nanotecnologia308

4
HISTÓRIA DA CIÊNCIA 26 | CIÊNCIAHOJE | 308 | VOL. 52 Uma história um pouco diferente A nanotecnologia baseia-se na investigação e mani- pulação da matéria na escala dos bilionésimos de metro – ou seja, dos nanômetros –, emprestando esforços de disciplinas vistas, até há pouco tempo, como se- paradas: biologia, física, química e ciências dos materiais. Da comunidade científica ao grande público, diversos grupos, quando questionados sobre a história da nanotec- nologia, parecem se contentar com poucas informações, que não variam muito de sítio para sítio da internet – caso emblemático é o do chamado Instituto Foresight. Vejamos, então, alguns dos fatos mais disseminados sobre as supostas origens da nanotecnologia. O marco fundador da área teria sido a palestra proferida, ainda em 1959, pelo famoso físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), ‘Há muito espaço lá embaixo’ – vol- taremos ao assunto. Já a palavra nanotecnologia foi cunhada, em 1974,pelo pesquisador japonês Norio Taniguchi (1912-1999). A ‘pa- ternidade’ da tecnologia em si seria do primeiro doutor na área, o engenheiro norte-americano Eric Drexler, au- tor do livro Engines of creation: the coming era of nanote- chnology (Engenhos da criação: o advento da era da nano- tecnologia), de 1986, importante na disseminação dessa nova tecnologia para o grande público. Naquela década, a descoberta fundamental das molécu- las com 60 átomos de carbono, os fulerenos, e a invenção dos microscópios de varredura de prova – entre eles, o mi- croscópio de força atômica, com o qual a ‘manipulação áto- mo a átomo’ passou a ser, de fato, possível – abririam as portas para essa nova era. Além dessa nanotecnologia ‘moderna’, haveria também uma nanotecnologia ‘antiga’, remontando às nanopartículas Muitos manuais de introdução à nanotecnologia já foram escritos para divulgar essa aparentemente nova tecnologia, que estuda e manipula a matéria nas dimensões do bilionésimo de metro. No entanto, esses textos têm, em geral, uma característica comum: debruçam-se pouco sobre as origens dessa área multidisciplinar. E, quando o fazem, reforçam datas, feitos e personagens que, sob a luz de uma apuração histórica mais minuciosa, não se sustentam como marcos fundadores da área. Mesmo que, por vezes, equivocada, essa narrativa histórica traz elementos importantes para entender e contextualizar essa atividade humana, bem como sua divulgação para o grande público. Peter Schulz Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas (SP) Nanotecno HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Transcript of nanotecnologia308

  • H I S T R I A D A C I N C I A

    26 | CINCIAHOJE | 308 | VOL. 52

    H I S T R I A D A C I N C I A

    26 | CINCIAHOJE | 308 | VOL. 52

    Uma histria um pouco diferente

    A nanotecnologia baseia-se na investigao e mani-pulao da matria na escala dos bilionsimos de metro ou seja, dos nanmetros , emprestando esforos de disciplinas vistas, at h pouco tempo, como se-paradas: biologia, fsica, qumica e cincias dos materiais.

    Da comunidade cientfi ca ao grande pblico, diversos grupos, quando questionados sobre a histria da nanotec-nologia, parecem se contentar com poucas informaes, que no variam muito de stio para stio da internet caso emblemtico o do chamado Instituto Foresight.

    Vejamos, ento, alguns dos fatos mais disseminados sobre as supostas origens da nanotecnologia.

    O marco fundador da rea teria sido a palestra proferida, ainda em 1959, pelo famoso fsico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), H muito espao l embaixo vol-taremos ao assunto.

    J a palavra nanotecnologia foi cunhada, em 1974,pelo pesquisador japons Norio Taniguchi (1912-1999). A pa-ternidade da tecnologia em si seria do primeiro doutor na rea, o engenheiro norte-americano Eric Drex ler, au-tor do livro Engines of creation: the coming era of nanote-chnology (Engenhos da criao: o advento da era da nano-tecnologia), de 1986, importante na disseminao dessa nova tecnologia para o grande pblico.

    Naquela dcada, a descoberta fundamental das molcu-las com 60 tomos de carbono, os fulerenos, e a inveno dos microscpios de varredura de prova entre eles, o mi-croscpio de fora atmica, com o qual a manipulao to-mo a tomo passou a ser, de fato, possvel abririam as portas para essa nova era.

    Alm dessa nanotecnologia moderna, haveria tambm uma nanotecnologia antiga, remontando s nanopartculas

    Muitos manuais de introduo

    nanotecnologia j foram escritos para

    divulgar essa aparentemente nova

    tecnologia, que estuda e manipula a matria

    nas dimenses do bilionsimo de metro.

    No entanto, esses textos tm, em geral, uma

    caracterstica comum: debruam-se pouco

    sobre as origens dessa rea multidisciplinar.

    E, quando o fazem, reforam datas, feitos

    e personagens que, sob a luz de uma

    apurao histrica mais minuciosa, no se

    sustentam como marcos fundadores da rea.

    Mesmo que, por vezes, equivocada,

    essa narrativa histrica traz elementos

    importantes para entender e contextualizar

    essa atividade humana, bem como sua

    divulgao para o grande pblico.

    Peter SchulzFaculdade de Cincias Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas (SP)

    NanotecnologiaH I S T R I A D A C I N C I A

  • CINCIAHOJE | 308 | OUTUBRO 2013 | 27CINCIAHOJE | 308 | OUTUBRO 2013 | 27

    >>>

    cita resultados cientfi cos em sua palestra, mas certa-mente era uma pessoa muito bem informada.

    O que se passava, ento? Em 1958, foi desenvolvida a prova de conceito do circuito integrado (CI), rapida-mente reconhecido como a primeira rota efi ciente para miniaturizao da eletrnica em escala sem precedentes. O fsico e engenheiro norte-americano Jack Kilby (1923-2005) Nobel de Fsica de 2000 pela inveno do CI teria anotado, em seu caderno de laboratrio, em 1958: Miniaturizao extrema de muitos circuitos eltricos pode ser alcanada, fazendo resistores, capacitores, tran-sistores e diodos em uma nica fatia de silcio.

    A palavra extrema abria as portas para a imagina-o em uma poca em que competies de miniaturi-zao j eram moda e isso antes mesmo do prmio oferecido por Feynman em sua palestra para quem construsse o menor motor do mundo. Assim, a profecia de Feynman no era desprovida de pistas claras de que poderia ser realizada.

    A palestra de Feynman tampouco influenciou di-retamente o desenvolvimento da nanotecnologia, como aponta o antroplogo cultural norte-americano Chris Toumey, em seu artigo Lendo Feynman no contexto da nanotecnologia. Nele, Toumey escreve que as reais motivaes de Feynman frequentemente associadas antecipao da nanotecnologia vm sendo discuti-das tambm por historiadores da fsica. Mesmo assim, a palestra abriu-se para a fama, chancelada por milha-res de citaes.

    Mas seria possvel um artigo praticamente desco-nhecido hoje ter tido, de fato, forte infl uncia direta no desenvolvimento da nanotecnologia?

    de ouro e prata, dando caractersticas especiais a vidros produzidos na Roma antiga. Evidentemente, aqueles ro-manos no tinham ideia de que se tratava de partculas coloidais, que, hoje, so chamadas nanopartculas e fato raramente lembrado nas vrias histrias da nanotecno-logia estudadas sistematicamente pelo fsico ingls Michael Faraday (1791-1867), em meados do sculo 19.

    Espao l embaixo Contar a histria desse modo nada acrescenta compreenso da nanotecnologia como uma atividade humana de pesquisa e inovao, com im-portantes repercusses sociais. No entanto, esse peque-no conjunto de, digamos, notas de rodap fornece exce-lentes pontos de partida para ir um pouco mais a fundo e construir um olhar diferente sobre o tema.

    Comecemos pela palestra de Feynman Nobel de Fsica de 1965 , adormecida por mais de 20 anos e transformada em uma profecia por, entre outros, Drexler afi nal, nada melhor do que um orculo renomado para fomentar uma proposta supostamente nova.

    O propsito da palestra aparecia logo no comeo: Quero falar sobre o problema de manipular e controlar as coisas na escala atmica. E uma meta era anunciada em seguida: Por que no podemos escrever os 24 volu-mes inteiros da Enciclopdia Britnica na cabea de um alfi nete? Para responder a essa pergunta, Feynman en-cadeou uma srie de elaboraes conceituais que hoje soam, de fato, profticas e, poca, eram, sem dvida, interessantes.

    Mas seriam assim to visionrias? Perscrutando o contexto da poca, o leitor pode che-

    gar s prprias concluses, lembrando que Feynman no

    Nanotecnologia

  • Os anos seguintes testemunharam um despertar da eletrnica molecular, catalisado por Forrest Carter, qu-mico norte-americano do Laboratrio de Pesquisas Na-vais (EUA). Carter hoje, praticamente esquecido co-nheceu Feynman e buscou construir uma comunidade cientfi ca nessa rea emergente, promovendo, em 1981, o primeiro Workshop Internacional sobre Dispositivos Eletrnicos Moleculares. nesse ambiente que se forma, por exemplo, Eric Drexler.

    Qumica dos coloides Qual o papel de livros de divulgao no fomento de uma nova rea do conheci-mento? O livro de Drexler faz lembrar outro, mais antigo, O mundo das dimenses esquecidas, de 1914, do qumico alemo Wolfgang Ostwald (1883-1943). Aqui, voltamos s partculas coloidais cujas dimenses esto entre mi-lionsimos e bilionsimos de metro , que no eram mera curiosidade cientfi ca no incio do sculo passado.

    Para promover essa rea do conhecimento, Ostwald dizia que no conhecia uma rea da cincia contempo-rnea que abordasse tantos e to distintos campos de interesse, como a qumica dos coloides. certo que a teoria atmica e a radioatividade interessam a qualquer ser humano culto. Mas so especiarias intelectuais com-paradas com a qumica dos coloides, que necessria para vrias reas tericas e prticas.

    Essa cincia dos coloides chegou ao clmax de sua percepo acadmica com o prmio Nobel de Qumica de 1925, para o austraco Richard Zsigmondy (1865-1928), e, no ano seguinte, para o sueco Theodor Sved-berg (1884-1971) e para o francs Jean Perrin (1870-1942) este ltimo, na categoria Fsica.

    Havia, portanto, todo um projeto de pesquisa interdis-ciplinar que buscava aplicaes tecnolgicas e estava ba-seado em nanopartculas, como resumido pelo historiador da cincia norte-americano Gerald Holton, em seu ensaio Subeltrons, pressupostos e a polmica Millikan-Ehre-nhaft: Acreditava-se, em geral, que a pesquisa dos co-loides era uma grande fronteira, tanto para a cincia pura quanto para a aplicada e que poderia constituir uma pon-te entre a matria inorgnica e a orgnica. Esse campo parecia encerrar grandes promessas para a pesquisa m-dico-biolgica e tambm para a indstria. Ou seja, outra

    Engenharia molecular O fsico teu-to-americano Arthur von Hippel (1898-2003), trs anos antes da palestra de Feyn-man, publicou na revista Science um artigo--manifesto chamado Engenharia molecu-lar, que abre com a pergunta: O que engenharia molecular?.

    A resposta a prpria defi nio de nano-tecnologia: Em vez de tomarmos materiais pr-fabricados e tentarmos encontrar aplica-es de engenharia para eles, consistentes com suas propriedades macroscpicas, pode-mos construir materiais a partir de tomos e molculas para um fi m desejado... [o engenheiro] pode jogar xadrez com partculas elementares de acordo com regras prees-tabelecidas, at que novas solues de engenharia tor-nem-se aparentes.

    As elaboraes conceituais oferecidas pelo artigo para alcanar esse objetivo so mais modestas que as de Feyn-man. Porm, von Hippel ataca o problema de qual seria o arcabouo institucional para isso: O que estamos ten-tando criar como resposta para essa situao so labora-trios verdadeiramente interdepartamentais para a cin-cia e engenharia moleculares. poca, von Hippel chefi ava um laboratrio no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), nos EUA, formado por fsicos, qu-micos, engenheiros eltricos e especialistas em cermi-cas, com a esperana de estabelecer alianas com enge-nheiros mecnicos, qumicos, metalrgicos, bem como bilogos, com o crescimento da experincia e confi ana.

    Assim, nota-se que von Hippel no s defi niu o esco-po da nanotecnologia, mas tambm antecipou seu am-biente de pesquisa, ou seja, aquele marcadamente inter-disciplinar, como observado hoje.

    O conceito de engenharia molecular foi logo usado no mbito da microeletrnica ento nascente como pos-svel alternativa ao silcio, atravessando as portas da in-dstria poca, com programas ambiciosos que, no en-tanto, foram revistos anos depois. As razes desse redi-recionamento so discutidas no artigo A longa histria da engenharia molecular: origens microeletrnicas da nanotecnologia, de Hyungsub Choi e Cyrus Mody. As promessas iniciais dessas alternativas acabaram esbar-rando em problemas que, em parte, ainda no foram totalmente resolvidos a ponto de elas concorrerem, em condies de igualdade, com a microeletrnica hoje, j a nanoeletrnica convencional baseada em silcio.

    Apesar desse impasse inicial, as ideias fi caram no ar, e um produto delas se concre tizou no ano em que a pa-lavra nanotecnolo gia teria sido cunhada: em 1974, o pesqui sador da IBM Ari Aviram e o qumico terico norte-americano Mark Ratner anunciam o desenvolvi-mento, nos laboratrios daquela empresa, de um diodo molecular, ou seja, o primeiro dispositivo eletrnico da enge nharia molecular.

    H I S T R I A D A C I N C I A

    28 | CINCIAHOJE | 308 | VOL. 52

  • CINCIAHOJE | 308 | OUTUBRO 2013 | 29

    definio muito prxima das pro-messas e dos alcances atribudos nanotecnologia atualmente.

    Bala mgica Associados s nano-partculas um dos carros-chefe da nanotecnologia , esto os sistemas de carregamento e liberao de drogas: remdios nanoparticulados encapados por um material que se associa seleti-vamente a clulas doentes, permitindo atin-gir apenas o alvo (a doena) com maior efi cincia, neces-sitando, assim, de doses menores e diminuindo os efeitos colaterais. Anunciada frequentemente como uma revo-luo viabilizada pela nanotecnologia, essa ideia remon-ta ao incio do sculo passado, com o conceito de bala mgica, do mdico e cientista alemo Paul Erhlich (1854-1915), Nobel de Medicina de 1908: remdios que vo apenas e diretamente s clulas doentes.

    Desde ento, no parou o desenvolvimento de estra-tgias para obter essas balas mgicas. Um caso que ser-ve como ilustrao: o artigo Uso de ouro e ouro coloidal radioativo recoberto por prata na mitigao de ascites e efuses pleurais, de 1958 publicado no British Journal of Radiology.

    De que se tratava? Ouro radioativo tem efeito tera-putico em doenas enunciadas no artigo, mas se desco-briu que chegava regio pretendida apenas quando recoberto com prata. Pode-se dizer que um exemplo de bala mgica viabilizada pela nanotecnologia da d-cada de 1950 e comercializada poca.

    Imperativo cultural Podemos nos perguntar o que os exemplos mencionados aqui tm em comum. Vimos que a agenda contempornea da nanotecnologia j havia sido proposta, pelo menos, duas vezes, anteci-pando tanto a estrutura de instituies interdisciplinares para levar esse projeto adiante quanto a obteno de projetos ambiciosos de fi nanciamento.

    Richard Jones, do Departamento de Fsica da Univer-sidade de Sheffi eld (Reino Unido), argumenta que, em vez de pensar na emergncia de um novo campo cient-fi co, a nanotecnologia seria mais bem defi nida como um projeto sociopoltico, resultado de infl uncias tanto da cincia quanto de um clima poltico, econmico e cultu-ral exatamente como nos exemplos mostrados aqui.

    Assim, pode-se dizer que estamos presenciando uma nova onda da nanotecnologia com as primeiras ondas no recebendo o devido crdito na mdia. Devemos, en-to, abordar a questo como um todo: a nanotecnologia comeando, de fato, com a qumica dos coloides e ideias como a da bala mgica.

    A nanotecnologia seria um imperativo cultural, conceito formulado pelo arquelogo da cultura norte--americano Michael Schiffer, que ilustrou o conceito

    Sugestes para leitura

    SCHULZ, P. A encruzilhada da nanotecnologia: inovao, tecnologia e riscos. Rio de Janeiro, Editora Vieira & Lent (2009).FERNANDES, M. F. M. Histria da cincia do tempo presente: o caso da nanotecnologia. Disponvel em: http://bit.ly/15eJ3YKCHOI, H. e MODY, C. C. M. The long history of molecular electronics: microelectronics origins of nanotechnology. Social Studies of Science, v. 39, n. 11 (2009). Disponvel em: http://bit.ly/15gt1GU HOLTON, G. A imaginao cientfi ca. Rio de Janeiro, Zahar (1979).

    aplicando-o ao caso do rdio de pilha notvel exemplo de miniaturizao bem-sucedido e que guarda certa analogia com o que discutimos aqui.

    Imperativo cultural seria um mandato para um de-senvolvimento tecnolgico, um produto ou ideia inten-samente desejados por um grupo seu crculo eleitoral e considerados inevitveis e espera de meios tecno-lgicos para tornar-se realidade. Nesse crculo eleitoral, assumem papel de destaque os promotores da ideia (Os-twald, Von Hippel, Carter e Drexler), bem como leigos e a mdia com veculos de difuso da ideia, como as revistas sobre rdio e eletrnica do comeo do sculo passado, no caso analisado por Schiffer , que contri-buem para manter o interesse, alm dos pesquisadores e tcnicos propriamente ditos.

    Um imperativo cultural pode demorar dcadas at que se viabilize, podendo passar por vrias rotas de de-senvolvimento independentes entre si, como vem ocor-rendo com a nanotecnologia. Ao se disseminar, novas rotas tendem a minimizar o papel das outras, recorrendo, s vezes, a imagens que provavelmente nunca passaro de provas de conceito, como o caso das nanomquinas, popularizadas nessa tercei-ra onda da nanotecnologia.

    O rdio de pilha um exemplo notvel de miniaturizao bem-sucedido e que guarda certa analogia com o percurso da nanotecnologia

    NA INTERNETInstituto Foresight (em ingls): http://www.foresight.org/nano/history.html