ia.

Tomada no sentido mais restrito, pode serque se compre a técnica como quem compra,::001 um utensílio, o modo de usá-Io; mas to-mada no sentido mais amplo e mais fecundo,:10 sentido de patrimônio cultural capaz deg:mhar raízes e vida própria, e capaz de pro-duzir frutos novos com o sabor da terra emque medrou, o know-how não se compra. Cul-'":'",a-se. Adquire-se na imanência cultural deuma sociedade estudiosa e operosa. Quando:'llu:to podemos admitir que se comprem as se-:'entes.

Além disso cumpre notar uma cômica im-propriedade daquela frase. Faz parte da jac-roncia dos ricaços a idéia de que tudo se com-pra. Temos todo o direito de rir, ou de zangar,qiJando ouvimos algum Babbit enunciar que"udo por dinheiro se obtém. Quando porém a':"':Jse é pronunciada por um pobretão que vive= pedir dinheiro emprestado, já não sei qualsé::I então a razoável e adequada reação.

Torno a dizer: quem trabalha em contatoc:>m alguma das mais modernas técnicas, co-.llnO por exemplo a das telecomunicações, sen-'\e o tremenda dependêncio, a situação real-IIIIeI1fe colonial de nossa cultura. O que sabe-

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mos fazer é de segunda mão. Nossa ciência étraduzida, e freqüentemente mal traduzida.Na Companhia Telefônica Brasileira, onde hádez anos funciono como professor de equipa-mentos eletrônicos (porque fora da Escola Téc-nica do Exército não existe nenhum curso pa-ra formar engenheiros dessa especialidade) ou-vi de um dos alunos uma expressão que tra-duz bem a nossa dependência técnica. "Nósaqui somos tele-guiados", disse-me êle. E éverdade. Quando muito sabemos repetir aquio que os outros fizeram em primeira mão.Aprendemos a instalar os aparelhos fabrica-dos fora, e até somos capazes de fabricar apa-relhos semelhantes se tivermos ao nosso alcan-ce os livros, os catálogos, e boa parte das pe-ças que outros para nós elaboraram. Alegre-mo-nos com êsses modestos resultados, recen-tes; elogiemos os que deram os primeiros pas-sos de cada nova técnica; estimulemos os queprocuram acertar o passo pela marcha dospaíses de vanguarda; mas não levemos nos~oentusiasmo até a insanidade de pensar que jáestamos culturalmente independentes e que po-demos cultivar o luxo de detestar os nossosmestres.

Não consigo entender o mecanismo dosentimento que acompanha a exaltação nacio-nalista. Cada um de nós pode encontrar em simesmo, nas profundezas da alma, as raízesdos mais estúpidos e cruéis sentimentos; e épor isso que uma alma grande como de Dos-toievsky pôde, com tamanha naturalidade, des-

crever os segredos das almas torpes. No casovertente entretanto, não consigo entender bemo que se passa no espírito de um jacobino.Talvez padeça dessa incapacidade pelo fato deter estudado um pouco mais do que os estu-dantes nacionalistas, e de ter trabalhado efe-tivamente um pouco mais, para o desenvolvi-mento técnico do país, do que tantos jornalis-tas e sociólogos que enchem a bôca, e às vê-zes a barriga, com o "desenvolvimento econô-mico" e com outras fórmulas de garantido su-cesso.

Sempre que olho em volta de mim, mes-mo em casa e longe da atmosfera mais densa-mente técnica, e sempre que considero os ob-jetos que me cercam - o relógio, a caneta, amáquina de escrever, a vitrola Hi-Fi, e os dis-cos, e a música escondida nos discos - um du-plo sentimento me acomete. O primeiro é degratidão. Tenho vontade de agradecer aos in-visíveis inventores e aos invisíveis obreiros detodo êsse confôrto e de tôda a alegria que meproporcionaram. O segundo sentimento é o de-sejo de retribuir e é nesse desejo que sinto emmim alguns ímpetos nacionalistas, pois não setrata de uma retribuição pessoal, de homempara homem, mas de uma retribuição nacio-nal, de cultura para cultura. E logo, por via deconseqüência, assalta-me um terceiro sentimen-to de encabulação. Vivemos num dos maiorespaíses do mundo. Temos oito milhões de quilô-metros quadrados. Sessenta milhões de habi-~ontes. Ora, poderemos nós afiançar que essa

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gente e êsse enorme espaço tenham sido be-néficos para os outros? Haverá pelo mundoquem nessas horas esteia agradecendo ao Bra-sil alguma contribuição cultural, algum benefí-cio? Haverá na Alemanha quem esteja conva-lescendo de grave enfermidade graças a umproduto farmacêutico descoberto no Brasil?Haverá na França uma dona de casa que sealegre com um utensílio inventado por nós?Haverá na Groenlândia ou na Patagônia al-guém que sinta engrandecida sua condição hu-mana por obra de nosso gênio?

Veiam, amigos, que meu patriotismo, mo-déstia à parte, é muito mais ambicioso do quetodos os programas nacionalistas, porque nãome contento com o desenvolvimento de uso in-terno. Não me contento com a autonomia. De-seio muito mais para o Brasil. E aqui, ondeparece que começo a delirar, está na verdadefalando o mais trivial bom senso. Eu acredito,e qualquer pessoa normal também acreditaráque a generosidade e a admiração são maisestimulantes e fecundas do que a irritação e ainveja. Essa é uma das leis do mundo do espí-rito. Dizia um velho padre alemão que nós te-mos poucos padres no Brasil porque não en-viamos missionários brasileiros para fora. Àprimeira vista parece absurda a idéia, porquese enviarmos nossos padres para fora, pela leida quantidade ainda os teremos menos. Maso mundo do homem não se rege apenas pelasleis da quantidade, como pensam os tecnicistasque tanto falam em desenvolvimento econômi-

co do país. Há uma outra lei de aspec~o. pa-radoxal - lei própria do mundo do esplflto -pela qual quem mais ?á ma.is g,a~ha. E é del~,e de suas conseqüências pSlcologlcas e moraIsque tiro a firme convic~ã~ de q2'e o: melh~resincentivos para os brasileiros nao. sao ?q~elesditados pelo ressentimento, pelo Isolaclonlsmoe pela xenofobia. E é tamb_ém. dos mesmosprincípios que tiro a conclusao dustrad? pelosfatos e conhecida de todos os verdadeiros so-ciólogos e economistas contemporâ.neos. Nãoé nas substâncias minerais ou vegetais que con-siste a principal riqueza das nações. Pode-seaplicar ao conceito a doutrin~ de. ma!éria eforma' e é na forma, na raclonallzaçao dosbens :nateriais, no domínio que a inteligênciaexerce sôbre a natureza, é no trabalho huma-no é na competência, na qualidade e nas vir-tudes dos cidadãos que consiste o elementoprimordial da riqueza das nações. E é nessecampo integralmente humano que devemostrabalhar se realmente queremos que nossOBrasil chegue a ser, não apenas um país comdivisas e com máquinas, mas uma nação be-néfica para os que nela habitam e benéfica,por irradiação, para o resto do mundo.

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o jornal de domingo passado trazia umanotícia de Caracas e outra de Havana que bem;,aduzem o fenômeno que poderíamos chamarde estupidificação internacional. A primeira re-feria-se ao apoio dado ao govêrno cubano deFidel Castro pelos 'legisladores venezuelanos,e dizia assim: "Cuba tem o direito de determi-"or livremente seu próprio destino". A segun-da notícia contava-nos que o nôvo ConselhoSupremo da Universidade de Havana expulsa-:-0 29 professôres de Engenharia, 19 de Direitoe 12 de Ciências Comerciais, "por atitudescontra-revolucionárias" .

Analisemos aquela primeira proposição. Aprimeira vista parece c1aríssima, banalíssima, emuito condizente com as idéias em vogai mas"m exame um pouco mais profundo nos mos-~-a que a proposição não é tão clara quanto;:>arece. E à medida que se aprofunda a pes-::::Jisa diminui a claridade inicial do juízo. Que::luer dizer "Cuba"? Que quer dizer "tem o:freito"? Que quer dizer "determinar"? Quequer dizer "livremente"? Que quer dizer Rseupróprio destino"? Começando pelo sujeito daoração, achamos que o redator exageraquando identifica a nação com o seu govêr-",'Di e tanto é maior o abuso desta figura de

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linguagem, que tom~.a parte pelo todo quan-t~ menor e a tranqullJdade cívica que reina nodito país. Amanhã ou depois, triunfando 01-gu~ movimento Ncontra-revolucionário", Cubadeixa de. ser Cuba, se hoje, para apoiar atitu-des de Fldel Castro, os legisladores venezuela-~os acham que Cuba e Fidel Castro são idên-ticos. Tudo indica que a população cubana~stá dividida: o càncelamento de liberdade deImpren~a-, .a expulsão de sessenta professôresunlversltanos, ~ob a sinistra alegação de te-re~ tomad~ a!ltudes contra o regime, e as de-maiS turbulenclas observadas em tôrno do casocubano i~dicam claramente que não é muitoc1~ra a sltuaç~o. e que é bem possível que jáeXista uma opinião pública mais volumosa nolado .da oposição. Sabemos que um país podeperfeitamente ter a opinião pública defasadado poder e dominada pelos ocupantes do ditopoder. Para que a oposição se torne eficaz epossa sair vi.toriosa, mesmo num país razoàvel-mente .dedetlzado e democrático, é preciso queela sefa sensivelmente mais volumosa do quea _situação .. Em. regra geral o poder está nasmaos. da mlnona que já o detinha na situacãoantenor, e que só o deixa cair quando a' di-ferença de pressão da opinião pública se tor- .na .capaz de vencer os trunfos normais ou anor-ma~s. do govêrno: a propaganda, a polícia, afacilidade de corrupção de consciências, oscargos, ete. Em países efervescentes e instáveis.,como Cuba, Venezuela, Brasil e outros menosamadurecido~, só vem à tona a oposição'quando a diferença de pressão e de volume:

:ie oplnrao pública se torna considerável. Enesses lugares, dados os abusos dos governa-:io,res, é quase certo que, logo após o triunfo--evolucionário ou a euforia da derrubada dec.:m tirano, a parte mais importante e mais=consciente da opinião pública esteja com a:xx>sição.

Há por conseguinte um grande abuso de",:tguagem na identificação do país com o seu"":..:-bulento e provisório govêrnoi mas o maior::iOUSO contido na frase que estamos analisan-:,:; reside na predicação de um direito que:.uba teria de "determinar livremente" o seu=atino. O têrmo "livremente" deriva de "Iiber-~:;de·, ora, o têrmo e o correlato conceito de::::.erdade são analógicos, e se aplicam primor-:=:mente aos atos humanos tomados individuol-~.;nte e pessoalmente. Analogicamente se es-::ldem até o domínio do mecônico, onde se-_:::J de graus de liberdade, de queda livre,~-::.. Num contexto onde aparece o têrmo "di--~~to· trata-se evidentemente de uma liberda-:.: no sentido humano e ético, mas nesse co-:;:,:;o que espanta, o que caracteriza a atmos-~-::J cultural de nossos dias é o deslocamento::: sentido primordial do têrmo. Hoje está em. ::sa um tipo de sensibilidade estranho que:'; caracteriza por uma susceptibilidade extre--:::nente delicada para o que cerceia a liber-==oe dos governos ou das nações com êles.:entificadas, ao mesmo tempo que se demons--::: uma enorme indiferença em relação às li-:le~dades diretamente humanas e pessoais. Re-

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clamam-se as liberdades de Cuba, do Egito,do Congo, da Algéria, mas não. se reclamamcom a mesma veemência as liberdades dosprofessôres universitários cubanos ou simples-mente dos cubanos. Também não se inclui norol das reivindicações libertá rias o homem rus-so, o escritor russo, o jornalista russo. E paracúmulo dos disparates, aparecem como liber-tadores de povos os que aprisionam o seu pró-prio povo, e são apontados como reacionáriose pouco amigos da liberdade dos povos os quesempre lutaram pelo fundamental direito do ho-mem e pela verdadeira liberdade. Como podeCuba determinar livremente seo destino se nãopode viver livremente, ensinar livremente, es-crever nos jornais livremente? O ideal desfral-dado pelos parlamentares venezuelanos é umaespécie de círculo quadrado: Cuba será livresendo escravos os cubanos, ou pelo menos boaparte da sua população. Nós bem sabemos oque quer dizer aquêle manifesto venezuelano,que bem podia ser assinado por nossos nacio-nalistas: ninguém tem o direito de intervir nosnegócios internos de Cuba. Essa afirmacão re-pousa num princípio falso, e seria errôn~a ain-da que a vida interna do país transcorressena mais pura das liberdades cívicas. A Inglater-ra não poderia enunciá-Ia; e por muito maisforte razão Cuba também não pode. Nenhu-ma sociedade é tão hermética, tão autônomaque possa reivindicar esta absoluta soberaniaexterior. Numa família, que é uma sociedademais diretamente ligada à lei natural, o paiperde o direito sôbre seos próprios filhos se se

excede, e todo o mundo sente que tal limita-ção é razoável porque antes de ser simples-mente filho, e sujeito ao pai, a criança é umapessoa humana com direito mais alto. Comoadmitir então que um país, uma nação, cujaforma provém de acidentes históricos, cujaunidade é muito mais fraca do que a unidadefamiliar, possa fechar-se para o mundo e pos-sa, dentro de suas fronteiras, massacrar livre-mente as pessoas que tomam atitudes contra-revolucionárias? Curiosa contradição! Curio-sos disparates! t fácil ver, pelo que cremoster provado, que os parlamentares venezuela-'10S não estão apoiando Cuba e sim Fidel Cas-tro. Ora, êsse apoio é tão impertinente, à luzdo famoso princípio de autodeterminação dospovos, como a reprovação. Os cubanos nãoprecisam do apoio explícito dos venezuelanos.Ninguém Ihes pedia a opinião. Ninguémlhes perguntou se deviam ou não deviam ex-pulsar os professôres universitários. Se Cubase identifica com o seu ditador, e se Cuba as-sim hipostasiada tem direito de livremente de-terminar seus destinos, cale-se o mundo, ouaprove-a o mundo com uma universal taci-turnidade ou com um universal grunhido isentode qualquer pronunciamento aprovador ou re-provador. Não estou gracejando. Quem estágracejando são os que dizem que "Cuba temo direito de determinar livremente o seu pró-prio destino", e o pior é que êles não sabemque estão fazendo uma pilhéria de âmbito in-ternacional.

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o princípio que julgam estar enunciando ésimplesmente impensável, e faz parte do con-texto de tôda uma civilização que agoniza, eque ainda é sustentada em seus disparates jus-tamente por aquêles que se julgam adiantadose modernos. O isolacionismo intern'acional éapenas a expansão das filosofias d? ~oís'!10pessoal, e é curioso notar que constituI o piorpecado cometido pela nação americana donorte. País fechado sôbre si mesmo, produzin-do para si mesmo, criando padrões de confôr-to para si mesmo, os Estados Unidos pecarampela indiferença que manifestaram e até hojeainda manifestam diante dos países totalitá-rios cuja desprezível fraqueza não constitui pe-rigo para êles. Ora, nos dias que correm~ osque atiram pedras contra os Estados Unidossão justamente os que apregoam a validez da-quele comportamento isolado do mundo.

Num contexto doutrinário diferente, inspi-rado por outra concepção da vida e do mun-do, ninguém e nenhum grupo tem o dir~ito dedeterminar o que julga ser o seu próprio des-tino. A polarização de todos os atos é dadapelo bem comum e não há direito humano quepossa prevalecer sôbre a universal destinaçãocomum do gênero humano. Dentro dêsse con-texto eu direi que Cuba não pode aceitar sercabeça-de-ponte da União Soviético, e nós nãopodemos admitir que algum ditador cubanopretenda com tal atitude exprimir a vontade dopovo cubano, e isto por uma razão extrema-mente simples: porque o regime que infelicita

a União Soviéttica é antinatural e contrário 00

bem comum da humanidade. Poderá alguémdiscordar desta premissa e preferir outro pa-drão de felicidade humana baseada no ale-gria de ter a alma estampilhadaj mas duvidoque alguém possa apontar a incoerência, a es-tupidez, o vazio de nossos corolários, comoacabo de fazer, com certa facilidade, com aque-la proposição que todos engolem sem pensarmesmo porque parece que não há mais tempo

para pensar.

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Tomando o adjetivo no sentido restrito queconcerne à vida da inteligência coletiva nasciências e nas arfes, pode-se dizer, creio eu,que o nacionalismo cultural, em vez de ser umsetor ou um epifenômeno, como parece quemuitos pensam, é a própria alma dessa atitudegeral, dessa concepção do mundo e da vidaque hoje em dia é o credo das nações subde-senvolvidas.

Entende-se que num certo ponto de sua:"istória uma jovem nação tome consciênciamais viva e mais nítida de sua nacionalidade,como se sabe que na vida individual há umaestação crítica em que se arma, mais oumenos aguda, a consciência da personalida-de. O que não se entende é que seja jul-gado bom, estimulante, fecundo, ete., o fa-'0 de se transformar tal visão reflexa, tal:Jreocupaçõo com a personalidade ou com a:lccionalidade, uma espécie de narcisismo iris-~alado e programado. Não há nada mais ridí-,:ulo do que uma vida polarizada nesse tipo deoreocupação reflexa, como por exemplo o su-jeito que compõe um livro de versos para serealizar, para alcançar sucesso, para afirmarsua personalidade. Obra feita com tal critério,orientada portal finalidade vista ao espelho,

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jamais salra coisa que preste. Em verdade nãohá nada mais infecundo do que o amor pró-prioe a vaidade. Podem funcionar como estí-mulo de arrancadas curtas, como as drogascom que se obtém de um cavalo uma veloci-dade maior de curto alcance à custa de suasaúde futura; mas para obras de maior alcan-cee maior densidade o amor próprio e a preo-cupação do sucesso são venenos mortais. Nãopretendo, com isso, afirmar que os grandes ar-tistas foram sempre homens despojados deegoísmo e totalmente esquecidos de si mes-mos. Não; ai dêles, em regra geral são po-bres homens cheios de defeitos e como nóssujeitos aos critérios carnais. Digo, porém, quea vaidade dêles, se a obra é realmente largae bela, não entrou no ato criador. Existia an-tes. Vem depois. Mas estêve suspensa durantea fecundação, a imposição de uma forma aossons ou às côres. No segredo ardente e amo-roso da criação, o vero artista esqueceu-se desua personalidade, dos prestígios do nome, eentregou-se todo, de corpo e alma, à genero-sidade feita à imagem e semelhança de Deus.

a que dissemos da arte aplica-se comigual rigor à pesquisa e à descoberta científi-ca. Suponhamos a existência de uma famíliaBraga ou Silva preocupada primacialmentecom suas glórias passadas e com seus prestí~gios presentes e futuros. Se algum membro detal família ingressar, por exemplo, na pesqui-sa médica, e procurar fazer uma ciência silva-na ou braguense, ciência própria, emancipada

do colonialismo cultural que ainda a prende00 imperialismo dos Cruzes e dos Chagas, ecom tais critérios enveredar na procura dascausas do câncer, duvido muito que chegue aalgvm resultado apreciável, e creio que o lei-tor \rne dá razão. Cientista desta espécie po-derá atingir cargos públicos, poderá chegar aReitor de alguma Universidade Federal, Esta-dual ou Municipal, mas a castíssima verdadeque mora nas essências das coisas, que são re-flexos da divina essência, não dará ao impuropesquisador o beijo de sua bôca.

E o que digo para a esfera do indivi-dual, proporções guardadas, vale para o do-mínio do social. E: ridículo, sumamente ridí-culo, querer fazer, explicitamente, diretamente,orte ou ciência brasileiras. Sempre que encon-tramos numa sociedade esta bandeira do na-cionalismo cultural desfraldada em cada es-quina, podemos afirmar com segurança que:al país atravessa uma crise de adolescênciae corre o risco de tomar por progresso real oprolongamento da imaturidade e do ressenti-mento. Todos os povos passam por experiên-cias semelhantes, em graus diversos, mas umacoisa temos como certa: só há real e forteposse de si mesma, só há real e fecundo pro-gresso, naquela sociedade que deixa esqueci-do o problema da nacionalidade, e se aplicacom todo o vigor nos problemas objetivos, nasobras que a cultura em movimento reclama. Anacionalidade é uma conseqüência, e não umprograma cultural. Escrevam-se bons romances,

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pintem-se bons quadros, estudem-se os fenôme-nos do mundo físico e do mundo vivo. Se tudoisto nascer com fôrça e perfeição nascerá umconjunto de coisas, com certas marcas locais,mais no domínio da arte do que no da ciência,que virá a merecer o nome de cultura brasilei-ra ou chinesa.

Num certo ponto de sua história, admite-se, entende-se que uma sociedade faça um es-fôrço e deixe de imitar servilmente a metró-

. pole colonizadora, passando a olhar em tôrnode si e a procurar no seu próprio meio a ma-téria que alimente as formas inventadas.

Foi o que aconteceu em nossa literaturado século passado, e que Machado de Assis,com luminosa argúcia, analisa no ensaio "Ins-tinto de Nacionalidade" ("Crítica Literária",W. M. Jackson, 1938, pág. 131 e seg.). Quise-ram os seguidores de Gonçalves Dias, PôrtoAlegr~ e Magalhães criar uma literatura inde-pendente. Mas "esta outra independência" dizMachado de Assis, "não tem Sete de Setem-bro nem campo do Ipiranga; não se fará numdia, mas pausadamente, para sair duradoura;não será obra de uma geração nem duas ... ".Acrescento eu, se me permitem, que não bas-ta a pausa e a paciência: para uma culturabrasileira existir, realmente, é preciso que oshomens desta grande nação se esqueçam damágoa da inferioridade, e trabalhem pela pu-ra perfeição do objeto, sem a obsessão da na-cionalidade. Ao contrário, enquanto perdurar

o atenção reflexa, o narCISlsmo social, perdu-rará a crise, a caimbra, a infecundidade.

Aquêles poetas e p'rosadores a que se re-feria Machado, para se desligarem da arcádia,que na idéia dêles representava a Europa-Mãe, ou o jugo da metrópole, caíram no india-nismo, como se indiano fôsse o fundo e a subs-tância de nossa civilização. Ou como se oindio fôsse mais brasileiro, mais genulnamen--e nacional, do que os filhos dos portuguêses.~ para um discípulo dos filósofos descenden--es de Aristóteles não deixa de ser cômico"1otar que os tais indianistas serviam-se da ma-:ériaíndia, mas determinavam-na com a for-ma nacionalista que é puramente européia e:>ascida com a nova civilização ocidental.

Há sempre proveito em lembrar a teoria::::ristotélica de matéria e forma, e em lembrar~ue é sempre a forma o princípio determi--ante. A escolha do material com que o artis-:0 compõe sua obra, seja musicada seja pinta-da ou cantada, não basta de modo algum pa--o determinar um tipo, uma raça espiritual,Jma cultura. Virá dêsse material, dessa maté--ia segunda, algum influxo adjetivo de CÔr ousabor, mas o espírito continua o mesmo en-quanto permanecem os eixos polarizadores. Eenquanto a literatura, a nova e pseudo-inde-pendente literatura se contenta com trocar "o

/

ca1adoe a pastôra" dos Gonzagas pela fle-ch~-e-i>elo tacape, não há mudança de eixos:há apenas mudança de assunto.

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t: claro que será mais genuína a arte quenascer de uma expenencia própria, e comonão temos entre nós pastôres nem cajados, me-lhor será que olhemos em tôrno de nós e ob-servemos com agudeza o que nos está ao al-cancei desta autenticidade, desta forma deveracidade nascerá, por via de conseqüência,a marca da nacionalidade sem ser preciso fo-calizá-Ia intencionalmente. E não há necessi-dade, para ser veraz e autêntico, de ir pro-curar nas selvas o que nos diferencia total-mente da metrópole. O indianismo, feitas ascontas, é tão ridículo e falso como as faixasda Arcádia de que desejávamos fugir. Sem fa-zer apêlo ao hilemorfismo aristotélico, ou usan-do-o com o instinto do gênio, Machado deAssis, nas páginas 138 e seguintes do mesmoestudo, chega à mesma conclusão, com umavantagem a seu favor: teve de resistir a umatendência que estava na moda, como tambémteve de resistir ao realismo dos Flaubert e Zolaque ditavam leis no prestigioso mundo de·além-mar. Por essas e outras é que Machado.é o nosso maior valor, e o mais brasileiro dosnossos autores.

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Sem valer-se de Aristóteles, ou usando asconclusões do gênio com o instinto do gênio,eis o que dizia Machado de Assis no seu estu-do sôbre o "instinto de nacionalidade" que noséculo passado determinou em nossa culturauma orientação naturista, indianista, que porisso seria mais brasileira: - "Devo acrescentarque neste ponto manifesta-se às vêzes umaopinião, que tenho por errônea: é a que sóreconhece espírito nacional nas obras que tra-tam de assunto local, doutrina que, a ser exa-ta, limitaria muito os cabedais da nossa litera-tura. Gonçalves Dias, por exemplo, com poe-sias próprias, seria admitido no panteon na'cional; se excetuarmos os "Tymbiras", os ou-tros poemas americanos, e certo número decomposições, pertencem seus versos pelo assun-to a tôda a mais humanidade, cuias aspirações,entusiasmo, fraquezas e dores geralmente can-tam; e excluo daí as belas "Sextilhas de FreiAntão", que essas pertencem unicamente à li-teratura portuguêsa, não só pelo assunto queÇl poeta extraiu dos historiadores lusitanos,~as fté pelo estilo que êle hàbilmente fêz an-tiqutído. O mesmo acontece com seus dramas,nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Irialonge se tivesse de citar outros exemplos de

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casa, e. não acabaria se fôsse necessano re-correr aos estranhos. Mas, pois que isto vai serimpresso em terra americana e inglêsa, per-guntarei simplesmente se o autor do "Song ofHiawatha" não é o mesmo autor da "GoldenLegend" que nada tem com a terra que o viunascer, e cujo autor admirável éi e pergunta-rei mais se o "Hamlet", o "Othelo", o "JúlioCésar", a "Julieta e Romeu" tem alguma coi-sa com a história inglêsa ou com o territóriobritânico, se, entretanto, Shakespeare não é,além de um gênio universal, um poeta essen-cialmente inglês. Não há dúvida que uma lite-ratura, sobretudo uma literatura nascente, de-ve principalmente alimentar-se dos assuntosque lhe oferece a região; mas não estabeleça-mos doutrinas tão absolutas que a empobre-çam. O que se deve exigir do escritor, antesde tudo, é cerfo sentimento íntimo, que o tor-ne homem do seu tempo e do seu país, aindaquando trate de assuntos remotos no tempo eno espaço. Um notável crítico da França, ana-lisando há tempos um escritor escocês, Masson,com muito acêrto dizia que do mesmo modoque se podia ser bretão sem falar sempre dotoio, assim Masson era bem escocês, sem di-zer palavra do cardo, e explicava o dito acres-centando que havia nêle um "scottismo" inte-rior, diverso e melhor do que se fôra apenassuperficial". E depois dessas sábias observa-ções, Machado dizia com certa amargura:"Estes e outros pontos cumpria à crítica esta-belecê-Ios, se tivéssemos uma crítica doutriná-

na, ampla, elevada, correspondente ao queela é em outros países. Não a temos".

Tudo isto que Machado diz em seu notá-.'el ensaio refere-se à relação que existe entre""acionalidade e literatura. Podíamos estender!Jas reflexões aos outros domínios da ar--ei mas não cremos que possa existir uma re-::ção de nacionalidade, uma caracterização'::::01, regional, um gôsto da terra, no domínio~:Jis universal das ciências. Quem clama por,rna sociologia brasileira, por exemplo, esta--:: acertado se pede maiores e mais cuidado-sos estudos sociológicos sôbre os fatos e fenô--enos locais, se reclama aplicação da univer-s;:: ciência sociológica à terra brasileira, como~·5s reclamamos, mais de uma vez, o incre--ento dos trabalhos de geografia e cartogra-.:::: que ainda estão em estado quase embrio--,::~io, ou como desejamos, de um modo geral,::.;e surjam matemáticos e físicos entre os nos-s;::s compatriotas. A sociologia brasileira será:;"':Jsileira pela matéria tratada, pela concreti-::::ção do fato estudado, e não, de forma algu--:I pela forma e pelos princípios e leis. De::Jolquer modo a expressão "sociologia bra-s eira" nos parece infeliz, como infeliz, e até~.eio cômica seriam estas outras: "geometria::~osileira", "fisiologia brasileira", 11 astronomia:;-asileira", etc., embora admitamos a proprie-:::,:Jde delas em certos contextos especiais. Sei:Jorém a expressão procura exprimir realmen-"'e~~a espécie brasileira, uma forma brasilei-·0 de sociologia, como se depreende de alguns

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contextos nacionalistas, então elo não posso deuma tolice equiparado o tontos outros produ-zidos em tal atmosfera.

Em matéria controvertido, onde existemdiversos correntes, diversos teorias s~bre .0mesmo assunto, pode-se falar de uma filosofiaalemã, pensando em Kant por exemplo, ounuma sociologia francesa pensando em Dur-kheim. A denominação nacional, nesses casos,não posso de um recurso de c1assifi~açã<:>e nãode uma intenção realmente naclonalJzadoradaquelas ciências, sendo. evidente, ness.es ~a-sos, o caráter de precariedade ~ue t?IS tltu-los sugerem. Só haverá uma soclologlO fran-cesa e outro espanhola ou árabe enquantohouver divergências e controvérsias quantoaos eixos universais de tal ciência human?Nesse sentido, sociologia brasile~ra I que~:rladizer ti contribuição de algum not?vel s.~c'olo-go brasileiro, ou de alguns n~t.áv~IS sO~lOlogo;de mesma nacionalidade à ClenCla unlvers~1.De modo algum a nacionalidade pe~.etr?ra oâmago da ciência, porque só há clencla douniversal.

Já com as artes acontece coisa diversa.Sendo ainda uma pesquisa da ver~ade, masde uma verdade investida de singularidade co~-creta e travestida em esplendor de belez~ naoé o côr local o primeiro coisa o s~r :ons,dera-da, não é o nacionalidade a pm~elra preo-cupação nem, como acab~u d:. d,z,~r Macha~do de Assis, o assunto obrlgatorlo .. O ~ue sedeve exigir do escritor, antes de tuClo, e certo

sentimento íntimo, que o torne homem de seutempo e do seu país ... tI não porque seja es-ta o suo primeira e dominante preocupação.O artista verdadeiro é o que mergulha profun.damente na realidade que o envolve, ou o quemergulha profundamente - se me permitem talverbo para exprimir tão singular experiência- nomeio circundante e no contraparte dêssemeio que já foi inviscerada e que constitui osprofundidades de sua alma. O que importa éser verídico, veraz, verdadeiro nessa experiên-cia de confronto com o realidade singular con-creto que se oferece como matéria primeiroparo as elaborações do experiência poético.Em página admirável sob o ponto-de-vista doespiritua!idade, embora discutível sob o pon-to-de-vista da história natural, São Franciscode Sales se refere às abelhas do Hellespontoque produziam um mel venenoso por causo dosflôres mortais que sugavam. O mel e o abe-lha são sempre os mesmos, mas há o gôstoque depende dos f1ôres, há o sabor que vemdo terra, há o timbre, o sotaque, o particula-ridade que remonto aos ensaios do infância.A nacionalidade entro no obro poético invo·luntàriamente, inconscientemente, como nelaentram os coisas profundas, o humus espiritualdos nossos primeiros ensaios, os primeiros mê-dos, os primeiros amôres. Tudo isto se prendeà terra, à língua que se falo, ao estilo com qúeum povo se alegro ou se queixo. Tudo isso são

joisas que vêm por via de conseqüência, são.. coisas que decorrem do tempo e do espaço, e

por conseguinte do matéria de nosso incarna-

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ção. Não devem ser buscadas como fim, nãodevem constituir programa, sob pena de cairnum mortal ridículo quem justamente preten-de ser sublime.

Creio que já disse, mais de uma vez, quea diversidade de grupos humanos, e entre êlesas nações, têm a remota finalidade de expri-mir tôda a riqueza virtualmente contida na de-finição do homem. As nações diferenciadasexistem para essa epifania do humano, e sen-do assim a idéia da unidade domina a idéiada diversidade. Fazem parte de um concêrto,onde as nacionalidades entram como tímbres,e a natureza humana, una, universal, entra co-mo idéia central da grande sinfonia. Em outraspalavras, as nações existem na linha da gene-rosidade das naturezas e não na linha da re-tração, do isolamento, como pretendem os na-cionalistas.

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Já observei que nos lugares onde se dis-cutem os problemas do Brasil, e onde se co-mentam os mais graves desatinos e os mais es-tridentes escândalos, é invariável costume damaior parte dos homens de responsabilidadearrematar o rol de crônicas calamitosas comesta sentença que cobre todos os pecados daRepública: liMas eu creio no futuro do Bra-sil". Todos crêem no futuro e no glorioso desti-no desta terra, ainda que os sinais de que dis-põem, no presente, sejam de natureza a indu-zir outros sentimentos. Todos crêem, ou dizemcrer, porque parece estabelecido, parece uni-versalmente admitido que seria pecado cíviconão crer ou declarar suas apreensões com ba-se nos sinais fornecidos abundantemente pelonoticiário. Já ouvi êste acorde final nos luga-res em que se reúnem homens conspícuose responsáveis, e onde êsses homens, pordiferenças de raça espiritual, de orientação,de filosofia, divergem ôsperamente em tôr-no da direção que segue a coisa pública! Nahora da distenção dos nervos, da pancadinhano ombro, do arremate da cordialidade esgar-çada, lá vem a jaculatória cívica: "Creio nosdestinos do Brasil",.

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Até ontem, antes de pôr em ordem estasidéias, eu sentia, um mal-estar enorme por mejulgar mau patriota, porque não achava emmim convicção para pronunciar com os outrosa fórmula sacramental, e não a achando nãoa pronunciava, e não a pronunciando ficavacom aquêle pêso de culpa indefinida que às vê-zes é mais incômodo do que a carga de umaculpa nítida. Ontem livrei-me do complexoquando observei que são os patifes que usamcom maior galhardia aquela espécie de espe-rança nacional, e que foram êles que espalha-ram a insidiosa doutrina que diviniza a Pátriae que aproxima a esperança nacional da Espe-rança teologal infusa, que não pode ser feri-da sem gravíssimo pecado.

O bom-senso já me dizia que uma Pátria,como já tem acontecido com muitas pelos sé-culos da história, pode dar com os burrosn'água. t claro que o chão, a base territorial,os rios, e as cordilheiras ficam: mas a pátria,se por tal coisa se entende um conjunto histó-rico com tais e quais tradições orientado paratais e quais missões no mundo, se por Pátriaentendemos mais êste aglomerado afetivo emoral dotado de certas características que vi-sam a ser a glória e a beleza do conjunto daespécie humana, então pode perfeitamenteacontecer que uma Pátria desapareça, ou sequerem uma imagem mais brutal, pode acon-tecer que uma Pótria tombe assassinada numaesquina do tempo. Em cima de seu território oshomens que a assassinaram continuarão o vi-

ver, a' falar, a gesticular, a produzir. Poderãoaté progredir na arte de fazer foguetes. Pode-rão construir usinas hidrelétricas mais possan-tes que a Pátria assassinada até então cons-truíra.

Com o tempo, em cima do mesmo territó-rio antigo, mudam-se os costumes, morre o úl-timo vestígio da piedade com que naquela ter·ra ainda se reverenciava o Rei do universo, epor fim substitui-se a língua. As Pátrias mor-rem, de esgotamento natural ou de maus tra-tos de seus filhos. Morrem e não têm alma imor-tal corno o mais humilde de seus filhos. Sobêste ponto-de-vista com os critérios da eterni-dade, a história é um sôpro e os grandes dra-mas nacionais são ainda mais efêmeros do que

/--os dramas pessoais. Há entretanto, mesmo àluz da eternidade, uma missão, uma função

'"com que cada coisa efêmera deixa uma mar-ca eterna. Na minha mais profunda convic-ção, cada grupo humano está aqui neste cor·roussel planetário para se desincumbir de de-terminadas coisas relativas à sorte e à nature-za do homem. E é neste sentido que se tornaparticularmente trágico o malôgro de uma na·ção. E é neste sentido que me inquieto e quenão acho em mim voz para acompanhar o cô-ro cívico que formula seu ato de perfeita es-perança depois de ter' mostrado que tudo vaide mal a pior.

Por que será que inventaram essa Esperan-ça Nacional com ares de Esperança Teologal?E por que será que são justamente os que mal-

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baratam os recursos pátrios que mais enfàtica-mente declamam sua fé cívico? A razão, Jeitor,é extremamente simples. Escorados nes~ogran-de e indefectível esperança nos gloriosos des-tinos do Brasil, êles podem fazer o que quise-rem sem perigo de falha de tão alevantadoobjetivo. Podem roubar em Brasília e no restodo Brasil, podem entregar o dinheiro da Le-gião Brasileira de Assistência aos bancos doscunhados do Presidente da República, podemroubar no trigo a ponto de escandalizar o pró-prio ministro do sr. Leonel Brizola, podem man-dar para o estrangeiro torrentes de dinheiro,dêste pobre dinheiro ralo que é o sangue ralodo pobre brasileiro, podem gastar come o de-putado Joffily em sua amistosa carta ao Pre-sidente diz que gasta esta IInova classe" nas-cida neste IInôvo Brasilll

, podem botar fora50000 dólares por mês e por cabeça em gas-tos de um super-café-society com um requintede grosseria e de estupidez que só o muito di-nheiro pode dar, podem distribuir cartórios pe-la família, e empregar centenas de parasitasnas câmaras municipais e centenas de parasi-tas em tôdas as repartições do país, e em tô-das as organizações do país, e em tôdas asorganizações estatais, e para-estatais, podemdelapidar, pilhar, roubar, e ainda por cimaatrapalhar os que desejam trabalhar, desen-corajar os honestos, desanimar os cumprido-res do dever, e até ridicularizar os que traba-lham quatro horas por semana. Tudo isto podeser feito serenamente, sem remorsos, sem afli-ções cívicas, por que crê inabalàvelmente nos

destinos gloriosos da Pátria. Pois se são inaba-láveis tais destinos e tais glórias! A Esperan-ca Nacional elevada à altura de fé intocável,transformada em virtude teologal, tem estacuriosa contradição: tira dos homens públicosqualquer cuidado. A palavra mágica garanteo futuro de tudo no Brasil então comamos ebebamos. E sobretudo, por causa das dúvidas,mandemos para os bancos da Europa e da Amé-rica do Norte as prodigiosas somas obtidascom as metas presidenciais.

Ao contrário disto, os que não têm confi-anca inabalável e incondicional nos gloriososde~tinos da Pátria, êsses tratarão de trabalhar,de fazer fôrca, de cumprir o dever, de denun-ciar os escâ'ndalos, tudo isto com o objetivo

/patriótico de trazer uma contribuição para a( \ . d B '1 O .I. glória e para a nqueza o rasl. cunos.o,

'meus amigos, é que nos chamem de derrotls-tas e de pessimistas! O fato de acharmos serpreciso trabalhar e vigiar para um dia sermosgrandes é apontado como derrotismo mórbi-do pelos que clamam incondicional confiançanos destinos da Pátria, e desde já sacam porconta sua grossa parte da glória e da riqueza.

Espero que desta vez o leitor entenda bemo pensamento de um pobre escriba que secansa de dizer, como o hino francês, que aPátria está em perigo.

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Andei êstes dias pensando no problemado um e do mútiplo que divide as filosofias eas mentalidades. Nas filosofias de inspiraçãonominalista, infensas às idéias universais, pre-domina a tendência de valorizar a diversida-de; nas filosofias de inspiração aristotélico-to-mista, ao contrário, ensina-se que a perfeiçãode uma' coisa deve ser procurada na sua maiorunidade, desde que saibamos distinguir entreunidade vista do lado da forma e uniformida-de tomada do lado da matéria.

f errado, e meio tolo, atribuir à diversi-dade, ao pluralismo, um título de nobreZCIe dizer, como diz o professor Anísio Tei-xeira, que uma sociedade se torna mais evo-luída na medida em que se torna mais comple-xa e mais diferenciada. Chega a dizer que ha-veria vantagem, para o Brasil, se em lugar dapredominância católica nós tivéssemos umacoleção maior, um estoque mais variado decredos. Ora, parece-nos fácil provar a falta deconsciência de tal opinião. Afirmando o queafirma, o conhecido autor de livros sôbre pe-dagogia professa, simplesmente, um total ce"ticismo religioso, e deseja a diversidade doscredos como se nenhum dêles pretendesse con-ter verdades, e de fato as contivesse. Duvida-

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mos que o professor Anísio Teixeira desejasseporo o Brasil, poro o desenvolvimento, poro oemancipação econômico e cultural do Brasil,um plura/ismo científico, uma diversidade deopiniões o respeito do funcionamento do fí-gado, dos causas do câncer, e dos proprieda-des do triângulo retângulo. t: cloro, amigo lei-tor, que também nós desejamos o pluralismo nocampo do direito de pesquisar; mas é c1arís-simo que só diremos que há progresso científi-co na proporção em que se unificam os conhe-cimentos e as opiniões.

Há entretanto certas diversidades que têmuma significação de riqueza e de perfeição,além daquela que tem o título precário de di-reito de pesquisa e de opinião. A variedadede indivíduos concretos dentro de uma espécie,a variedade das rosas, por exemplo, é uma ri-queza, é, digamos assim, um belo esfôrço queas existências concretas realizam para expri-mir o conteúdo total de uma essência. Para co-nhecer um pouco o que é uma rosa, qual é opensamento de Deus que ganha corpo na rai-nha das f1ôres, é preciso ter visto muitas péta-las, muitos matizes, muitas racas diferentes domesmo sonho divino. A dive"rsidade aí é umdiscurso, é um poema que se estende para commuitas palavras dizer uma coisa. No fundo daquestão como se vê, há sempre o primado daunidade, mas no caso que tomamos comoexemplo a diversidade não tem o sentido me-lancólico, amargo, que tem o do diversidadede opiniões toleradas enquanto não se acha averdade única de uma coisa. E o que disse da

rosa vale também para o homem. A perfeiçãoda humanidade-essência se realiza na huma-nidade-existência. A riqueza da idéia "homem",que Deus concebeu e criou, não cabe num sóindivíduo, não se esgota no mais belo, no maista/entoso dos homens. Foi preciso deixar o his-tória correr; foi preciso deixar nascer um Mo-zart, um Gauss, uma Catarina de Siena, umPaulo de Tarso, um Einstein, e muitos outrosexemplares mais obscuros; foi preciso deixarnascer o rapaz que dias atrás me contava quenão aceitara um trabalho com o triplo de suaremuneração atual, porque precisava fazer"certas coisas" que sua consciência desaconse-Ihava; foi preciso multiplicarem-se os talentos,as inclinações, os vocações, as nomeações deDeus, paro que a vasto multidão, numa espé-cie de longo e ardoroso discurso, explicasseaos astros,· aos amigos, aos anjos, a tôda ocriação, o que é êste ser espantoso, absurdo,incongruente, maravilhoso, que um dêles defi-niu como "animal racional". A definicão essen-cial é breve, mos o explanação, paro ~orrespon-der â profundidade de tão singela definição,teve de ser extensa como a história da huma-nidade.

Essa diver'sidade, que é uma explicação,uma demonstração prática e existencial de umanatureza definida por uma fórmula universal -essa diversidade que pertence à didática deDeus, é boa, é excelente, e nem sequer represen-ta uma tolerância, uma expectativa, um alarga-mento à espera de uma unidade maior. Não. A

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diversidade do multiplicação de indivíduos domesmo espécie, 00 mesmo tempo que dilata oslimites do definição fortifico os vínculos do uni-dade interno do coisa. Ao contrário do quepenso o nominalista, nós sentimos ainda maisforte o unidade do natureza humano quandopasseamos pelo imenso jardim onde nasceramE? desabrocharam os flôres do humanidade. Ca-da vez mais entendemos, sentimos, penetramosa idéio de um ser que pelo gênero pertence àanimalidade e pela espécie pertence àracio-nalidade.

E o que dizemos para os homens diremostambém para as nações. A variedade delas éuma riqueza, desde que seja vista naquelaperspectiva que enriquece e fortifica a unida-de. Para que existem as nações? Para si mes-mas? para serem poderosas potências arma-das de engenhos mortíferos e enfeitadas combandeiras e hinos? Para serem temas de dis-cursos? Para trazerem côres diversas à carto-grafia, e tornarem os mapas mais agradáveis?Para que existirá o Brasil? Parm o sr. Negrãode Lima ser embaixador dêle em outra nacãoque por sua vez manda embaixadores par~ oBrasil? Existirá o Brasil, como nação, comopátria, para as crianças de colégio fazeremcomposições patrióticas, e para os construtoresde Brasília se encherem de lucro à custa damesma idéia ensinada nos colégios? Existirápara o hino, para a bandeira?

Parece-nos claro que, se fôsse paro taisserventias, melhor seria que houvesse um só

país, falando uma só língua. A transcendentalutilidade, a finalidade dos noções tem de ser'procurada mais alto e no mesmo direção emque se explica a diversidade dos homens. Alémda variedade de pessoa para pessoa, a idéiade homem~ pensado e criado por Deus, preci-sa do varIedade de grupos. Existem noções~om tímbres culturais diferentes, como existemInstrumentos diversos no mesmo sinfonia. E ca-d.a nação traz ao mundo a contribuição pre-CIOSO de um tímbre, de um matiz, de um odorque compõe a grande apoteose do plano deDeus, no centro da qual está o Cruz do Sal-vador como grande síntese do pensamento deDeus sôbre o Homem, ou melhor, do pensa-mento de Deus tornado Homem.

Em palavras mais frias diremos que as na-ções têm vocações diversas na partitura, e idên-ticas no objetivo final que é a glória de Deuse a exposição universal das obras, e feitos dohomem, que se completará no dia do juízo fi-nal. Por ~í se .vê que as nações, não só paraas trocas ImedlOtas de utilidades, existem umaspara outras numa grande e essencial solida-riedade. E é nessa perspectiva que deveriamser armados todos as problemas nacionais enão no ":lesquinha e tola perspectiva do eg~ís-mo coletivo que foz do nação um fim em simesmo.

E qual será, nessa ordem de idéias, o ra-zão de ser do Brasil? Qual será o vocacão co-letivo, o vocação nacional dêste povo que an-do perplexo, tonto, sem saber o que fazer de

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seu imenso território, e do tipo de almas queaqui vive, trabalha, canta, chora e ri. E ri, echora, com um sotaque espiritual diferente dosoutros povos. E dança como o francês ou orusso não sabem dançar. Dizem que o Gar-rincha, assistindo a um jôgo dos russos, sorriacom ar de certa superioridade, e quando lheperguntaram se não estava com mêdo do trei-nadíssimo time soviético, respondeu: - Não.tles são duros de cadeiras. E era verdade. Elesnão tinham os requebros de nossa astúciafísica, a flexibilidade de nossa graça felina. Ecertamente serão duros de cadeiras em muitasoutras coisas em que somos graciosos e ágeis.

A verdade manda confessar que, fora dofutebol, pouca coisa trouxemos para a tal apo-teose da essência humana. Qual será a rique-za de que estamos incumbidos? Qual será apartitura que devemos executar no maravilho-so concêrto que tem por ouvintes as hierarquiasdos anjos?

Por mais insensata que possa parecer talidéia aos que vivem estudando os chamadosproblemas brasileiros, é nesta perspectiva pro-fética, teológica, metafísica, que deveriam es-tarsituadas tôdas as pesquisas. Há problemasimediatos, como o socorro devido às vítimasdo nordeste, mas há o grande problema davocação, da direção geral, que anda esqueci-do, ou que está sob a ameaça de uma trágicaapostasia. E aqui - deixando para outro dia acontinuação desta louca conversa - ouso di-zer o que penso de um Brasil que trai a suo

vocação e que se desvia dos caminhos de DelJs.Rasguem as vestes os fariseus do nacionalis-mo materialista (aliás outro não há), dêe-me ostítulos que quiserem: ouso dizer que prefirovê-Io apagado do mapa, afundado na terra,tragado pelo mar do que instalado num de-senvolvimentismo que nem sequer traz a feli-cidade material, animal, das multidões, e quevolta as costas ao chamamento de Deus e àesperança dos homens.

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PARADOXOS DA AGONIADE UMA CIVILIZAÇÃO

O mundo moderno, por ser um cadinho degrandes transformações que implicam mudan-ças de eixos ideológicos e de critérios de va-lores, é compôsto de uma contraditória mistu-ra dos valorestlntigos, que ainda esperneiamdesesperadamente, com os novos valores quesurgem aqui e ali com a fragilidade das coi-sas pequenas mas com a fôrça das coisas nas-centes. Há assim, para cada problema, um con-fronto em tensão de dois sistemas de valorese de idéias, vivido às vêzes dentro do mesmogrupo - juventude católica por exemplo - ouaté dentro da mesma pessoa. E fácil, prever acoleção de paradoxos, de disparates que talatmosfera cultural pode produzir; mas não énada fácil descobrir a regra didática, catequé-tica, apologética que nos permita atingir aspessoas ou grupos vítimas de tais contradições.

Tomemos a questão relativa ao convíviodas nações e à política exterior dos países: te-mos de um lado a posição clássica deixada porum Jean Bodin na França ou por um Hobbesna Inglaterra e aperfeiçoada por quatro sécu-los de civilização individualista, burguêsa, ca-pitalista, ou que outro nome queiram dar atal estatuto, segundo o qual cada país, ou ca-

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da Estado se hipostasia numa pessoa supremacom atributos de autodeterminação e auto-su-ficiêcia mora" ou com uma absoluta sobera-nia que é uma espécie de divinização do Es-tado; de outro lado temos as idéias realmentecaracterísticas dei nova era, opostas ao fecha-mento nacionalista, contrárias ao princípio daoficia.lização do egoísmo individual ou coleti-vo, e já formuladas pelos melhores e mais ge-nerosos pensadores do tempo. Depois de Berg-son, temos em Maritain, Mortimer Adler, JohnNef, Robert Hutchins os verdadeiros represen-tantes do mundo nôvo que quer nascer, queestá nascendo, que aspira à unidade política,à solidariedade moral e não simplesmente àsolidariedade dos blocos de interêsses econô-micos. Realmente, se alguma coisa existe denôvo, de característico do tumultuoso séculoem que vivemos, é essa tendência às formaspolíticas supra nacionais fundadas no direito dohomem; e se alguma coisa existe de caracte-rístico dos séculos idos e vividos é o pseudo-princípio da soberania exterior ou da autode-terminação dos povos, que alguns ainda con-tinuam a enunciar cândidamente como se esti-vessem a dizer verdades incontestáveis e Ina-baláveis.

Um dos primeiros paradoxos que queroassinalar nesta ordem de idéias é o que nosproporcionam os moços do nacionalismo exal-tado quando nos classificam de reacionários,êles que são os agentes, os reflexos galvâni-cos de um regime em estertôres de agonia,

éles que apesar de seus vinte anos de imatu-ridade pertencem ao passado, e andam comcinzas na bôca e na alma. Alguém poderá nosobjetar que não há idéia mais em vogal rei-vindicação mais publicado, mais faladal doque a das independências dos povos submeti-dos ao jugo do colonialismo ou ameaçadospelas pressães econômicas. Isto é verdade.Mas o fato de estar no cartaz do presente,com grande destaque, não prova que a idéiaé um comêçoçle vida novaj pode ser um es-trepitoso anúncio de falecimento. Muitos per-sonagens, como tão bem assinalou Chesterton,só aparecem nos jornais quando morrem. As-sim também é possível que o entêrro dasidéias seja mais falado e movimentado do queo nascimento. Os nascimentos, apesar do as-pecto social e publicado que logo tomam,guardarão sempre certo recato em atenção aomistério do ato genesíaco. Além disso, cumprenotar que êsse vento de independências encon-trará em muito coração uma ressonância degenerosidade que se exprime mal, que usa osjargões do grupo sem perceber suas contradi-ções. O grande vento do século - permitam-me êsse otimismo de quem sempre apostou nasreservas da humanidade - parece-se com aquê-le que soprou no dia do primeiro pentecostes:é um vento de amor e de unidade. O mundoestá cansado das filosofias de inimizade quenão só constatam que há maldade e misériano mundo como além disso doutrinam que es-sa é a própria substância do ser humano. Omundo está cansado do egoísmo como fôrça

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de consolidação das instituições. O mundo estácansado das diplomacias sem amizade univer-sal, das políticas internas e externas sem pola-rização para a humana e relativa felicidadeneste vale de lágrimas. O mundo está cansa-do das mentiras, dos mitos, dos oficialismos,das vazias liturgias do poder, do ritual da im-portância balofa, do nada que infla os balõese os eleva na vida pública pela exquisita fôr-ca do vazio. Obscuramente queremos todos~ais sinceridade, mais pureza, mais autentici-dade. Nos meios menos dotados, ou mais pre-cipitamente atirados nas lides que formam aopinião pública, os rapazes bons que quer~mformular sua generosidade pegam no ar a Jn-dependência do Congo, ou dizem com a ~ai.orseriedade do mundo que Cuba tem o dIreItode determinar seu próprio destino, sem perce-berem a cômica contradição que existe entre afórmula e a intencão. E êste é um dos mais di-vertidos paradox~s de nosso tempo: a solida-riedade é apregoada em têrmos, com frasesque deixam os grupos humanos a quem elasse destinam isolados no sepulcro de suas so-beranias. Sim, o princípio da auto-determina-cão como tem sido enunciado, é incompatível~o~ a idéia de uma sociedade mundial verifi-cada pela amizade. Se na vida individual al-guém me afirma que é juiz supremo de seusatos e que não deve dar contas a ninguém, anão ser daqueles que por sua feição exteriorexigem assentimento alheio, a conclusão ime-diata que tiro é que essa pessoa não quer s~ramiga de ninguém. E isto que é verdade na VI-

da pessoal e individual, que tem fechamentofísico e metafísico mais perfeito do que a vidade um grupo, por mais forte razão se aplica àvida nas nações. O desejo da amizade inter-nacional diminui na exata proporção em quecresce o desejo das autonomias nacionais, eassim se vê que os nacionalismos traduzem,não o ideal de uma unificacão mundial na ba-se da compreensão e da a~izade, mas o idealinteiramente superado dos compartimentos es-tanques de valores éticos e apenas comunican-tes de valores econômicos. Por aí se vê comoé cômico, tristemente cômico o contraste entreo entusiasmo juvenil e a secura das fórmulasque trazem nas bandeiras. Seria mais compre-ensível que o defensor do ideal da auto-deter-minação dos povos, da independência do Con-go ou da livre determinação dos destinos cuba-nos fôsse um personagem frio e metálico, umaespécie de filósofo eletrônico, e não um môçoimberbe a emprestar suas primeiras sofregui-dões a tão mesquinho ideal, ou pelo menos atão ambígua bandeira.

Não posso me furtar à tentação de aindadizer alguma coisa relativa aos têrmos, à cons-trução verbal dessas frases que estão pintadasnas grinaldas fúnebres de uma civilização emagonia. Deixem-me rir da auto-determinaçãono que tem de "auto" e no que pretende de"determinação". Deixem-me rir daquilo que osparlamentares mandaram dizer inutilmente aoscubanos: Cuba tem o direito de determinar li-vremente o seu próprio destino. O salmista diz

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que Deus se ri das nações que pretendem COI-

sas vãs. Deve ser terrível êsse riso de Deus,quando pensamos que Hitler também quis deter-minar os destinos do povo alemão. Há em todoo fraseado da filosofia individualista aplicadaao convívio das nações uma ressonância teo-lógica que me deixa bastante apreensivo, eque me parece ser uma usurpação ditada peloDemônio. Dizem os teólogos que o Príncipe dasTrevas, na sua técnica de perdição das almas,procura imitar o próprio Deus. t o símio deDeus. Diremos nós que nos tempos modernos- hoie em agonia - a mais endrúxula e teme-rária imitação de Deus, ou macaqueação deDeus, foi feita pelos Estados auto-suficientes esoberanos. 11 Quare fremuerunt gentes, et po-puli meditati sunt inania?"

o PROBLEMA DA UNIFICAÇAOPOUTICA DO MUNDO

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o PROBLEMA DA UNIFICAÇÃOPOLfTICA DO MUNDO

Muita gente anda pensando que a melhormaneira de ser moderno, de pertencer ao seutempo - como se isso precisasse ser obtidograças a uma:-receita ou a uma atitude pro-curada - cOflsiste em se deixar conduzir poridéias esquerdistas e até por uma declaradasimpatia pelo oriente soviético. A novidadedos tempos presentes, segundo tal teoria, outal concepção da vida e do mundo, estaria notransistorizado regime que está sob o coman-do do sr. Kruschev. Com êste diapasão no ou-vido, qualquer rapaz estará apto a tomar po-sição em estética, em política e em filosofia,e terá a satisfação de imaginar que assim na-mora ou fica noivo de uma bonita e jovem"Weltanschauung" que além das prendas pró-prias ainda assegura ao noivo o dote do su-cesso e do prestígio. Enganados pela "maquil-lage", ou vítima da própria miopia, os rapa-zes acabam casando-se com sua tataravó, co-mo naquele conto de Edgar Poe em que o he-rói cai neste êrro pela vaidade que o impediade usar óculos.

Na verdade, como já dissemos o na-cionalismo, a exaltação do princípio ou pseu-do-princípio da autodeterminação dos povossão quinquilharias de uma civilização ca-

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quética que só não morreu de todo pelofato de se haver congelado na Rússia numaforma e numa cristalização que são as perfei-ções máximas do capitalismo e do individualis-mo burguês. O mundo moderno é um mundoduplo. Soma de estertôres de agonia com es-tertôres de nascimento. E não é no oriente quebrilha a estrêla da novidade do século, é aquimesmo, no nosso bom ocidente, e mais, noocidente americano. As Américas continuam aser o Nôvo Mundo e é aqui, e sobretudo nosEstados Unidos, dentro daquele grande povoque pouco a pouco se desvencilha da supers-estrutura ianque, estúpida e egoísta, é aqui,"diante dos olhos distraídos" de muitos obser-vadores, como diz Julian Marias, que está ger-minando, nascendo uma nova civilização. Equem quiser antecipar o gôzo que dará um diaa flor desabrochada encontrará em Maritain,no maior filósofo dos tempos modernos, quemelhor soube auscultar o coração do povoamericano, uma luminosa previsão. Leiam noseu grande livro "O Homem e o Estado", tra-duzido por Alceu Amoroso Lima e editadopela AGIR, o capítulo final intitulado "O pro-blema da unificação política do mundo". Par-tindo das reflexões de Mortimer Adler conti-das em "How to Think about War and Peace",e de Emery Reves no seu estudo "la commu-nauté économique", Jacques Maritain mostraque o estreitamento das relações econômicase as interdependências de mesma natureza sãoinaptas para assegurar ao mundo uma paz du-

rável, podendo até ao contrário acirrar osódios. Em si mesma a trama de interdependên-cios econômicas é neutra, e o clima em queela se desenvolveu, as filosofias de inimizadesque a regaram, produziram o monstro queameaça devorar o mundo do homem. Diz as-sim: "Uma interdependência essencialmente eco-nômica, sem nenhuma reforma fundamentalcorrespondente das estruturas morais e políti-cas da existência humana, só pode impor, emvirtude de necessidade materiais, uma interde-pendência política parcial e fragmentária e decrescimento muito lento. Essa forma de inter-dependência será recebida com relutância ehostilidade, porque navega contra o vento danatureza enquanto as nações viverem na supo-sição de sua plena autonomia política. Enquan-to essa interdependência essencialmente econô-mica se basear na estrutura e sôbre fundo da-quela autonomia política plena e subentendidadas nações, não fará senão exasperar as exi-gências competitivas e o orgulho das nações.O progresso industrial só tende a acelerar êsseprocesso, como o demonstrou o professor JohnNef no seu livro "0 Caminho da Guerra To-tal". Eis por que temos o privilégio de contem-plar hoje em dia um mundo cada vez mais eco-nômicamente uno e cada vez mais divididopelas exigências patológicas de nacionalismosopostos".

Em nota ao pé da página, logo à abertu-ra dêste importante capítulo, Maritain se colo-ca no contexto da grande questão, e revela a

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quem nem talvez sonhasse com o assunto ofervor com que vem sendo tratado o proble-ma da unificação do mundo dentro do paísque, por seus defeitos, educou seus filhos naauto-suficiência e no isolacionismo. Refere-seMaritain com particular carinho ao admirávelmovimento da Universidade de Chicago che-fiado pelo Reitor Robert M. Hutchins, que tema originalidade de ser um filósofo realista, dis-cípulo de Aristóteies e de Santo Tomás. Oco-mêço do movimento foi marcado por uma con-ferência que Maritain qualifica de admirávele que infelizm,ente não tivemos oportunidadede conhecer. Foi publicada em 1949 com o tí-tulo: /1St. Thomas and the World Men".

Na mesma nota em que confessa ter res-tringido o material citado aos poucos livros dogrupo de Chicago, que mais de perto se pren-dem às perspectivas filosóficas do autor, Ma-ritain se defende de alguma eventual críticade provincianismo mencionando os autores quepelo mundo se preocupam com o agudo pro-blema: Maclver, Carr, Clarence Streit, Cord,Meyer, Kelsen, Herbert Hoover, Culbertson,Goodrich, Hambro, Wood ward e a comissãoShotweii. Menciona as fortes objeções apresen-tadas por Walter Lipmann e Reinhold Niebuhr,e lembra os livros de Julia E. Johnsen, "UnitedNations or World Governement e FederalWorld Governement", assim como o inquéritogeral empreendido pela "Duke University",sob a direção do professor Hornell Harf.

O admirável e profético capítulo se desen-volve com considerações e precisões que nãopodem ser condensadas nestas poucas linhas.É preciso lê-Io todo, depois de ter lido o livrointeiro, e é preciso, para adivinhar a grande-za das idéias nêle contidas, ter o coracão aber-to, pouco que seja, para o doloros~ e estri-dente alarido do mundo moderno.

O que se ouve é o fracasso final, o fra-casso de dimensões planetárias da civilizacõobaseada no egoísmo tanto na sua forma libe-ral como na sua forma socialista. O que seouve é a resposta aos ódios, aos pecados, àsatrocidades antigas, dada em têrmos de ódio,de pecado e de apetite de atrocidade. O na-cionalismo dos ressentidos é tão ruim como ofoi o nacionalismo dos triunfantes, e tão de-testável são as reivindicações colocadas nopauta do ressentimento como foram as expo-liações colocadas na pauta da avidez do lu-cro. Não é êsse o diapasão que poderá garan-tir ao mundo uma paz duradoura ou até livrá-10 da destruição total. Só alguma coisa novo,realmente nova, como só a verdade pode sere de um modo indestrutível e inoxidável, ~derá pacificar o mundo e libertá-Io do pesa-delo das tristes soberanias em choque. Vale apena ler o livro e o capítulo de Maritain paracomeçar a entender que sàmente num mundounificado poderão as nações rea!isarem me-lhor suas diferenças culturais, seus matizes eseus perfumes de humanidade.

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Nesse meio tempo o alarido continua e omundo produziria uma risada cósmica se hou-vesse além das constelações uma arquibanca-da de arcanjos que atentassem em nossas pan-tomimas. E o caricatural paradoxo se prolongacom esta situação grotesca em que os moçostem idéias velhas, e os velhos são os porta-estandartes das idéias realmente novas; e omalentendido, a petulância e arrogância ga-nham volume de voz; e alguns jovens que aca-baram de engulir meia dúzia de fórmulas cruasse julgam capacitados para criticar e até paraensinar, amigàvelmente, a quem talvez sejamais lúcido do que êles e certamente mais es-tudioso.

Patriotismo e Nacionalismo

Remember . . . . . . .

Nacionalismo e Patriotismo

Nacionalismo e TotalitarismoNem liberal nem socialista .

Terá ocorrido uma evolução semântica?

O denominador comum ..

A riqueza das nações .

Liberdade sem liberdade .

O nacionalismo cultural .

Nacionalidade e cultura ..

A esperança no Brasil . .

Para que existem as nações? .Paradoxos da agonia de uma civilização

O problema da unificação política do mundo

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