NAPOLITANO, Marcos. a Música Popular Brasileira (MPB) Dos Anos 70

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Marcos Napolitano Brasil A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural 1 Após o Ato Institucional nº5, instrumento legal promulgado em fins de 1968 que aprofundou o caráter repressivo do Regime Militar brasileiro implantado quatro anos antes, houve um corte abrupto das experiências musicais ocorridas no Brasil ao longo dos anos 60. Na medida em que boa parte da vida musical brasileira, naquela década, estava lastreada num intenso debate político-ideológico, o recrudescimento da repressão e a censura prévia interferiram de maneira dramática e decisiva na produção e no consumo de canções. A partir de então, os movimentos, artistas e eventos musicais e culturais situados entre os marcos da Bossa Nova (1959) e do Tropicalismo (1968) foram idealizados e percebidos como a balizas de um ciclo de renovação musical radical que, ao que tudo indicava, havia se encerrado. Ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a expressão Música Popular Brasileira (MPB), sigla que sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por uma cultura política influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50. 1 A minha participação no IV Congresso de la Rama latinoamericana del IASPM (Cidade do México, abril de 2002) teve o apoio da CAPES/MEC.

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NAPOLITANO, Marcos. a Música Popular Brasileira (MPB) Dos Anos 70

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  • Marcos Napolitano Brasil

    A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistncia poltica e consumo cultural1

    Aps o Ato Institucional n5, instrumento legal promulgado em fins de 1968 que

    aprofundou o carter repressivo do Regime Militar brasileiro implantado quatro anos

    antes, houve um corte abrupto das experincias musicais ocorridas no Brasil ao longo dos

    anos 60. Na medida em que boa parte da vida musical brasileira, naquela dcada, estava

    lastreada num intenso debate poltico-ideolgico, o recrudescimento da represso e a

    censura prvia interferiram de maneira dramtica e decisiva na produo e no consumo

    de canes. A partir de ento, os movimentos, artistas e eventos musicais e culturais

    situados entre os marcos da Bossa Nova (1959) e do Tropicalismo (1968) foram

    idealizados e percebidos como a balizas de um ciclo de renovao musical radical que, ao

    que tudo indicava, havia se encerrado. Ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a

    expresso Msica Popular Brasileira (MPB), sigla que sintetizava a busca de uma nova

    cano que expressasse o Brasil como projeto de nao idealizado por uma cultura

    poltica influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento

    industrial, impulsionado a partir dos anos 50.

    1 A minha participao no IV Congresso de la Rama latinoamericana del IASPM (Cidade do Mxico, abril

    de 2002) teve o apoio da CAPES/MEC.

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

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    Na hierarquia cultural da sociedade brasileira, a MPB chegou dcada de 70

    dotada de alto grau de reconhecimento junto s parcelas de elite da audincia musical,

    ainda que alguns setores do meio acadmico e literrio no compartilhassem desta

    valorizao cultural excessiva. Enquanto o cinema e o teatro brasileiros, como um todo,

    no conseguiam formar um pblico fixo, mais amplo, a msica popular consolidava sua

    vocao de popularidade, articulando reminiscncias da cultura poltica nacional-popular

    com a nova cultura de consumo vigente aps a era do "milagre econmico", entre os anos

    de 1968 e 1973. Eis, na nossa opinio, a peculiaridade da "instituio" MPB dos anos 70.

    H um outro aspecto que no pode deixar de ser enfatizado: como o sentido

    principal da institucionalizao da MPB, processo marcante nos anos 60, foi o de

    consolidar o deslocamento do lugar social da cano, esboado desde a Bossa Nova. O

    estatuto de cano que dele emergiu no significou uma busca de identidade e coerncia

    esttica rigorosa e unvoca. As canes de MPB seguiram sendo objetos hbridos,

    portadores de elementos estticos de natureza diversa, em sua estrutura potica e

    musical. A instituio incorporou uma pluralidade de escutas e gneros musicais que,

    ora na forma de tendncias musicais, ora como estilos pessoais, passaram a ser

    classificados como MPB, processo para o qual a crtica especializada e as preferncias

    do pblico foram fundamentais. No ps-Tropicalismo elementos musicais diversos, at

    concorrentes num primeiro momento com a MPB, passaram a ser incorporados sem

    maiores traumas. Neste sentido concordamos com Charles Perrone quando ele define a

    MPB mais como um "complexo cultural" do que como um gnero musical especfico2.

    Acrescentamos que este "complexo" cultural sofreu um processo de institucionalizao na

    cena musical, tornando-se o seu centro dinmico.

    O estudo da "instituio MPB", em sua fase de consolidao (anos 70), pode

    revelar as marcas ambguas, durante a qual segmentos sociais oriundos sobretudo das

    classes mdias3, herdeiros de uma ideologia nacionalista integradora (no campo poltico)

    mas abertos a uma nova cultura de consumo cosmopolita (no campo scio-econmico),

    2 Perrone, Charles. 1989. Masters of contemporary Brazilian song.

    3 Sobre a relao entre classe mdia, cultura e poltica, ver Ridenti, Marcelo. 2000. Em busca do povo

    brasileiro e; Ridenti, Marcelo. 1995. O fantasma da Revoluo Brasileira.

  • Marcos Napolitano

    3 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la

    Asociacin Internacional para el Estudio de la Msica Popular

    forneceram uma tendncia de gosto que ajudou a definir o sentido da MPB. Assim, as

    imagens de modernidade, liberdade, justia social e as ideologias socialmente

    emancipatrias como um todo, impregnaram as canes de MPB sobretudo na fase mais

    autoritria do Regime Militar, situada entre 1969 e 1975. Alm desta perspectiva poltico-

    cultural moldada pela audincia, a consolidao da MPB como instituio se deu a partir

    da relao intrnseca com a reorganizao da indstria cultural, a qual agiu como fator

    estruturante de grande importncia no processo como um todo e no apenas como um

    elemento externo ao campo musical que cooptou e deturpou a cultura musical do pas.

    O ouvinte padro de MPB, o jovem de classe mdia com acesso ao ensino mdio e

    superior, projetou no consumo da cano as ambigidades e valores de sua classe social.

    Ao mesmo tempo, a MPB, mais do que reflexo das estruturas sociais, foi um polo

    fundamental na configurao do imaginrio scio-poltico da classe mdia progressista

    submetida ao controle do Regime Militar. At porque, boa parte dos compositores e

    cantores mais destacados do gnero era oriunda dos segmentos mdios da sociedade.

    Se a MPB sofria com o cerceamento do seu espao de realizao social, a

    represso que se abateu sobre seus artistas ajudou a consolid-la como espao de

    resistncia cultural e poltica, marcando o eplogo de seu processo inicial de

    institucionalizao. Neste processo, at os tropicalistas Caetano e Gil, considerados

    alienados pela esquerda foram relativamente redimidos. Ambos retornaram ao Brasil

    por volta de 1972 e com a mudana do panorama do consumo musical do pas, entre

    1975 e 1976, voltaram a ocupar um espao destacado no interior da MPB.

    Paradoxalmente, o fechamento completo do espao pblico para os atores da oposio

    civil, consolidou os espaos galvanizados pela arte, como formas alternativas de

    participao, nos quais a msica era um elemento de troca de mensagens e afirmao de

    valores, onde a palavra, mesmo sob forte coero, conseguia circular. Mas, se o

    fechamento poltico agudizado pelo AI-5 ajudou a construir a mstica da MPB como

    espao cultural por onde o poltico emergia, do ponto de vista da mercadoria cultural, a

    censura e o exlio foram grandes obstculos para a consolidao do "produto" MPB,

    sobretudo durante o governo do general Emlio Mdici, entre 1969 e 1974. Isto acontecia

    por uma razo muito simples: o exlio afastava da cena musical nacional os grandes

    compositores, base da renovao musical brasileira da dcada de 60. Por outro lado, a

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

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    censura era um fator de imprevisibilidade no processo de produo comercial da cano,

    alm de dificultar o atendimento da demanda por msicas participantes, base do consumo

    musical de classe mdia. A idia de participao poltica na MPB assumia diversas

    formas e todas estavam sujeitas ao controle da censura: crnicas sociais, mensagens de

    protesto poltico e construo de tipos populares que expressassem os valores do

    nacionalismo de esquerda.

    Com o novo estatuto de msica popular vigente no Brasil, desde o final da dcada

    de 60, a sigla MPB passou a significar uma msica socialmente valorizada, sinnimo de

    "bom gosto", mesmo vendendo menos que as msicas consideradas de "baixa qualidade"

    pela crtica musical. Do ponto de vista do pblico este estatuto tem servido como

    diferencial de gosto e status social, sempre alvo de questionamentos e autocrticas. Do

    ponto de vista das gravadoras, o alcance de mercado das canes deve contemplar o

    fenmeno do highbrow e o lowbrow do consumo musical4. A fala de Milton Miranda,

    diretor da gravadora Odeon, demonstra esse paradoxo constituinte da indstria cultural.

    Dirigindo-se ao estreante Milton Nascimento, Miranda justifica a autonomia que a

    gravadora concedia ao compositor: Ns temos os nossos comerciais. Vocs mineiros so

    a nossa faixa de prestgio. A gravadora no interfere. Vocs gravam o que quiserem5.

    Mais do que uma concesso ao bom gosto e qualidade musical, a fala do

    executivo revela a ambigidade necessria do produto cultural submetido s leis do

    mercado. Tendo em vista o carter do capitalismo brasileiro, cujo polo mais dinmico se

    realizou historicamente num mercado relativamente restrito, com produtos de alta

    capitalizao e valor agregado (como, por exemplo, a indstria automobilstica). Dessa

    maneira, podemos sugerir um paralelo com a indstria fonogrfica. A MPB culta

    ofereceu a esta indstria a possibilidade de consolidar um catlogo de artistas e obras de

    realizao comercial mais duradoura e insero no mercado de forma mais estvel e

    4Sobre o problema especfico da hierarquia cultural ver: McDonald, Dwight. 1960. Mass cult and midcult

    e; Eco, Umberto. 1987. Cultura de Massa e nveis de cultura IN: Apocalpticos e Integrados, p.33-69. Se aplicarmos a tipologia proposta por Dwight McDonald, a MPB seria enquadrada na midcult, definida como um plano de criao e consumo cultural que tende a banalizar as conquistas da vanguarda, mas obter um grau considervel de respeitabilidade na hierarquia cultural de uma sociedade. Umberto Eco criticou esta tipologia dos trs nveis, problematizando os limites para se definir, esteticamente, o que mass cult ou midcult , bem como delimitar a insero social destas instncias. 5Apud Borges, Mrcio. 1996. Os sonhos no envelhecem: a Histria do Clube da Esquina , p.209.

  • Marcos Napolitano

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    planejada. A liberdade de criao se objetivava em lbuns mais acabados, complexos e

    sofisticados, polo mais dinmico da indstria fonogrfica, mesmo vendendo menos do que

    as msicas mais comerciais. Dinmico, pois envolvia um conjunto de componentes

    tecnolgicos e musicais consumidos por uma elite sociocultural. Ao mesmo tempo,

    aproveitando-se da capacidade ociosa de produo, produzindo lbuns de custo mais

    barato e artistas populares de menor prestgio, alm das coletneas (sobretudo as trilhas

    de sonoras de novelas), as gravadoras garantiram um lucro de crescimento vertiginoso

    nos anos 70. Portanto faixa de prestgio e faixa comercial no se anulavam. Na lgica

    da indstria cultural sob o capital monopolista, estes dois plos se alimentavam

    mutuamente, sendo complementares, dada a lgica de segmentao de mercado.

    Em suma, o sucesso do polo "popular-quantitativo" (sambo, msica kitsch, soul

    brasileiro, canes romnticas em ingls) no conseguia compensar os riscos de no

    possuir um elenco estvel de compositores-intrpretes, algo como um polo "popular-

    qualitativo", bem como um conjunto de obras de catlogo, de vendas mais durveis ao

    longo do tempo. O exlio e a censura interferiam justamente na consolidao desta faixa

    de mercado, tolhida em plena consolidao de uma audincia renovada. Entre 1969 e

    1973, criou-se uma espcie de "demanda reprimida" que, em parte, ir explicar o boom da

    cano brasileira, a partir de 1975, quando as condies de criao e circulao do

    produto iro melhorar significativamente, com a perspectiva da abertura poltica. A poltica

    de "descompresso" do regime militar exigia uma certa tolerncia diante do consumo da

    cultura de "protesto".

    Mesmo com a volta de Chico Buarque e Caetano Veloso, entre 1971 e 1972, as

    condies de criao e circulao musicais no melhoraram, pois a represso poltica e a

    censura ainda eram intensas. O lbum Construo, de 1971, nas primeiras semanas de

    lanamento, atingiu a venda de 140 mil cpias, ndice comparvel aos de Roberto Carlos

    e Martinho da Vila. A nica diferena que esta cifra se concentrava no eixo RJ-SP,

    enquanto os outros dois eram vendedores "nacionais". Este sucesso dava um novo alento

    ao mercado de MPB, mas o cerceamento liberdade de criao iria se impor ao

    compositor nos anos seguintes, chegando no limite da auto-censura, conforme seus

    depoimentos. O fracasso de pblico e crtica do LP Chico Canta, de 1973, uma

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

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    demonstrao dramtica do poder da censura sobre o mercado musical. O LP deveria ser

    a trilha sonora da pea "Calabar", mas a proibio da pea e das msicas, acabou por

    destruir o produto, do ponto de vista cultural e comercial, inviabilizando sua circulao.

    Este "fracasso" era absolutamente incompatvel com a capacidade de criao de Chico

    Buarque, bem como em relao demanda da audincia, que naquele momento rompia

    os limites do pblico "jovem e universitrio", ento os principais consumidores de MPB.

    Ana Maria Bahiana, uma das crticas musicais mais famosas dos anos 70, escreveu:

    "A viso do veio principal da msica, no Brasil, , necessariamente, a viso das universidades - ainda mais que a crtica constante, em profundidade, surgida em meados dos anos 60 e, tambm, de extrao universitria. Isso significa, em ltima anlise, que o circuito se fecha de modo perfeito: a msica sai da classe mdia, orientada pela classe mdia e por ela consumida".

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    Em que pese certas anlises impressionistas, e a carncia de pesquisas mais

    profundas e detalhadas, possvel partir da premissa de que o pblico estritamente

    universitrio, segmento jovem da classe mdia mais abastada, fosse o pblico de MPB

    por excelncia, sobretudo no perodo mais repressivo, entre 1969 e 1974. A prpria

    indstria cultural ir buscar nestes extratos a nova safra de compositores, visando a

    renovao do cenrio musical: Aldir Blanc, Ruy Maurity, Luiz Gonzaga Jnior, Ivan Lins.

    Nos festivais Universitrios, organizados pela Rede Tupi de Televiso (1968/1972)

    e no programa "Som Livre Exportao" (1971/72) da Rede Globo, notamos a tentativa da

    indstria televisual / fonogrfica, em vencer a crise da MPB, direcionando sua produo e

    circulao para os campi universitrios, num momento de retrao e segmentao de

    pblico, se compararmos com a tendncia de expanso ocorrida entre 1965 e 1968. Entre

    o primeiro Festival Universitrio e o programa "Som Livre", nasceu no Rio de Janeiro, o

    MAU (Movimento Artstico Universitrio), que tomou para si a tarefa de continuar a

    renovao musical em torno de uma msica engajada, dialogando intimamente com a

    tradio do Samba "popular" e da Bossa Nova "nacionalista", e consolidar a hegemonia

    da MPB no pblico jovem mais intelectualizado e participante.

    6 Bahiana, Ana Maria. 1980. Nada ser como antes. A MPB nos anos 70, p.25.

  • Marcos Napolitano

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    Podemos dizer que ao longo do perodo que vai de 1972 a 1975

    (aproximadamente), o espao social, cultural e comercial da MPB, comeava a se

    rearticular, ainda que timidamente. Alguns fatos marcam este processo: a volta dos

    compositores exilados (Chico, Caetano, Gil), a paulatina consolidao de um novo

    conjunto de "revelaes" (Ivan Lins, Fagner, Belchior, Alceu Valena, Joo Bosco / Aldir

    Blanc), o retorno de Elis Regina ao primeiro plano do cenrio musical (com "guas de

    maro" o LP Elis e Tom), o novo alento msica brasileira jovem representada pela

    meterica trajetria de Ney Matogrosso e os "Secos e Molhados" e pelo sucesso de Raul

    Seixas, foram sinais de vitalidade e criatividade num ambiente social e musical

    desgastado e sem perspectivas. Para escapar ao implacvel cerco da censura ao grande

    nome da MPB de ento, Chico Buarque de Hollanda gravou somente outros compositores

    no LP Sinal Fechado, alm de criar um pseudnimo que marcou poca: Julinho da

    Adelaide (NOTA). O cerco a Chico atingiria seu ponto limite e seria revertido com o

    antolgico LP Meus Caros Amigos, de 1976.

    Dois lbuns (LPs) so particularmente significativos para entender a recomposio

    do espao social e cultural da MPB, apontando para uma nova exploso do consumo

    musical no Pas, sobretudo a partir de 1976. So eles: Chico e Caetano Juntos e Ao Vivo

    (1972) e Elis & Tom (1974). Foge aos limites deste texto uma anlise mais detalhada

    destes trabalhos. Apenas salientamos a convergncia de antigos desafetos dos anos 60,

    em nome de uma frente ampla da MPB, j consagrada como trilha sonora da oposio

    civil e da resistncia cultural ao regime. Estes dois discos, alm de suas qualidades

    musicais bvias, eram altamente simblicos, na consagrao de um processo de

    renovao musical que se iniciara com a Bossa Nova, em 1959. Eles representavam

    "reencontros" de tendncias vistas como antagnicas no amplo debate musical e

    ideolgico que ocupou o cenrio musical ao longo da dcada de 60.

    O ano de 1972 marcou, tambm, o fim do ciclo histrico dos festivais televisivos,

    iniciado em 1965. Na tentativa de salvar o Festival Internacional da Cano (FIC) do

    desprestgio e do desinteresse da indstria fonogrfica e do pblico, a Rede Globo

    contratou o veterano dos festivais, Solano Ribeiro, para organizar o evento. Este, por sua

    vez, pediu carta branca para a produo e para a montagem do jri, que no deveria

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

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    sofrer interferncias explcitas do "sistema". Enfim, Solano quis reconstituir na TV Globo o

    clima dos antigos festivais da Record. A princpio, a emissora concordou, mas as

    presses do sistema, em seus diversos nveis, acabaram por triunfar. Tentando retomar o

    clima de radicalidade e "pesquisa" dos antigos festivais, potencializando-os ainda mais, o

    VII FIC esbarrou na vigilncia da censura e nos interesses comerciais da emissora. O piv

    da discrdia foi o interesse do jri pela msica "Cabea" de Walter Franco, enquanto a

    emissora preferia "Fio Maravilha" (de Jorge Ben, cantada por Maria Alcina), mais

    exportvel e preferida pelo pblico. Os "morcegos sobre Gotham City", metfora da

    represso poltica cantada por Jards Macal no FIC de 1969, triunfaram, apesar da

    atitude de protesto do jri destitudo que tentou lanar um manifesto sobre a censura. Mas

    o saldo do VII FIC, do ponto de vista da gerao de novos talentos foi significativo. Nele

    apareceram para o grande pblico nomes como Fagner, Raul Seixas, Alceu Valena,

    Walter Franco, entre outros. O FIC de 1972 tambm expressou um certo clima de

    radicalidade que marcava os jovens criadores, com sua alardeada averso s frmulas de

    sucesso, incluindo aquelas do "bom gosto", o que acabou criando uma nova tendncia na

    MPB: a dos "malditos". Luis Melodia, Jards Macal, Walter Franco, Jorge Mautner, sero

    grandes campees de encalhe de discos, ao mesmo tempo que prestigiados pelos

    crticos e pelo pblico jovem mais ligados contracultura, retomando um esprito que

    estava sem seguidores desde o colapso do Tropicalismo, em 1969.

    Tambm entre 1972 e 1975, comea a se fortalecer a expresso "tendncias",

    para rotular experincias musicais que recusavam o mainstream do samba-bossa nova e

    no aderiam completamente ao pop sem no entanto recus-lo. As mais famosas eram a

    dos "mineiros" (tambm conhecido como 'Clube da Esquina') e a dos nordestinos

    (sobretudo os cearenses, Fagner, Belchior e Ednardo)

    A retomada do crescimento do mercado fonogrfico, por volta de 1975, acabou por

    dinamizar a MPB, embora no tenha favorecido uma renovao significativa do rol de

    compositores, na medida em que os campees de venda permaneceram aqueles

    surgidos na dcada anterior. A entrada de novas gravadoras no mercado de MPB, como a

    WEA, a EMI-Odeon e a CBS (que na dcada de 60 havia sido identificada com a Jovem

    Guarda), e a retomada dos investimentos em grandes projetos musicais, na TV e no

  • Marcos Napolitano

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    mercado de espetculos, deu uma nova dinmica ao mercado musical brasileiro. Mas, a

    rigor, os nicos compositores-intrpretes que surgiram nos anos 70, que logo se tornaram

    referncias importantes para o pblico e o mercado de MPB foram Fagner e Joo Bosco,

    cujas carreiras tiveram um grande impulso aps 1973. De resto, o boom comercial da

    MPB, a partir de 1975, vai privilegiar as carreiras de Chico Buarque, Milton Nascimento

    (revelao do FIC de 1967, mas relativamente desconhecido como intrprete at cerca de

    1972), Ivan Lins (surgido no incio da dcada, mas distanciado do mercado aps sua

    atribulada experincia na TV Globo). Entre os intrpretes: Elis Regina retomava sua

    condio de artista com vocao para popularidade, abrindo espao para a exploso de

    vozes femininas junto aos consumidores do grande pblico, como Gal Costa e Maria

    Bethania que, no final da dcada consolidam suas carreiras junto ao grande pblico.

    A perspectiva de abrandamento da censura e a relativa normalizao do ciclo de

    produo e circulao de bens culturais revelou a enorme demanda reprimida em torno

    da MPB, consolidando este tipo de cano como uma espcie de "trilha sonora" da fase

    de abertura poltica do regime militar e da retomada das grandes mobilizaes de massa

    contra a ditadura brasileira, aps 1977. A prpria dinamizao das atividades polticas,

    ainda sob intenso controle do regime, criava um clima favorvel ao consumo de produtos

    culturais considerados "crticos", visto como atitude de protesto, em si e que

    desempenhava um importante papel na articulao das expresses pblicas e privadas

    dos cidados opositores do regime militar.

    A partir de 1976, coincidindo com a fase de abertura poltica do regime, a MPB

    conheceu um novo boom criativo e comercial, otimizando todos os fatores acima

    mencionados. Consolidada como uma verdadeira instituio sociocultural, a MPB

    delimitava espaos culturais, hierarquias de gosto, expressava posies polticas, ao

    mesmo tempo que funcionava como uma pea central da indstria fonogrfica. Assim,

    uma tendncia de autonomia esttica e liberdade de criao e expresso se viu

    confrontada com seu movimento inverso, mas complementar: as demandas da indstria

    cultural reorganizada, pressionando pela rpida realizao comercial do seu produto,

    provocando uma certa indiferenciao entre entretenimento, fruio esttica e formao

    de conscincia. Nossa tese a de que estes vetores configuraram a MPB, tal como foi

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

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    consagrada nos anos 60 e 70, e atuaram tanto na formatao de uma nova concepo de

    cano no Brasil, quanto na funo sociocultural deste tipo de produto cultural. Portanto,

    nos afastamos tanto da tese da "cooptao" dos artistas pelo "sistema", quanto da viso

    que aponta a MPB como expresso pura de uma "contra-hegemonia" crtica e

    desvinculada das presses comerciais. A nosso ver, os futuros estudos sobre o tema

    devero assumir o carter contraditrio, hbrido7 e complexo deste produto cultural

    brasileiro.

    Algumas obras marcaram essa ofensiva da MPB, e atravs do mapeamento do

    seu repertrio e das performances dos artistas, podemos vislumbrar um quadro das

    questes em jogo. Podemos destacar os seguintes LPs. Falso Brilhante, Transversal Do

    Tempo e Essa Mulher, de Elis Regina; Caa Raposa, Tiro De Misericrdia e Linha De

    Passe, de Joo Bosco; A Noite, Nos Dias de Hoje, de Ivan Lins; Meus Caros Amigos,

    Chico Buarque (1978), pera Do Malandro, Vida e Almanaque, de Chico Buarque;

    Milagre Dos Peixes, Minas, Gerais, Clube da Esquina #2 e Caador de Mim (Milton

    Nascimento); Gonzaguinha da Vida e Moleque, de Luiz Gonzaga Jr. Ao lado de trabalhos

    produzidos por outros nomes, este poderia ser um corpus documental (fonogrfico) bsico

    para analisarmos as formas assumidas pela cano na crtica situao poltica e social

    do Brasil, dos anos 70.

    A dinamizao do espao cultural e comercial da MPB no foi simplesmente um

    reflexo da repolitizao geral da sociedade brasileira, mas foi um dos seus vetores de

    expresso, no campo da cultura. O consumo cultural, sobretudo o consumo musical,

    articulava atitudes, resignificava experincias, mantinha a palavra circulando, inicialmente

    sob uma forma cifrada, que foi se tornando mais explcita no final da dcada. Obviamente,

    no podemos ser ingnuos, pois este tipo de expresso estava intimamente ligado a uma

    estratgia da indstria fonogrfica. Isto no torna o papel da MPB naquele contexto

    autoritrio menos importante ou complexo, pois ela adquiriu um estatuto que vai alm da

    7 Conforme o conceito de Canclini, Nestor Garcia. 1997. Culturas Hbridas. Canclini entende que o

    hibridismo cultural articula elementos aparentemente dspares e auto-excludentes na forma atitudes e produtos culturais e uma das marcas singulares da modernizao latino-americana.

  • Marcos Napolitano

    11 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la

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    mercadoria, embora sua articulao bsica, como produto cultural, se d sob aquela

    forma.8

    Por volta de 1978, a MPB, compreendida em todas as suas variveis estilsticas e

    esferas de influncia social, era o setor mais dinmico da indstria fonogrfica brasileira,

    ao mesmo tempo que readquiria sua vitalidade como "instituio" scio-cultural e seu

    carter aglutinador dos sentimentos da oposio civil. As cifras de vendagem dos

    chamados "monstros sagrados" (Chico Buarque, Elis Regina, Maria Bethania, entre

    outros) confirma tal afirmao. Ao mesmo tempo, sua penetrao em faixas de pblicos

    mais amplas, fora dos extratos mais intelectualizados e exclusivamente universitrios da

    classe mdia alta, desempenhou um importante papel na "educao sentimental" e

    poltica de uma gerao inteira de jovens, principalmente: a chamada gerao AI-5. No

    ltimo tero da dcada de 70, essa pouco comum confluncia de popularidade comercial

    e reconhecimento esttico, parece ter marcado a histria da MPB.

    Esse auge durar at o comeo da dcada de 80. Por volta de 1983, o cenrio

    musical brasileiro e as energias da indstria fonogrfica iro se voltar para o rock

    brasileiro. A partir da, a MPB manter intacta sua aura de "qualidade musical" e trilha

    sonora da resistncia, mas deixar de ser o carro-chefe da indstria fonogrfica brasileira,

    cada vez mais direcionada s vrias linguagens do pop, com suas atitudes e estilos

    prprios.

    Alm de tudo isso, nos anos 70 a MPB foi o centro de mais um paradoxo. Esse

    paradoxo se traduziu na confluncia entre afirmao de valores ideolgicos, via cano, e

    de consumo musical cuja diretriz era dada por sofisticados mecanismos de mercado.

    Esse paradoxo, por sua vez, sugere inmeros problemas que ainda esperam para ser

    decifrados pela pesquisa histrica e sociolgica sobre a cano brasileira.

    8 Neste ponto me afasto das posies clssicas elaboradas por Thedor Adorno, que defende a

    neutralizao do esprito (geist) e a morte absoluta da autonomia da arte sob a forma da mercadoria, mesmo incorporando o horizonte crtico do conceito de indstria cultural. Esferas plurais de influncia, luta por novos sentidos e diversidade de experincias culturais devem ser levadas em conta para pensar no s a produo, mas a circulao e a recepo de canes. Neste sentido me aproximo muito mais da sociologia da msica popular anglo-americana (Simon Frith, Michael Chanan, Richard Middleton, Keith Negus, Richard Peterson) e da tradio de crtica cultural gramsciana dos estudos culturais (Raymond Williams, Nestor Canclini, Renato Ortiz, Jesus Martin Barbero, entre outros).

  • A msica popular brasileira (MPB) dos anos 70

    http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 12

    Bibliografia

    Bahiana, Ana Maria. 1980.

    Nada ser como antes. A MPB nos anos 70. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira.

    Borges, Mrcio. 1996. Os sonhos no envelhecem: a Histria do Clube da Esquina. So Paulo.

    Gerao Editorial, p.209.

    Canclini, Nestor Garcia. 1997. Culturas Hbridas. So Paulo, EDUSP.

    Eco, Umberto. 1987. Cultura de Massa e nveis de cultura IN: Apocalpticos e Integrados.

    McDonald, Dwight. 1960. Mass cult and midcult. Partisan Review, n.2/4.

    Perrone, Charles. 1989. Masters of contemporary Brazilian song. Austin, University of Texas Press.

    Ridenti, Marcelo. 2000. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Record.

    Ridenti, Marcelo. 1995. O fantasma da Revoluo Brasileira. So Paulo, Editora da UNESP.