Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

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1 NAS ENTRELINHAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER 1 IN DOMESTIC VIOLENCE AGAINST WOMEN LINES RESUMO: O presente estudo resulta da análise dos episódios de violência doméstica vivenciados por ex-assistidas da Casa-Abrigo Professora Núbia Marques no Estado de Sergipe, instituição que atende mulheres em situação de violência doméstica e que estão sob ameaça de morte. A Casa-Abrigo está vinculada à Prefeitura Municipal de Aracaju, enquadrada na Proteção Social Especial de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social, direcionada para casos em que há rompimento de vínculos afetivos, risco social e/ou pessoal. Com o objetivo de publicar as entrelinhas da violência doméstica é que foi proposto o referido trabalho, no sentido de analisar a subjetividade e identidade que permeiam as mulheres que foram atendidas pela instituição. PALAVRAS-CHAVE: Violência, Mulheres, Casa-Abrigo. ABSTRACT: The present study results from the analysis of episodes of domestic violence experienced by former assisted the Shelter Home Professor Nubia Marques in the state of Sergipe, an institution that serves women in domestic violence situations and are under threat of death. The Shelter Home is linked to the City of Aracaju, framed in the Special Social Protection of high complexity of the Unified Social Assistance, directed to cases where there is disruption of affective bonds, social risk and / or personnel. In order to publish the lines of domestic violence is that such work has been proposed in order to analyze the subjectivity and identity that permeate women who were served by the institution. KEYWORDS: Violence, Women, Shelter Home. 1 Este texto compõe, parcialmente, a produção do Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe 2010.2 (O Sistema de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica da Casa-Abrigo Professora Núbia Marques), através de Estágio Curricular Obrigatório (2009 a 2010), na Casa Abrigo Professora Núbia.

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Page 1: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

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NAS ENTRELINHAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER1

IN DOMESTIC VIOLENCE AGAINST WOMEN LINES

RESUMO: O presente estudo resulta da análise dos episódios de violência doméstica

vivenciados por ex-assistidas da Casa-Abrigo Professora Núbia Marques no Estado de

Sergipe, instituição que atende mulheres em situação de violência doméstica e que estão

sob ameaça de morte. A Casa-Abrigo está vinculada à Prefeitura Municipal de Aracaju,

enquadrada na Proteção Social Especial de Alta Complexidade do Sistema Único de

Assistência Social, direcionada para casos em que há rompimento de vínculos afetivos,

risco social e/ou pessoal. Com o objetivo de publicar as entrelinhas da violência doméstica

é que foi proposto o referido trabalho, no sentido de analisar a subjetividade e identidade

que permeiam as mulheres que foram atendidas pela instituição.

PALAVRAS-CHAVE: Violência, Mulheres, Casa-Abrigo.

ABSTRACT: The present study results from the analysis of episodes of domestic violence

experienced by former assisted the Shelter Home Professor Nubia Marques in the state of

Sergipe, an institution that serves women in domestic violence situations and are under

threat of death. The Shelter Home is linked to the City of Aracaju, framed in the Special

Social Protection of high complexity of the Unified Social Assistance, directed to cases

where there is disruption of affective bonds, social risk and / or personnel. In order to

publish the lines of domestic violence is that such work has been proposed in order to

analyze the subjectivity and identity that permeate women who were served by the

institution.

KEYWORDS: Violence, Women, Shelter Home.

1 Este texto compõe, parcialmente, a produção do Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social pela

Universidade Federal de Sergipe 2010.2 (O Sistema de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica

da Casa-Abrigo Professora Núbia Marques), através de Estágio Curricular Obrigatório (2009 a 2010), na

Casa Abrigo Professora Núbia.

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INTRODUÇÃO

A violência doméstica contra a mulher tem tomado proporções cada vez maiores na

atual conjuntura, fato que fomenta a reflexão sobre esse fenômeno, não só como uma

violação dos direitos humanos, mas também como um evento que está arraigado nos

resquícios de uma cultura machista, na qual a mulher é vista como submissa, frágil e sem

direito à decisão.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) a violência2 é definida como o uso

intencional da força física ou do poder, real ou ameaça, contra si próprio ou contra outra

pessoa, grupo ou comunidade, que resulte ou possibilite resultar em lesão, morte, dano

psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Apesar de inúmeras conquistas no campo do direito feminino, é recorrente em

noticiários e no próprio cotidiano, matérias que trazem em seu bojo a violência doméstica

contra a mulher, tornando algo que era “em quatro paredes” para o conhecimento geral, ou

seja, do âmbito privado para o público.

Em torno da violência doméstica há uma série de fatos que ocorrem no

relacionamento, mais conhecido como ciclos, que são constituídos por 3 fases: a

tensão/explosão- na qual ocorre os xingamentos e as agressões físicas, o arrependimento-

na qual o agressor pede desculpas e jura que nunca mais praticará o ato de violência e a

lua-de-mel- em que a vítima aceita as desculpas e possíveis presentes do agressor,

acreditando que as agressões psicológicas e físicas não acontecerão mais e que o mesmo

mudou diante de tanta gentileza3.

Diante dos ciclos de violência, de forma velada inúmeras mulheres ainda suportam

várias formas de violência, não só a mais visível, que é a física, mas também a psicológica,

a patrimonial, a sexual e a moral, todas classificadas pela Lei 11.340/20064.

De acordo com Minayo (2005), a violência é um fenômeno bastante complexo,

tendo em vista que para mensurar a causalidade e a problemática é demasiado controverso

porque envolvem a análise de valores e práticas culturais, como também fatores sócio-

históricos, econômicos e subjetivos.

Nesse sentido é pertinente dizer que a violência doméstica está ligada a questão de

gênero, aplicada pelo fato de ser mulher, em que as relações entre o homem e a mulher

2 Krug e col., 2002; Dahlberg e Krug, 2006.

3PROTEÇÃO AS MULHERES, Violência Doméstica contra a mulher. De 01 novembro de 2011.

Disponível em http://mulheresprotegidas.blogspot.com.br/2011/11/violencia-domestica-contra-mulher.html.

Acesso em 27 abril de 2015. 4 Mais conhecida como Lei Maria da Penha, esta em homenagem a biofarmacêutica Maria da Penha Maia

Fernandes, que lutou para que seu agressor fosse condenado após tentativas de assassiná-la.

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estão baseadas em quem manda e quem obedece, havendo nesse contexto uma correlação

de forças, em contraste um sentimento de amor-ódio entre pessoas com laços consaguíneos

ou afetivos.

Segundo Rocha,

Distingue-se, entre formas de violência doméstica, a violência conjugal.

Enquanto expressão da violência de gênero, as mulheres são a quase

totalidade das vítimas dessa forma de violência, caracterizada por

relações de dominação e de abuso de poder do cônjuge do sexo

masculino sobre o cônjuge do sexo feminino. A origem dessa violência

encontra-se na organização social de gênero, alicerçada na superioridade

masculina, em relações de desigualdade e hierarquia que se expressam,

no plano individual, na vivência cotidiana dos papéis sociais sexuados em

proveito dos homens5.

Desse modo, vale destacar que a violência doméstica não está tão longe de nós, ela

faz parte do convívio de várias famílias, e não está restrita às camadas populares com

menor poder aquisitivo, já que sua prática independe de classe social e raça.

Diante dos recorrentes casos de violência doméstica, pode-se afirmar que constitui

um problema de saúde pública e econômico6, onerando os cofres públicos, tendo em vista

que são acionados diversos serviços para dar suporte à mulher vítima como: Unidades

Básicas de Saúde e Hospitais, assim como requerimento de dispensa do trabalho para

recuperação, acionamento da delegacia, da Casa-Abrigo e da Justiça com processo para

execução das medidas protetivas de urgências7 e demais procedimentos.

Nessa linha de reflexão, é pertinente dizer que vários ganhos foram alcançados para

acolher a mulher em situação de violência, desde a promulgação da Constituição Federal

do Brasil de 1988 retratando em seu § 8º do artigo 226 mecanismos para coibir e prevenir a

violência doméstica e familiar, a criação da Política de Gênero no Brasil com o I Plano

Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, encabeçando outros aparatos como: o

Programa Mulher, Viver sem Violência8, Disque 180, a Lei Maria da Penha e mais

recentemente a Lei 8.305/20149.

5 ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. Casas-Abrigo no Brasil: no enfrentamento da violência de

gênero. São Paulo: Veras Editora, 2007. p.49. 6 Segundo DAHLBERG (2006), o custo da violência para o mundo se traduz em bilhões de dólares de

despesas anuais com cuidados de saúde. 7 São medidas cautelares que constam no Art. 22 de Lei 11.340/2006, voltadas para impor limitações ao

acusado em detrimento da ofendida. 8 Programa lançado em 13 de março de 2013, que consiste em integrar e ampliar os serviços públicos

existentes voltados às mulheres em situação de violência, mediante a articulação dos atendimentos

especializados no âmbito da saúde, da justiça, da segurança pública, da rede socioassistencial e da promoção

da autonomia financeira. 9 Altera o Código Penal Brasileiro na classificação de crime hediondo o assassinato motivado por razões de

gênero, menosprezo ou discriminação contra a mulher.

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Já no campo estrutural através da rede de atendimento, com implementação de

serviços especializados, como: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher

(DEAM‟s), Centros de Referências Especializados (com assistência social, psicológica e

jurídica), Casas-Abrigo, Defensorias Públicas, Varas Especiais. Destaca-se que os

primeiros direitos no campo de gênero foram conquistados paulatinamente, tendo início

com o movimento feminista na década de 1980.

Segundo Rocha (2007), os movimentos feministas explicitaram lacunas e omissões

das políticas com relação aos direitos humanos que não eram efetivados para as mulheres.

Foram solicitadas na década da redemocratização brasileira, nos meados de 1980, algumas

medidas que incluía a alteração do Código Penal, a criação de Conselhos Estaduais da

Condição Feminina, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, de Delegacias

Especializadas de Defesa da Mulher, de Centros de Atendimento Integral de abrigos para

as mulheres em situação de violência doméstica e de serviços específicos no Instituto

Médico Legal.

Como conquista do movimento em defesa dos direitos das mulheres, foi implantada

como rede de proteção a mulher em situação de violência e sob grave ameaça e risco de

morte, a primeira Casa-Abrigo no Brasil10

.

As Casas-Abrigos constituem locais seguros para o atendimento às

mulheres em situação de risco de vida iminente, em razão da violência

doméstica. Trata-se de um serviço de caráter sigiloso e temporário, onde

as usuárias poderão permanecer por um período determinado, após o qual

deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas.

(BRASIL, p. 55).

Para o atendimento de mulheres em situação de violência de Aracaju, existe a Casa-

Abrigo Professora Núbia Marques11

, com ações articuladas entre o Conselho Municipal

dos Direitos da Mulher e a Secretaria Municipal da Família e da Assistência Social12

,

enquadrada no Sistema Único de Assistência Social e na Tipificação dos Serviços

Socioassistenciais como um Serviço da Proteção Social Especial da Alta Complexidade,

direcionado para casos em que há rompimento de vínculos afetivos, risco social e/ou

10

Em São Paulo no ano de 1986 (Centro de Convivência para Mulheres)-Convida 11

Professora Núbia Marques foi poeta, ficcionista, membro da Academia Sergipana de Letras e Professora

do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe. Nasceu na cidade de Aracaju em

21.12.1927 e faleceu em 26.08.1999. Atuava nos estudos de comunidades, de mulheres trabalhadoras e da

igualdade de gênero. Foi exemplo de força através da realização de denúncias e organização de movimentos

pela Anistia em Sergipe na época da Ditadura Militar. 12

Mais informações sobre a Casa-Abrigo Professora Núbia Marques, no Trabalho de Conclusão de Curso em

Serviço Social, O Sistema de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica da Casa-Abrigo Professora

Núbia Marques.

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pessoal, denominado de “Serviço de Acolhimento Institucional para Mulheres em Situação

de Violência” (Resolução CNAS nº. 109, de 11 de novembro de 2009).

A Casa-Abrigo Professora Núbia Marques funciona em endereço sigiloso, em

concordância com as Diretrizes Nacionais para o Abrigamento13

de Mulheres em Situação

de Risco e Violência, o sigilo é um pré-requisito para a implantação e existência do

serviço14

.

Entretanto, há uma série de dificuldades em âmbito nacional para a manutenção do

mesmo, uma delas consiste na necessidade inúmeras mudanças de endereço, acarretando

para o Estado15

o pagamento de aluguel de imóveis particulares que tenham estrutura para

abrigar no mínimo 20 mulheres16

, além da preocupação com o preparo de uma equipe

operacional e técnica17

capaz de administrar a não divulgação do endereço da instituição,

privando até mesmo os próprios familiares sobre o conhecimento do local de trabalho, uma

vez que existe muita curiosidade da população acerca da localização do abrigo18

.

É nesse universo de abrigamento que foram coletadas as informações que serão

analisadas a seguir, priorizando a fala das ex-assistidas e dos profissionais com o objetivo

de trazer à tona o que permeia nas entrelinhas da violência doméstica, no sentido de

analisar a subjetividade e identidade das mulheres que foram atendidas pela instituição, ou

seja, enfatizando não só a política pública direcionada a coibir e prevenir a violência

doméstica, mas em dar visibilidade a identidade e a subjetividade, abrindo ao público

como a mulher entende em seu íntimo os episódios de violência.

NAS ENTRELINHAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

Atualmente o Brasil atua no enfrentamento da violência doméstica por meio da

Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, entretanto, faz-se necessário o fomento

de mais trabalhos e pesquisas com espaço destinado à fala e experiência de vida de

mulheres em situação de violência ou que já passaram por essa violação, bem como de

13

Diz respeito à gama de possibilidades (serviços, programas, benefícios), de acolhimento provisório

destinado a mulheres em situação de violência (violência doméstica e familiar contra a mulher, tráfico de

mulheres, etc. ) que se encontrem sob ameaça e que necessitem de proteção em ambiente acolhedor e seguro.

(Diretrizes Nacionais para Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e Violência, 2011 p. 15) 14

(Diretrizes Nacionais para Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e Violência, 2011) 15

Em nível municipal, tendo em vista que o Estado não possui Casa-Abrigo para atender as mulheres em

situação de violência. 16

Muitos imóveis não possuem acessibilidade adequada. 17

Operacional: Coordenador, Agentes de limpeza, auxiliar administrativo, plantonistas e cuidadores.

Técnica: Assistente Social, Advogado e Psicólogo. 18

Para maior segurança também não há a divulgação do endereço para as próprias mulheres em situação de

violência.

Page 6: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

6

profissionais que assistem esse público, no sentido de fomentar da transformação de um

trabalho vertical em horizontal, oportunizando o protagonismo das assistidas.

Diante do exposto, foi escolhida a Casa-Abrigo Professora Núbia Marques19

como

campo de pesquisa, dando ênfase a análise da identidade e subjetividade das ex-assistidas

pela instituição. Segundo Souza (1994:17), “é o que, em princípio, nos diferencia dos

outros”.

A identidade, mais precisamente, a identificação do sujeito é atribuída ao conjunto

de qualidades de uma pessoa, o que permeia as suas características como: nome, sexo,

raça, bem como a identidade vinculada à escolha do indivíduo como: a ligação partidária, a

orientação sexual, o corte de cabelo, o modo de se vestir, dentre outros.

Constituindo em elementos que distinguem o indivíduo em um determinado local

ou grupo, no caso em pauta “as mulheres em situação de violência”, que foram assistidas

pela Casa-Abrigo Professora Núbia Marques, nomenclatura que as vincula com

características semelhantes, a um determinado grupo identificado pela experiência de

violência.

Na linha de pensamento de Cruz, a identidade é:

É um fenômeno social, estruturando-se em um contínuo processo de

identificação estabelecido através da rede de relações sociais, construídas

nas diferentes esferas do cotidiano- na fábrica, no sindicato, na casa, no

bairro, nos movimentos sociais-, enfim, nos diferentes lugares onde

homens e mulheres vivem sua experiência individual e coletiva. (CRUZ,

2005 p. 49).

Desse modo, a identidade está intrínseca em cada indivíduo ou grupo,

A identidade é, então, compreendida como construção de nós, do fazer de

cada coletividade: o trabalho, a cultura e as práticas políticas são

elementos formadores do indivíduo, enquanto pertencente a um grupo no

qual um se define e é definido pelos laços de sociabilidade. (CRUZ,

2005: Cit. 49)

No processo de construção da identidade pode-se afirmar que ela está

correlacionada à subjetividade20

, em virtude da capacidade humana em promover

adaptações ou até mesmo transformações, no sentido de abrir possibilidades para novas

identidades, assim constrói-se a subjetividade. Segundo Weedon apud Cruz,

19

Dando continuidade a análise iniciada no Capítulo IV do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado O

Sistema de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica da Casa-Abrigo Professora Núbia Marques. 20

De acordo com Abid (1999), a subjetividade refere-se à qualidade subjetiva (mental ou privada), de algo,

ou seja, refere-se a eventos, estados, processos e disposições mentais ou privadas que, por causa dessas

qualidades, só podem ser de, ou pertencer a, ou estar em um sujeito.

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7

[...] a subjetividade nos permite reconhecer e tratar das formas pelas quais

os indivíduos dão sentido às suas experiências através do discurso,

incluindo seus entendimentos conscientes e inconscientes e as formas

culturais disponíveis, através das quais tal entendimento é reprimido ou

permitido. (WEEDON, 1975 apud CRUZ, 2005, p. 51).

Diante do que se propõe a pesquisa será analisada a subjetividade das mulheres em

questão, tendo em vista que esta ação refletirá na oportunidade da abertura de suas

experiências para o público21

, potencializando as suas falas e identificando possibilidades

de melhorias na execução política pública para as mulheres22

.

Para tanto, serão analisados dados qualitativos obtidos mediante 6 entrevistas

semiestruturadas23

, (com 2 profissionais e 4 ex-assistidas). As entrevistas foram realizadas

individualmente e com plena permissão de cada participante, executadas no CREAS São

João de Deus24

e outras no próprio domicílio das ex-assistidas. A investigação dos dados

foi baseada na pesquisa exploratória, que Segundo Gil,

[...] têm como finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e

idéias, tendo em vista, a formulação de problemas mais precisos ou

hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores. Habitualmente envolvem

levantamento bibliográfico e documental, entrevistas não padronizadas e

estudos de caso. (GIL, 2006, p.43)

A pesquisa exploratória proporciona uma maior familiaridade com o problema,

com vistas a torná-lo mais visível, oportunizando a possível construção de hipóteses sobre

o alvo da pesquisa com a finalidade de afirmá-los ou refutá-los. Nesse sentido, para este

estudo, foram antecipadas algumas hipóteses:

A violência doméstica está arraigada na cultura machista, na qual a mulher é

vista como submissa (sexo frágil);

A maioria das mulheres em situação de violência não denuncia os casos por

medo ou por dependência econômica e/ou emocional;

Há o pensamento que a mulher deve suportar os episódios de violência “até que

a morte os separe”;

Existe o processo de naturalização da violência no qual a “vítima” acha que é

normal ser agredida, tendo em vista a ideia que é culpada pela situação.

21

Uma vez que o acesso as assistidas e ex-assistidas pela Casa-Abrigo é restrito, tendo em vista resguardar o

sigilo de suas identidades, bem como do endereço da instituição. 22

A pesquisa é de suma importância para o meio científico, pelo fato de trazer consigo indicadores de um

público restrito, devido o caráter sigiloso que permeia as Casas-Abrigo no Brasil. 23

Segundo Richardson (2007), a entrevista semiestruturada visa responder a alternativas pré-formuladas,

para obter do entrevistado o que ele considera mais relevante nos aspectos de determinado problema. 24

Os dados foram coletados no mês de maio de 2015.

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8

Para dar prosseguimento ao estudo, no sentido de testificar as hipóteses, foram

desenvolvidos 11 questionamentos (profissionais) e 14 (ex-assistidas), como coleta de

dados, analisados rigorosamente preservando as falas originais das ex-assistidas,

mantendo o sigilo de seus nomes, criando-se nomes fictícios para identificá-las.

1.1- A identidade e subjetividade das mulheres em situação de violência doméstica

A coleta de dados das ex-assistidas foi bem minuciosa, tendo em vista que a

reconstrução dos episódios de violência foi de extrema dor para elas, principalmente pelo

sentimento de retorno ao passado, trazendo lembranças que deixaram marcas que o tempo

ajuda a amenizar, mas nunca a esquecer.

Foram escolhidas 4 ex-assistidas de forma intencional, através de contato telefônico

com as mesmas. A pequena mostra se deu pelo fato da dificuldade de encontrar tal público,

tendo em vista mudança de endereço e de contato telefônico. Quanto ao perfil das

entrevistadas segue abaixo a tabela demonstrativa.

Nome Idade Nº de

Filhos

Estado Civil Grau de Instrução Ocupação

Cláudia* 30 Anos 02 Solteira Ensino Médio

Incompleto

Do Lar

Paula** 33 Anos 02 Solteira Superior Completo Empresária

Verônica 39 Anos 02 Solteira Ensino Fundamental

Incompleto

Do Lar

Josefa 52 Anos 06 Divorciada Ensino Fundamental

Incompleto

Serviços

Gerais *Cláudia é proveniente da cidade de Santos-SP, mas residia em Aracaju com o agressor há 6 anos. Foi

abrigada na Casa-Abrigo Professora Núbia Marques em 2009, junto com os dois filhos, logo depois

transferida para a cidade de origem após ter passagem custeada pela Prefeitura Municipal de Aracaju.

**Paula é do Rio de Janeiro, foi transferida da Casa-Abrigo do RJ para a Casa-Abrigo Professora Núbia

Marques em 2009, o abrigamento foi realizado apesar de a instituição ser municipal.

Para externar a identidade e subjetividade foram destacados alguns depoimentos:

Sobre o histórico de vida em meio à violência doméstica, as formas de violência que

sofreram e quem foi agressor e por quanto tempo foi vítima desta, algumas das ex-

assistidas apontaram que iniciaram a convivência ainda no período da adolescência e que

tudo no começo eram “flores”, mas com algum tempo de convivência as discussões foram

aumentando por conta de ciúmes do parceiro em não deixar a companheira praticar

atividades simples do cotidiano como: estudar, sair sozinha, fazer compras, se vestir de

acordo com o próprio gosto, dentre outros.

Page 9: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

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Com o passar do tempo, além das discussões, começaram os xingamentos, as

agressões psicológicas (ameaças) e por fim as agressões físicas. Quase todas passaram

pelas fases do ciclo de violência tensão/explosão- arrependimento- lua-de-mel- sempre

aceitando as desculpas do agressor em detrimento do um relacionamento feliz, mas depois

de algum tempo as agressões voltavam a acontecer, trazendo consigo muita dor, muito

medo, bem como receio em denunciar por motivo de ameaças, por gostar do parceiro, por

ter o pensamento que deveria “salvar o casamento” ou por não querer que o agressor fosse

preso, como podemos ver neste depoimento:

[...] Após quase 10 anos de sofrimento, apanhano com murros, tapas e

acusações [...] eu resolvi contar pra minha família, eles me ajudaram

porque naquele tempo eu não trabalhava e tinha seis fios pra criar, não

queria ver o pai deles preso, queria salvar meu casamento, mas não deu. (Josefa, 52 anos e 6 filhos)

Além do sentimento de querer conviver “até que a morte os separe”, também há o

sentimento de vergonha, humilhação e medo, não só danos físicos, mas também

psicológicos que deixaram marcas invisíveis. O sentimento de tristeza em cada

entrevistada foi expresso pelas lágrimas nos olhos (segundo depoimentos), pelo

nervosismo em relatar tais agressões, bem como pelo alívio em ter superado o conflito

outrora vivenciado.

A gente se conheceu ainda quando eu era nova, logo engravidei e fomos

morar juntos. No início tudo era bom, mas depois tudo se transformou

quando nos mudamos de Santos para Aracaju. Ele saia direto e não me

dizia para onde ia, [...] a gente brigava sempre, [ele] me xingava [...].

Chegou o dia que ele me deu um murro do rosto e saiu me arrastando

pelos cabelos. [...] foi horrível, não sabia quem me acudisse [...] tinha

muita vergonha [...] passei 5 anos nessa tribulação. (Cláudia, 30 anos e 2

filhos)

Eu passei por todos os tipos de violência, praticada pelo meu ex-

companheiro durante 7 anos. Eu vivia presa [em casa]. Foram tantos

tapas na cara, pontapé, xingamentos na frente dos menino. [...] não podia

nem me ajeitar que ele [agressor] dizia que era pros machos e esfregava

minha cara no chão e depois segurando nos meus cabelos me levava até o

espelho para dizer que eu não prestava pra nada. [...] escondia meus

documentos e só podia sair se fosse com ele. Depois sempre pedia

desculpas e eu acreditava. (Verônica, 39 anos e 2 filhos)

[Comecei] a namorar com 13 anos e ele com 33 [...] não era agressivo,

ele mudou a história da minha família, éramos muito pobres, passávamos

fome e ele ajudou muito. [...] Namoramos por três meses [...] fomos

morar juntos. [No início] era flores direto, bilhetinhos, ligações [...], era o

casamento perfeito. [...] tive meu primeiro filho com 18 anos. As

agressões começaram quando [nosso] segundo filho nasceu. [...] Fui

vítima por 6 anos por não ter família „estruturada‟[...] tive medo de sair

Page 10: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

10

de casa. Até que ficou insuportável. [...] agressões verbais [...] passaram a

violência física, ameaças e estupros. (Paula, 33 anos e 2 filhos)

O período de violência relatado nos depoimentos é bem extenso, mostrando a face

do medo, do sentimento de insegurança e da convicção de mudança do companheiro. É

notório que companheiros utilizavam a violência como forma de resolução dos conflitos

matrimoniais, uso da força e do constrangimento emocional e psicológico, cerceando o

direito de ir e vir, de se produzir e até de se sentir bem consigo mesmo.

Sobre o vínculo com o agressor, quase todas alegaram que não possuem mais

nenhum tipo de contato, com exceção de Josefa, por conta que o ex-companheiro visita os

filhos. Questionadas se já havia sentido culpa em detrimento das agressões, elas

expressaram suas representações: “Me sentia muito triste [...] pensava que eu era a

culpada em algumas situações porque minha mãe sempre dizia que era para eu ficar calada,

mas eu sempre quis enfrentar por não achar certo o que ele fazia”. (Verônica)

Na verdade eu sempre me achei culpada, porque ele sempre chegava em

casa colocando defeito em tudo [...], era um inferno, ainda mais quando

os meninos tava na hora. [...] sempre tentei agradar, mas não adiantava.

Me arrependi de abandonar a minha família pra vim morar em Aracaju.

(Cláudia)

Não dava nem tempo de pensar, não me sentia bem com tudo aquilo,

queria viver bem e não ser tão maltratada e humilhada. Não sabia o que

tinha mudado [...] ele era tão bom, mas começou a tomar cachaça, dormir

fora de casa e ter várias [mulheres]. (Josefa, 52 anos)

Muitas vezes, porque queria entender onde eu tinha errado, nunca fui

conivente com as agressões [...] sempre denunciei [...] fiz mais de 20

ocorrências, desde a primeira vez. [...] sempre nas DEAM‟s do Rio de

Janeiro, mas sempre ouvia a mesma coisa quando eu falava da profissão

dele. Eles perguntavam “O que você fez de errado?” “Ele não jogaria a

carreira fora por causa de você” [...]. Quantas vezes saí sem rumo das

DEAM‟s. (Paula, 33 anos).

Nos depoimentos as mulheres afirmaram que se sentiam culpadas por serem

agredidas. Este constitui em um fenômeno recorrente na violência doméstica, identificado

por Bordieu (2003), “como violência suave, invisível as suas próprias vítimas”, no qual a

vítima desconhece o processo de violência, mais precisamente não se acha vítima, pois se

reconhece como a causa das agressões.

No último depoimento, Paula afirma que além de se sentir culpada, também via que

seu caso estava sem solução, pois todas as vezes que tentava realizar o boletim de

ocorrência, sempre os atendentes indagavam que ela tinha realizado algo de errado em

Page 11: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

11

detrimento do companheiro ser Policial Militar, que não corresponde aos parâmetros de

atendimento de uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher - DEAM‟s.

Atualmente as Delegacias Especializadas possuem em seu quadro majoritariamente

mulheres, com a finalidade de evitar posturas de revitimização. Segundo Paula em outra

tentativa de fugir das agressões saiu sem rumo com os dois filhos até ser ajudada por um

agente penitenciário.

Após fugir com as crianças depois de um ataque de fúria dele, um agente

penitenciário me viu de madrugada no ponto de ônibus [...] parou o carro

e ofereceu ajuda e me levou a uma DEAM no Rio de Janeiro [...] eu já fui

descrente porque iam me chamar de doida [...] Aí um policial civil que

estava de plantão abriu a delegacia, me perguntou o que estava

acontecendo, [...] ligou para a delegada, foi a primeira vez que me senti

segura. (Paula, 33 anos)

No relato é notório uma série de vulnerabilidades sociais25

, fatores desencadeados

pela violência doméstica, agravada pela influência ocupacional do companheiro que

sempre a encontrava nos órgãos de proteção à mulher, e a ameaçava de tirar-lhes a guarda

dos filhos. “Sou oficial da PM, você não é nada [...] ou você volta ou perde os meninos”

(Paula reproduzindo a ameaça do companheiro).

Acrescentou também que em um dos atendimentos uma das equipes de um Centro

de Atendimento à Mulher do Estado do Rio de Janeiro26

, chegou a duvidar dela “Me

disseram que eu era compulsiva e com mania de perseguição e que meu o companheiro

como policial jamais ameaçaria dentro de um local vigiado”, “Ele era muito convincente

no que dizia, até eu comecei a duvidar se eu era doida”. (Paula)

A cultura machista ainda tem seus resquícios na atual sociedade, apesar de vários

avanços em leis, decretos e aparelhos especializados, ainda é recorrente uma pequena

parcela de cidadãos e profissionais que ainda culpabilizam a mulher em detrimento do

homem27

, mesmo que de forma velada, ou até mesmo sem perceber, visto que a cultura

machista está arraigada no processo de formação cultural do brasileiro. Principalmente

pelo viés da força, onde o homem tudo pode, e para a mulher só resta a função de ficar em

casa cuidando da prole e dos afazeres domésticos, uma visão arcaica sob os parâmetros do

homem patriarcalista, que alega uma série de justificativas- “em briga de marido e mulher

25

Situação de extrema fragilidade, que torna o indivíduo e/ou família expostos a riscos, apresentado pela

falta material ou através da privação de diversos direitos que são essenciais ao ser humano. 26

Ocultado o nome da instituição. 27

Importante ressaltar que com a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, o número de profissionais

especializados e capacitados torna-se cada vez maior, rompendo com a revitimização da mulher no processo

de registro de ocorrência e demais encaminhamentos.

Page 12: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

12

não se mete a colher”, “as mulheres gostam de homens rudes”, “os homens não controlam

seus extintos”, “a mulher é que gosta de apanhar”, “a mulher é que não presta”.

Identificando a subjetividade entrelaçada em cada fala sobre como se sentiam

na época das agressões, relataram: “Me sentia muito triste, me achava feia, ficava muito

irritada porque tudo era um inferno, queria paz e um casamento feliz” (Cláudia).

Já em outra fala, destaca- “Ficava sempre angustiada, não sabia mais o que fazer,

me sentia impotente, uma pessoa sem objetivo nenhum” (Verônica).

Me sentia um nada, como se eu fosse um trapo, sem valor [...] uma

tristeza muito grande, não tenho nem palavras, [...] muito humilhada, não

dava nem pra lembrar quando ele tinha dito que gostava de mim[...] não

desejo a ninguém. (Josefa)

Eu me sentia um lixo, menor de todos os seres humanos, me achava

louca, achava que eu fantasiava, [...] quando eu vi a delegada e falei tudo

[...] cheguei a dizer que eu precisava de ajuda [...] que eu era maluca.

(Paula)

A tristeza é descrita como elemento presente em todas as falas, além da baixa

autoestima gerada pelos maus-tratos, sentimentos que a tornavam vulneráveis e que

atuavam como grilhões em seus cotidianos. A violência não é somente física, mas

psicológica, pois os agressores induziam as “vítimas” a acreditarem que não havia mais

solução, que estavam fadadas a viver no ambiente de violência, ou até mesmo que estão

descontroladas ou loucas.

Sobre a confiança na justiça, sobretudo na Lei Maria da Penha para resolver

os seus casos, elas apontaram:

Na verdade eu não conhecia a delegacia da mulher e nem a lei, sempre

me senti sozinha [...] não sabia a quem buscar [ajuda], me sentia presa.

Não tinha ninguém de minha família em Aracaju. Tinha medo [...] foi aí

que ficou insuportável [...]. Resolvi pedi ajuda na delegacia do bairro e

eles me levaram pra delegacia da mulher. (Cláudia)

Passei muitos anos sofrendo, não conhecia a lei, achava que a justiça não

ia fazer nada, [...] eles têm coisa mais importante para fazer, prender os

bandido. Tinha medo que ele me matasse ou que se vingasse dos meus

fios. Foi quando [ele] me espancou [...] quase morri, os vizinhos

chamaram a SAMU e fui levada para hospital e depois pra o IML.

(Verônica)

Já tinha ouvido falar da lei na televisão, por isso que depois de tanto levar

na cara e ser maltratada é que procurei denunciar. Mas pensava que não

ia se resolver [...] ele dizia que não era bandido para ser preso, foi aí que

fui parar na Casa-Abrigo e tudo foi resolvido na delegacia. (Josefa)

Page 13: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

13

Segundo o depoimento de Paula, ela sofreu com a rede de proteção a mulher, por

seu companheiro ser bastante influente e convincente, dando sempre a entender que ela era

a culpada, motivo que a faz acreditar que alguns profissionais da área não confiavam no

depoimento dela, fato que fez com que a mesma se questionasse se estava mesmo louca.

Acrescenta foi atendida pela equipe de um dos órgãos de proteção à mulher que a

acolheu de forma diferente, que a delegada a encaminhou para fazer exame de corpo delito

e para a Casa-Abrigo do Estado do Rio de Janeiro, e que a mesma deu prosseguimento ao

caso comunicando o fato ao Ministério Público.

Entretanto, afirma que foi para a audiência sozinha, sem ninguém da equipe técnica

da Casa-Abrigo. Por isso diz que não acreditava na justiça e que a Lei Maria da Penha não

a ajudou, porque não depende somente da lei em si, mas da equipe que faz o atendimento:

Achavam que eu mentia [...] porque ele era muito simpático, educado,

tinha justificativa para tudo. [...] mas hoje sem violência [...] eu também

teria dúvidas, [...], ele era muito abusado, falava na minha cara que eu era

doida. A Lei Maria da Penha não ajuda, eu tive sorte, porque quem sofre

violência é muito massacrado, é visto como acomodado, [...] que se a

mulher sofre violência é por que quer. Mas na realidade, depende da

equipe que você encontra para te ajudar, porque não me sentia viva. [...].

(Paula)

Diante do fato apresentado por Paula, foi perguntado se nunca deu para ver as

marcas físicas das agressões, ela respondeu:

Ele sempre me bateu na cabeça, por conta do cabelo. [...] Mas uma delas

foi tão forte que afundou meu crânio [...]. As outras saiam rápido e por

ser negra não aparecia muito. O afundamento foi com o cabo da arma, um

38, não era a arma que usava em serviço. Na última agressão ele foi

preso, [...] foi a mais grave. Soube no dia da audiência que ele tinha sido

preso no dia seguinte a agressão, saiu no jornal e tudo. (Paula)

Sobre as medidas protetivas de urgências (Lei Maria da Penha) que obrigam o

agressor a manter distância da ofendida por alguns metros, responderam:

Não conhecia até fazer a denúncia [...], mas acho que é muito complicado

porque vai depender do agressor, se ele quiser agredir de novo? aí pode

ser tarde demais, não tem quem vigie essa distância. Não acho que dê

certo. (Claúdia)

Essa distância é muito difícil de ser respeitada, depois que sai da Casa-

Abrigo, já vi no jornal várias mulheres sendo morta, mesmo denunciando

o marido. [...] essa distância não dá segurança a ninguém, tem muito

homem ousado, não respeita nem a polícia. (Verônica)

Page 14: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

14

Acho que se o agressor quiser espancar, ele vai de qualquer jeito. Só

Deus pra nos guardar, porque a polícia não vai ficar o tempo todo

guardando a gente. Só fiquei aliviada quando fui com meus filhos para a

Casa-Abrigo. (Josefa)

Não é eficaz, nunca foi respeitada [...] a polícia não está pronta para isso

[...] acha falta de serviço atender mulher com medida protetiva. Eu tinha.

[...] Uma vez ele [o agressor] invadiu a casa [...] os PMs disseram que ele

tinha direito de ver os filhos, riram várias vezes. [...] Nunca funcionou

medida protetiva. (Paula)

Segundo os depoimentos das ex-assistidas quase todas afirmaram que não

conheciam a Lei Maria da Penha, algo que precisa ser mais divulgado em meios mais

acessíveis para o público em questão, como: escola, unidades básicas de saúde, hospitais,

rádio e televisão.

Outro ponto importante seria a mobilização de centros comunitários e da

preparação da polícia comunitária, a fim de evitar condutas de preconceito e de mau

atendimento. As comunidades precisam ter a polícia e a justiça como aliada e não como

inimiga e reconhecer que a violência doméstica é um crime e que deve ser denunciado.

É consenso entre elas que as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor

a manter distância da ofendida, não ajudam no rompimento do ciclo de violência, tendo em

vista que depende do autor das agressões não infringi-las, porque a polícia não tem como

estar presente 24h.

Com relação ao impacto do histórico de violência doméstica em suas vidas,

apresentaram suas representações: “Apesar de todo sofrimento que passei, hoje aprendi

que devo me amar primeiro para poder amar alguém”. (Cláudia). “Pensei que nunca me

livraria daquele inferno, hoje sou uma nova mulher, apesar de não querer relacionamento

sério com ninguém”. (Verônica)

Aprendi que a mulher deve se dar valor e não ficar mendigando o amor

de ninguém, não vale a pena sofrer tanto. É um trauma para o resto da

vida, não gosto nem de lembrar, quantas noites passei sem dormir,

aguentando desaforo e humilhação [...] chega um momento que cansa.

(Josefa)

Hoje eu tenho crises de pânico, nunca mais me relacionei com ninguém.

[...] Mas teve uma coisa boa, eu tinha um amigo [fazia] faculdade de

direito [...] sempre conversei, ele tinha um irmão promotor de justiça.

Quando eu parei em Aracaju, sem nada, pedi socorro a ele [...] porque eu

não conseguiria nada [...] sem provar que eu era. [...]. Eu voltei [para o

Rio de Janeiro], consegui viver de novo. Terminei a faculdade em Direito

[...] fui trabalhar com um amigo da família dele em Minas Gerais.

(Paula)

Page 15: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

15

O sentimento de superação está presente em todas as falas, apesar de um ainda

registrar as sequelas deixadas pelas agressões, entretanto todas puderam experimentar a

sensação de liberdade, tomando o rumo das suas vidas e alcançando objetivos que não

esperavam, a exemplo de Paula que depois de muita persistência em estudar, conseguiu

galgar aos poucos a realização de ser graduada em Direito.

Questionadas se os episódios de violência a tornaram mais apreensiva para

iniciar outro relacionamento amoroso. Apontaram que: “Já tive namorado, mas nada

tão sério”. (Cláudia). “Nem quero pensar em homem, quero viver minha vida livre”

(Verônica). “Já apareceu interessados, mas quero trabalhar e cuidar dos meus filhos”

(Josefa). “Nunca mais me relacionei com ninguém” (Paula).

Nas falas nota-se que algumas conseguiram se relacionar após dos episódios de

violência e outras não, abrindo-se um leque de possibilidades de interpretação, como: o

medo de sofrer novamente ou até mesmo por se sentir livres para fazer o que tinham

vontade e não podiam em detrimento do relacionamento, principalmente por

experimentarem a autonomia, a possibilidade de gerenciar suas próprias decisões.

Sobre a importância do apoio da família para o processo de superação de

violência, relataram: “A família é importante, só sofri tanto tempo porque não tinha

ninguém da minha família perto de mim, [...] quando moramos em Santos ele era um amor,

só foi pisar em Aracaju, que tudo começou” (Cláudia). “Minha família é do tempo antigo,

casou tem que viver para sempre, acho uma injustiça eles pensarem assim, fico triste”

(Verônica). “Depois que sai da Casa-Abrigo minha mãe sempre me ajuda, sem o apoio da

família não dá pra se levantar” (Josefa). “[...] Minha família não me ajudou [...] diziam

que se eu quisesse morrer, que morresse sozinha”. (Paula)

A família é base estrutural para o indivíduo, mas nem sempre é espaço de proteção

e cuidado, é também um espaço de contradição/conflito e de possível violação de direitos.

Pode-se perceber que a família foi importante no processo de superação de violência, mas

em dois casos não houve o mesmo resultado, uma pelo entendimento arcaico que a mulher

deve suportar tudo, inclusive ser vítima de violência, “até que a morte os separe”, em outro

caso a família se recusou a dar apoio, provavelmente por ter medo do agressor ou por não

querer se envolver no relacionamento marital.

A respeito da rede de proteção28

, se a mesma foi importante para a resolução

do caso de cada uma, apontaram: “Sem a delegacia eu não teria conseguido me livrar do

28

Formada por Centro de Atendimento Especializado da Assistência Social, Centro Regional de

Atendimento à Mulher, Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, Casas-Abrigo, Núcleo de

Defensoria Pública, Varas Especializadas, Hospitais, dentre outros.

Page 16: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

16

sofrimento” (Cláudia). “A Casa-Abrigo foi muito importante para mim, eu pude pensar na

minha vida e fazer planos, apesar de ficar muito nervosa quando pensava que ia sair e não

sabia o que me esperava”. (Verônica) “Abaixo de Deus, a equipe que me atendeu, sou

grata por tudo que fizeram por mim”. (Josefa)

A rede de proteção foi falha comigo, só a justiça em si e a amizade que

me ajudaram a levantar. No caso a delegada e a audiência final, através

do MP, e a minha chegada em Aracaju, porque fomos em todos os órgãos

e ninguém entendeu por que me mandaram sem nada, parece que

quiseram jogar a responsabilidade de um Estado para o outro para

encobrir um erro, mas sou muito grata a equipe daí [de Aracaju] Me

ensinaram a ser forte.(Paula)

Nos depoimentos as mulheres alegaram que a rede de proteção foi importante para

elas, destacaram a delegacia e a Casa-Abrigo. Com exceção de Paula que afirmou que só a

amizade e a justiça a ajudou, porque achou que não teve um bom atendimento em algumas

delegacias do Rio de Janeiro, precisou registrar 20 boletins de ocorrência para poder

chegar até o inquérito policial e audiência com juíza.

Acerca do que precisa melhorar na área da proteção à mulher em situação de

violência, disseram: Acho que deveriam ver uma forma de resolver mais rápido, porque

me senti presa na Casa-Abrigo, foi muito tempo para audiência, parecia que eu era a

bandida e ele solto por aí. (Cláudia). “Nada, fui muito bem acompanhada pela equipe da

delegacia e da Casa-Abrigo” (Verônica). “Que o tempo para prender o agressor fosse

menor, devia prender logo” (Josefa).

Eu acho que não deve julgar pelas aparências, se [a equipe] tiver dúvidas

se a mulher agredida está mentindo, a equipe tem que desvendar.

Ninguém consegue mentir 24 horas por dia. Acredito que existe

preconceito dentro da própria rede de atendimento. [...]. Eu fui meio que

julgada, porque meus filhos tinham escola particular, tinha empregada,

fazia faculdade. Não estava bom? Me tornei símbolo de egoísmo porque

eu iria tirar tudo dos meninos a troco de nada. (Paula)

Entre os depoimentos destaca-se a vontade de o agressor ser preso de imediato,

entretanto o fato só é possível em caso de flagrante, o que gera um desconforto para a

vítima. Outro aspecto é sobre o preconceito no acolhimento na rede de atendimento, no

caso em questão é perceptível que a fala expressa que a mulher deve estar satisfeita com a

parte financeira e não se sentir ofendida pelas agressões.

Questionadas sobre a participação em organização em prol ao combate da

violência contra a mulher todas afirmaram que nunca participaram de atividade

voltada para o fim, mas uma delas destacou:

Page 17: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

17

Não [participa], tenho alunas bolsistas vítimas de violência no meu

cursinho, são futuras PFENS (Policiais Militares Femininas), [...] tento

fazer tudo que nunca fizeram por mim. Tenho amigos hoje promotores,

delegados, PMs, que várias vezes me ajudaram a socorrê-las de

madrugada [...] hoje estão bem, mas [as] pegamos quase mortas, [...], foi

a forma que encontrei para não enlouquecer [...] ninguém sabe [que sofri

violência]. Meu curso hoje tem nome, tenho vários alunos já formados

como PMs, [...] nas aulas eu falo muito sobre violência com eles, eu acho

que eu tenho que formar PMs mais humanos, considerando que a mulher

não é lixo, [...]. (Paula)

O histórico apresentado por Paula reflete sobre suas ações atuais, tendo em vista

que os episódios de violência a fez concluir o curso em Direito e a começar administrar um

Curso para formação de futuros policiais militares, na tentativa de fazê-los refletir sobre a

prática profissional sem violência e sem preconceito contra a mulher.

Indagadas a expressar sobre atual autoestima, apontaram: “Apesar de todo

medo que vivi, tenho uma vida normal, não gosto nem de lembrar da violência, é muito

ruim” (Cláudia).”Hoje estou livre, sou outra pessoa, sem ninguém me espancando, estou

feliz com os meus filhos, posso me arrumar como gosto” (Verônica). “Sou uma mulher

livre, quero ser feliz com os meus filhos, mas tenho medo de sofrer novamente” (Josefa)

Não me olho no espelho, tenho vergonha, [...] eu me sinto um nada.

Desde que voltei é a primeira vez que tô falando sobre o assunto, [...] as

palavras vão saindo errado, porque a lágrima vai correndo, [...] tem

muito tempo que não falo sobre isso, você meio que revive os deboches,

as frases. (Paula)

Dentre as falas é visível uma mistura de alívio pela autonomia e uma série de

sequelas emocionais que ainda persistem. Sobre as expectativas/projetos de vida e de

trabalho, representaram as seguintes falas: “Penso em cuidar dos meus filhos, estou

desempregada no momento, mas minha família me ajuda muito” (Cláudia). “Quero viver

o que nunca pude fazer, penso em ser livre de violência e que meus filhos sejam felizes”

(Verônica). “Minha vida mudou muito, hoje trabalho e sustento meus filhos, não dependo

mais de ninguém para comer e vestir, [...] quero ver meus filhos criados” (Josefa).

Tenho de continuar com meu curso, acompanhar minhas “filhas” [as

alunas] que me dão muito orgulho, minhas guerreiras, ver meus filhos

formados, e eu parar de ter medo de viver. Só espero que quem passar por

isso [...] [violência doméstica], consiga mudar de vida. Porque sequelas

existem [...] são graves. (Paula)

Page 18: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

18

As depoentes têm como expectativa o desejo de cuidar da própria vida, viver o que

não podiam fazer, serem felizes, criar os filhos e trabalhar. Na fala de Josefa é nítido o

prazer em gerir a própria vida, de não depender de ninguém para custear os gastos

familiares. Já Paula agrega sua expectativa de vida somente no trabalho, na realização dos

filhos e das alunas em que ela busca força para esquecer os momentos de sofrimento com a

violência doméstica.

1.2- A visão dos profissionais sobre a violência doméstica

As entrevistas com as 2 profissionais (assistentes sociais), foram realizadas após

aprovação da Gerência da Proteção Social Especial da Secretaria Municipal da Família e

da Assistência Social de Aracaju. Os questionamentos e respostas serão apresentados de

forma direta e indireta destacando os pontos mais cruciais para a pesquisa.

De acordo com a análise das falas foi perceptível que as profissionais entendem a

violência doméstica como algo complexo, que envolve vários fatores.

“[...] tal temática é complexa, envolve diversos fatores sociais,

econômicos e culturais. Pelas consequências que [...] provoca deveria

alcançar maior visibilidade na elaboração de programas e projetos

governamentais, requer também o envolvimento com a sociedade civil”.

(Assistente Social 1)

Bem como relaciona a questão da desigualdade entre os gêneros, assim como diz a

(Assistente Social 2),

A violência contra a mulher está relacionada com as questões de

desigualdade entre os gêneros, a qual por elementos socioculturais impera

a figura da autoridade masculina, e dessa forma, o homem acredita ter o

direito de posse a respeito da mulher.

A contribuição da Casa-Abrigo sobre a visão das profissionais é uma medida de

proteção e de emergência que atua na efetivação da Lei Maria da Penha, garantindo à

mulher e aos filhos a integridade física, reforçando o impedimento de nova agressão, tendo

em vista proteger a vítima do agressor em caso de denúncia, bem como impede da

ofendida de entregar o boletim de ocorrência. Sobretudo em oportunizar a orientação dos

profissionais, uma vez que apresentam baixa autoestima. Entretanto, se faz necessário

destacar a seguinte fala:

Page 19: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

19

[...] [o] apoio resume-se muitas [...] vezes ao “abrigamento” da mulher

sem sequer elaborar uma intenção de acompanhamento pós-

desligamento, ou mesmo o encaminhamento para as unidades de proteção

social de média complexidade, a saber, os CREAS‟s. (Assistente Social

1)

Sobre os pontos que precisam melhorar destacaram que seria a articulação com a

rede socioassistencial e sistema de garantia de direitos em prol do fortalecimento das

ações, bem como no período de abrigamento em realizar atividades para que as famílias

não permaneçam em inatividade, tendo em vista que só podem ter acesso externo em

algumas situações.

Outro aspecto que chama a atenção para a melhoria está relacionado ao respeito às

normas de segurança já citadas nesse estudo:

[...] aqui no município de Aracaju/SE, é em relação às normas de

segurança. Devendo ser preservado o sigilo do endereço, por questões de

segurança, nem sempre tais normas são respeitadas. Isso porque, o

endereço tem sido facilmente identificável, seja pelas usuárias ou por

funcionários que não compreendem exatamente como resguardar

informações sobre a localização do Abrigo. (Assistente Social 1)

Já a sobre a Lei Maria da Penha, se a mesma tem facilitado o trabalho com as

mulheres assistidas, as profissionais afirmaram que sim. “[...] efetiva uma proteção social a

mulher vítima de modo a direcionar ações que visem garantir a integridade desta mulher,

porém falta muito para efetivar em sua plenitude o que diz a legislação” (Assistente Social

2). É também mencionada a preocupação de como a violência deve ser enfrentada,

“[...] É inegável que a regulamentação de um dispositivo legal corrobore

para o alcance de fins de garantias de direitos, ainda que não sejam

efetivadas a contento. Porém, aponta um caminho para a maneira como a

violência doméstica deve ser encarada, isto é, como crime. (Assistente

Social 1).

Sobre as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (Artigo 22 da Lei

Maria da Penha), se são suficientes para a garantia da segurança da vítima, afirmaram

categoricamente que não. Interpretando a fala das profissionais destaca-se que o agressor já

transgride a lei quando atua com violência doméstica, e é muito difícil que o mesmo possa

respeitar tal determinação, assim também pela própria lacuna sobre a manutenção

distância, sobretudo em cidades pequenas, sendo inevitável o encontro com o agressor,

assim necessitam de maior rigor em sua monitoração, evitando reincidência da violência

doméstica.

Page 20: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

20

Acerca das formas de violência as profissionais apontaram consensualmente que

são iniciadas pela violência psicológica até chegar à violência física. Segundo a fala de

uma das profissionais a violência psicológica é a forma de maior dificuldade para ser

identificada, tendo em vista a exposição da subjetividade da mulher. Há o destaque

também, mais em menor proporção, da moral e patrimonial. Indagadas sobre o estado das

mulheres assistidas, se as mesmas apresentam muitos ferimentos ou uso de medicamentos

psicoativos, apontaram que,

Nos casos que encaminhei para a Casa-Abrigo, posso dizer que a maioria

chega[vam] com sinais de violência física. Acredito que, é no momento

de maior tensão que a mulher decide pela denúncia como uma questão de

sobrevivência. O uso de remédios psicoativos é menos recorrente, pelos

menos declaradamente. (Assistente Social 1).

Atualmente, o serviço do CREAS não é mais porta de entrada das

mulheres para a Casa-Abrigo, então não sei dizer como se encontra o

estado das mulheres que são encaminhadas para lá, o que podemos dizer

é que antes, as mulheres apresentavam muitos ferimentos por conta das

agressões sofridas. (Assistente Social 2).

Sobre o maior entrave no período de abrigamento destaca-se diversos fatores como:

a falta de estrutura institucional, a falta de uma melhor articulação com as outras políticas

setoriais, apontando que se faz necessário para o empoderamento da mulher, a efetivação

de fato as medidas de proteção que constam no artigo 22 da Lei Maria da Penha, bem

como o período em que a mulher fica abrigada, uma vez que quando o tempo é estendido

gera um sentimento de clausura nas assistidas.

As dificuldades no exercício profissional na Casa-Abrigo consistem em “Não ter

equipe técnica lá que referencie o acompanhamento das mulheres vítimas, o espaço físico

da Casa, a fragilidade da rede socioassistencial, etc”. (Assistente Social 2).

Outra profissional destaca,

Meu local de atuação profissional é o CREAS São João de Deus, o que

posso dizer é que atualmente sinto uma fragilização de encaminhamentos

entre a Casa-Abrigo e o CREAS. Ou mesmo de uma articulação entre

esses dois equipamentos da assistência social. (Assistente Social 1).

O impacto dos casos de violência doméstica nos profissionais segundo as falas está

direcionado ao âmbito psicológico, tendo em vista que em uma das falas cita que,

“[...] não estamos imunes aos sentimentos, tristezas e decepções

humanas. É quando, geralmente ocorre o adoecimento do profissional.

Não existindo em nossa Secretaria um programa que cuide do cuidador”.

(Assistente Social 1).

Page 21: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

21

Os profissionais não possuem acompanhamento psicológico para evitar situações

que possam interferir na atuação laboral, apesar de as profissionais estarem cientes que tal

ação é importante para o fortalecimento da equipe e do serviço (como se destaca na fala

da Assistente Social 2), entretanto é apontado pela (Assistente Social 1) “[...] que nem

existe indícios de uma proposta voltada para esse acompanhamento. Ao contrário, estamos

em constante pressão para atender uma demanda maior do que a capacidade técnica

prever”.

Como sugestão, as profissionais apontaram: “o fortalecimento entre as políticas

públicas, a capacitação contínua para as equipes, estruturar o serviço [de acolhimento

institucional] e demais unidades”. (Assistente Social 2).

Bem como a destaca a outra profissional,

“[...] socialização de informações pertinentes aos direitos das usuárias.

Sem esquecer, da implantação de um programa para agressores, pois

diante dos casos atendidos não visualizamos como solução para os casos

de violência doméstica apenas o rompimento de um relacionamento, ou

seja, a mulher agredida rompe com seu companheiro, mas esse mesmo

companheiro irá relacionar-se com outra mulher e provavelmente fará

uma nova vítima. (Assistente Social 1).

De acordo com a análise das falas destaca-se para melhoria do atendimento: a

elaboração de um planejamento familiar para as assistidas e seus filhos no período de

abrigamento, bem como no encaminhamento para além desse período, fazendo uma

melhor articulação entre as políticas setoriais, composta pela assistência social, saúde,

educação e demais políticas, acrescentando o Sistema de Garantias de Direito e de todo

aparato garantido pela Lei Maria da Penha, a maior divulgação de informações para a

sociedade civil sobre os direitos das mulheres e a criação de um programa socioeducativo

para os agressores, no sentido de não reincidir no crime, o que propõe uma ação para além

da punitiva.

Outro ponto bastante preocupante reside na estrutura da Casa-Abrigo no tocante a

oferecer a prestação de um serviço de qualidade e na manutenção do sigilo de endereço, já

que foi apontado que alguns profissionais e assistidas ainda não têm compreendido tal

exigência, acarretando na vulnerabilidade do local.

No tocante à porta da entrada para o Serviço de Alta Complexidade, foi ressaltado

que os casos de violência doméstica não estão sendo articulado com o CREAS São João de

Deus, o que acaba dificultando o processo de acompanhamento da vítima e fragilizando o

serviço.

Page 22: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

22

Acerca do processo de trabalho é salutar destacar que os profissionais que lidam

com a problemática da violência doméstica necessitam de acompanhamento psicológico

para dar suporte emocional, uma vez que cada história ocasiona diversos vieses e que

muitas vezes podem “adoecer” o profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência doméstica não é recente, ela perdura há muito tempo e independe de

classe social e raça, está envolta no processo cultural da sociedade, camuflada em vários

espaços, em reações veladas ou exacerbadas.

O seu estudo está no rol dos assuntos mais pesquisados na atualidade,

principalmente após as Políticas Públicas para as Mulheres geradas como forma de

enfrentamento dos casos apresentados pela rede de proteção e de institutos que analisam

indicadores. Apesar da violência está arraigada no bojo cultural, a humanidade não deve

aceitá-la como algo natural, como imperceptível ou inevitável a convivência marital e

interpessoal.

A prática de ações violentas gera custos para o Estado, a fim de remediar os casos,

por isso é identificada como problema de saúde pública no Brasil, custo que não está

somente ligado ao econômico, mas também a dor e sofrimento das vítimas, valor esse que

não pode ser calculado.

Diante da pesquisa proposta pode-se perceber que a mulher nunca foi um sexo

frágil, e sim vitimizada pela sociedade, a qual dava plenos poderes aos homens e tinha

como cultura separar as funções masculinas das femininas, o que ainda acontece de forma

ferrenha em algumas famílias, instituições religiosas e de ensino, como também no âmbito

profissional, ditando a ocupação para cada gênero. O que realmente faltou para a mulher

foi a oportunidade de mostrar em meio público as suas habilidades e as suas convicções.

As hipóteses geradas no início do estudo foram atestadas pelas vivências das

depoentes, uma vez que foi perceptível que os ex-companheiros agiam em consonância

com a cultura machista, tendo-as como submissas, devendo estar sob os mandos e

desmandos deles. No que diz respeito à denúncia, além do medo e dependência econômica,

houve o registro nas falas que remete ao descrédito na justiça, uma vez que o processo de

violência aprisiona até o pensamento da vítima, visto que são induzidas pelos agressores a

não pedir ajuda.

Page 23: Nas entrelinhas da violência doméstica contra a mulher

23

Já sobre o pensamento que o casamento deve ser eterno, houve relatos que

atestaram essa situação, seja pelo emocional ou pensamento arcaico familiar. Acerca da

naturalização as ex-assistidas foram bem pontuais em suas falas, uma vez que se culpavam

em detrimento das ocorrências agressivas dos companheiros.

Analisando a identidade e subjetividade das ex-assistidas foi visível que o processo

de violência atingiu diretamente na autoestima das mesmas, situação que corrobora para a

fragilização e permanência no ciclo de violência, além da dependência econômica,

emocional e o medo, há o controle de ideias, cerceamento de direitos (até o de ir e vir).

Diante da complexidade do fenômeno é salutar investir na área de prevenção da

violência doméstica, uma vez que a mesma pode ser evitada e suas consequências

reduzidas com os mecanismos de proteção e com recursos humanos em qualificação

contínua, favorecendo um bom serviço de acolhimento as mulheres vítimas (como está

previsto no Art. 8º parágrafo VII da Lei 11.340/2006), bem como na construção de mais

delegacias especializadas, tendo em vista que em Sergipe só existem cinco, distribuídas

em: Aracaju, Itabaiana, Lagarto, Estância e em Nossa Senhora do Socorro29

.

Outro aspecto que merece destaque é o número de Casas-Abrigo, no Brasil são 77

instituições30

. Entretanto se faz necessário que os municípios possuam suporte para o

atendimento, visto que em Sergipe, somente Aracaju disponibiliza o serviço.

É importante ressaltar que a Casa-Abrigo Professora Núbia Marques vem

acolhendo, em último caso, o público que não é proveniente da cidade, gerando um ônus

econômico para Aracaju. Entendendo que há municípios que não dispõem de recursos

financeiros para arcar com a estrutura de uma Casa-Abrigo, há a possibilidade de

firmamento de consórcio público quando existe objetivo de interesse comum31

, podendo

gerar a pactuação de serviço regional.

Para melhorar o suporte as mulheres em situação de violência doméstica há a

necessidade de fortalecer a prevenção como versa o Art. 8º parágrafo V da Lei

11.340/2006, com a realização de campanhas educativas de prevenção voltadas ao público

escolar e a sociedade em geral.

Promover uma maior atenção nas medidas protetivas de urgência da Lei Maria da

Penha, que obrigam o agressor, principalmente no que tange ao Art. 22 parágrafo III

29

Dados extraídos do site da Secretaria de enfrentamento à violência contra a mulher. 30

(Cit., 30) 31

De acordo com os parâmetros da Lei 11.107 de 6 de abril de 2005, regulamentada pelo decreto 6.017 de 17

de janeiro de 2007

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alíneas “a”,”b” e “c”. Assim como fortalecer as ações de educação e reabilitação para os

agressores que estão previstas no Art. 35 parágrafo V da mesma lei.

Por fim oportunizar o acesso das ofendidas aos benefícios eventuais previstos na

Lei 8.742/1993, que prevê provisão suplementar e provisória prestadas aos cidadãos em

virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade

pública, tendo em vista que integram o Sistema Único de Assistência Social e a situação de

violência doméstica constitui no rompimento de vínculos, de presença de violência e

ameaça e risco de morte.

Nessa linha de reflexão as ações em prol ao combate a violência doméstica serão

aprimoradas e fortalecidas, sob o viés do fomento à autonomia feminina em contrário as

ações de preconceito, de cerceamento de direitos e exclusão social, evitando a proliferação

da ”praga” chamada violência doméstica.

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