'Não é TV' - Estratégias Comunicacionais da HBO no Contexto das Redes Digitais

download 'Não é TV' - Estratégias Comunicacionais da HBO no Contexto das Redes Digitais

of 151

description

Dissertação de Mestrado: 'Não é TV' - Estratégias Comunicacionais da HBO no Contexto das Redes DigitaisResumo: Compreender as estratégias comunicacionais adotadas pela rede televisiva norte-americana HBO no contexto das redes digitais é o objetivo deste trabalho. O estudo de caso contempla a observação online e à distância de uma amostragem intencional que abrange múltiplos produtos e serviços da emissora ao longo de sua trajetória. Na primeira parte do trabalho, o percurso estratégico da HBO é estudado a partir da perspectiva de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) sobre as eras da TV I, II e III. A emissora foi a primeira rede a cabo norte-americana a oferecer conteúdo exclusivo para seus assinantes e, mais tarde, inaugurou a produção de filmes para a televisão, séries e minisséries entre as redes televisivas de acesso fechado. A segunda parte da pesquisa aborda as estratégias utilizadas pela HBO a partir de meados dos anos 2000, quando a emissora passa a considerar o cenário digital – no qual o fluxo de conteúdos produzidos pelas redes de televisão e as trocas recíprocas por parte dos públicos ocorrem entre múltiplos suportes midiáticos (Lotz; 2007; Gabriel, 2010). As ações estratégicas da HBO apontam para algumas das características da presente configuração televisiva, as quais incluem as ações que incentivam a participação ativa a conversação entre os espectadores em redes digitais, o fortalecimento da presença digital própria da rede de televisão e a busca por plataformas complementares de distribuição de conteúdo e por fontes adicionais de renda no contexto da Cauda Longa (Anderson, 2006). As estratégias adotadas pela HBO na última década permitem identificar as dinâmicas específicas que regem a televisão na cultura da convergência (Jenkins, 2008), as quais caracterizam a quarta fase televisiva norte-americana proposta neste trabalho, a era da TV IV.

Transcript of 'Não é TV' - Estratégias Comunicacionais da HBO no Contexto das Redes Digitais

UFSM

Dissertao de Mestrado

NO TV ESTRATGIAS COMUNICACIONAIS DA HBO NO CONTEXTO DAS REDES DIGITAIS

Mara Bianchini dos Santos

PPGCOM

Santa Maria, RS, Brasil

2011

Universidade Federal de Santa Maria

Mara Bianchini dos Santos

NO TV ESTRATGIAS COMUNICACIONAIS DA HBO NO CONTEXTO DAS REDES DIGITAIS

Trabalho de dissertao de Mestrado apresentado como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Comunicao pelo Programa de PsGraduao em Comunicao Miditica da Universidade Federal de Santa Maria

Orientadora: Dra. Luciana Pellin Mielniczuk

SANTA MARIA 2011

1

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Departamento de Cincias da Comunicao Programa de Ps-Graduao em Comunicao Mestrado em Comunicao Miditica

A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertao de Mestrado

NO TV ESTRATGIAS COMUNICACIONAIS DA HBO NO CONTEXTO DAS REDES DIGITAIS

elaborada por Mara Bianchini dos Santos

Como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Comunicao

COMISSO EXAMINADORA:

Dra Luciana Pellin Mielniczuk Presidente/Orientadora Dra Adriana da Rosa Amaral (Unisinos) Primeiro membro Dra Eugenia Mariano da Rocha Barichello (UFSM) Segundo Membro Dra Rejane de Oliveira Pozobon (UFSM) Suplente

Santa Maria, 2011.

2

Vencer a si prprio a maior das vitrias. Plato

3

AGRADECIMENTOS

Os dois anos em que cursei o mestrado foram os mais desafiadores e recompensadores da minha vida, tanto acadmica e profissionalmente quanto no mbito pessoal. Agradeo a Deus pelos momentos de crise e pelas dificuldades que apareceram ao longo do caminho, que se provaram como oportunidades de crescimento e de superao pessoal. Agradeo tambm por me dar foras para seguir em frente e por me rodear de pessoas maravilhosas, cujo amor, carinho e companheirismo so essenciais na minha vida. Aos meus pais e s minhas irms Michele e Taiana, pelo apoio, amizade, compreenso e aceitao incondicionais. Obrigada por tornarem possvel a minha formao e por me ensinarem os valores que guiam as minhas atitudes. Vocs so a base e a inspirao para tudo o que eu sou e ainda quero ser. Ao meu cunhado e irmo Neto, por me aceitar na casa dele e da Michele e pela descontrao, principalmente nos churrascos de fim de semana. Obrigada tambm ao meu sobrinho e afilhado Joo Vtor, cuja alegria inocente a maior fonte de felicidade para a nossa famlia nos ltimos dois anos e meio. s minhas avs e meus tios, tias e primos, pelo afeto e por torcerem sempre por mim, mesmo de longe. Amo vocs como pais e irmos. Pati, pela companhia, pelo carinho e pelo incentivo contnuo no ltimo ano. Obrigada tambm por me empurrar para fora da minha zona de conforto e me fazer perceber que o diferente e o no-planejado podem se tornar experincias extraordinrias. Aos amigos e amigas de corao, por terem aparecido na minha vida e mudado ela para melhor. Obrigada pela companhia, pelo ombro, pelas risadas e pelas teraputicas conversas sobre a vida. Agradeo especialmente a Natlia e a Letcia, que estiveram ao meu lado em alguns momentos crticos dos ltimos anos. minha orientadora Luti, por no me deixar desistir quando as coisas ficaram difceis. Agradeo profundamente pela amizade e pacincia, pelas longas conversas, pelo incentivo e por todos os ensinamentos que voc gentilmente compartilhou comigo desde a graduao. Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFSM, principalmente as professoras Rejane de Oliveira Pozobon, Mrcia Franz Amaral e Eugenia Mariano da Rocha Barichello, e aos colegas de mestrado, em especial ao Iuri Lammel e ao Lucas Missau, pelas discusses construtivas e por todo o conhecimento compartilhado em aula e fora dela tambm. Agradeo tambm s professoras Rejane e Eugenia e professora Adriana Amaral, por participarem da banca deste trabalho e pelas importantes contribuies. Muito obrigada.

4

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Departamento de Cincias da Comunicao Programa de Ps-Graduao em ComunicaoTtulo: No TV Estratgias Comunicacionais da HBO no Contexto das Redes Digitais Autor: Mara Bianchini dos Santos Orientador: Luciana Pellin Mielniczuk

RESUMOCompreender as estratgias comunicacionais adotadas pela rede televisiva norteamericana HBO no contexto das redes digitais o objetivo deste trabalho. O estudo de caso contempla a observao online e distncia de uma amostragem intencional que abrange mltiplos produtos e servios da emissora ao longo de sua trajetria. Na primeira parte do trabalho, o percurso estratgico da HBO estudado a partir da perspectiva de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) sobre as eras da TV I, II e III. A emissora foi a primeira rede a cabo norte-americana a oferecer contedo exclusivo para seus assinantes e, mais tarde, inaugurou a produo de filmes para a televiso, sries e minissries entre as redes televisivas de acesso fechado. A segunda parte da pesquisa aborda as estratgias utilizadas pela HBO a partir de meados dos anos 2000, quando a emissora passa a considerar o cenrio digital no qual o fluxo de contedos produzidos pelas redes de televiso e as trocas recprocas por parte dos pblicos ocorrem entre mltiplos suportes miditicos (Lotz; 2007; Gabriel, 2010). As aes estratgicas da HBO apontam para algumas das caractersticas da presente configurao televisiva, as quais incluem as aes que incentivam a participao ativa e a conversao entre os espectadores em redes digitais, o fortalecimento da presena digital prpria da rede de televiso e a busca por plataformas complementares de distribuio de contedo e por fontes adicionais de renda no contexto da Cauda Longa (Anderson, 2006). As estratgias adotadas pela HBO na ltima dcada permitem identificar as dinmicas especficas que regem a televiso na cultura da convergncia (Jenkins, 2008), as quais caracterizam a quarta fase televisiva norte-americana proposta neste trabalho, a era da TV IV. Palavras-chave: cultura da convergncia; estratgias de comunicao; HBO; seriados; televiso.

5

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Departamento de Cincias da Comunicao Programa de Ps-Graduao em ComunicaoTitle: Its Not TV HBOs Communication Strategies in the Context of Digital Networks Author: Mara Bianchini dos Santos Adviser: Luciana Pellin Mielniczuk

ABSTRACTUnderstanding the communication strategies adopted by U.S. television network HBO in the context of digital networks is the goal of this study. The case study contemplates the online and at a distance observation of an intentional sampling which covers multiple products and services of the network along its history. In the first part of the paper, HBOs strategic course is studied from the perspective of Reeves, Rogers and Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) about the ages of TV I, II and III. HBO was the first U.S. cable network to offer exclusive content to its subscribers and, later, initiated the production of made for TV movies, series and miniseries among the subscription-based television networks. The second part of the research discusses the strategies used by HBO starting from the mid-2000s, when the network starts to consider the digital landscape in which the flow of content produced by television networks and the mutual exchanges by the public occur among multiple media platforms (Lotz, 2007; Gabriel 2010). The strategic actions of HBO point to some of the characteristics of the current television context, which includes strategies that encourage active participation and conversation among viewers in digital networks, the strengthening of the television networks own digital presence and the search for complementary platforms for content distribution and for additional sources of income in the context of the Long Tail (Anderson, 2006). The strategies adopted by HBO in the last decade allows us to identify the specific dynamics that rule television in the convergence culture (Jenkins, 2008), which characterize the fourth phase of American television proposed in this study, the age of TV IV. Key-words: convergence culture; communication strategies; HBO; TV series; television.

6

LISTA DE FIGURASFigura 1. Linhas narrativas dos episdios de Dragnet e Starsky and Hutch demonstram princpio de auto-reteno predominante na era da TV I......................................................... 24 Figura 2. Propaganda da HBO em fins dos anos 1970 demonstra estratgia da rede premium de se estabelecer como principal alternativa ao contedo das outras emissoras ........ 28 Figura 3. A megamarca HBO the Works rene todos os canais e servios oferecidos para os assinantes da HBO ................................................................................................................. 31 Figura 4. Frisbee promocional distribudo pela HBO na primeira campanha publicitria nacional da emissora. ............................................................................................................. 32 Figura 5. Linhas narrativas dos episdios de Dragnet, Starsky and Hutch e Hill Street Blues mostram a multiplicao de tramas na era da TV II ................................................................ 37 Figura 6. Slogan da campanha publicitria lanada em 1996, Its Not TV. Its HBO, evidencia estratgia focada no marketing de diferena da HBO em relao a outras redes televisivas .............................................................................................................................. 45 Figura 7. Esquema visual da rotatividade entre as temporadas inditas das principais atraes da HBO em 2002...................................................................................................... 50 Figura 8. Comparao entre episdios de Dragnet, Starsky and Hutch, Hill Street Blues e The Sopranos ilustra maior densidade narrativa na srie da HBO, produzida na era da TV III 52 Figura 9. Pgina inicial da primeira verso do site da HBO, em 1996.................................... 57 Figura 10. Home page da HBO ilustra a primeira modificao significativa no design da pgina, em 1999..................................................................................................................... 58 Figura 11. Pgina inicial do site da HBO em dezembro do ano 2000 ..................................... 60 Figura 12. Em fins de 2002, os seriados The Sopranos e Six Feet Under so exibidos como principais atraes da HBO na home page da emissora .......................................................... 63 Figura 13. Pgina de seriados no aplicativo HBO Go apresenta algumas das opes disponveis para assinantes norte-americanos da rede premium.............................................. 77 Figura 14. Coleo em DVD de todas as temporadas de Six Feet Under, srie que acompanha a vida da famlia Fisher, dona de uma casa funerria............................................ 79 Figura 15. Rplicas de Tru Blood, disponveis para compra na HBO Store............................ 80 Figura 16. Crime. Organized. dispe geograficamente os eventos da quinta temporada de The Sopranos ......................................................................................................................... 83

7

Figura 17. Pgina inicial do site da HBO em agosto de 2011 mostra o layout adotado no ano anterior............................................................................................................................ 84 Figura 18. Pgina de um dos episdios de Bored to Death demonstra a valorizao das imagens oficiais das produes da emissora ........................................................................... 86 Figura 19. Lista de msicas que fizeram parte da trilha sonora do episdio Two Large Pearls and a Bar of Gold, do seriado Bored to Death............................................................. 87 Figura 20. O aplicativo Bored in Brooklyn organiza visualmente os lugares visitados pelo protagonista de Bored to Death e oferece informaes adicionais sobre a srie ...................... 89 Figura 21. No perfil da HBO no Twitter, as postagens so direcionadas para o pblico norte-americano e abordam principalmente as atraes da grade de programao do pas....... 92 Figura 22. Mais de 43 mil pessoas curtiram o trailer da segunda temporada de Game of Thrones no Facebook, e quase 24 mil o compartilharam com suas redes sociais ..................... 93 Figura 23. Adesivos para os seriados Boardwalk Empire, acima, e Entourage no site GetGlue ................................................................................................................................. 96 Figura 24. Imagem de perfil de Sex and the City celebra os mais de 10 milhes de fs do seriado no Facebook............................................................................................................... 97 Figura 25. Pgina permite a visualizao de postagens com a hashtag #TBWithdrawal, alm de oferecer links para contedo extra de True Blood ...................................................... 99 Figura 26. O criador de True Blood, Alan Ball, e o elenco da srie em mensagens para a campanha It Gets Better ........................................................................................................ 100 Figura 27. Pgina da HBO na seo Feeds do site HBO Connect....................................... 102 Figura 28. HBO Connect possibilita a interao do pblico com os artistas das produes originais da emissora, atravs de sesses de bate-papo no link Conversations..................... 103 Figura 29. Interveno urbana nos Estados Unidos divulga o lanamento do sangue sinttico Tru Blood ............................................................................................................... 108 Figura 30. O aplicativo Ice and Fire, de Game of Thrones, relaciona a previso do tempo, para os locais selecionados, com o clima de diferentes regies retratadas na srie ................. 110 Figura 31. Aplicativo True Blood Comics oferece histrias em quadrinhos complementares narrativa televisiva do seriado ............................................................................................ 115 Figura 32. No aplicativo Kenny Powers Home Run Fiesta, o usurio joga baseball contra o protagonista de Eastbound & Down ...................................................................................... 118

8

LISTA DE TABELASTabela 1. Mdia de audincia e nmero de espectadores do primeiro e do ltimo episdio de cada temporada de The Sopranos....................................................................................... 53 Tabela 2. Relao entre aes estratgicas elaboradas pela HBO e caractersticas do contexto televisivo atual........................................................................................................ 121

9

SUMRIORESUMO .............................................................................................................................. 5 ABSTRACT .......................................................................................................................... 6 LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................... 7 LISTA DE TABELAS........................................................................................................... 9 INTRODUO.................................................................................................................... 12 CAPTULO 1 A TRAJETRIA DA HBO NAS ERAS DA TV I E TV II ..................... 19 1.1. OS PRIMRDIOS DA TELEVISO NORTE-AMERICANA: AS CARACTERSTICAS DA ERA DA TV I ............................................................................. 21 1.1.1. CRIAO E ASCENSO DA HBO: OS PRIMEIROS VINTE ANOS DE HISTRIA DA REDE PREMIUM ........................................................................................ 27 1.2. A SEGUNDA FASE DA TELEVISO NORTE-AMERICANA: CRESCIMENTO DA TV A CABO, ESTRATGIAS DE MARKETING DE NICHO E TELEVISO DE QUALIDADE NA ERA DA TV II ....................................................................................... 34 CAPTULO 2 A CONSAGRAO DA HOME BOX OFFICE: ESTRATGIAS DE FORTALECIMENTO DA MARCA HBO NA ERA DA TV III ....................................... 40 2.1. A NO-TV DA HBO ESTRATGIAS DE BRANDING E PRODUO DE SRIES ORIGINAIS ............................................................................................................. 42 2.2. A PRESENA DA HBO NA WEB 1.0........................................................................... 55 CAPTULO 3 AES ESTRATGICAS DA HBO NO CONTEXTO DAS REDES DIGITAIS: INDCIOS PARA UMA QUARTA ERA TELEVISIVA ............................... 67 3.1. SERVIOS E PRODUTOS ADICIONAIS DA MARCA HBO: FONTES ALTERNATIVAS DE RENDA E FORMAS COMPLEMENTARES DE DISTRIBUIO . 75 3.2. INTEGRAO DAS FUNCIONALIDADES DA WEB 2.0 NO SITE DA HBO: FORTALECIMENTO DA PRESENA DIGITAL DA EMISSORA..................................... 82 3.3. ESTRATGIAS DE INSERO NAS MDIAS SOCIAIS DIGITAIS: A PRESENA DIGITAL PRPRIA DA HBO PARA ALM DO SITE INSTITUCIONAL......................... 90 3.4. A VALORIZAO E O INCENTIVO S CONVERSAES SOBRE AS SRIES DA HBO NAS MDIAS SOCIAIS: ESTRATGIAS PARA A TV SOCIAL........................ 101 3.5. ESTRATGIAS DE DIVULGAO NA CULTURA DA CONVERGNCIA: AS CAMPANHAS DE LANAMENTO DE TRUE BLOOD E DE GAME OF THRONES........ 106 3.6. AES ESTRATGICAS DE MARKETING MOBILE: APLICATIVOS E FERRAMENTAS PARA DISPOSITIVOS MVEIS ........................................................... 116 3.7. SISTEMATIZAO DAS CARACTERSTICAS EMERGENTES DO ESTUDO DA HBO .................................................................................................................................... 119 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 122 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 126

10

ANEXOS ............................................................................................................................. 133 ANEXO A ............................................................................................................................ 134 ANEXO B ............................................................................................................................ 148

11

INTRODUOOs primeiros anos do sculo XXI mostram que a televiso no foi substituda pelos emergentes suportes miditicos digitais. Pelo contrrio, de acordo com dados do estudo realizado pela Nielsen Ratings em 20111, o consumo televisivo mensal entre os espectadores norte-americanos aumentou em 22 minutos para cada pessoa em relao ao ano anterior. Alm disso, o nmero de horas dedicadas ao consumo de vdeo em plataformas mveis (como smartphones e tablets), sites de compartilhamento de arquivos e DVRs (Digital Video Recorders ou gravadores de vdeo digital) tambm cresceu em relao aos dados de 2010. Os resultados da pesquisa podem ser interpretados como indcios do atual contexto miditico, em que o contedo flui entre espectadores e usurios de mdias de funo massiva e ps-massiva (Lemos; Lvy, 2010). O pblico apropria-se das redes digitais para explorar outras maneiras, alm da televiso, de ter acesso aos programas que gosta, atravs de downloads legais ou ilegais, da compra ou do aluguel tanto de colees em DVD quanto de episdios em formato digital e da troca de arquivos em sites de redes sociais e de compartilhamento de vdeos. Tal comportamento indica que a audincia atual deseja escolher quando, onde e como vai assistir programao. A circulao de contedo por meio de diversas plataformas de mdia e a participao ativa da audincia representam uma mudana na lgica comunicacional predominante durante a segunda metade do sculo XX. Caracterstico dos meios de comunicao tradicionais como a televiso, o rdio e as publicaes impressas, o fluxo de informaes centralizado e unidirecional, de um para todos, agora coexiste com a circulao aberta e cooperativa de contedos e com as emisses descentralizadas realizadas de todos para todos (Lemos; Lvy, 2010). Por esse motivo, torna-se necessria a adequao das mdias de funo massiva ao contexto em que as mdias so integradas, e as possibilidades de interao do pblico com o contedo disponibilizado pelas empresas jornalsticas e de entretenimento so ampliadas. A necessidade de adaptao, no entanto, no um fenmeno recente. De acordo com as ideias de midiamorfose, de Fidler (1997), e de remediao, de Bolter e Grusin (1999), sempre1

Fonte: http://blog.nielsen.com/nielsenwire/online_mobile/cross-platform-report-americans-watching-more-tvmobile-and-web-video/. Acesso: 16 fev. 2012.

12

que uma nova tecnologia introduzida no ambiente miditico, as mdias passam por um processo de desestabilizao enquanto os agentes da comunicao tentam compreender tanto os usos e as potencialidades dos meios emergentes quanto o papel das mdias tradicionais no cenrio de transformaes. Nos momentos de transio, ocorre um processo de inter-relao entre as mltiplas tecnologias comunicacionais, no qual as mdias influenciam-se mutuamente e adaptam-se ao contexto em construo. Na noo de midiamorfose, Fidler (1997) concebe que as mdias no surgem de forma independente e totalmente original em relao aos meios de comunicao anteriores, tampouco os meios considerados antigos deixam de existir completamente em funo da emerso de novos meios e de novas formas de produo, distribuio e consumo. Pelo contrrio, as mdias surgem gradualmente da metamorfose e mutao de meios mais antigos, e elas coexistem e evoluem de forma conjunta com os suportes tradicionais, em um complexo sistema de contnua adaptao. Segundo Fidler (1997) todas as mdias, assim como as empresas da rea, so levadas adaptao e evoluo a fim de sobreviver no ambiente miditico, j que, se no o fizerem, a nica alternativa seria o desaparecimento. A concepo de remediao de Bolter e Grusin (1999) segue uma linha de pensamento semelhante de Fidler (1997). Na remediao, uma mdia interfere e , de certa forma, representada em outra, ao mesmo tempo em que o meio de comunicao que originalmente causou as transformaes tambm alterado ou, de acordo com a argumentao dos autores, remediado. Segundo Bolter e Grusin (1999), os meios de comunicao influenciam-se continuamente em seus esforos de reinventarem-se e de impulsionar as transformaes de outras mdias. Tendo em vista as noes de midiamorfose e de remediao, acreditamos que o meio televisivo persiste no cenrio de emergncia das tecnologias as quais ampliam as possibilidades de participao ativa do pblico e de acesso ao contedo proveniente da televiso e, para isso, adapta-se e transforma-se com a finalidade de sobreviver no ambiente compartilhado com as novas mdias. A partir dessa constatao, chegamos questo que explicita o problema de pesquisa: de que forma as redes televisivas se utilizam das potencialidades da internet e das tecnologias de informao e comunicao para adequar suas prticas ao contexto das redes digitais? O posicionamento das emissoras em redes digitais um fenmeno atual de reconfigurao das estratgias comunicacionais, as quais apresentam significativas diferenas em relao s aes predominantes durante a segunda metade do sculo passado. Neste

13

trabalho, entendemos a estratgia comunicacional a partir de Prez (2006), para quem o conceito engloba a pr-elaborao consciente da comunicao, tendo em vista alguns objetivos pr-estabelecidos, o contexto poltico, econmico, sociocultural e tecnolgico em que ocorrem as interaes simblicas e as possveis decises e/ou reaes dos pblicos consumidores, cujas aes e escolhas podem favorecer ou prejudicar a realizao desses objetivos. A definio do autor complementada pela de Saad (2008), que considera a estratgia como a tomada de decises envolvendo produtos e tecnologias a serem desenvolvidos ou absorvidos, alm da seleo do mercado e dos tipos de clientes que sero atingidos e da manuteno das vantagens competitivas. Tambm consideramos importante abordar a divulgao dos seriados norte-americanos, j que as narrativas seriais ficcionais produzidas nos Estados Unidos so as de alcance mundial mais significativo e representam a principal referncia desta indstria no mercado ocidental. Alm disso, tais produes tm estabelecido uma crescente base de fs entre os telespectadores brasileiros nos ltimos anos. Com o crescimento do nmero de assinantes da televiso a cabo no pas, em fins dos anos 1990, seriados como Seinfeld (NBC, 1989-1998), Friends (NBC, 1994-2004), ER (NBC, 1994-2009) e Sex and the City (HBO, 1998-2004) fizeram sucesso entre a audincia e abriram caminho para investimentos nesse segmento por parte das emissoras pagas, de forma que, hoje, canais como Sony Entertainment Television, AXN, Warner Channel, Universal Channel, FOX, FX, entre outros, e at mesmo o canal aberto Record apostam nos seriados como a principal atrao do horrio nobre. Apesar disso, o referencial terico sobre narrativas seriais ficcionais norte-americanas ainda conta com poucos estudos e obras publicadas no Brasil e as pesquisas j realizadas esto focadas, em sua maioria, nas prticas da cultura de fs. Este trabalho representa uma oportunidade de contribuir com os estudos na rea a partir do ponto de vista das estratgias das emissoras que produzem seriados. Para isso, a dissertao tem como objetivo geral compreender quais so e como funcionam as estratgias comunicacionais empregadas pelas redes televisivas a fim de adaptar as prticas da empresa ao contexto das redes digitais. O trabalho concentra-se no estudo da HBO, cuja trajetria abordada a partir das consideraes de Reeves, Rogers e Epstein (1996,

14

2002, 2006, 2007)2 sobre as trs eras da televiso norte-americana a saber, TV I (de fins dos anos 1940 a meados dos anos 1970), TV II (da metade da dcada de 1970 ao incio dos anos 1990) e TV III (do incio dos anos 1990 at meados dos anos 2000)3. Os objetivos especficos do trabalho so: a) descrever as caractersticas e particularidades das eras da TV I, TV II e TV III; b) sistematizar as estratgias comunicacionais empregadas pela rede premium HBO em cada uma das eras da televiso norte-americana; c) identificar e descrever as caractersticas que permitem levar proposio de uma quarta fase da televiso, a partir da anlise das estratgias comunicacionais utilizadas pela HBO desde meados dos anos 2000 at o presente. Com o ltimo objetivo especfico do trabalho, buscamos complementar a viso de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) ao propor a discusso sobre uma quarta fase da televiso, a era da TV IV, a qual acreditamos ter iniciado em meados dos anos 2000 e predominante at o momento. Tal proposta justifica-se a partir da afirmao dos autores de que a era da TV III seria, possivelmente, o ltimo momento da era da televiso (Reeves, Rogers e Epstein, 2007). O trio afirma que, embora a televiso continue a existir na prxima grande era das comunicaes (assim como o rdio e o cinema persistiram durante a era da televiso), ela seria ofuscada por tecnologias interativas, virtuais e mveis, como o telefone celular, os tocadores de msica portteis, os MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Games ou jogos de RPG para mltiplos jogadores online), os videogames e as lojas virtuais, como eBay4 e iTunes Store5. No entanto, defendemos que a televiso, enquanto meio de comunicao, continua a existir no contexto previsto pelos autores. No cenrio atual, a era da TV IV representa uma fase em que se busca a adaptao do contedo e das estratgias do meio televisivo s mltiplas formas de distribuio disponvel e ao contexto de participao ativa e de interao do pblico nas redes digitais.

2

Nos artigos publicados em 1996, 2002, 2006 e 2007, os trs autores so creditados em diferentes ordens por exemplo, como Reeves, Rogers e Epstein no artigo de 1996 e como Rogers, Epstein e Reeves no artigo de 2002. Quando citamos mais de um artigo, utilizamos a ordenao adotada pelo trio no artigo mais antigo, a fim de evitar a repetio desnecessria do nome dos autores. Quando citados separadamente, os artigos so referenciados de acordo com sua publicao original. 3 Em artigo publicado em 2002, Rogers, Epstein e Reeves afirmam que a era da TV III iniciou em 1995, poca em que tem incio o plano estratgico de branding da HBO abordado em detalhes do Captulo 2. No entanto, em artigo publicado pelo trio em 2007, os autores reconsideram sua concepo original e afirmam que a transio entre a TV II e a TV III provavelmente comeou em 1991, com o lanamento da WWW, devido importncia da internet para as transformaes nas formas de distribuio do contedo televisivo a partir da dcada de 1990. 4 http://www.ebay.com/. Acesso: 16 fev. 2012. 5 http://www.apple.com/itunes/. Acesso: 16 fev. 2012.

15

O procedimento metodolgico empregado na dissertao o estudo de caso, o qual um mtodo qualitativo caracterizado como estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu amplo e detalhado conhecimento (GIL, 2002, p. 54). O estudo de caso busca a compreenso dos eventos e, de acordo com Yin (2005), pode ser utilizado por diferentes motivos, incluindo a simples apresentao de casos individuais ou o desejo de chegar a generalizaes amplas baseadas em evidncias de estudos de caso (YIN, 2005, p. 35). Johnson (2010) complementa a viso dos autores citados ao afirmar que o estudo de caso adequado para pesquisas descritivas e explanatrias, em que o autor procura obter detalhes e riqueza de informaes sobre um tpico de pesquisa. Inicialmente, pretendamos realizar o estudo de caso da HBO tendo em vista o direcionamento de suas estratgias comunicacionais para o contexto brasileiro, a partir da presena digital da emissora para o pblico local tanto no site6 quanto nas mdias sociais Facebook7 e Twitter8. A escolha da HBO justificou-se por ser uma rede de televiso norteamericana reconhecida como produtora de seriados ficcionais de qualidade, a qual atua em diversos mercados ao redor do mundo, inclusive no Brasil. medida que pesquisamos a trajetria histrica e as prticas atuais da emissora, no entanto, constatamos que o caso da matriz norte-americana tinha o potencial de gerar resultados mais ricos e interessantes para a presente dissertao. Dessa forma, optamos por realizar o estudo de caso da HBO a partir de sua rede de canais direcionada para o pblico norte-americano. Para este trabalho, temos como referncia o modelo utilizado pelos pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-Line (GJOL) (Machado; Palacios, 2007), o qual constitudo por uma metodologia hbrida, centrada na discusso terica e conceitual e complementada pelo estudo de mltiplos casos. Segundo os autores, a observao de um conjunto de objetos justifica-se pela constatao de que a anlise de apenas um deles no reflete a complexidade do fenmeno. Por identificarmos uma situao semelhante no cenrio televisivo atual, optamos pelo estudo das estratgias comunicacionais de um nico caso, o da HBO, mas a partir de uma amostragem que abrange diversos produtos e servios da emissora ao longo de sua trajetria. O carter qualitativo da pesquisa tem como objetivo a compreenso aprofundada e abrangente do fenmeno estudado. Como as pesquisas qualitativas so mais focadas na relevncia dos casos analisados, a definio da amostragem foi intencional, de acordo com o6 7

http://www.hbomax.tv/hbo/. Acesso: 16 fev. 2012. http://www.facebook.com. Acesso: 16 fev. 2012. 8 https://twitter.com/. Acesso: 16 fev. 2012.

16

referencial terico apresentado e a intensidade com a qual as caractersticas relevantes para o estudo so evidenciadas, com a escolha de produtos e servios que envolvem vrias sries da HBO e demonstram a riqueza e a diversidade das aes estratgicas da emissora premium norte-americana. Tambm optamos por adaptar a metodologia de Machado e Palacios (2007), citada anteriormente, para as especificidades e caractersticas do objeto. De acordo com os autores, a abordagem dos estudos realizados no GJOL consiste em procedimentos tanto online (como a coleta de dados em websites) quanto offline como a realizao de entrevistas e a observao participante. Neste trabalho, adaptamos tais mtodos e realizamos uma observao online e distncia das estratgias comunicacionais da HBO, tendo em vista a impossibilidade de acesso aos profissionais responsveis pelo planejamento e a execuo de tais aes. A anlise baseada na observao atravs da internet tambm justificada a partir das consideraes de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) sobre a realizao de pesquisas sociais neste meio. De acordo com as autoras, quando se realizam pesquisas na internet, esta pode apresentar-se como tanto objeto de estudo (aquilo que se estuda), quanto local de pesquisa (ambiente onde a pesquisa realizada) e, ainda, instrumento de pesquisa (por exemplo, ferramenta para coleta de dados sobre um dado tema ou assunto) (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011, p. 17). Neste trabalho, as trs facetas da internet mencionadas pelas autoras so evidenciadas: a internet presta-se tanto como objeto de pesquisa, por ser parte estrutural das redes digitais, contexto comunicacional em que so implementadas as estratgias da HBO, quanto como local em que a pesquisa foi realizada e ferramenta de coleta de dados para a anlise por meio da observao online, do mapeamento da presena digital da HBO e do uso da seo Way Back Machine no site Internet Archive9, o qual preserva e recupera verses de uma mesma pgina da internet, desde a sua criao at a atualizao mais recente. O relato do estudo de caso da HBO explicitado nesta dissertao ao longo de trs captulos. O Captulo 1 apresenta em detalhes as caractersticas das eras da TV I e II (tambm conhecidas como era da televiso broadcast e era da televiso a cabo, respectivamente), bem como as primeiras duas dcadas de existncia da HBO. Na TV I, as grandes redes abertas norte-americanas (ABC, CBS e NBC) dominavam o cenrio televisivo, e a funo primordial dos canais oferecidos pelo sistema de transmisso a cabo era levar a programao das redes broadcast para reas em que a recepo do sinal era muito fraca. Na transio da era da TV I para a era da TV II, no incio dos anos 1970, o lanamento da HBO inaugurou a oferta de contedo exclusivo entre as emissoras de televiso a cabo. Mais tarde, na dcada de 1980, a9

http://www.archive.org/. Acesso: 16 fev. 2012.

17

HBO tambm foi a primeira rede fechada a produzir filmes para a televiso, sries e minissries originais. As principais referncias para este captulo so os autores Lotz (2007), Edgerton (2008), Garnham (1991), Jenkins (2008), Johnson (2005), Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007), Santos (2001) e Starling (2006). A era da TV III e o posicionamento estratgico da HBO a partir dos anos 1990 so descritos no Captulo 2, tendo como referncia os autores Akass e McCabe (2005), Anderson (2008), Edgerton (2008), Johnson (2005), Rogers, Epstein e Reeves (2002, 2007) e Santo (2008). A terceira fase televisiva marca a consolidao da HBO como criadora de seriados originais considerados televiso de qualidade, com programas como Sex and the City, The Sopranos (1999-2007), Six Feet Under (2001-2005) e The Wire (2002-2008). A era da TV III tambm representa o perodo de surgimento das tecnologias digitais e da internet em sua fase inicial (Berners-Lee, 1996; Gabriel, 2010; Primo, 2008; Saad 2008), aspectos que introduzem as mudanas nas formas de distribuio e de consumo do contedo televisivo. Finalmente, o Captulo 3 apresenta as caractersticas da atual configurao da televiso, as quais emergem da anlise das estratgias comunicacionais da HBO desde meados dos anos 2000. O ltimo momento do estudo envolve duas etapas metodolgicas: a reviso terica sobre o contexto miditico do incio do sculo XXI, com autores como Anderson (2006), Gabriel (2010), Jenkins (2008, 2009a, 2009b, 2011), Lotz (2007), Montpetit (TR10: SOCIAL TV, 2010), Neves (2011), OReilly (2005), Primo (2007), Recuero (2008, 2009), Rogers, Epstein e Reeves (2002, 2006, 2007), Saad (2008), Scolari (2009) e Zaccone (2011), entre outros, e a identificao e descrio das atuais aes estratgicas da HBO. O estudo aponta para a emergncia de estratgias comunicacionais que buscam expandir as possibilidades de lucro da emissora, explorar formas complementares de distribuio do contedo nas redes digitais, inserir a rede televisiva e os seus seriados originais nas mdias sociais digitais e incitar a participao ativa e o engajamento do pblico em aes baseadas na lgica transmdia, entre outras caractersticas delimitadas pelo estudo. Os resultados da anlise indicam o surgimento de novas prticas na indstria televisiva, as quais representam um contraste em relao ao funcionamento das mdias tradicionais de funo massiva, predominantes durante a segunda metade do sculo XX. Os aspectos singulares do momento atual da televiso norte-americana identificados pelo estudo sustentam a proposta deste trabalho de uma discusso sobre a quarta fase televisiva, a era da TV IV.

18

CAPTULO 1 A TRAJETRIA DA HBO NAS ERAS DA TV I E TV IIEspecializada na transmisso de filmes, sries, minissries10, documentrios e eventos esportivos, a HBO (Home Box Office) subsidiria do conglomerado de entretenimento Time Warner 11, lder de audincia televisiva em 201012 e segunda maior em nmero de assinantes em 201113 entre as emissoras premium14 dos Estados Unidos. A rede de canais HBO/Cinemax15 est presente em mais de 50 pases e sua programao original tambm licenciada para canais televisivos em mais de 150 pases em todo o mundo16. Grande parte do reconhecimento da HBO deve-se qualidade tcnica e narrativa de produes ficcionais originais premiadas e bem-sucedidas entre pblico e crtica, como Oz (1997-2003), Sex and the City, The Sopranos, Curb Your Enthusiasm (2000-presente), Six Feet Under, The Wire, Entourage (2004-2011), Big Love (2006-2011), True Blood (2008-presente), Boardwalk Empire (2010-presente) e Game of Thrones (2011-presente)17. Desde os seus primrdios, nos anos 1970, a proposta da HBO ser uma emissora pioneira e inovadora na abordagem narrativa de suas produes, no posicionamento estratgico de sua marca e na adoo de tecnologias de distribuio de seus servios. Diferente do modelo de negcios baseado em publicidade predominante entre emissoras norte-americanas da televiso aberta18, como a ABC (American Broadcasting Company), a CBS (Columbia10

A principal diferena entre sries e minissries que as primeiras podem ser renovadas para vrias temporadas, as quais sempre incluem a exibio de novos episdios. J as minissries tm um nmero pr-definido de episdios, ao fim dos quais se d o encerramento da histria, sem a possibilidade de renovao. 11 Um dos maiores conglomerados de mdia do mundo, segundo a Revista Fortune. Fonte: http://money.cnn.com/magazines/fortune/global500/2011/full_list/301_400.html. Acesso: 16 fev. 2012. 12 Fonte: http://www.timewarner.com/our-content/home-box-office/. Acesso: 16 fev. 2012. 13 Fontes: http://en.wikipedia.org/wiki/HBO e http://en.wikipedia.org/wiki/Encore_(TV_channel). Acesso: 16 fev. 2012. 14 Canais cujo acesso se d mediante pagamento de taxa adicional ao valor da assinatura bsica do servio de televiso a cabo ou via satlite. 15 A HBO dona do canal Cinemax, e os servios das duas emissoras so oferecidos em sistema multiplex tanto nos Estados Unidos quanto nos mercados estrangeiros da rede. Dessa forma, o multiplex da HBO/Cinemax oferece mais de 17 canais nos Estados Unidos e 10 no Brasil HBO, HBO2, HBO Plus, HBO Family, HBO Signature, HBO HD, Cinemax, Max, Max HD e MaxPrime. 16 Fonte: http://www.timewarner.com/our-content/home-box-office/. Acesso: 16 fev. 2012. 17 Um breve resumo sobre os seriados televisivos mencionados ao longo do trabalho pode ser consultado no Anexo A Glossrio de Sries. 18 A rede televisiva de acesso aberto tambm chamada rede broadcast. Nela, a transmisso ocorre via radiodifuso uma ou mais antenas enviam o sinal televisivo ou radiofnico por meio de ondas eletromagnticas a qualquer aparelho de televiso ou rdio que consiga captar o sinal. O termo broadcast tambm representa o modelo que aqui chamamos de TV I, predominante durante as primeiras duas dcadas do meio televisivo.

19

Broadcasting System) e a NBC (National Broadcasting Company), o modelo da HBO baseado em assinaturas via TV a cabo ou via satlite. O tratamento dado aos consumidores , portanto, princpio norteador do posicionamento da rede premium, j que os assinantes, no os patrocinadores, que representam a maior fonte de renda da emissora. Neste captulo, o histrico da emissora HBO discutido a partir das consideraes de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) sobre as trs eras da televiso norteamericana a saber, TV I (de fins dos anos 1940 a meados dos anos 1970), TV II (da metade da dcada de 1970 ao incio dos anos 1990) e TV III (do incio dos anos 1990 at meados dos anos 2000). Nos quatro artigos publicados pelo trio entre 1996 e 2007, os autores abordam os contextos econmico, tecnolgico, corporativo e de regulamentao televisiva que tornaram possvel a criao e o fortalecimento da marca HBO e das principais produes da emissora. Os termos TV I, TV II e TV III foram adaptados pelos autores a partir de Behrens (1986) e adotados como forma de discutir as transformaes no s da indstria televisiva, mas tambm da economia norte-americana em geral. Em nota explicativa, Rogers, Epstein e Reeves (2002) justificam a utilizao dos termos era da TV I, II e III, em oposio s denominaes era do broadcast, da televiso a cabo e digital, porque acreditam propor uma linha de pensamento mais complexa e precisa para pensar os rompimentos e continuidades de cada era televisiva. Eles destacam que as eras no representam categorias estanques, mas a predominncia de alguns aspectos em relao a outros na era da TV II, por exemplo, ganham destaque as transformaes que ocorrem na televiso a cabo, mas as emissoras de acesso aberto continuam a existir, bem como os avanos nos meios digitais predominantes na era da TV III. A elaborao dos trs autores complementada pelas reflexes de Lotz (2007) sobre as mudanas contemporneas na experincia de espectadores, produtores, distribuidores e anunciantes em relao ao meio televisivo. Segundo a autora, a televiso compreendida como uma mdia de massa capaz de alcanar uma vasta e heterognea audincia no mais a norma. Essa compreenso uma entre mltiplas possibilidades de uso do meio que emergem a partir de tecnologias e de rituais de consumo que, nas palavras de Lotz (2007), revolucionam o significado da televiso no incio do sculo XXI. Em The Television Will Be Revolutionized, a autora divide a experincia televisiva em trs perodos: a era das networks19 (network era), entre o incio dos anos 1950 e meados de 1980, a transio multi-canais (multi-channel transition), de meados de 1980 at a metade dos anos 2000, e a era ps-networks (post19

O termo network comumente adotado nos Estados Unidos como referncia s grandes redes de televiso de acesso aberto, especialmente as emissoras ABC, CBS e NBC.

20

network era), que comeou em meados dos anos 2000 e, segundo Lotz (2007), ainda estava em fase inicial na ocasio do lanamento do livro. Nesta pesquisa, adotamos a classificao de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002, 2006, 2007) para abordar as alteraes econmicas, tecnolgicas, estratgicas e de abordagens narrativas na indstria televisiva, mas as consideraes de Lotz (2007) so igualmente pertinentes para o desenvolvimento do trabalho. Enquanto a era da TV III abordada no Captulo 2, as eras da TV I e da TV II so apresentadas ao longo deste captulo, bem como as primeiras duas dcadas de existncia da HBO.

1.1. OS PRIMRDIOS DA TELEVISO NORTE-AMERICANA: AS CARACTERSTICAS DA ERA DA TV I A HBO surgiu no incio dos anos 1970, justamente em um perodo de importantes mudanas no cenrio televisivo norte-americano, as quais incluem o advento das emissoras a cabo, a introduo de tecnologias como o controle remoto e o videocassete e o desenvolvimento de programas direcionados para pblicos de nicho, entre outras. Tais mudanas, no entanto, ocorreram em um segundo momento da televiso nos Estados Unidos, em relao poca que Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002) chamam de era da TV I tambm conhecida como era broadcast e era do marketing de massa. A TV I predominante entre o fim dos anos 1940 e meados dos anos 1970 e corresponde ao perodo em que foram institucionalizadas as prticas de criao, produo, distribuio e consumo que caracterizam os primeiros anos da histria do meio televisivo. De acordo com os autores, o termo TV I uma forma simplificada para abordar a fase em que o ambiente televisivo norte-americano foi dominado pelo oligoplio de trs grandes corporaes disponveis via transmisso broadcast as redes ABC, CBS e NBC. Estabelecidas primeiramente no rdio, elas alcanavam o pblico de todo o pas por meio de acordos com emissoras locais afiliadas, e o principal suporte financeiro das trs redes era obtido pela venda de espaos publicitrios. De acordo com Lotz (2007), nos primeiros anos da televiso, o modelo publicitrio adotado era semelhante ao do rdio, ou seja, cada atrao tinha um nico patrocinador da mesma forma que ocorria no Brasil com programas como o noticirio

21

Reprter Esso20. A partir do incio dos anos 1960, as redes televisivas adotaram a venda de intervalos comerciais de 30 segundos para mltiplas corporaes, prtica comum at hoje. De acordo com Rogers, Epstein e Reeves (2002), as relaes de bens de consumo de segunda ordem (second-order commodity relations), nas quais as redes de televiso aberta vendem o tempo de intervalo entre os programas para os patrocinadores e estes, por sua vez, vendem produtos para os telespectadores, so caractersticas da era da TV I. As relaes de bens de consumo de segunda ordem envolvem a mediao de terceiros, diferente das relaes de bens de consumo de primeira ordem (first-order commodity relations), nas quais o consumidor paga diretamente pelo produto por exemplo, ao adquirir um livro ou comprar um ingresso para assistir a um filme no cinema. A economia poltica da programao televisiva na TV I consistia basicamente no desenvolvimento de entretenimento popular que atrasse a ateno de consumidores em potencial; as emissoras ento geravam lucros ao vender a ateno dos espectadores para os anunciantes, os quais compravam os espaos publicitrios baseados em garantias das grandes redes televisivas de que alcanariam determinadas faixas da audincia nacional, embora os mtodos empregados na poca para determinar o tamanho e o perfil do pblico fossem limitados (Lotz, 2007). A era da TV I possui uma estreita ligao com o Fordismo, ordem econmica vigente no mundo e, especialmente, nos Estados Unidos na poca e que guiou a exploso de prosperidade norte-americana aps a 2 Guerra Mundial. De acordo com Santos (2001), no modelo fordista, o Estado era responsvel por prover subsdios para o crescimento da produo e do consumo de massa, inclusive no campo das comunicaes. Dessa forma, era garantida a infra-estrutura para a radiodifuso por meio de um plano de desenvolvimento paulatino e a longo prazo que assegurava um mercado estvel e o desenvolvimento da indstria eletrnica de consumo. Garnham (1991) chama de Televiso Fordista o perodo em que foi institucionalizado o modelo clssico da televiso como instrumento de produo e de consumo massivos. De acordo com o autor, o sistema televisivo criado a partir de 1945 representa um ponto crucial tanto da acumulao quanto da regulamentao do capitalismo fordista. A televiso (enquanto sistema de transmisso de contedos) constitua um ponto chave da acumulao fordista porque criava o mercado para os aparelhos de recepo televisiva e atuava como ferramenta de marketing dos bens de consumo de massa. J na questo da regulamentao fordista, a televiso agia como ferramenta ideolgica de promoo do20

Programa jornalstico do rdio (1941-1968) e da televiso brasileira (1952-1970), transmitido nas Rdios Nacional, Record, Globo e Tupi e nas emissoras TV Tupi e TV Globo. O noticirio levava o nome da empresa patrocinadora, a norte-americana Standard Oil Company of Brazil, conhecida no Brasil como Esso.

22

consumo, de movimentao poltica e de formao da opinio pblica (Garnham, 1991). As transmisses televisivas tambm levavam as informaes dos centros polticos e sociais at o ambiente domstico, em um perodo em que houve um aumento significativo no nmero de lares privativos localizados nos subrbios e, consequentemente, longe dos centros de produo e de tomada de decises polticas (Williams, 1974). Durante as duas primeiras dcadas da TV I, a popularidade dos programas televisivos era definida unicamente pelos nmeros totais de audincia, sem a segmentao do pblico em grupos de interesse, e o contedo era planejado para atrair o maior nmero de espectadores possvel estratgia que o vice-presidente de programao da CBS, Paul Klein, chamou de programao menos censurvel (least objectionable programming) (Lotz, 2007). Segundo Lotz (2007), na era das networks, a televiso era predominantemente um aparelho domstico e no-porttil, e a maioria dos lares norte-americanos possua apenas um televisor. Estas caractersticas relativas ao acesso e ao uso tecnolgico foram importantes para a definio das estratgias de programao das emissoras. Os executivos das grandes redes televisivas sabiam que, normalmente, toda a famlia assistia televiso em conjunto e em um determinado horrio e escolhia programas que agradassem a maioria dos espectadores. Dessa forma, a programao televisiva do perodo era uniforme, universalmente disponvel e no correlacionada com canais de acordo com Lotz (2007), as grandes redes no empregavam estratgias de diferenciao de marca e de programao durante a era das networks. De acordo com Williams (1974), boa parte do horrio nobre (primetime) das emissoras era dedicado exibio de sries porque, no formato, a ao dramatizada dividida em episdios semanais. Assim, os seriados no s preenchiam um horrio na grade de programao (time slot) durante semanas de exibio, mas eles tambm encorajavam o envolvimento dos espectadores com o canal. As principais atraes do perodo eram os westerns, como as sries Gunsmoke (CBS, 1955-1975), Bonanza (NBC, 1959-1973) e Johnny Ringo (CBS, 1959-1960), os policiais, com seriados como The Untouchables (ABC, 19591963), Dragnet (NBC, 1951-1959; 1967-1970; ABC, 2003-2004)21, Columbo (NBC, 19681994)22, S.W.A.T. (ABC, 1975-1976) e Starsky and Hutch (ABC, 1975-1979), e as sitcoms (situation comedies, ou comdias de situao), com destaque para I Love Lucy (CBS, 19511957), Bewitched (ABC, 1964-1972), I Dream of Jeannie (NBC, 1965-1970) e The Mary Tyler21

A srie original de Dragnet teve oito temporadas e foi exibida pela NBC entre 1951 e 1959. O programa originou dois remakes: um em 1967, na prpria NBC, e outro em 2003, na ABC. 22 Columbo foi concebido originalmente como um filme para a televiso, exibido em 1968. Em 1971, foi exibido o episdio piloto que iniciou a primeira temporada da srie. Alm das 11 temporadas televisionadas, a srie ainda teve cinco episdios especiais exibidos entre os anos de 1991 e 2003.

23

Moore Show (CBS, 1970-1977). De acordo com Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002), as narrativas da TV I abordavam principalmente os valores familiares da cultura norte-americana e, apesar de contar com programas culturalmente significativos, ofereciam experincia televisiva restrita ao momento de exibio de cada episdio na maioria dos casos, os episdios tinham incio, meio e fim bem definidos, e as narrativas dificilmente faziam referncias a acontecimentos de episdios passados. Ao argumentar que os produtos de entretenimento da cultura pop, como videogames e seriados televisivos, tm gradualmente aumentado o trabalho cognitivo que demandam de sua audincia nas ltimas trs dcadas, Johnson (2005) afirma que na dcada de 1970 sries policiais como Dragnet e Starsky and Hutch seguiam fielmente o princpio narrativo da autoreteno cada episdio seguia um ou dois personagens principais e uma nica trama dominante, a qual era concluda ao final da exibio. Segundo Johnson (2005), praticamente todos os episdios de Dragnet seguem uma nica linha narrativa: a cena do crime que inicia a histria, passando depois pela investigao e finalmente a resoluo do caso. J em Starsky and Hutch, os episdios oferecem apenas uma pequena variao: a introduo de uma subtrama cmica que normalmente aparece apenas no incio e no fim dos episdios. Johnson (2005) representa as linhas narrativas de Dragnet e Starsky and Hutch de acordo com os grficos apresentados na Figura 1, nos quais o eixo horizontal mostra o tempo de durao do episdio e o vertical, o nmero de linhas narrativas individuais desenvolvidas.

Figura 1. Linhas narrativas dos episdios de Dragnet e Starsky and Hutch demonstram princpio de auto-reteno predominante na era da TV I. (Adaptado de: JOHNSON, 2005, p. 70).

Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002) delimitam trs tipos de espectadores a partir do nvel de engajamento com o contedo televisivo: (1) espectadores casuais (casual viewers), (2) espectadores dedicados (devoted viewers) e (3) fs vidos (avid fanship). Os espectadores casuais assistem a um programa se o encontram acidentalmente na programao. Para o

24

espectador casual, as exibies fazem parte do fluxo televisivo 23 e no so consideradas como eventos especiais que requerem ajustes na agenda pessoal. Devido baixa demanda cognitiva dos seriados e ao nmero limitado de opes na programao, o nvel de consumo casual era predominante durante a era da TV I, principalmente nas dcadas de 1950 e 1960. J os espectadores dedicados organizam-se para assistir a todos os episdios de seus programas favoritos, os quais so considerados eventos especiais que inspiram intensos nveis de identificao e de ateno. Segundo os autores (1996), embora os espectadores dedicados ocasionalmente leiam artigos e reportagens e conversem com amigos sobre seus seriados preferidos, seu envolvimento no chega ao fanatismo, caracterstica que relacionam com os fs vidos. Para Reeves, Rogers e Epstein (1996), os fs vidos no medem esforos para assistir a todos os episdios do seriado que admiram e apresentam um alto nvel de engajamento e de dedicao ao produto televisivo. As prticas dos fs vidos envolvem o arquivamento de episdios (principalmente em fitas VHS nos anos 1980 e 1990, e em arquivos digitais e colees de DVD a partir dos anos 2000), a compra de produtos auxiliares e a interao com outros fs por meio de fs-clubes e grupos de discusso online. No livro Cultura da Convergncia, Jenkins (2008) tambm identifica trs tipos de espectadores televisivos: (1) zapeadores, (2) casuais e (3) fiis. Os zapeadores so aqueles que passeiam sem rumo pelos canais e raramente assistem a mais do que pequenos segmentos de cada programa. Os zapeadores so semelhantes aos espectadores casuais de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002); a prtica do zapping, no entanto, s surgiu na dcada de 1980, com a criao do controle remoto e a multiplicao dos canais disponveis ao pblico devido ascenso da televiso a cabo. Da mesma forma que em Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002), os espectadores casuais de Jenkins (2008) mantm fidelidade mnima a alguns programas televisivos, aos quais assistem apenas quando lembram ou os encontram ocasionalmente enquanto mudam de canal. O terceiro e ltimo perfil definido por Jenkins (2008) o dos telespectadores fiis, que representam a parcela mais engajada e envolvida ativamente com os produtos de entretenimento. De acordo com o autor, os fiis so

23

O fluxo televisivo diz respeito organizao e exibio sequencial, principalmente no horrio nobre, das atraes na grade de programao das emissoras de TV. O fluxo da programao televisiva no deve ser confundido com o fluxo de contedos caracterstico da cultura da convergncia (Jenkins, 2008), o qual corresponde circulao contnua de informaes em formato de texto, udio e/ou vdeo entre diferentes plataformas de mdia.

25

[os] espectadores mais dedicados de determinadas sries, com frequncia aqueles para quem o programa um favorito. Fiis apresentam maior probabilidade de retornar a cada semana, maior probabilidade de assistir a um episdio inteiro, maior probabilidade de buscar informaes adicionais em outros canais miditicos e maior probabilidade de se lembrar das marcas anunciadas durante a srie (JENKINS, 2008, p. 335).

O perfil do espectador fiel de Jenkins (2008) apresenta caractersticas tanto dos espectadores dedicados quanto dos fs vidos de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002), e, portanto, pode ser considerado um intermedirio entre os dois nveis de engajamento. Segundo Jenkins (2008), praticamente todos os espectadores assumem os papis de zapeadores, casuais e fiis em relao a diferentes programas televisivos. Os nveis de engajamento dos espectadores dedicados e dos fs vidos so mais proeminentes na era da TV II24 e, portanto, so abordados em mais detalhes no item 1.2. Na TV I, os espectadores tinham poucas opes de experincia televisiva. O nmero reduzido de emissoras disponveis limitava a programao televisiva a trs grandes redes nacionais e mais algumas estaes independentes e educacionais dispersas geograficamente e com pouca renda para o desenvolvimento de produtos originais (Lotz, 2007). Alm disso, a audincia tinha pouco controle sobre como e quando consumir os produtos do meio televisivo. Como mencionado anteriormente, o controle remoto e o videocassete surgiram apenas em meados dos anos 1980. Para Lotz (2007), a chegada de tecnologias que permitiram possibilidades de escolhas e de controle at ento inditas para os consumidores alterou profundamente a experincia televisiva no perodo da transio multi-canais. Segundo Rogers, Epstein e Reeves (2002), nos ltimos anos da era da TV I, a HBO introduziu o modelo econmico baseado exclusivamente em relaes de bens de consumo de primeira ordem no mbito da TV comercial ou seja, a emissora inaugurou a comercializao direta do contedo televisivo entre fornecedor e consumidor e um modelo que no contava com o investimento de anunciantes. At ento, a principal fonte de renda das emissoras broadcast tinha origem na venda de espaos publicitrios nos intervalos comerciais da programao. Mesmo os canais oferecidos pelo sistema bsico da televiso a cabo mesclavam relaes de bens de consumo de primeira e de segunda ordem, ao obter lucros tanto das assinaturas quanto da venda de intervalos comerciais para anunciantes. A ausncia de patrocinadores e a programao sem interrupes foram os principais argumentos de venda da HBO no seu lanamento, em 1972.24

Com a exceo de Star Trek (NBC, 1966-1969), cujos fs apresentavam um alto nvel de envolvimento e engajamento com o seriado (Rogers, Epstein e Reeves, 1996; Jenkins, 2006).

26

1.1.1. CRIAO E ASCENSO DA HBO: OS PRIMEIROS VINTE ANOS DE HISTRIA DA REDE PREMIUM Em 1971, o empreendedor norte-americano Charles Dolan concebeu o que se tornaria a HBO quando criou o Green Channel, servio de programao local a cabo baseado em Nova York. Anos antes, em 1965, a empresa Sterling Manhattan Cable, de Dolan, foi a primeira a levar a televiso a cabo para o consumo domstico na cidade, onde o sinal da transmisso via broadcast era prejudicado pelos altos prdios. Com o Green Channel, no incio dos anos 1970, Dolan lanou um servio que oferecia a exibio de filmes e eventos esportivos sem intervalos comerciais para os espectadores dispostos a pagar pela assinatura do canal25. No ano seguinte, em 1972, Dolan negociou o financiamento do Green Channel com a Time Inc., hoje Time Warner, e contratou Gerald Levin como diretor executivo da emissora. O Green Channel passou a se chamar Home Box Office, aluso aos sucessos de bilheteria que o canal pago oferecia para seus assinantes (Edgerton, 2008). A HBO inaugurou seu servio no dia 08 de novembro de 1972, com a exibio do filme Sometimes a Great Notion (1970), seguido da transmisso exclusiva de uma partida de hquei, para 365 assinantes de Wilkes-Barre, na Pensilvnia, Estados Unidos. Com a apresentao do evento esportivo, a HBO introduzia uma mudana nas emisses realizadas pelas redes de televiso a cabo da poca: a exibio de contedo original. Desde sua origem nos Estados Unidos, nos anos 1940, at ento, as redes a cabo tinham como funo retransmitir a programao das emissoras abertas para locais onde o sinal da rede broadcast era muito fraco. Durante os primeiros anos das redes a cabo, os espectadores que residiam em reas remotas podiam recorrer a esta opo para assistir a programas populares que, de outra forma, no estariam disponveis para eles. As companhias de TV a cabo existiam, ento, para viabilizar o acesso do pblico geograficamente desfavorecido s redes broadcast, e no para concorrer com elas (Rogers, Epstein e Reeves, 2002). No entanto, Levin, diretor executivo da HBO na poca, apostou em uma estratgia inovadora, a de transmisso de contedo que simplesmente no estava disponvel em outras emissoras televisivas, tanto a cabo como em broadcast, principalmente por exibir, sem cortes, filmes que apresentavam temticas adultas. A estratgia provou-se como uma forma eficaz de expandir e consolidar a base inicial de assinantes da HBO.

25

Fonte: The Cable Center Cable Hall of Fame http://www.cablecenter.org/content.cfm?id=1044. Acesso: 16 fev. 2012.

Archives:

Charles

Dolan.

27

Em outubro de 1975, a emissora inovou mais uma vez ao ser a primeira empresa a construir uma rede de distribuio nacional de programao televisiva utilizando comunicao via satlite. A HBO recorreu ao sistema via satlite porque, na poca, enfrentava problemas com o sinal de transmisso nas vsperas da exibio de Thriller in Manila ltima de uma srie de trs histricas lutas de boxe entre Muhammad Ali e Joe Frazier, em Manila, nas Filipinas. Com a mudana para transmisso via satlite, a HBO conseguiu aumentar sua base de assinantes em 47% no ltimo trimestre de 1975. A rede premium havia completado o ano de 1973 com modestos nove mil assinantes; quando a luta entre Ali e Frazier foi ao ar, o nmero havia aumentado para cerca de 200 mil. Em 1977, eram em torno de 600 mil assinantes (Edgerton, 2008). Ao final dos anos 1970, a HBO evidenciava seu investimento em um marketing diferenciado em relao s outras emissoras ao veicular propagandas que posicionavam a rede como a grande alternativa de entretenimento na televiso norte-americana ou The Great Entertainment Alternative, como demonstra a Figura 2.

Figura 2. Propaganda da HBO em fins dos anos 1970 demonstra estratgia da rede premium de se estabelecer como principal alternativa ao contedo das outras emissoras. (Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=PIc-wF3KF4c&NR=1. Acesso: 11 ago. 2011).

Ao mesmo tempo em que as relaes de bens de consumo de primeira ordem representam uma ligao mais direta entre emissora e consumidores, elas tambm criam desafios distintos daqueles enfrentados por produtores e distribuidores de contedo da televiso aberta. Diferente dos servios mantidos pela publicidade, as redes de televiso a cabo, especialmente as do tipo premium, no medem seu sucesso em nmeros de audincia, mas sim na intangvel satisfao dos clientes, que toma forma tangvel no pagamento mensal

28

dos servios contratados. O sucesso das redes premium ento determinado pelo nvel de interesse que a programao desperta nos assinantes. Devido ao ciclo mensal de pagamento da assinatura, a preocupao central destas redes a organizao de uma programao diversificada, balanceada, mas diferenciada, em relao s outras emissoras, de filmes, sries originais e outros produtos de entretenimento que cativem a ateno dos assinantes. Dessa forma, os canais premium precisam desenvolver uma forte identidade de marca que no s os diferencie dos servios disponveis por meio da rede broadcast e de canais mais baratos da televiso a cabo, mas tambm da concorrncia no mercado da TV paga (Edgerton, 2008, 2011). Para a HBO, a identidade da marca comea a tomar forma com o desenvolvimento de programas originais e exclusivos, a partir dos anos 1980, quando a emissora liderou a produo de filmes, documentrios e seriados entre as redes de televiso a cabo. Mesmo com os altos custos ligados criao de produtos de entretenimento, a mudana era necessria devido popularizao do videocassete e do controle remoto televisivo, os quais concederam ao pblico o poder de escolher o que assistir e quando assistir, com um esforo consideravelmente menor do que antes. Se o espectador no achava o programa interessante, podia mudar de canal com apenas um toque, e se no estivesse interessado em assistir a um programa no horrio determinado pela emissora, podia optar por gravar a atrao em fitas VHS e assistir a ela quando quisesse, quantas vezes desejasse. Alm disso, com o advento do videocassete, tambm cresceu o mercado das videolocadoras, que ofereciam um vasto catlogo de filmes para os consumidores. Para uma emissora especializada na exibio de filmes sem cortes e sem intervalos mesmo servio oferecido pelo aluguel de obras cinematogrficas em VHS , era preciso diversificar a programao para manter o interesse dos assinantes (Edgerton, 2008, 2011; Akass e McCabe, 2005). De acordo com Pepper (2010), a HBO buscou inspirao para sua programao original inicial em emissoras do servio de televiso pblica norte-americana e inglesa, especialmente na PBS (Public Broadcasting Service) e na BBC (British Broadcasting Corporation). Assim, parte da criao original da HBO era formada por programas culturais e educacionais, em formato no-ficcional, como a srie Project Knowledge (Projeto Conhecimento, em traduo literal), desenvolvida entre meados dos anos 1980 e o incio dos anos 1990 e composta por produtos com carter de servio pblico que eram exibidos pela HBO, mas tambm distribudos em fitas de videocassete para escolas e outras instituies, acompanhadas de livros de estudo (Pepper, 2010).

29

A HBO j inclua em sua programao a exibio de especiais de comdia, como as apresentaes de stand-up26 de Jerry Seinfeld, Ray Romano e Dave Chappelle, entre outros, e a primeira srie original da rede premium seguiu a linha cmica com Not Necessarily the News (1983-1990), a qual exibia quadros satricos que parodiavam noticirios e acontecimentos da cultura popular da poca. Not Necessarily the News era baseado na comdia britnica Not the Nine OClock News (BBC 2, 1979-1982), alternativa cmica para o jornal das nove da noite da BBC 1. Em maio de 1983, a HBO exibiu The Terry Fox Story (1983)27, o primeiro filme para a televiso produzido por uma rede a cabo (Edgerton, 2008). Na ocasio do lanamento dos primeiros programas originais da HBO, a rede j contava com 14,5 milhes de assinantes, e em 1984 as produes originais e exclusivas da emissora representavam 30% da programao. No mesmo ano, Michael Fuchs assumiu como diretor executivo da emissora e comprometeu-se a criar programas inditos, maduros e provocativos. Como a HBO, enquanto um servio premium a cabo, no estava sujeita a restries governamentais e empresariais em relao a profanao, sexualidade e violncia, Fuchs viu uma oportunidade de transformar a HBO em um fornecedor de contedo direcionado para adultos28 (ROGERS; EPSTEIN; REEVES; 2002, p. 51). Sob a tutela de Fuchs, a HBO produziu as sries Dream On (1990-1996) e The Larry Sanders Show (19921998), referncias do perodo. Dream On uma sitcom adulta sobre o recm-divorciado Martin Tupper, que precisa lidar com o filho adolescente, a ex-esposa e a vida de solteiro em Nova York. Os produtores executivos da srie, David Crane e Marta Kauffman, mais tarde seriam os responsveis pela srie Friends, um dos maiores sucessos da televiso norteamericana na virada do sculo XX. J The Larry Sanders Show acompanha o apresentador de talk show Larry Sanders e sua convivncia com produtores, roteiristas e convidados nos bastidores de seu programa. Um atributo notvel do seriado era a participao de celebridades interpretando verses exageradas e caricatas delas mesmas, formato tambm utilizado mais26 27

Expresso que indica o show de comdia realizado por apenas um comediante. A obra biogrfica conta a histria de Terry Fox, corredor e ativista canadense que teve uma perna amputada devido a um tipo de cncer chamado osteossarcoma. Trs anos depois de perder a perna direita, Fox decidiu cruzar o Canad de costa a costa na Maratona da Esperana (Marathon of Hope), a qual tinha como objetivo levantar fundos para as pesquisas sobre tratamento do cncer. Depois de 143 dias e mais de cinco mil quilmetros de corrida, Fox foi forado a abandonar a maratona em decorrncia do cncer, que havia atingido seus pulmes. Fox faleceu meses depois, aos 22 anos, e seu legado uma referncia para a populao canadense a corrida Terry Fox (Terry Fox Run) realizada anualmente no pas, e diversas ruas, prdios e parques foram nomeados em homenagem ao corredor. Fontes: http://en.wikipedia.org/wiki/Terry_Fox e http://pt.wikipedia.org/wiki/Terry_Fox. Acesso: 16 fev. 2012. 28 Traduo nossa para: Since HBO, as a premium cable service, was not subject to government and industry restrictions on profanity, sexuality, and violence, Fuchs saw an opportunity to turn HBO into a purveyor of adultoriented content.

30

tarde pela srie cmica inglesa Extras (2005-2007), de Ricky Gervais, co-produzida pela BBC e pela HBO, e por outra comdia recente da HBO, Entourage. Em 1992, a programao original da HBO j representava 40% do contedo exibido. Dois anos depois, a HBO foi a primeira rede premium a adotar o servio multiplex, no qual o sinal dividido em dois ou mais canais. Com mais de um canal disponvel para os assinantes, a HBO multiplicou as opes de programao oferecidas em sua assinatura. Em 1998, a rede expandiu o servio multiplex ao criar a megamarca HBO the Works, coleo de canais que inclui HBO, HBO2, HBO Signature, HBO Family, HBO Comedy, HBO Zone (em 1999) e HBO Latino (em 2000). Em 2001, a HBO tambm introduziu o servio video-on-demand (vdeo sob demanda, em traduo literal) com o HBO on Demand. A Figura 3 demonstra os canais e servios oferecidos para os assinantes da HBO no ano de 2011.

Figura 3. A megamarca HBO the Works rene todos os canais e servios oferecidos para os assinantes da HBO. (Fonte das imagens: http://www.hbo.com/ e http://www.area171.com.br/2011/05/poster-dofilme-do-tin-tin-revelado.html. Acesso: 16 fev. 2012).

31

Enquanto era diretor executivo da emissora, Fuchs tambm foi responsvel pelos primeiros esforos para estabelecer a marca da HBO no exterior, os quais iniciaram com a Amrica Latina29 e depois avanaram pela Europa e sia 30 (Edgerton, 2008). Finalmente, Fuchs liderou a criao da primeira campanha publicitria nacional da HBO, cujo slogan era Simply the Best (Simplesmente o Melhor), em 1989. O material de divulgao da emissora ilustrado pela Figura 4, a qual apresenta o frisbee31 distribudo pela HBO no final dos anos 1980.

Figura 4. Frisbee promocional distribudo pela HBO na primeira campanha publicitria nacional da emissora. (Fonte: http://www.amazon.com/HBO-Simply-Humphrey-Flyer-Frisbee/dp/B004MTBKMC. Acesso: 16 fev. 2012).

29

A HBO Latin American Group uma empresa subsidiria do conglomerado Time Warner, a qual organiza e distribui os canais do sistema multiplex HBO/Cinemax para a Amrica Latina. Ela atua sob o nome de HBO Brasil Partners no mercado local brasileiro. Alm dos canais HBO/Cinemax, a HBO Latin American Group tambm distribuidora da programao latino-americana de canais como Sony Entertainment Television, AXN, Warner Channel e E! Entertainment Television, entre outros. Embora as atraes exibidas na Amrica Latina sejam semelhantes s da grade de programao norte-americana, a assinatura do servio HBO/Cinemax neste mercado no inclui a oferta dos servios HBO on Demand e HBO Go, abordados em detalhes no item 3.1. Outros produtos que tambm no esto disponveis no Brasil so os aplicativos da HBO, do servio HBO Go e de alguns de seus seriados para os aparelhos iPhone, iPod e iPad, da Apple com a exceo dos aplicativos da srie True Blood. Fontes: http://en.wikipedia.org/wiki/HBO_Latin_America_Group e http://www.hbolag.tv/. Acesso: 16 fev. 2012. 30 Embora a megamarca da HBO esteja presente em diversos pases, nem todos os canais oferecidos nos Estados Unidos esto disponveis em outras regies do mundo. No Brasil, por exemplo, os canais HBO Comedy, HBO Latino e HBO Zone no so oferecidos para os assinantes. Alm disso, o foco da programao dos canais pode ser diferente em cada regio. Na Amrica Latina, por exemplo, o HBO Signature focado na exibio de produes originais da emissora, como filmes para a televiso, documentrios, minissries e sries norte-americanas e latinas desenvolvidas pela HBO em parceria com produtoras locais. As sries latino-americanas da HBO incluem a argentina Epitafios (2004-2009), as brasileiras Mandrake (2005-2007) e Filhos do Carnaval (2006-2006) e a mexicana Capadocia: Un Lugar Sin Perdn (2008-presente), entre outras. 31 Conhecido popularmente no Brasil como disco voador, o frisbee um objeto em formato de disco e geralmente feito de material plstico, usado em diversas brincadeiras e jogos.

32

A campanha Simply the Best iniciou o extenso processo de mudana da imagem da HBO, de um servio especializado na exibio de filmes inditos para a de uma rede premium que produz e transmite a programao original mais inovadora da televiso, alm dos tradicionais longas-metragens (Edgerton, 2008). Primeiro, a HBO distinguiu-se da televiso comercial ao identificar-se como uma fonte de filmes e eventos esportivos sem cortes e sem intervalos comerciais. A estratgia de programao deu rede uma identidade de marca, que sobreviveu at a adoo massiva do videocassete em meados dos anos 1980, quando a HBO deixou de ser a principal opo para assistir a filmes em casa. O prximo grande passo da evoluo da marca da HBO envolveu a deciso de produzir programao original, inicialmente com filmes em longa-metragem. Fuchs encontrou um mercado de nicho para a HBO ao tornla referncia em filmes que abordavam questes sociais e polticas e que haviam desaparecido do cinema e da televiso comercial. Entre as temticas abordadas pela HBO no perodo esto o aborto (A Private Matter, 1992; If These Walls Could Talk, 1996), a homossexualidade (Tidy Endings, 1991), a vida nos presdios (Prison Stories: Women on the Inside, 1991), a corrupo no governo norte-americano (Conspiracy: The Trial of the Chicago 8, 1987; Doublecrossed, 1991), a AIDS (And the Band Played On, 1993), o terrorismo global (Investigation: Inside a Terrorist Bombing, 1990), o abuso sexual praticado por membros do clero (Judgment, 1990), as desigualdades sociais e o racismo nos Estados Unidos (Into the Homeland, 1987; The Tuskegee Airmen, 1995), o ambientalismo (The Burning Season, 1994), entre outras (Heller, 2008). Depois de estabelecer sua unidade cinematogrfica, a rede premium expandiu suas produes para minissries dramticas que, por causa da temtica e da abordagem, nunca teriam estreado no cinema, ou em qualquer outra emissora televisiva que no a HBO naquela poca. Com os filmes e minissries originais, a HBO ganhou prmios, elogios da crtica e comeou a construir sua reputao de desenvolvedora de programao de qualidade. Neste perodo, os canais de televiso por assinatura, e especialmente a HBO, tiveram um papel central no processo de amadurecimento das narrativas televisivas. Elas incentivaram seus criadores e roteiristas a desenvolver programas inovadores em relao ao padro das dcadas anteriores, iniciativa que descentralizou a hegemonia das grandes redes televisivas de acesso aberto. Com a fragmentao da audincia, as emissoras broadcast tambm buscaram melhorias em suas produes originais. Segundo Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002), essa poca marca o advento da programao cult e da televiso de qualidade (quality television), caractersticas da era da TV II.

33

1.2. A SEGUNDA FASE DA TELEVISO NORTE-AMERICANA: CRESCIMENTO DA TV A CABO, ESTRATGIAS DE MARKETING DE NICHO E TELEVISO DE QUALIDADE NA ERA DA TV II Durante a era da TV II, ou era da TV a cabo, predominante entre meados dos anos 1970 e incio da dcada de 1990, a organizao do trabalho e da produo de bens de consumo norte-americana havia mudado para o modelo de acumulao ps-fordista, ou flexivelmente especializado, marcado pela competio mundial pelos mercados de consumo (mercado globalizado), pela reduo do tempo de rotao do capital e pela fabricao de estoques reduzidos e de produtos pensados para mercados especficos e segmentados (Garnham, 1991; Santos 2001). Na TV II, a televiso atuou de forma decisiva para a naturalizao da lgica do marketing voltado para nichos. De acordo com Garnham (1991), a Televiso Fordista entrou em crise junto com o modelo do capitalismo fordista, entre os anos 1970 e 1980, quando as redes broadcast passaram a dividir a ateno dos espectadores com as emissoras da televiso por assinatura. Para o autor, a Televiso Ps-Fordista um perodo de reestruturao e de transio no modelo televisivo, caracterizado pela multiplicidade de canais. A concepo de Garnham (1991) coincide com a de Lotz (2007) sobre o perodo da transio multi-canais, entre meados dos anos 1980 e 2000. De acordo com Lotz (2007), durante as duas dcadas da transio multicanais, desenvolvimentos em vrios setores da indstria provocaram mudanas na experincia televisiva, mas de uma maneira bastante gradual. Segundo a autora, estas mudanas ocorreram primeiramente pela introduo de tecnologias como o controle remoto e o videocassete e pela expanso no nmero de emissoras disponveis via broadcast e no sistema de televiso a cabo, os quais aumentaram as possibilidades de escolha e de controle dos espectadores. As redes broadcast Fox (1986), UPN (1995) e The WB (1996)32, os canais de televiso a cabo USA Network (1971), TNT (1988) e FX (1994) e as redes premium a cabo HBO (1972) e Showtime (1976), entre outras, foram introduzidas no cenrio televisivo norte-americano nessa poca. Segundo Lotz (2007), a multiplicao na oferta de canais mudou a dinmica competitiva da indstria televisiva, bem como o tipo de programao desenvolvida para o meio. A autora afirma que, em vez de criar programas menos censurveis, direcionados para a famlia inteira, as redes broadcast e, particularmente, os canais a cabo e premium, passaram a desenvolver produes que pudessem satisfazer segmentos particulares da audincia, o que32

Em 2006, a fuso entre os canais UPN e The WB deu origem ao canal The CW Television Network, empreendimento conjunto da CBS Corporation (conglomerado de mdia dono das emissoras CBS e Showtime, entre outros investimentos) e da Time Warner.

34

permitiu a fragmentao e a polarizao33 dos espectadores em grupos de interesses especficos. Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002) tambm chamam a era de TV II de era do marketing de nicho, justamente pela crescente busca por diferentes grupos de consumidores. J no final da primeira era da televiso, os termos que definiam o nvel de popularidade de um programa sofreram mudanas, com a introduo de uma filosofia de programao baseada em dados demogrficos de qualidade (quality demographics) referentes a faixa etria, classe social, raa, escolaridade, entre outros. A nova filosofia promoveu o desenvolvimento de programas que tivessem apelo para os segmentos populacionais mais valiosos para o mercado da propaganda especialmente profissionais de reas urbanas entre 18 e 49 anos, com alto poder aquisitivo (Garnham, 1991). Para Rogers, Epstein e Reeves (2002), a procura por estes espectadores incentivou uma gerao de produtores a introduzir inovaes no formato narrativo televisivo. De acordo com Starling (2006), essa mudana foi mais notvel nas emissoras a cabo, as quais incentivaram seus produtores e roteiristas a buscar abordagens ousadas e transgressivas em suas produes. A programao singular das emissoras a cabo nos anos 1980 impulsionou a busca por transformaes na estrutura narrativa dos seriados nas emissoras da rede aberta.Da mesma forma que a TV, ao tornar-se a mdia de massa dominante, liberou Hollywood para buscar audincias mais especializadas, a televiso a cabo, ao quebrar a audincia de massa em muitos pedaos, estimulou a TV a fazer o mesmo. As redes de TV, assim como os cineastas, abandonaram seus prprios cdigos de produo assim que sua audincia comeou a encolher34 (THOMPSON, 1997, p. 41).

O processo de amadurecimento das narrativas televisivas nas redes abertas e fechadas e da gerao de telespectadores neste perodo permitiu que produtores como James L. Brooks (The Mary Tyler Moore Show), David Lynch (Twin Peaks, ABC, 1990-1991) e Chris Carter (The X-Files, Fox, 1993-2002) criassem programas televisivos notrios na era da TV II. Foi tambm na segunda fase televisiva que Steven Bochco criou Hill Street Blues (NBC, 19811987), programa considerado um marco na histria das sries televisivas e que, nas palavras de Machado (2005, p. 24), no abre mo da inovao esttica, nem da crtica poltica, nem da vontade de reinventar a televiso em nenhum de seus 147 episdios e em nenhum momento33

Segundo Lotz (2007), a polarizao refere-se habilidade que diferentes grupos de espectadores tm de consumir programas e ideias substancialmente diferentes, em oposio a uma simples disperso da audincia em unidades desconexas. 34 Traduo nossa para: Just as television, by taking over as the dominant mass medium, had allowed Hollywood to pursue some more specialized audiences, so cable, by shattering the mass audience into many pieces, invited TV to do the same. Television broadcasters, like the moviemakers, abandoned their own production code just as their audiences began shrinking.

35

dos seis anos e meio em que esteve no ar pela rede NBC. Machado (2005) afirma que Hill Street Blues foi um dos programas que inaugurou a televiso de qualidade (quality television). A expresso surgiu com a publicao do livro M.T.M.: Quality Television35, que tratava da contribuio da produtora televisiva M.T.M. Enterprises, responsvel por The Mary Tyler Moore Show e pela j mencionada Hill Street Blues, entre outras sries televisivas de inegvel valor esttico, fora dramatrgica e penetrao crtica (MACHADO, 2005, p. 22). Hill Street Blues acompanhava o dia-a-dia dos policiais de uma delegacia localizada no fictcio bairro de Hill Street, inspirado na violenta realidade do bairro nova-iorquino do Bronx. A srie desenvolvia as tramas em uma estrutura narrativa modular (Starling, 2006), com histrias que recorriam a acontecimentos de episdios anteriores, no eram concludas em um nico segmento narrativo e s eram retomadas mais tarde na temporada. A estrutura de cada episdio baseada em dois nveis, nos quais desenvolvida uma trama principal completa e uma ou vrias tramas secundrias cuja resoluo pode ocorrer durante a temporada ou mesmo ao longo da srie (Starling, 2006; Bianchini, 2009). Segundo Johnson (2005), Hill Street Blues iniciou uma espcie de exerccio mental para quem assistia a programas televisivos, ao aumentar a quantidade de trabalho cognitivo necessrio para acompanhar as diversas ramificaes que a histria central havia desenvolvido. O autor afirma que o programa inaugurou a era das mltiplas linhas narrativas entre as sries televisivas36, conceito semelhante noo de estrutura narrativa modular de Starling (2006). A narrativa de cada episdio de Hill Street Blues entrelaa vrias tramas s vezes at dez, embora no mnimo seis envolvam apenas algumas cenas dispersas ao longo do episdio (Johnson, 2005). A srie contava com mais de dez protagonistas, algo at ento indito para um seriado ficcional televisivo, e cada episdio remetia a tramas de episdios anteriores e deixava uma ou duas histrias em aberto ao final da transmisso 37. A Figura 5 mostra o desenvolvimento de mltiplas linhas narrativas no episdio 8538 de Hill Street Blues, em comparao estrutura narrativa predominante entre os seriados da era da TV I especificamente em relao Dragnet e Starsky and Hutch, exemplos ilustrados na Figura 1, no item 1.1.

35

FEUER, Jane; KEER, Paul; VAHIMAGI, Tise (orgs.). M.T.M.: Quality Television. Londres: The British Film Institute, 1984. 36 Johnson (2005) afirma que as mltiplas linhas narrativas j eram empregadas em novelas, especialmente em Dallas (1978-1991). 37 O desenvolvimento de episdios com mltiplas linhas narrativas, a partir da era da TV II, no substituiu completamente o princpio de auto-reteno predominante na era da TV I. Ainda hoje so produzidas sries cujos episdios apresentam tanto linhas narrativas que so desenvolvidas ao longo de vrias temporadas ou da srie inteira quanto tramas com incio, meio e fim como C.S.I. (CBS, 2000-presente) e House (Fox, 2004-presente). 38 Sexto episdio da quinta temporada, chamado Ewe and Me, Babe.

36

Figura 5. Linhas narrativas dos episdios de Dragnet, Starsky and Hutch e Hill Street Blues mostram a multiplicao de tramas na era da TV II. (Adaptado de: JOHNSON, 2005, p. 70).

Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002) acreditam que o investimento em mltiplas linhas narrativas nas sries do horrio nobre norte-americano pode ser atribudo ao aumento no nmero de canais disponveis para a audincia e, consequentemente, acirrada competio pela ateno dos espectadores na era da TV II. O nvel de engajamento mais comum neste perodo foi, portanto, o dos espectadores dedicados, justamente devido necessidade de assistir, pelo menos, maioria dos episdios em ordem cronolgica de exibio para acompanhar o desenrolar da trama. Os autores tambm destacam o advento da programao cult39 como um importante aspecto da TV II, especialmente com os j citados Twin Peaks e The X-Files. Segundo Reeves, Rogers e Epstein (1996), o que distingue os programas cult dos outros programas televisivos disponveis o alto nmero de fs vidos que estes seriados atraem. Para os fs vidos, o programa pelo qual so apaixonados no s um evento especial, mas tambm um importante elemento para a definio de sua identidade cultural. Thompson (2008) afirma que, ao interpretar as mensagens da mdia, as pessoas as incorporam compreenso que tm de si mesmas, dos outros indivduos e do mundo, mesmo que nem sempre tenham pleno conhecimento disso. O autor utiliza o termo apropriao para referir-se ao processo em que uma pessoa apodera-se de um contedo e incorpora-o prpria vida. Segundo Thompson (2008, p. 46), ns estamos ativamente nos modificando por meio de mensagens e de contedo significativo oferecidos pelos produtos da mdia (entre outras coisas). Este processo especialmente significativo para os consumidores considerados fs,39

O termo cult originrio da lngua inglesa e significa culto, o que sugere o intenso engajamento e lealdade dos espectadores em relao aos programas dos quais so fs.

37

para quem o objeto de interesse representa uma importante fonte de identificao e de representao de valores significativos para a construo do eu. Alm disso, os fs vidos cultivam uma relao criativa com seus objetos de interesse. Segundo Jenkins (2006), no caso de produtos como filmes, seriados televisivos, obras literrias e histrias em quadrinhos, os fs expressam esta relao atravs da criao de fanzines, fan arts, fan videos, fanfiction, entre outras prticas comum do fandom movimento marcado por interaes e manifestaes de fs. A interao e a conversao entre os fs foram potencializadas pela internet no incio da dcada de 1990, com a criao dos primeiros grupos de discusso online (Jenkins, 2008). Nesse contexto, o surgimento das tecnologias digitais e da internet em sua fase inicial representam a mudana de uma fase analgica, durante as eras da TV I e TV II, para um perodo predominantemente digital a partir da era da TV III, assunto a ser abordado no Captulo 2. No presente captulo, discutimos as duas primeiras dcadas de histria da HBO, a partir das consideraes de Reeves, Rogers e Epstein (1996, 2002) sobre as eras da TV I e da TV II e de Lotz (2007) sobre a era das networks e a transio multi-canais. Ambas as concepes refletem sobre as caractersticas e peculiaridades nos mbitos de produo, distribuio e consumo do meio televisivo norte-americano. A HBO uma rede premium reconhecida mundialmente pelo sucesso de seus filmes e, principalmente, de seus seriados, com produes como Sex and the City, The Sopranos e True Blood, entre outras. Ela foi criada no incio dos anos 1970 e, dez anos mais tarde, foi a primeira rede a cabo a produzir contedo original inicialmente com filmes para a televiso e, mais tarde, com minissries e seriados. A HBO protagonizou algumas das importantes mudanas introduzidas no meio televisivo durante a era da TV II. No entanto, para compreender estas alteraes, foi necessrio retomar o cenrio da televiso norte-americana durante a era da TV I tambm conhecida como era da televiso broadcast e era do marketing de massa. As caractersticas da TV I incluem a televiso como mdia de massa, capaz de alcanar uma vasta e heterognea audincia, o predomnio das trs grandes emissoras abertas norte-americanas (ABC, CBS e NBC), as relaes de bens de consumo de segunda ordem, o nvel de engajamento casual da audincia e a venda de espaos publicitrios para anunciantes como principal fonte de suporte financeiro para os canais televisivos comerciais. O modelo econmico vigente no mundo e, especialmente, nos Estados Unidos era o Fordismo, e a principal funo ideolgica da televiso era a promoo do consumo.

38

Nos ltimos anos da TV I, a HBO introduziu as relaes de bens de consumo de primeira ordem na televiso comercial, ao lanar um servio negociado diretamente com o consumidor, por meio de uma assinatura adicional taxa de televiso a cabo ou via satlite. Esta poca, em meados dos anos 1970, marca o incio da era da TV II, tambm chamada de era da televiso a cabo e de era do marketing