NARRATIVA: IMAGEM NÃO- HABITÁVEL E O ROMANCE · 2017. 3. 21. · 4318 NARRATIVA: IMAGEM NÃO-...

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4318 NARRATIVA: IMAGEM NÃO- HABITÁVEL E O ROMANCE Regina de Paula - UERJ Resumo A partir das reflexões de Walter Benjamim acerca da narrativa, são estabelecidos os pontos de aproximação entre o romance e as imagens da série Não-habitável, desenvolvida pela autora. Para tanto, são também abordadas obras de Lygia Clark, Virginia Woolf e Aleksandr Ródchenko. Palavras-chave: arte contemporânea, fotografia, narrativa, romance, subjetividade. Abstract Based on Walter Benjamin’s work about the narrative, the article elaborates on the points of contact between the novel and the images comprised in the series entitled Não-habitável [Non-habitable], developed by author of this text. To accomplish this goal, works by Lygia Clark, Virginia Woolf and Alexander Rodchenko are also addressed. Key words: contemporary art, picture, narrative, novel, subjectivity. Até final do século XIX, a imagem cumpria uma função narrativa, registrando, por exemplo, a vida de um morto, no Antigo Egito; passagens bíblicas, a partir da era cristã; e, no Renascimento, histórias seculares e religiosas. A arte moderna, como sabemos, abandonou este modelo de representação rompendo com seu caráter nar- rativo, isto é, concentrou-se na procura de uma linguagem autônoma, processo do qual a fotografia participou. Posteriormente, conforme apontado por Arthur Danto, o expressionismo abstrato esgotou-se “por falta de insumo externo”, tendo a geração seguinte, em especial os artistas pop, buscado recolocar a arte em contato com a realidade e a vida. 1 Foi então que, por volta da década de 1960, a narrativa voltou a ser incorporada ao âmbito da arte, em todas as categorias (pintura, escultura, dese- nho, instalação, fotografia etc.). Neste contexto, a fotografia tem apresentado ampla diversidade de narrativas pessoais, ficcionais, com realidade manipulada, com in- clusão de texto etc.

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NARRATIVA: IMAGEM NÃO- HABITÁVEL E O ROMANCE

Regina de Paula - UERJ

Resumo A partir das reflexões de Walter Benjamim acerca da narrativa, são estabelecidos os pontos de aproximação entre o romance e as imagens da série Não-habitável, desenvolvida pela autora. Para tanto, são também abordadas obras de Lygia Clark, Virginia Woolf e Aleksandr Ródchenko. Palavras-chave: arte contemporânea, fotografia, narrativa, romance, subjetividade. Abstract Based on Walter Benjamin’s work about the narrative, the article elaborates on the points of contact between the novel and the images comprised in the series entitled Não-habitável [Non-habitable], developed by author of this text. To accomplish this goal, works by Lygia Clark, Virginia Woolf and Alexander Rodchenko are also addressed. Key words: contemporary art, picture, narrative, novel, subjectivity.

Até final do século XIX, a imagem cumpria uma função narrativa, registrando, por

exemplo, a vida de um morto, no Antigo Egito; passagens bíblicas, a partir da era

cristã; e, no Renascimento, histórias seculares e religiosas. A arte moderna, como

sabemos, abandonou este modelo de representação rompendo com seu caráter nar-

rativo, isto é, concentrou-se na procura de uma linguagem autônoma, processo do

qual a fotografia participou. Posteriormente, conforme apontado por Arthur Danto, o

expressionismo abstrato esgotou-se “por falta de insumo externo”, tendo a geração

seguinte, em especial os artistas pop, buscado recolocar a arte em contato com a

realidade e a vida.1 Foi então que, por volta da década de 1960, a narrativa voltou a

ser incorporada ao âmbito da arte, em todas as categorias (pintura, escultura, dese-

nho, instalação, fotografia etc.). Neste contexto, a fotografia tem apresentado ampla

diversidade de narrativas – pessoais, ficcionais, com realidade manipulada, com in-

clusão de texto etc.

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Sem título, da série Não-habitável (NY), 1999 fotografia 101 x 153cm

Sem título, da série Não-habitável (NY), 1999 fotografia 152 x 101cm

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Em 1999, dei início ao desenvolvimento de uma série que denominei Não-habitável,

composta por imagens fotográficas de espaços de passagem, mais especificamente

corredores e escadas capturados em momentos de inatividade, ou seja, na condição

de espaços desocupados, vazios. Na realização da série, o emprego de ângulos ób-

vios de captação do espaço em muitas das imagens subtrai uma dose importante de

seu aspecto autoral. Este esmaecimento da personalidade do olhar que captura a

cena enfatiza a presença de uma subjetividade marcada pela vontade de comunica-

ção e, portanto, funciona como um reforço àquilo que é da natureza mesma da ima-

gem: o convite para que o espectador experiencie „algo‟.

Sem título, da série Não-habitável (Brest), 2005 fotografia 150 x 100cm (cada)

Nesse artigo, sirvo-me do ensaio de Walter Benjamin, “O Narrador”,2 de 1936, que

aborda as transformações da transmissão por meio da palavra, oral e escrita, a fim

de elucidar as questões que permeiam a experiência narrativa da série Não-

habitável e, com isso, pontuar a afinidade entre o romance, tal como descrito por

Benjamin, e as imagens em questão.

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Walter Benjamin define três formas de comunicação: a narrativa clássica, o romance

e a informação. A primeira destas é a narrativa de fundação, ou seja, a narrativa mí-

tica que consubstancia um dizer coletivo dotado de caráter de exemplaridade e, por-

tanto, relacionado à faculdade de transmitir experiências. Neste quadro, as melhores

narrativas são aquelas que mais se assemelham às histórias orais. Subsequente-

mente, por volta de 1440, a invenção da imprensa impulsionou a forma de comuni-

cação emblemática da era moderna: o romance. Neste, diferentemente do dizer co-

letivo e modelar da narrativa mítica, o sentido de uma vida é descrito por um escritor

solitário, e sua fruição também ocorre no plano individual. Em outras palavras, o ar-

tista volta seu foco para – e se comunica com – o sujeito; ou então ainda, toca mais

a questão do indivíduo enquanto tal. Finalmente, “com a consolidação da burguesia

[...] destacou-se uma forma de comunicação [...] tão estranha à narrativa [clássica]

como [fora] o romance”;3 imediata e midiática, para todos e para ninguém: a informa-

ção. Como sabemos, tais modalidades comunicacionais correspondem a transfor-

mações no âmbito da experiência humana.

Seguindo Benjamin, enquanto na narrativa clássica a experiência era compartilhada,

podendo até mesmo constituir uma „prescrição de vida‟, no romance não há mais

uma ligação coletiva, o sujeito é segregado, o sentido da vida é o do personagem.

Ainda que o Não-habitável seja uma série de imagens e o romance esteja “essenci-

almente vinculado ao livro”,4 um primeiro ponto de afinidade entre ambos reside no

fato de que a comunicação, nos dois casos, ocorre entre individualidades isoladas.

Assim, tal qual o que se passa entre um leitor e um texto, no caso da série Não-

habitável, a relação apreciador/obra estabelece uma narrativa particular.

Desde sua concepção original, o Não-habitável constitui uma série. Entretanto, suas

imagens são autônomas e sua narrativa não é una, tampouco é explicativa, totali-

zante ou consumada. Ao contrário, o que está em jogo é dado pelos fluxos psicoló-

gicos do observador em frente de cada imagem. Neste plano reside o segundo pon-

to de afinidade entre a série Não-habitável e o romance: a fruição da imagem que,

assim como a do texto do romance, remete o „leitor‟ a fabricar uma narrativa que en-

reda a sua subjetividade, no sentido de provocar uma vivência interior.

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O romance, A Casa é o Corpo, de Lygia Clark, e as imagens do Não-habitável

A experiência do romance encontra equivalência em trabalhos de muitos artistas.

Neste sentido, podemos considerar que a narrativa de Lygia Clark, por exemplo, es-

teja próxima à do romance, na medida em que a característica fundante deste, tal

como descrito por Benjamin, é o indivíduo isolado, que se dirige a um leitor solitário.

Do conjunto dos trabalhos de Clark, examinemos mais de perto A Casa é o Corpo:

Labirinto, obra que, segundo Maria Alice Milliet, é “para ser penetrada pelo visitante

como „abrigo poético‟”.

Passando por compartimentos chamados “penetração”, “ovulação”, “germi-nação” e “expulsão”, o indivíduo é levado a experienciar sensações táteis, de perda de equilíbrio, de deformação, resgatando a vivência intra-uterina. Nessa proposição, o espaço é continente. Constitui cenário estimulante ob-tido pelo uso de materiais transparentes, iluminação, elásticos, balões, fios de texturas diversas, espelhos, oferecendo condições para revivências psi-cossensoriais.

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Numa dialética entre „o dentro‟ e „o fora‟, a vivência interior propiciada pela obra é

atravessada por uma experiência individual, atualizada a cada espectador. Voltemos

então para Benjamin, para quem:

Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descri-ção dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive.

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A percepção do corpo em A Casa é o Corpo é uma experiência reveladora do estar-

no-mundo. Neste sentido, a obra se oferece como uma via não racional de experi-

mentar a perplexidade da existência; ou seja, trata-se de um trabalho que, ao negar

a autonomia da arte, leva à fusão arte-vida. “Com efeito, „o sentido da vida‟ é o cen-

tro em torno do qual se movimenta o romance”,7 escreve Benjamin, acrescentando

que o romance tem um limite, o “fim”, que “convida o leitor a refletir sobre o sentido

de uma vida”.8 O trabalho de Lygia Clark em questão é, apenas sob certo prisma,

conclusivo.

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Lygia Clark A Casa é o Corpo: Labirinto, 1968

De acordo com Milliet, "[a] organização espacial é preestabelecida e a participação

em larga medida previsível, significando a manutenção de razoável controle do artis-

ta sobre a obra-ambiente”.9 Apesar de seu caráter fenomenal, A Casa é o Corpo

constitui uma narrativa, e, mais do que isso, conforme salientado por Milliet, uma

narrativa de certo modo controlada, visto que o indivíduo necessariamente passará

por etapas previamente estabelecidas pela artista que serão finalizadas na “expul-

são”. Contudo, tal sintaxe de fases fixas e controladas não necessariamente produz

uma conclusão cabal. Diferentemente disso, a obra conduz a uma conclusão ambi-

valente, no sentido de, a um só tempo, convocar o “sentido da vida” e abrir possibili-

dades – „expulsar‟ – para novas vivências. Assim, A Casa é o Corpo se distancia do

romance de formação – aquele que se esgota, que tem um “fim” –, mas, por tratar-

se de um fechar e abrir, se aproxima de tantos romances modernos, possibilitando

diversas interpretações.

De todo modo, cabe reiterar que nesta obra de Lygia Clark não há fechamento da

arte sobre si mesma, o que significa dizer que não há alheamento do „estar no mun-

do‟. Ao contrário disso, o que há é conexão com a condição de „estar no ser‟, isto é,

com a vida. Com isso, e por isso, A Casa é o Corpo deslinda um desejo de comun-

gar e conjugar vivências que ultrapassa a comunicação individualizada artis-

ta/espectador.

O Não-habitável partilha desse desejo de comunicação, de participação do especta-

dor na narrativa. Se, contudo, no trabalho de Lygia existem etapas pré-definidas e

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uma experiência dada por “um espaço articulado pelo dinamismo da ação”,10 no

Não-habitável o espaço é dado de uma só vez, não há sugestão de percurso, e nada

é consumado. No tocante à narrativa, há, entre os dois trabalhos, pontos de aproxi-

mação e pontos de distanciamento. O que os aproxima é que, em ambos, a narrati-

va é subjetiva, isto é, ela é operada pela subjetividade do espectador; o que os dife-

rencia é a instância da subjetividade do sujeito que é incitada para tal narrativa, con-

forme desenvolvido mais adiante.

A ‘volta para si’ no romance e no Não-habitável

Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, publicado pela primeira vez em 1925, é um marco

do romance moderno. Com uma narrativa sem linearidade e fluindo entre o sonho e

a realidade, entre o passado e o presente, seu texto retrata a burguesia de Londres

e sua realidade oculta, através da confrontação de sanidade e insanidade, vistas em

conjunto, e da feitura de um retrato psíquico de seus dois personagens principais,

cujas vidas correm paralelamente. Primeiramente, Clarissa Dalloway, a personagem

título do livro, a perfeita dona de casa que prepara uma festa relembrando momen-

tos de sua vida. “Mrs. Dalloway; nem mais Clarissa: Mrs. Dalloway somente”:11

[...] nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura [...] tudo vaci-lava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor pró-prio! e aquele ódio!

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“No final da guerra”, escreve Benjamin, “os combatentes voltavam mudos do campo

de batalha não mais ricos, e sim mais pobres de experiência comunicável”.13 Em

Mrs. Dalloway, a Londres do Pós-Primeira Guerra Mundial encarna o modelo de ci-

dade habitada por subjetividades abafadas, que não conseguem se emancipar

Um outro personagem decisivo nessa narrativa de Woolf é Septimus Warren Smith.

Sua esposa, a infeliz Rezia, pensando nele, um alienado, um neurótico de guerra

“recém chegado da vida para a morte”,14 revolve-se, num diálogo interior:

Não podia ficar sentada junto a Septimus quando ele olhava daquela manei-ra, e não a via, e tudo parecia terrível [...]. Mas não, Septimus não se mata-ria; e ela não podia falar com ninguém. [...] O amor torna a gente solitária, pensou. Não podia dizê-lo, a ninguém, nem mesmo a Septimus, agora, e, olhando para trás, viu-o sentado sozinho no banco, com seu sobretudo puí-do, curvado, os olhos fixos. E era uma covardia dizer que ia matar-se; mas Septimus havia lutado; fora um bravo; não era o mesmo Septimus agora.

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A estratégia narrativa de Woolf faz justamente deste abafamento o centro de ação

do romance. E o faz pela justaposição dos personagens de Clarissa e Septimus, in-

divíduos que nunca se encontraram em vida, mas cujas vidas se entrelaçam na mor-

te. Isto se dá com a notícia do suicídio de Septimus, que chega para arruinar a festa

organizada por Clarissa e para adensar seus pensamentos. O „de fora‟ não atua a

não ser pela pauta da elegância – ou, o que é a mesma coisa, pela domesticação,

pelo comedimento abafador do self. O que conta e interessa é a vida interior dos

indivíduos. É, portanto, no terreno da subjetividade e de seus percalços que importa

estabelecer a vontade de comunicação do romance.

No Não-habitável, a vontade de comunicação se vale de imagens de espaços que

se relacionam com o homem por sua escala e por uma espacialidade igualmente

estabelecida a partir do corpo humano. A máquina fotográfica é posicionada à altura

dos olhos, para permitir esta isonomia de escala de medida e de percepção. Neste

aspecto, as imagens estão em diálogo com a visão renascentista. Contudo, uma di-

ferença se interpõe: o convite encetado no Não-habitável não diz respeito à experi-

ência com a cena transcendente, mas, ao contrário, é um convite para um estar-no-

mundo.

Sem título, da série Não-habitável (SSCC), 2005 fotografia 105 x 157cm

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Sem título, da série Não-habitável (NY), 2001 fotografia 190 x 125cm

Mas em que consiste o convite lançado pelas imagens do Não-habitável? Substanti-

vamente, a série congela em imagens um conjunto de lugares empíricos não habitá-

veis e convida o espectador a habitá-los.

Neste ponto, é imperativo levantar outra questão, qual seja: como é possível habitar

um Não-habitável? De acordo com Martin Heidegger, “o vigor essencial do habitar”

está em “permanecer”, está no “demorar-se dos mortais sobre esta terra”.16 Seguin-

do a trilha heideggeriana, o Não-habitável parte de uma vivência em determinados

lugares que, capturados fotograficamente, oferecem um „de-morar-se‟ que dá mar-

gem a uma nova experiência do habitar. Mais precisamente, a série Não-habitável

lança mão da imagem para a ativação do freqüentar, do “demorar-se”, num espaço

não físico, fora da imagem, exterior ao corte fotográfico, um “espaço off”.17

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Este “demorar-se” constitui uma segunda afinidade entre a série Não-habitável e o

romance: ambos são produtores de uma experiência interior suscitada num contexto

urbano. Entretanto, esta experiência tem modulação diferente em cada um dos ca-

sos. O romance de Virginia Woolf, tomado aqui como emblemático do gênero, induz

à travessia que parte dos monólogos interiores da personagem para os fluxos de

pensamento consciente do leitor, enquanto as fotos do Não-habitável incitam o sujei-

to ao atravessamento de seus pensamentos, e, com isso, à travessura de “demorar-

se” no “espaço off”, entendido aqui como espaço psíquico.

De acordo com Freud, a apreensão do espaço é subjetiva, e determinada pela reali-

dade psíquica.18 E mais: se aparelhos como a câmera fotográfica são construídos de

acordo com os órgãos do sentido,19 a fotografia não pode ser a realidade em si

mesma. Diferente da realidade em si mesma, a fotografia enseja uma projeção do

aparelho psíquico, e, deste modo, revela o que a percepção não reconhece.

O que parece implicado neste jogo projetivo está próximo do que Freud denominou

unheimlich, ao citar Schelling, para quem unheimlich é tudo que deveria ter perma-

necido secreto e oculto, mas veio à luz”20 e “que somente se alienou desta através

do processo de repressão”.21 Tal acepção encontra ecos em outros campos. Por e-

xemplo, de acordo com Anthony Vidler, as escavações de Pompéia desvendaram

um “lado obscuro” do classicismo “revelando o que deveria ter permanecido invisí-

vel”. Neste sentido, Vidler identifica uma „perturbação‟ do que era conhecido e orga-

nizado, pois que as “pinturas e [os] artefatos religiosos desta cidade de fundação

grega estavam longe das formas neoplatônicas da imaginação clássica”.22 Ao mes-

mo tempo, os argumentos arqueológicos de Vidler apontam para um re-

conhecimento, com o que os ecos mencionados se estreitam, uma vez que, seguin-

do o pensamento freudiano, o distúrbio próprio do unheimlich não advém de alguma

coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamen-

te familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços.

O espaço a ser frequentado no Não-habitável constitui uma inversão do espaço

perspéctico construído matematicamente. Neste, de acordo com Erwin Panofsky, “a

impressão visual subjetiva foi racionalizada” e, dotado do estatuto de “fundamento

para a construção de um mundo empírico”, tal tipo de espaço realiza “a passagem

do espaço psicofisiológico ao espaço matemático: em outras palavras, uma objetiva-

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ção da subjetividade”.23 O estatuto de não-habitável das imagens da série em pauta

não constitui uma propriedade, mas, sim, uma potencialidade do espaço – uma po-

tencialidade que é tornada visível por meio das fotografias. Estas realizam um pro-

cesso inverso ao descrito por Panofsky: subjetivam a objetividade.

A ‘volta para si’ e a experiência do sublime

Sendo a fotografia o meio em questão, é interessante contrastar imagens tematica-

mente análogas de Aleksandr Ródchenko e as do Não-habitável. Em ambos os ca-

sos, a apreensão das obras permite uma facilidade perceptiva: em Ródchenko, pela

construção que resulta numa realidade abstrata, e no Não-habitável, pela espaciali-

dade perspéctica dada pela câmera. As fotografias de Ródchenko possuem um ape-

lo racional, dado por enquadramento, contraste e cortes, que fazem da imagem uma

realidade construída, ou seja, uma composição. No Não-habitável, o espaço, captu-

rado com um enquadramento de certo modo fortuito e sem cortes na ampliação, leva

em consideração cada significante da imagem. Assim, enquanto os corredores do

Não-habitável colocam o sujeito em equivalência com o espaço, nas fotos de Ród-

chenko da Estação Briansk (1927), por exemplo, o espaço é capturado de cima. Já

na clássica imagem dos Degraus (1929), o contraste acentuado e a composição di-

agonal eliminam a profundidade de campo, fazendo com que o olhar rompa com a

linha do horizonte e assuma uma ênfase da superfície própria do espaço da pintura

moderna.

Aleksandr Ródchenko Degraus, 1929 fotografia 39 x 56cm

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Aleksandr Ródchenko Estação Briansk, 1927

No Não-habitável, a perspectiva da câmera relaciona-se com a da arquitetura, de

modo a criar, portanto, uma correspondência com o olhar do espectador, e atraí-lo

para o interior do espaço, colocando-o no plano da experiência. Ao transformar a

realidade em geometria (prática recorrente do construtivismo), Rodchenko cria uma

realidade plástica autônoma que exclui a questão da narrativa, enquanto o Não-

habitável, ao assumir, conforme já colocado, o conteúdo fortuito da imagem, leva a

uma realidade psíquica repleta de possíveis narrativas. Se em Rodchenko há uma

relação com o belo (segundo Kant, tal poética vincula-se ao objeto, à forma),24 no

Não-habitável há uma proximidade com o sublime, na medida em que suas imagens

estabelecem uma determinada relação entre o entendimento e a imaginação. Tal

relação está vinculada a um movimento inquietante da alma, a uma angústia do es-

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pírito, pois que sentimentos simultâneos e contrastantes vêm à tona; por exemplo, o

prazer que se dá pelo desprazer.25

No Não-habitável, a ênfase no sujeito mental – e, consequentemente, na sua sub-

missão a uma realidade psicológica – é o que determina o „assustador‟ e o „intran-

quilizante‟, próprios do sublime.26 Assim, considerando que o Não-habitável e o ro-

mance tenham em comum o fato de trabalharem com individualidades e o fato de as

lançarem para uma atividade mental, psicológica, o Não-habitável tem a particulari-

dade de incitar à „volta para si‟ pela via do sublime

1 DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus

Editora, 2006, p.114. 2 BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e

política. Obras escolhidas, p.197-221. 3 Ibid, p.202.

4 Ibid., p.201

5 MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark: Obra-trajeto. Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

p.111-114. 6 BENJAMIN, Walter, op.cit., p.201.

7 Ibid, p.212.

8 Ibid, p.213.

9 MILLIET, Maria Alice, op. cit., p.114.

10 MILLIET, Maria Alice. Ibid, p.130.

11 WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.14.

12 Ibid, p.15-16.

13 BENJAMIN, Walter, op.cit., p.198.

14 WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway , op. cit., p.28.

15 Ibid,

p.25.

16 HEIDEGGER, Martin, ”Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e conferências / Martin Heidegger, Petrópolis,

RJ: Vozes, 2001, p.128-129. 17

Sobre a noção de “espaço off” ler: “O golpe do corte”. In: DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1994. 18

“O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, de nosso aparelho psíquico. A psique é estendida; nada sabe a respei-to”. FREUD, Sigmund. “Achados, Idéias e Problemas” (1941 [1938]). In: op. cit., v.XXIII, 1969-1980, p. 336. 19

Idem. “Uma nota sobre o „bloco mágico‟” (1924). In: op.cit., v.XIX, 1996, p.255. 20

FREUD, Sigmund. “O „Estranho‟” (1919). In: op. cit., v.XVII, p.282. 21

Ibid, p. 301. 22

“The paintings, sculptures, and religious artifacts in this city of Greek foundation were far from the Neoplatonic forms of neoclassical imagination. [...] Archaeology, by revealing what should have remained invisible, had irre-deemably confirmed the existence of a „dark side‟ of classicism, thus betraying not only the high sublime but a slowly and carefully constructed world of modern mythology”. VIDLER, Anthony. The architectural uncanny: es-says in the modern unhomely. Cambridge, Massachussetts / London, England: The MIT Press, 1999, p. 48. 23

PANOFSKY, Erwin. “A Perspectiva como forma simbólica”. In: ARGAN, Giulio Carlo, História da arte italiana: De Giotto a Leonardo, vol.2. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 125. 24

“O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação [...]. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, p.90. 25

“[...] a complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito mais admiração ou respeito, isto é, merece ser chamada de prazer negativo. KANT, Immanuel, loc. cit. 26

“[...] enquanto o belo lida direta e afirmativamente com o prazeroso, o sublime lida também com o assustador, com o intranquilizante”. LYRA, Edgard. Estética Moderna (Kant CFJ) – Rascunhos de aula/3, não paginado.

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REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. PANOFSKY, Erwin. “A Perspectiva como forma simbólica”. In: História

da arte italiana: De Giotto a Leonardo, vol.2. Trad. Wilma De Kantinsky. São Paulo: Casac & Naify, 2003.

BENJAMIN, Walter.”O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras

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Page 15: NARRATIVA: IMAGEM NÃO- HABITÁVEL E O ROMANCE · 2017. 3. 21. · 4318 NARRATIVA: IMAGEM NÃO- HABITÁVEL E O ROMANCE Regina de Paula - UERJ Resumo A partir das reflexões de Walter

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Regina de Paula Artista, professora adjunta do Instituto de Artes da UERJ, doutora em Artes Visuais pela EBA/UFRJ. Foi artista residente do Centro d‟Art Passerelle, em Brest, França. Participou de diversas coletivas em instituições como: SESC Pinheiros (SP), Caixa Cultural (RJ), Art in General e Bronx Museum of the Arts (NY) etc. Realizou sua última individual nas Cavalari-ças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ / 2009).