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Narcos

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Narcos e parasAviso: no contm spoiler, qualquer semelhana com spoiler mera coincidncia e sacanagem no-intencional.Aps grande divulgao e expectativa, estreou em 28 de agosto a primeira temporada da srie "Narcos", produo da Gaumont para a Netflix com a direo de Jos Padilha.

A srie marca o reencontro entre Padilha e Wagner Moura depois de "Tropa de Elite". Novamente alado condio de protagonista, Wagner encara a tarefa nada fcil de interpretar o mtico narcotraficante colombiano Pablo Escobar. Foi necessrio um perodo de residncia em Medelln para poder se familiarizar com o sotaque paisa (como se referem aos naturais da segunda maior cidade colombiana) e assimilar a histria e os trejeitos de Escobar. Alm de Wagner e Padilha, a srie tambm conta com a participao de Andr Mattos e um elenco internacional de atrizes e atores americanos, colombianos e latino-americanos.

O fascnio pela ascenso e trajetria de Escobar como lder do Cartel de Medelln, a maior organizao criminal do mundo entre os anos 80 e 90 estabelecida atravs do comrcio e exportao de cocana produzida em escala industrial para abastecer os Estados Unidos, propiciou uma onda recente de diversas produes televisivas e cinematogrficas.Definida por um "realismo mgico", em aluso ao realismo fantstico de Gabriel Garca Mrquez, "Narcos" mescla um enredo semificcional com diversos fatos e personagens reais do conflito armado colombiano sob o ponto de vista da DEA, a agncia antidrogas americana, e a narrativa de Steve Murphy, agente da DEA em misso na Colmbia, interpretado pelo ator americano Boyd Holbrook.

Sem dvida, "Narcos" convence como trama. Caoa da obsesso anticomunista do governo Reagan e de militares americanos diante do iminente fim da Guerra Fria, d uma dimenso histrico-documental pela insero de materiais telejornalsticos e demonstra como a poltica de guerra s drogas promovida pela ingerncia diplomtica e militar dos Estados Unidos foi nociva e fracassada desde sua origem.

Entretanto, h uma notvel fragilidade da srie no prprio contexto retratado: a relao entre narcotrfico e Estado, no caso o colombiano, resvala por vezes na viso reducionista que resume todo o conflito armado colombiano a uma mera disputa entre corruptos e incorruptveis em meio colaborao e anuncia de polticos, juzes, militares e policiais pelas vias da corrupo ou da violncia narcotraficante sintetizadas no lema escobariano plata o plomo ("prata ou chumbo") e assim oculta um ator-chave do conflito que ofusca e desfaz demarcaes claras entre violncia estatal e violncia paraestatal: o paramilitarismo.

O fenmeno do paramilitarismo colombiano emerge sobre dois marcos importantes: a formao em 1981 do grupo antiguerrilha Muerte A Secuestradores (MAS) por chefes do narcotrfico com o apoio de empresrios, polticos e militares colombianos em resposta ao sequestro pelo Movimento 19 de Abril (M-19) de Martha Ochoa, irm de Fabio, Juan David e Jorge Luis Ochoa, scios de Escobar no Cartel de Medelln, e a proliferao dos grupos intitulados de autodefensa na Colmbia rural como reao de donos de terra, empresrios e comerciantes locais poltica de extorses e sequestros de outras organizaes guerrilheiras como as Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia (FARC), o Exrcito de Libertao Nacional (ELN) e o Exrcito Popular de Libertao (EPL) para financiamento de suas atividades.

Martha foi resgatada aps trs meses de sucessivos sequestros e assassinatos de guerrilheiros do M-19 e seus familiares pelo MAS, o que d a confiana necessria para uma ofensiva ainda mais forte do narcotrfico. Em paralelo, inicia-se a trajetria paramilitar dos irmos Fidel e Carlos Castao. Ambos haviam trabalhado junto ao Cartel de Medelln: Fidel como responsvel pelas operaes na Bolvia e Carlos como sicario (matador). O sequestro e a morte de seu pai, Jesus Castao, pelas FARC, levou deciso comum de se engajarem no enfrentamento s guerrilhas, primeiro como alistados em uma unidade militar e depois na fundao de seu prprio grupo paramilitar, as Autodefensas Campesinas de Crdoba y Urab, na regio norte da Colmbia.

Em retaliao a perdas e danos por aes das FARC em suas terras e laboratrios de processamento, Gonzalo Rodrguez Gacha, outro scio do Cartel de Medelln conhecido como El Mexicano por sua admirao pela cultura mexicana, atribura para si a funo de coordenar aes contrainsurgentes e trouxera mercenrios israelenses para treinar seu exrcito particular e paramilitares. J havia uma colaborao prvia entre a contrainsurgncia narcotraficante e os grupos de "autodefesa", mas foi neste momento que os caminhos se cruzaram de forma definitiva. Tal articulao foi capaz de dizimar o movimento poltico Unin Patritica (UP), apoiado pelas FARC que negociavam sua desmobilizao e integrao poltica institucional com o governo de Belisario Betancur. Milhares de membros da UP foram mortos, entre eles dois candidatos presidenciais, Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa. Em uma noite de novembro de 1988 na pequena cidade de Segovia, governada pela UP, paramilitares mataram 46 pessoas e deixaram outras 60 feridas no que ficou conhecido como o Massacre de Segovia.

Diferentemente da atuao poltica dos narcotraficantes dedicada a influenciar polticos e a opinio pblica colombiana em sua agenda especfica contra a extradio aos Estados Unidos pela qual apelaram a uma retrica de vis anti-imperialista e transpor qualquer obstculo aos seus negcios, viessem de organizaes guerrilheiras ou do Estado, os irmos Castao e outros paramilitares possuam ambies de contornos poltico-ideolgicos mais delineados: combater e eliminar no somente as guerrilhas (que posteriormente se limitariam s FARC e ao ELN), mas qualquer trao de sociedade civil organizada em movimentos sociais, organizaes comunitrias, imprensa, sindicatos e outras formas associativas que consideravam como extenses e camuflagens de atividades guerrilheiras. No por acaso os principais alvos das inmeras execues, violaes e massacres paramilitares foram lideranas comunitrias, padres, sindicalistas, estudantes, professores, jornalistas, ativistas de direitos humanos, entre outros "subversivos" e "indesejados".A proximidade de longa data entre os irmos Castao e Escobar seria rompida em razo de dissidncias e disputas em La Catedral, folclrica e luxuosa priso onde Escobar se manteve em autocustdia em acordo com o governo de Csar Gaviria, e ambos estariam na cpula de Los Pepes (Perseguidos por Pablo Escobar), uma ampla aliana entre paramilitares, Cartel de Cali, dissidentes do Cartel de Medelln e vtimas de Pablo Escobar com o nico e consensual propsito de assassin-lo. Segundo o National Security Archive, documentos secretos desclassificados apontam provveis vnculos e cooperao em inteligncia entre Los Pepes e o Bloque de Bsqueda (unidade especial do exrcito colombiano para a busca e priso de Escobar) com o conhecimento e monitoramento da CIA.

A morte de Escobar e o fim do Cartel de Medelln no representariam uma desarticulao da economia poltica do narcotrfico colombiano. Pelo contrrio, ocasionaria o rearranjo e complexificao de sua estrutura e controle fragmentados entre cartis rivais, guerrilhas e paramilitares, possibilitando financeiramente a expanso poltica, territorial e logstica das autodefensas.

O auge do paramilitarismo viria poucos anos depois durante o governo de lvaro Uribe com a formao em mbito nacional das Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), lideradas por Carlos Castao. O fim dos irmos Castao na liderana do paramilitarismo colombiano merece um captulo parte pela sucesso de histrias estranhas e mal-contadas: apenas dois anos aps o desaparecimento de Fidel em 1994, Carlos vem a pblico afirmar que provavelmente seu irmo morrera em confronto com guerrilheiros. O prprio Carlos que iniciava o pacto de desmobilizao das AUC teria sido assassinado em 2004, tambm dois anos depois o guarda-costas de seu outro irmo Vicente, que coordenava as finanas das AUC, assume a autoria. Vicente, por sua vez, desaparece em 2007 em circunstncias at hoje no esclarecidas.

Apesar do escndalo da parapoltica em 2006 evidenciar estreitas ligaes entre as AUC e rgos do Estado colombiano, a conduo da transio ps-AUC permitiu maioria dos paramilitares (em 2010, o governo colombiano calculava cerca de 31 mil paramilitares desmobilizados) gozarem de ampla impunidade em termos de justia de transio: receberam anistia, tiveram regularizadas terras e posses ilegalmente tomadas de comunidades camponesas, pequenos proprietrios e agricultores desterrados e nenhuma responsabilizao por inmeras violaes cometidas. A deciso de extraditar de 14 lderes paramilitares aos Estados Unidos tambm foi controversa, j que pela jurisdio americana apenas consta o crime de narcotrfico, o que impede o direito das vtimas colombianas devida reparao e verdade. O processo de desmobilizao teve ainda outro efeito colateral: a disperso do paramilitarismo em diversas bandas criminales que seguem exercendo controle do narcotrfico em mbito local.

Hoje, em meio a idas e vindas no processo de paz do Estado colombiano com as FARC, o narcotrfico permanece atravessado pelo paramilitarismo que deixou suas marcas na vida social e poltica colombiana no como uma espcie de meio-de-campo entre cartis, elites e Estado, mas sim como uma criatura que se autonomizou de seus criadores e incentivadores e levantou voo solo no sentido de cumprir o "trabalho sujo" recebido das entranhas subterrneas do Estado, mas executado por fora dele, exercendo o monoplio ilegtimo da violncia em territrios de exceo.

Se uma esperada segunda temporada da srie ainda no oficialmente confirmada pretende abordar ao lado dos narcos a importncia decisiva dos paras no conflito armado colombiano durante e depois da hegemonia do Cartel do Medelln, ainda que com doses de seu "realismo mgico", no h como saber. Mas esquec-los seria uma lacuna to grande crtica sobre os desdobramentos da guerra s drogas na Colmbia quanto evitar tratar do surgimento das milcias no Rio de Janeiro, como corajosamente fez Padilha ao dar um rumo autocrtico e desconstrutivo para Nascimento no segundo filme de "Tropa de Elite".