NAS ENTRELINHAS DO ÔNIBUS, AS OUTRAS HISTÓRIAS DO ... · O período de tempo abordado pela...
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NAS ENTRELINHAS DO ÔNIBUS, AS OUTRAS HISTÓRIAS DO TRANSPORTE
COLETIVO EM CURITIBA-PR SUELEN CAVIQUIOLO1
GILSON QUELUZ2
Resumo: A produção de imagens e narrativas desde a década de 1970, por meios públicos e
privados, contribuiu para alimentar uma história mais ou menos “oficial” sobre o transporte
coletivo da cidade de Curitiba. Essa história foi patrocinada ou mesmo legitimada pelo corpo
técnico e administrativo da prefeitura e é caracterizada por trajetórias lineares marcadas por
projetos inovadores e bem-sucedidos. Neste artigo, as interações da população com ônibus,
itinerários, estações de embarque e outros artefatos, são as vias pelas quais busco compreender
outras histórias dessa tecnologia. Em uma convergência da história da tecnologia com os
estudos culturais, procuro entender a relação de demandas populares com as materialidades e
visualidades do transporte urbano em Curitiba. A partir de fontes documentais, como
reportagens de jornal e requerimentos legislativos da Câmara Municipal, esse trabalho
apresenta uma reflexão sobre outras formas de conceber a cidade e seu transporte entre os anos
de 1991 e 2011. As "histórias nas entrelinhas" falam da produção de pessoas envolvidas no
cotidiano do sistema de transporte que atuam no sentido de expor os principais problemas e
propor formas de mobilidade mais humanas e inclusivas.
Palavras-chave: Transporte coletivo; História da Tecnologia; História do Transporte; Curitiba-
PR.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte de pesquisa de doutorado dedicada à história do transporte coletivo
em Curitiba. Essa cidade é a capital do estado do Paraná e está localizada na região sul do Brasil.
Dentro do país e fora dele é reconhecida pelo seu transporte coletivo, especialmente o sistema
Expresso e a Estação-tubo. O primeiro é caracterizado por linhas de que circulam em vias
exclusivas e a segunda pelo embarque com pré-pagamento nivelado ao piso dos veículos3.
As relações da população com o transporte coletivo curitibano constituem o caminho
escolhido para compreender a história dessas mobilidades ou imobilidades coletivas. Nesse
sentido, pretendemos investigar as demandas populares ligadas às “coisas” com as quais as
pessoas lidam quando se relacionam com o transporte coletivo na cidade. Isso inclui desde a
distância percorrida por alguém até o ponto de parada, os locais onde espera a chegada do
transporte, o veículo ônibus (com suas dimensões, portas, janelas, cores, piso, assentos,
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, financiamento
CAPES – Demanda Social, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Brasil. E-mail:
[email protected]. 3 O sistema de ônibus inaugurado com o Expresso é conhecido internacionalmente pela sigla BRT (Bus Rapid
Transit). Atualmente as estações tubo funcionam em conjunto com linhas do Expresso e da Linha-Direta.
2
corrimãos etc.), os trajetos, os pontos de desembarque e sua sinalização, terminais, mapas,
placas entre outros. Têm a ver com os artefatos imaginados, usados, construídos, reconstruídos
ou destruídos historicamente nas e pelas práticas envolvidas nas mobilidades e imobilidades
coletivas.
O período de tempo abordado pela investigação é delimitado pelas inaugurações de duas
linhas de ônibus nessa cidade, uma em 1991 e outra em 2011. Os momentos inaugurais são
especialmente frutíferos para a análise de reações, sentimentos e interpretações em diferentes
contextos, pois é quando ocorre intensa produção visual/material dedicada às transformações e
aos novos artefatos urbanos4. As fontes utilizadas pela pesquisa envolvem jornais de grande
circulação como Gazeta do Povo, O Estado do Paraná, Jornal do Estado, Correio de Notícias e
Folha de Londrina e jornais de bairro que, fundados durante a década de 1990, são patrocinados
pelo comércio local e apoiados por Associações de Moradores e/ou vereadores/as da Câmara
Municipal.
Foi o processo de catalogação e análise das fontes que permitiu perceber uma história
do transporte diferente daquela mais ou menos “oficial”, produzida e promovida pelo poder
público e a mídia hegemônica desde a década de 1970. Essa história oficial, caracterizada por
uma trajetória linear e marcada por projetos inovadores e bem sucedidos, foi patrocinada ou
mesmo legitimada pelo corpo técnico e administrativo da prefeitura5. Então, nosso trabalho tem
a pretensão de discutir produções visuais/materiais que tratam da relação da população com o
transporte no cotidiano e estabelecer contrastes com as visões que se tornaram dominantes e
ajudaram a construir e manter o “mito da cidade modelo” (OLIVEIRA, 2000). Essa discussão
é orientada por abordagens interdisciplinares inspiradas pelo Materialismo Cultural de
Raymond Williams, como a proposta de Tolia-Kelly e Rose (2012), produções no interior do
campo dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade e da História da Tecnologia6 assim
como leituras latino-americanas sobre cultura e sociedade nos espaços urbanos, especialmente
trabalho de Milton Santos (1999; 2001) e de Jesús Martín-Barbero (2010).
QUEM EMBARCOU NO LIGEIRINHO?
4 O levantamento de notícias de jornal realizado até o momento mostra que as reportagens sobre transporte coletivo
foram mais numerosas nos anos em que ocorreram inaugurações de linhas, veículos e mobiliário urbano. 5 Fazemos referência às seguintes publicações: IPPUC, 1990; 1991; DUARTE; GUINSKI, 2002; A HISTÓRIA,
2004. 6 Nossa pesquisa está alinhada à preocupação com os usos da tecnologia, uma perspectiva que, por ser distinta das
histórias focadas na inovação, pode envolver questões de gênero, classe e etnia em relação com a história mais
geral (EDGERTON, 1999).
3
Apesar da “fama” do sistema de transporte curitibano, vários trabalhos e pesquisas
realizados nos âmbitos acadêmicos e dos movimentos sociais já chamaram atenção para o forte
investimento na divulgação dos “produtos” da prefeitura para o transporte durante as gestões
de Jaime Lerner7. Os discursos verbais e visuais que acompanhavam as inaugurações situavam
os artefatos do transporte não somente como símbolos, mas como promotores do
desenvolvimento da cidade.
Este é um momento histórico, em que o brilho desta manhã se reflete na cor cinza
desses ônibus que nos aproximam do próximo milênio, mostrando que não há crise,
não há dificuldades, quando se usa a cabeça para fazer as coisas. (...) Curitiba vive
hoje ligeirinho, rumo aos seus 300 anos, ao próximo milênio. Viva Ligeirinho, viva
Curitiba.
A cidade cresce na velocidade do Ligeirinho. E vai crescer mais na velocidade do
bonde que vem aí (LERNER..., 1991).
Os trechos de discursos acima, transcritos por um jornal local, aconteceram na
inauguração da Linha Direta, em abril de 1991. Foram proferidos, respectivamente, pelo
deputado Rafael Greca e o vice-prefeito Algaci Túlio, que acompanhavam o prefeito na
cerimônia (LERNER..., 1991).
“Ligeirinho” foi o apelido lançado pela prefeitura no anúncio dessa nova linha, em três
jornais da cidade, entre julho e novembro de 1990 (Figura 1). Da esquerda para direita, a
reportagem mais antiga foi publicada pelo jornal O Estado do Paraná, em 29 de julho de 1990,
e traz a fotografia de uma maquete. As reportagens seguintes foram publicadas nos jornais
Indústria e Comércio em 30 de julho e 15 de outubro, no Correio de Notícias em 30 de outubro
e no Estado do Paraná em 28 de novembro de 1990. Todos os jornais citados usaram um mesmo
desenho para ilustrar as notícias sobre o “ligeirinho” e a “estação-tubo”, que foi adaptado à
diagramação do jornal e ao tamanho das colunas de texto, recortado, ampliado ou espelhado.
Figura 1 - Reportagens sobre a Linha Direta publicadas em setembro, outubro e novembro de 1990. Fonte:
produção da autora.
7 Fazemos referência à dissertação de Sanchez Garcia (1993), à tese de doutorado de Souza (1999) e aos trabalhos
de Oliveira (2000) e Neves (2006).
4
Apesar das reportagens citadas oferecerem elementos que possibilitam uma análise dos
processos que envolveram a construção social do transporte coletivo em Curitiba, acreditamos
que as visões apresentadas pelos setores populares carregam aspectos que poderiam evidenciar
com maior força a relação entre a população e o sistema de transporte. As materialidades e
visualidades do transporte, construídas, inauguradas e usadas durante a década de 1990 foram
interpretadas de diferentes maneiras. Isso levou à produção de imagens e imaginários ligados
às práticas cotidianas de mobilidades ou imobilidades no espaço urbano.
QUEM VIU O BONDE ANDANDO?
Faltando menos de um mês para a inauguração da Linha Direta, no dia do aniversário
de fundação da cidade, o jornal Gazeta do Povo publicou um suplemento especial com seguinte
título: "Curitiba: os 298 anos de uma cidade que harmoniza progresso com o bem-estar de sua
gente". No rodapé da primeira página, há uma chamada para a matéria intitulada "Bonde, novo
avanço para o transporte", com o seguinte texto: "Curitiba que já havia inovado com os ônibus
expressos circulando pelas canaletas exclusivas, prepara-se para novos avanços nos transportes,
o principal deles o bonde" (CURITIBA..., 1991). Na página oito, a reportagem "Bonde começa
a operar no próximo ano" é constituída de três colunas de texto e uma ilustração (Figuras 2 e
3). Descrita brevemente, a imagem é um desenho traçado em linhas, com a perspectiva de um
observador posicionado de frente para uma via com vários prédios e árvores, onde estão
instaladas duas estações-tubo e por onde passa um veículo de formas arredondadas guiado por
trilhos e cabos elétricos, o bonde. Dentro do veículo e das estações há a representação de várias
figuras humanas, somente uma está fora desses ambientes, na calçada em frente a uma das
estações e aparenta direcionar sua cabeça na direção do veículo. O texto inicia anunciando que:
"O bonde será instalado, inicialmente, na linha Santa Cândida/ Pinheirinho, num percurso de
19,4 km e atenderá 400 mil pessoas, transportando 18 mil passageiros por hora. A previsão é
de que as obras sejam iniciadas ainda no primeiro semestre deste ano, e o bonde moderno entre
em operação já em 1992”. O segundo parágrafo, comenta a aprovação pela Câmara Municipal,
“do projeto do bonde e a autorização da contratação de financiamentos (...)” e, no parágrafo
seguinte, fala dos investimentos, “da ordem de 240 milhões de dólares, serão divididos com a
iniciativa privada, cabendo à prefeitura cerca de 100 milhões. Desse total, o endividamento do
poder público municipal será de apenas 50 milhões. Os outros 140 milhões de dólares serão de
responsabilidade da iniciativa privada” (BONDE..., 1991).
5
Figura 2 – Reportagem sobre o projeto do bonde em Curitiba. Fonte: BONDE..., 1991.
Figura 3 – Ilustração de reportagem “Bonde começa a operar no próximo ano”. Fonte: BONDE..., 1991
Nesse mesmo mês de março, o Jornal do Bacacheri, um pequeno jornal vinculado à
Sociedade Comunitária Graciosa (SOGRA), publicou na sua sexta página um texto com o título
"Movimento de Luta Pela Moradia", que foi diagramado com duas colunas e uma charge entre
elas (Figuras 4 e 5). Propomos uma breve descrição analítica dessa imagem, que sugere uma
interpretação da relação entre a cidade e seu transporte. Ao tratar sobre o cotidiano de pessoas
que habitam Curitiba, elencam relações que estavam ocultas nas reportagens sobre o transporte
até então citadas nesse trabalho.
6
Figura 4 - Matéria "Movimento de Luta Pela Moradia" Jornal do Bacacheri. Fonte: MOVIMENTO..., 1991.
Figura 5 – Ilustração que acompanha a matéria "Movimento de Luta Pela Moradia" Jornal do Bacacheri. Fonte:
MOVIMENTO..., 1991
Em uma descrição analítica e interpretativa, essa figura parece ser constituída de duas
partes: a “de cima” e a “de baixo”, ou a de “trás” e a da “frente”, divididas pela representação
de um viaduto. Na parte superior esquerda, há uma massa indefinida de prédios, como uma
sombra feita de hachuras de traços paralelos que também preenchem a parte inferior do viaduto.
À frente dessa paisagem, a representação de um veículo guiado superiormente por cabos de
eletricidade, na direção de uma vegetação com as silhuetas de três araucárias, que ocupam o
canto superior direito da imagem. Ele possui um desenho aerodinâmico com portas em formato
oval e pequenas janelas na parte superior, mas não há nada representado atrás ou através delas,
como passageiros/as ou condutores/as. Poderíamos dizer que o bonde moderno de Curitiba, ao
ocupar somente a parte superior da imagem e transitar no viaduto, “acima” das cenas
envolvendo pessoas, parece não ser utilizado por ninguém. Como se fosse um fantasma
vagando acima da superfície, autônomo, vindo da “cidade modelo”, ocupada por prédios e
7
grandes edifícios rumo à “cidade ecológica”, dos pinheiros paranistas 8 . O bonde é um
personagem da cena, que está indiferente ao que acontece com os outros, porque está acima
deles, não faz parte da mesma realidade. Quem desejar subir de nível para embarcar rumo à
cidade moderna e ecológica terá que pagar o preço de três mil cruzeiros. A parte de baixo do
viaduto contém três cenas com pelo menos um personagem sendo oprimido e/ou em situação
de desapontamento. O lado esquerdo trata explicitamente do problema da moradia e a forma
como o estado age no processo de desocupações. O lado direito trata da falta de acesso à
educação e do problema da violência nos locais onde a paisagem não é moderna como aquela
descrita na parte superior da figura.
Tanto a charge quanto o texto da reportagem estabelecem um contraste entre os planos
do bonde divulgado nos grandes jornais e os problemas no acesso aos serviços básicos como
habitação, saneamento, educação, transporte e segurança. O texto discute a previsão de gastos
para o projeto do bonde, mostrando o que poderia ser realizado com o montante, caso fosse
investido em outras áreas.
(...) A situação dos Trabalhadores da cidade e do campo está a cada dia pior. Se não
bastasse a política recessiva do Governo Collor, vemos ainda, em nossa cidade e
estado, a falta de prioridade em investimentos que compensem a política salarial
imposta aos Trabalhadores. Além do fato de investirem em obras faraônicas para
‘embelezamento da cidade’, como é o caso da implantação do BONDE ELÉTRICO,
em Curitiba que consumirá 240 milhões de dólares, quando com 15 a 20% desse total
daria para melhorar o atual sistema de transporte coletivos [sic] por pelo menos mais
20 anos.
Enquanto isso, percebemos os Trabalhadores sofrerem por falta de serviços públicos
essenciais, como: saúde, educação, saneamento, moradia, entre outros. A situação
da moradia demonstra a inexistência de um programa habitacional por parte do
governo. A Prefeitura Municipal de Curitiba atendeu no biênio de 89/90, apenas 10
mil famílias, tendo construído apenas 2.000 casas e apartamentos, o restante são
loteamentos, autoconstrução, regularização fundiária em Colombo, e urbanização de
favela. (...) (MOVIMENTO..., 1991)
O texto, com a grafia da palavra “Trabalhador” iniciada por letra maiúscula, não busca
somente falar para seu público alvo: trabalhadores e trabalhadoras. A partir desse e outros textos
publicados nesse jornal, editado por uma associação de moradores, é possível perceber a
tentativa de denunciar ao poder público os problemas que foram negligenciados. Não somente
denunciar, mas propor e/ou exigir outras formas de planejar e investir na cidade.
(...) Diante disto, propomos e exigimos a criação de uma Comissão Especial de
Regularização Fundiária, composta por representantes das entidades que compõe o
Movimento de Luta pela Moradia; da Prefeitura Municipal; Câmara Municipal de
Curitiba; do Governo do Estado e da Assembléia Legislativa do Paraná, que
8 A tese de Camargo (2007), entre outras questões, explora de que maneira as formas do pinheiro do Paraná
(Araucaria angustifolia) foram estudadas e reproduzidas, passando a ser o assunto dominante no trabalho de
artistas e intelectuais ligados às elites paranaenses que se reuniram em torno da ideia de “Paranismo”, conceito
definido em 1927.
8
cumprirá o papel de estudar e elaborar um plano de habitação para o Município,
visando solucionar a falta de moradias para as famílias com faixa salarial entre 0 e
3 salários mínimos. A criação de programas de acesso à moradia, através do mutirão
da autoconstrução, da regularização de loteamentos clandestinos e lotes urbanizados.
Ainda, envidar todos os esforços no sentido de intermediar as negociações das áreas
ocupadas. Exigimos também, que a Prefeitura Municipal de Curitiba se comprometa
a não realizar, despejo algum, dentro das áreas pertencentes ao Município, até que
cesse as negociações. (...) (MOVIMENTO..., 1991)
O que pode ser interpretado, nessas reações ao anúncio do “bonde moderno”, é a
existência de uma maior sensibilidade dos setores populares para perceber o sistema de
transporte coletivo vinculado à vida das pessoas na cidade9. Nesse sentido, percebemos uma
visão de cidade como “território usado” e não somente um território onde estão superpostos
sistemas naturais e sistemas de coisas criadas pelos seres humanos (SANTOS, 2001). A
reportagem do jornal do Bacacheri representa um território que “é a base do trabalho, da
residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi” (SANTOS,
2001, p.97). O território deve ser então entendido como território usado por uma população que
o faz da mesma maneira que é feita por ele.
Apesar do tema da reportagem não ter sido o transporte em si, a imagem do bonde foi
trazida para a discussão de uma forma mais sistemática do que nas representações em que os
artefatos do transporte aparecem numa visão idealizada da cidade, como se a modificasse de
forma linear e determinista.
RECONSTRUÇÕES POSSÍVEIS DO TRANSPORTE E DA CIDADE
Vários trabalhos no campo da história da tecnologia e dos Estudos de Ciência,
Tecnologia e Sociedade (Estudos CTS) já discutiram maneiras como sociedade e tecnologia
são co-construídas ou, nesse caso específico, cidade, sociedade e sistemas de transporte são
indissociáveis. Seja pelo ponto de vista material, ligado aos usos e a existência dessas
tecnologias no cotidiano, quanto pelo ponto de vista analítico.
Rollo (1999, p.17), inicia seu livro sobre o metrô da cidade de Lisboa, Portugal,
explicando o entrelaçamento e a interdependência entre cidade e seu sistema de transporte,
afirmando que “um já não pode viver sem o outro”. Pineda (2010) propõe pensar uma co-
produção entre transporte e cidade, que aconteceria em dois níveis. O primeiro, parte da
9 Nossa investigação também encontrou nos requerimentos da Câmara Municipal de Curitiba, envolvendo
demandas ligadas ao transporte coletivo entre os anos de 1999 e 2001, outra dimensão potencial da expressão
desta sensibilidade. Nesses documentos, que registram pedidos da população aos vereadores do município, é
possível identificar as interrelações que as pessoas que usam estabelecem entre a infraestrutura da cidade (como
vias, calçadas, iluminação pública), os locais com serviços de saúde e educação e o desenho das linhas de
transporte coletivo.
9
compreensão de que os sistemas de transporte são sistemas sociotécnicos e, por isso, não seriam
somente uma configuração técnica que realiza um serviço para a cidade, mas também são a
cidade. No outro nível, o sistema de transporte se relaciona à própria transformação contínua
da cidade. Ele cita como exemplo os sistemas de duas cidades que foram tema de sua pesquisa
de doutorado: Copenhagen na Dinamarca e Bogotá na Colômbia. Esse autor comenta que não
somente os sistemas de transporte foram considerados nos planos de longo prazo para o
desenvolvimento das duas cidades como, de várias maneiras, a sua construção afetou a natureza
dos próprios planos, moldando uns aos outros (PINEDA, 2010, p.55). Caiafa (2002), que
investigou o transporte coletivo na cidade do Rio de Janeiro, também trabalha com a relação
entre transporte e cidade numa transformação contínua. Para ela, “o transporte coletivo realiza
o que talvez seja a força mais marcante da cidade: a dispersão”. Ela completa afirmando que
“as cidades surgem produzindo um espaço de circulação” (CAIAFA, 2002, p.18).
De acordo com as reflexões presentes nesse trabalho, é possível perceber que essa
maneira de conceber a cidade e o transporte em construção mútua está presente, de forma
consciente, na produção das pessoas que interagem com os sistemas de transporte no cotidiano.
Ao passo que projetistas e gestores trabalham no sentido de transformar a cidade pelos
modernos sistemas de transporte, as pessoas que usam, não consideradas experts nas questões
de design urbano, compreendem que o transporte viabiliza o viver na cidade e o uso da cidade.
A cidade é então constituída pelas mobilidades e também constitui mobilidades.
Essa compreensão acontece à medida que as pessoas usam os espaços urbanos, nas suas
práticas cotidianas. Não é um processo de abstração, ou de reificação, como acontece nos
processos dos arquitetos, engenheiros e urbanistas. É uma cidade construída por aqueles que
“caminan y marcan con sus andares y travesias”. Um espaço “que deja de ser exterior al sujeto
para resultar siendo producido por sus propias prácticas” (MARTÍN-BARBERO, 2010). Nesse
aspecto, o trabalho de Santos (1999) parece novamente pertinente para compreender a questão,
quando propõe a categoria de saber local, articulado ao território:
Porque o saber local, que é nutrido pelo cotidiano, é a ponte para a produção de uma
política – é resultado de sábios locais. O sábio local não é aquele que somente sabe
sobre o local propriamente dito; tem de saber, mais e mais, sobre o mundo, mas tem
de respirar o lugar em si para poder produzir o discurso do cotidiano, que é o discurso
da política (SANTOS 1999, p.21).
Neste artigo, a opção foi abordar um dos aspectos desse “saber local” articulado à
produção de textos visuais e verbais. Acreditamos essas imagens, ao serem produzidas,
circularem, serem vistas e interpretadas, tornam-se fundamentais para que as tecnologias sejam
pensadas por outros vieses. É um meio possível para que essas tecnologias sejam desmitificadas
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desmontadas, abertas, reviradas, sujas, riscadas, quebradas ou consertadas. O transporte
coletivo, como sistema tão grande, complexo e articulado ao território, amarrado ao desenho da
cidade, aos nossos corpos e às nossas vidas não deveria ser concebido como uma tecnologia
que não pode ser transformada, justamente por estar tão envolvida nas
materialidades/visualidades cotidianas e urbanas. O tipo de imagem discutida nesse trabalho,
entre outras que foram e continuam sendo produzidas pelos setores populares em Curitiba,
possibilita que o sistema seja perturbado, desviado, escancarado, virado do avesso para que, de
certa forma, revele suas costuras, formas, componentes e materiais dos quais foram feitos. Para
que a partir dessa desconstrução possa ser re-imaginado, re-planejado, redesenhado de uma
maneira mais aberta, coletiva, humana e democrática.
REFERÊNCIAS
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