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NASCIDO DO FOGO, FILHO DA PAZ Página 1

KET JEFFSON VASCONCELOS LEITÃO

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NASCIDO DO FOGO, FILHO DA PAZ



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NASCIDO DO FOGO, FILHO DA PAZ

Ket Jeffson Vasconcelos Leitão



CARTA AO LEITOR

Caro leitor, você está recebendo uma cópia gratuita de uma de nossas obras. Pedimos a gentileza de, após a leitura, caso reconheça o valor artístico-literário da mesma, contribua com nosso trabalho, adquirindo um exemplar no endereço eletrônico abaixo.

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Leitão, Ket Jeffson Vasconcelos. Nascido do Fogo, Filho da Paz, 2ª edição – Lince Publicações: Natal, 2013. – 163p. ______________________________________________________________________ Todos os direitos reservados a Ket Jeffson Vasconcelos Leitão, a Marcelino Lúcio

Mamedes e família.

http://clubedeautores.com.br/authors/72273



SUMÁRIO

Nota Introdutória...................................................... 05

Capítulo I – O Primeiro dos Dias........................ 06

Capítulo II – Os Primeiros Dia............................ 08

Capítulo III – O Dia Mais Triste.......................... 12

Capítulo IV – Dias de Errância............................ 18

Capítulo V – Dias de Conspiração..................... 24

Capítulo VI – Novos Dias.................................... 29

Capítulo VII – Dias de Convocação..................... 36

Capítulo VIII – Longos Dias................................ 46

Capítulo IX – Dia da Chegada............................. 53

Capítulo X – Dias de Adestramento.................... 60

Capítulo XI – Dias de Novos Significados........... 66

Capítulo XII – Dias Infernais............................... 78

Capítulo XIII – Dias de “Recesso”....................... 95

Capítulo XIV – O Último Dia............................... 108

Capítulo XV – Os Dias do Fim............................. 117

Capítulo XVI – Os Dias de Regresso.................... 125

Capítulo XVII – Dias de Frustração.................... 136

Capítulo XVIII – Dias de Novas Batalhas............ 144

Capítulo XIX – E o Dia de Amanhã?................... 151

Capítulo XX – Dias de Reflexão........................... 159



NASCIDO DO FOGO, FILHO DA PAZ NOTA INTRODUTÓRIA

A palavra fogo possui uma gama de acepções e simbologias. Está, muitas vezes, associada à ideia de destruição, dor e juízo. Por outras vezes, está atrelada às situações delicadas. Mas queremos, com o título da presente obra, tomar a palavra fogo numa perspectiva metaforicamente diversa das que usualmente é empregada.

O fogo é a principal ferramenta dos que trabalham com metais preciosos. O ourives, por exemplo, usa-o para burilar o ouro e obter o melhor do metal. Mas, e a alma humana? Como a alma humana se comporta quando exposta ao fogo? Ele foi levado de seu país a uma terra longínqua e de língua estranha. Ele foi exposto a tudo o que um ser humano mais abomina: saudade, medo, ódio, perplexidade, dor, iminência da morte. A ação desses elementos fez surgir um novo homem. Todavia, paradoxalmente, concebeu-se, não um ser de caráter beligerante, mas um filho da paz. Ele, juntamente com outros milhões, escreveu, com seu próprio sangue, um dos capítulos mais importantes da História da Humanidade. Você conhece este homem? Não se admire em dizermos que você deve conhecê-lo, pois eu e você devemos algo a ele.



CAPÍTULO I O PRIMEIRO DOS DIAS

ALTO SERTÃO BRASILEIRO, 02 DE JUNHO DE 1918. As alpercatas levantam poeira na terra árida. Uma moça, com semblante ligeiramente pálido, transparece muita apreensão, enquanto corre desesperadamente em direção a seu pai. De longe, seu pai, João, a avista e, assustado, olha para seus filhos que o acompanhavam. Todos soltam repentinamente as bolsas repletas de algodão, que estavam a colher, correndo em direção à moça. O pai a toma pelos braços e, com olhar fito e perplexo, espera que ela fale alguma coisa. Ela, chorando muito, balbucia: - Pai! - O que foi que aconteceu, minha filha? O que é? Fale logo, por amor de Cristo! Ela, com a respiração ofegante, fala com dificuldade: - Mamãe, ela tá passando mal! O pai, sem vacilar, já imaginado do que se trata, olha serenamente para José, seu filho mais velho, e dá a ordem taxativa: - Meu filho, traga a parteira!

Instantes depois, já na casa sede do sítio, João, na sala

da modesta residência, anda de um lado para outro, angustiadamente. Ele sente um aperto em seu coração com cada grito que sua esposa dá dentro do quarto. José tenta acalmá-lo.

Úrsola, a filha que o chamara, também está sentada na

sala, roendo as unhas e olhando para o chão, com olhar fixo e distante. Um dos outros filhos, Anastácio, que também ajudara o pai na colheita de algodão, mais tranquilo que seu pai e sua irmã, bebe água despreocupadamente na cozinha.



Em um dos quartos, estão a parteira e Dona Luíza, esposa de João. Noca, uma filha de criação, também as acompanha, auxiliando nos procedimentos.

De repente, ouve-se o choro de uma criança. João, com

uma feição que exprime expectativa, para, olha para sua filha, e corre para dentro do quarto. Ao adentrar o cômodo, contempla sua esposa com a criança nos braços. Para seu alívio, ela estava bem e seu filho nascera saudável; para sua alegria completa, ao tomar a criança em seus braços (de forma desajeitada, mas delicadamente), João percebe que é um menino. Pelo que, exultante, exclama:

- Jesus me agraciou com mais um colhedorzinho de algodão! Mais um para me ajudar na roça!

Sua esposa, mesmo debilitada pelo esforço do parto, não contém a alegria, deixando escapar uma risada enquanto as lágrimas correm pela sua face.

Tranquilidade e satisfação tomam todos na casa, eles se olham com feições alegres e aliviadas, sem falar mais nada. A agonia do parto já havia passado, a criança nascera saudável e bastante ativa.



CAPÍTULO II OS PRIMEIROS DIAS

Algumas semanas depois, a casa está movimentada com todos se aprontando, cada um no seu próprio cômodo. Não bastasse ser domingo, dia de visita à cidade e dia de missa matinal, era dia de batismo. Seu João, já pronto, aguarda na sala, com ar de ansiedade e irritação. Ele fala murmurando, sentado numa cadeira de balanço e com a mão no queixo:

- Ô, Luíza, avexe logo isso mulher! Desse jeito esse

menino só vai ser batizado daqui a cem anos! - Deixe de pressa, homem, a igreja não vai sair do lugar!

O padre é moço e também vai viver por muito tempo! – retruca Dona Luíza, com ar de brincadeira, colocando a cabeça para fora do quarto e falando em direção à sala.

Úrsola, que era a primogênita de Seu João, já

devidamente arrumada, vem toda jubilosa do seu quarto. João, fitando-a, franze a testa e, tirando a mão do queixo, levanta-se repentinamente, abrindo os braços e depois os cruzando. Ele a interpela, com exaltação:

- O que é isso, menina? - Isso o quê, papai? Indaga Úrsola, com o semblante assustado e surpreso. - Você acha que vai pra onde com esse vestido? Vá

colocar uma roupa decente! - Mas, papai... Dona Luíza, vindo do quarto, observa atentamente a

filha, intervém na discussão e reforça: - Úrsola, minha filha, esse vestido está pequeno, não

discuta com seu pai, vá colocar um vestido mais longo!



- Mas, mamãe, esse vestido é novo! - Não me responda, menina! Úrsola sai apressadamente em direção ao seu quarto,

com ar de indignação e segurando o choro. João se senta novamente, conformado, mas sem deixar

de fazer uma reclamação: - Mas eu não digo uma coisa dessas! Eu crio meus filhos

para serem decentes, pessoas de bem! Se ela quiser arrumar marido bom tem que se vestir como moça de família!

Nesse ínterim, José e Anastácio, filhos mais velhos de

Seu João, terminam de se arrumar e vão para terraço da casa, juntamente com Noca, sua irmã de criação.

De volta ao quarto do casal, Dona Luíza dá os últimos

retoques nas roupas de Lourival, Valdemar, seus filhos mais novos, e na do bebê recém-nascido.

Estando todos prontos, a família segue em cortejo rumo

à cidade. Na igreja, a criança é batizada com o nome de Marcelino Lúcio Mamedes.

Os dias passam tranquila e vagarosamente no sítio

Angelim. A vida era rústica, dedicada às atividades na lavoura e de pastoreio. João, juntamente com seus filhos, trabalhava nas atividades rurais mais pesadas, e às mulheres competiam os trabalhos domésticos.

Seu João, apesar de agir com muito rigor com seus

filhos, era um homem de bom coração, dedicado ao trabalho e preocupado com o caráter de sua prole. Dona Luíza era uma mãe dedicada e atenciosa com todos, mas, como era natural acontecer, acaba desenvolvendo um afeto especial por Lúcio, seu filho mais novo. O afeto, de forma inconsciente, torna-se zelo e proteção excessivos. Luíza procura poupar Lúcio das atividades mais pesadas.



Lourival, que era caçula, antes que Lúcio nascesse, acaba se sentindo preterido por sua mãe e busca, consciente e deliberadamente, aproximar-se do seu pai, através da dedicação árdua às atividades que ele desempenhava no sítio. Fato que agrada João sobremaneira.

Com o passar do tempo, Lúcio se torna suficientemente crescido e apto às atividades rotineiras no sítio, não havendo mais razão para o protecionismo de sua mãe. Ele, todavia, demonstra desinteresse pela lavoura, apegando-se mais às atividades de pastoreio.

Na época de colheita, toda a família se mobilizada. Havia

uma dicotomia expressa em cansaço pelo trabalho duro e alegria pela benção do que se colhia. Vez por outra havia períodos de estiagem e seca.

Dentre os filhos de Seu João, Lourival se destacava na

colheita algodoeira, pois trabalhava de uma forma quase que obstinada. Entre Lourival e Lúcio havia pouco mais de três anos de diferença de idade, mas, enquanto Lourival chegava a colher trinta quilos de algodão num único dia, Lúcio colhia apenas cinco quilos. Por conta disso, o pai deles não poupavam elogios a Lourival, e impropérios a Lúcio.

Certo dia, cansado de ser tratado como um indolente

por seu pai, Lúcio resolve aprontar uma. Astutamente, aguarda o início da colheita de algodão e que seus irmãos despejem as sacolas nos seus respectivos montões. No momento de despejar sua sacola sobre seu montão, ele verifica diligentemente se não está sendo observado, vai até os montões dos seus irmãos, retira porções para sua sacola e posteriormente despeja em seu montão. Repete a ardilosa operação por três ou quatro vezes. No fim do dia, quando foram pesadas as quantidades colhidas por cada um, Lúcio aparece com a surpreendente e inédita quantia de quatorze quilos. Seu pai, maravilhado, pergunta:

- O que danado aconteceu, Lúcio? Hoje você se estourou

de colher algodão! Lúcio, querendo aproveitar aquele raro momento de

admiração de seu pai, responde cinicamente:



- Olhe aqui, meu pai, até minhas mãos ficaram calejadas! Lúcio ganhara seu dia. O sucesso da fraude o motivou a

tentá-la em outra ocasião, no que não teve sucesso, sendo flagrado, foi duramente castigado. Isso fez com que ficasse ainda mais desmotivado ao trabalho agrícola.

A inaptidão e desmotivação às atividades agrícolas do Angelim vieram novamente à tona na época da colheita de milho. O calor naquele dia era insuportável. Lúcio colhia o milho e lançava dentro de caçuás levados por um jumento. Estando cheios os caçuás, a praxe era levar o milho para ser quebrado e colocado em malas. Ao chegar para depositar o milho de seus caçuás, Lúcio observou que uma das malas estava vazia. Com um ar de incerteza e desconfiança, mas impelido pelo desejo de se proteger um pouco do calor, ele resolve entrar na mala vazia, fechando-a. Ao se sentir confortável, acaba adormecendo.

Em certo momento, João percebe a ausência de Lúcio,

pelo que empreende uma busca por todo o sítio, com ajuda de seus outros filhos, mas não obtém sucesso. Todos ficam perplexos e uma sensação de preocupação começa a incomodar João. Entretanto, Anastácio, meio que intuitivamente, dirige-se às malas de milho e, ao abrir uma delas, encontra Lúcio dormindo e completamente suado.

- Achei! Todos correm em direção ao local. Anastácio fala com

tom de profunda ira e, fazendo uso da autoridade de um dos irmãos mais velhos, toma Lúcio pela orelha:

- O safado estava dormindo aqui, pai, e está mais suado

do que pano de cuscuz!

Lúcio é mais uma vez duramente castigado.



CAPÍTULO III O DIA MAIS TRISTE

As coisas no sítio Angelim haviam mudado um pouco, após cerca de doze anos do nascimento de Lúcio. Úrsola, José e Anastácio haviam se casado e se mudado do sítio. Apesar de que, sempre que podiam, visitavam os seus pais. Permaneciam no sítio: Noca, Lourival, Valdemar e o próprio Lúcio. Também nesse período de tempo, Dona Luíza e Seu João tiveram mais três filhos: Maria, Amâncio e Rosa. Todavia, o que não havia sofrido mudanças era o carinho especial de Dona Luíza por Lúcio e vice-versa. O dia amanhecera como outro qualquer, ao som do galo, que pontualmente dava seu cacarejo às seis. Todos acordavam e rodeavam a mesa para tomar o café, pontualmente às sete horas (antes de iniciar as atividades rotineiras do sítio).

Dona Luíza, em agrado a João, zelava para que todos estivessem juntos à mesa, num rigor quase religioso. Seu João logo se zangava se um dos filhos demorasse a chegar para tomar café ou para qualquer uma das refeições do dia.

A família reunida enchia os olhos de João e Luíza, pois era um símbolo vivo de tudo que haviam construído juntos; inconscientemente, também era uma forma de aproveitar a presença dos filhos, enquanto eles não chegassem à idade adulta e partissem para cuidar de suas próprias vidas.

A ideia de ficarem velhos e sozinhos no Angelim os

apavorava. Havia algum tempo que ambos, nesses momentos de refeição, em que todos estavam juntos, ficavam observando os filhos e se perturbando com pensamentos do tipo: até que dia os teremos aqui? Será que eles vão nos abandonar? Eles olhavam um para o outro, sem dizer uma palavra, mas captando intuitivamente o que o outro pensava, através de seus semblantes melancólicos. Seu João, apesar de aparentar ser um homem duro e rude, era o que mais sofria com isso. Todas as noites, no íntimo do seu quarto, antes de dormir, revelava suas queixas à Luíza:



- A gente cria, trabalha de sol a sol, só pra que um dia eles criem asas e voem sozinhos... Dona Luíza ficava angustiada e, apesar de pensar a mesma coisa, procurava consolar seu marido, aliviando aquele clima triste: - João, é assim que Deus quer. Os filhos a gente cria pro mundo. Daqui a pouco vai estar cheio de bacuri, correndo de um lado para outro, puxando tua barba e te chamando de vô. João olhava para Luíza e soltava uma gargalhada. Ele retrucava, com ar de ironia: - Eita, minha velha, será que tu aguenta mais menino novo depois dessa ruma de filho? Um mói de comedorzinho de rapadura na barra de tua saia dizendo: vó! Vó! Eles conversavam sempre a mesma coisa e se consolavam sempre com os mesmos argumentos. Na noite anterior a esta manhã, não havia sido diferente. Tudo ocorrera normalmente naquele dia. Depois do café, Lúcio seguiu para pastar as cabras, juntamente com Valdemar. João e Lourival foram à lavoura. Noca e Maria cuidavam da casa e dos irmãos caçulas, acompanhadas da sua mãe. Todos almoçaram normalmente, seguindo-se a rotina normal até à chegada do crepúsculo da tarde.

Após o jantar, seu João foi para o terraço, fumar seu cigarro de palha, enquanto matutava na cadeira de balanço. Ele estava na companhia de Anastácio, que contava uma história para Maria e Amâncio. Lúcio estava em casa, na sala, junto de sua mãe e de Noca. De repente, Luíza se queixa de um mal-estar: - Ô Noca, vá buscar água pra sua mãe. - Qual o problema, mamãe?

Pergunta Lúcio, assustado.



- Nada, meu filho, eu só estou tonta. Lúcio, que era extremamente zeloso para com sua mãe, corre na cozinha e traz um banquinho, enquanto Noca traz a água. Cuidadosamente, Lúcio coloca sua mãe sentada no banquinho e fica sentado numa cadeira à frente dela, acomodando-a no seu colo. Numa atitude pueril e carinhosa, ele começa a fazer carícias na cabeça da sua mãe, buscando acalmá-la. Eles conversam, enquanto ela vai relaxando até o ponto em que para de falar e fica totalmente flexível. Lúcio, imaginando que ela adormecera, chama seu pai e a um irmão para levá-la para cama. Seu João e Lourival atendem ao apelo, mas, ao tocar em sua mãe, percebem algo estranho: ela não esboçava reação alguma. - Luíza? Luíza?

Chama-lhe João, com ar de perplexidade. Lourival fica assustado. Lúcio e os demais, que estavam

na sala, ficam confusos.

- Meu filho, pegue o cavalo, vá até a cidade e peça ajuda de algum doutor! Determina João a Lourival, em tom de desespero. Eles levam Dona Luíza para o quarto e a colocam na cama. João, antes de fechar a porta, manda que Noca fique fora do quarto, com o restante das crianças. Todos são tomados por um ar de desespero. Instantes depois, Lourival chega com um médico, Dr. Bonifácio, que entra no quarto e fica a sós com João e Luíza. Tal médico constata o que João temia: Luíza estava morta.

João leva as mãos à cabeça e cai de joelhos no chão. O homem rude e duro chora copiosamente, como nunca havia chorado em toda sua existência. As crianças ouvem do lado de fora, em total perplexidade, os caçulas não entendem o que se passa. Mas Lourival, aos prantos, já imagina do que se trata. Lúcio, ainda confuso, pergunta a Noca:



- Será que mamãe está doente? Noca, segurando o choro, constrangida com a

ingenuidade da criança, não dá resposta. João abre a porta do quarto. Todos têm os olhos fitos nele. Ele os chama para dentro, falando com o rosto molhado com as mais amargas lágrimas que ele já pranteara:

- Meus filhos... Deus chamou sua mãe pra Ele. O silêncio de todos, gerado pelo choque posterior a essa afirmação, é quebrado com uma pergunta de Lúcio, ainda sem compreender o que se passava: - O que é isso, papai? O que aconteceu? - Sua mãe está morta, meu filho, Deus chamou sua mãe. Eu tinha medo de perder vocês, nem imaginei que podia perder ela. Cada um se dirige para um canto distinto da casa. Um clamor de pranto eclode como um coral. A tristeza era indescritível para todos. Mas, para Lúcio, a sensação era que sua vida não teria mais sentido a partir daquele instante fatídico. Ele corre em direção ao corpo de sua mãe, balançando-a e gritando: - Mamãe, acorde! Mamãe, mamãe, acorde, mamãe! Mamãe! Mamãe! Meu Deus! Minha vida se acabou! Perdi o gosto de viver! Lúcio corre para fora da casa e vai se isolar. Ele ficaria lá fora até o amanhecer do outro dia, agachado com a cabeça sobre os braços cruzados e chorando.

No íntimo dos pensamentos da criança havia incógnitas. Elas se passavam e se repetiam em sua mente: como viveria sem sua mãe? Como viveria sem sua melhor amiga e protetora? Como seria sua vida de agora em diante?

Houve pranto, velório e sepultamento.



O tempo se passara desde aquele trágico dia,

estancando um pouco as feridas dos corações; todavia, Lúcio, aquele garoto outrora alegre, travesso e sapeca, entregara-se à melancolia. Ele passara meses em total apatia, não se alimentando direito, sendo monossilábico em seus diálogos e sem brincar. Suas indagações sobre como seria sua vida sem sua mãe não haviam sido resolvidas. Havia um vazio de dimensões oceânicas em seu jovem e pequenino coração.

Certo dia o inconsciente lhe sugeriu algo.

Úrsola era uma das irmãs de Lúcio que cultuavam,

junto à mãe, o protecionismo a ele. Ela veio com seu marido fazer uma visita a Seu João. O garoto espiava a conversa que seu pai e o casal tinham na sala. Ele, como quem não quer nada, achegava-se timidamente, até que, sem mais rodeios, intromete-se na conversa e indaga Úrsola:

- Você deixa que eu vá morar com você? Ela ficou surpresa com o pedido, mas o carinho pelo irmão mais novo tornava-lhe simpática à ideia. Numa troca rápida de olhares com seu marido, percebe que ele consentira com a ideia. Seu João, por sua vez, retrucara o pedido de Lúcio: - O que é isso meu filho? Está faltando alguma coisa aqui? Lúcio olha para o chão, reflete e responde com ar de choro: - Está não, papai, mas, quando estou com Úrsola, lembro de mamãe. João, apesar de comovido com o que ouvira, com um nó na garganta, fala, em tom comedido: - Mas, meu filho, a gente não pode incomodar os outros, sua irmã tem a vida dela.



Nesse ínterim, Úrsola medita em seu coração e chega à conclusão que essa seria uma vontade de sua mãe. Zelar por Lúcio seria algo que agradaria Luíza, se ela estivesse viva, pelo que, interfere a fala de seu pai, dirigindo-se a seu marido: - O que você acha? Alguns dias não fará mal.

Seu marido responde positivamente, com um aceno de cabeça. Ele, sorrindo, olha para Lúcio e diz carinhosamente: - Vem cá pro tio! Mas se der trabalho volta no mesmo dia! Lúcio esboça um sorriso, depois de meses sem qualquer expressão de alegria, corre para pegar suas coisas, que já estavam totalmente e premeditadamente preparadas para aquele momento. Ele as traz para sala, se arrastando pela dificuldade de se locomover com o peso delas. Todos começam a rir com a perspicácia do menino.

Pela primeira vez em meses, o clima fúnebre no Angelim é quebrado e dá lugar a um pequeno instante de alegria.



CAPÍTULO IV DIAS DE ERRÂNCIA

Lúcio mudara-se da zona rural para a cidade de Cajazeiras, na Paraíba, para casa de sua irmã, Úrsola. Ela se esforçava para dar carinho e atenção ao menino, à medida que também tinha muito trabalho para discipliná-lo. Lúcio ainda sentia um profundo vazio pela perda de sua mãe. Entretanto, curiosamente, esse vazio que Lúcio sentia não se reverteu em agressividade, pelo contrário, Lúcio tornou-se um adolescente pacífico e destemido. Ele era extremamente irreverente e bem-humorado no que fazia e no que dizia. Essas características ajudaram Lúcio a se adaptar rapidamente à nova realidade urbana. Ele fez, com facilidade, muitos amigos na vizinhança. Pelo seu destemor, Lúcio desenvolveu um carisma próprio e, em sua turma de amigos, sempre atuava com liderança, em especial, nas travessuras que aprontavam juntos. Era ele o mentor intelectual das mais ousadas travessuras que a turma de amigos fazia. Professores, padres, freiras, vizinhos, ninguém escapava das ardilosas e jocosas “operações” da turma. Alguns adultos mais religiosos e fofoqueiros achavam que a solução para o caso de Lúcio e dos outros meninos seria o exorcismo, achavam que os meninos tinham algum espírito mau, mas a garotava não se importava e prosseguia em suas travessuras, não poupando ninguém, claro. Lúcio era, muitas vezes, mal compreendido, pois, no mais íntimo do seu ser, ele realizava suas travessuras como uma forma de preencher o vazio que ele tinha pela perda da mãe. Era uma forma de chamar atenção para si. Enfrentar o perigo era uma forma de dizer ao mundo e às pessoas que ele não tinha nada a perder. Por isso tanta intrepidez.

Era chamando a atenção das pessoas adultas para si, como uma forma de estar no centro das atenções, que Lúcio buscava se realizar.



O bom humor e o espírito de liderança faziam Lúcio popular também com as jovens da vizinhança. Some-se a isso uma característica peculiar e que o diferenciava ainda mais dos outros garotos: ele era muito atencioso com suas amigas e sempre que podia lhes trazia rosas ou outros agrados. Ele era, apesar de ser muito travesso, um grande cavalheiro e galanteador.

Ao mudar para a cidade, ele descobriu e pôde desenvolver um grande prazer: dançar. O que conseguia fazer com muita habilidade. Lúcio era um garoto muito inteligente, estava acima da média de amigos da rua e colegas de sala. Na escola ele aprendia as coisas rapidamente e, por causa disso, aproveitava para fazer desordem. Ele era evitado por muitas professoras, devido à hiperatividade e constantes gracinhas durante as aulas. A palmatória estava sempre se encontrando com Lúcio durante as aulas. Ele chegou a terminar o Primário, mas acabou zangando-se com a escola e com a palmatória e não quis mais prosseguir nos estudos. Era uma pena, pois talvez houvesse a possibilidade de surgisse daquele garoto especial um grande médico ou advogado daquele. De qualquer forma, o futuro reservava para Lúcio algo especial e único, ele não nascera para ser alguém comum, nascera para ter a sua vida registrada nas páginas da História. Com o decorrer do tempo, Lúcio foi crescendo e as travessuras que fazia deixaram de ser atrativas. O vazio que havia dentro de si já não era mais preenchido com coisas pueris, ele havia crescido e se tornado um rapaz feito. Então, decidiu inovar na sua atitude contumaz de desafiar a vida e as pessoas.

Certo dia, uma conhecida sua veio se despedir e lhe disse que estava de mudança para a capital do Estado, João Pessoa. No dia seguinte, Lúcio, sabendo que sua amiga ia viajar pela manhã bem cedo, saiu sem avisar a ninguém, pegando um punhado de roupas em casa, três pães e um pedaço de bolo, além de alguns trocados que tinha. Ele foi ter com o pai da amiga que estava para se mudar:



- Seu Humberto, o senhor está indo para João Pessoa, não é? - Acordado logo cedo menino? Vou sair daqui a pouco Lúcio. Veio se despedir? - Nunca fui a João Pessoa. Lá é bonito, Seu Humberto? - Sim, meu filho. Por quê? - Seu Humberto, é verdade que a praia é safadeza? - Que conversa é essa? - É que freira Zezinha disse que o povo anda desnudo na praia e que isso era safadeza. Se eu for pra praia, Seu Humberto, eu vou ter que me confessar para o padre? - Você pergunta demais, menino. Deixe de tagarelar e me ajude aqui com essas caixas. - Eu ajudo no que o senhor quiser, mas o senhor me deixa ir com vocês para passear em João Pessoa? - Mas Lúcio, tua irmã sabe disso? - Eu já sou um homem feito, Seu Humberto, esse negócio de ficar na barra da saia de mulher é coisa de maricas! Quem sabe até arrume um emprego e me vire sozinho. Já está na hora deu trabalhar! Humberto dá uma boa risada, olha para Lúcio com o sorriso discreto e diz, meneando sua cabeça: - Menino, tu não tem jeito, agora que já é um rapaz vai ganhar o mundo. Venha cá, você vai, mas me ajude a colocar essas coisas no caminhão. Lúcio, com toda empolgação e alegria, ajuda Humberto. E eles partem. Eram dois os caminhões que viajariam. Lúcio



viajou dentro de um carro que estava em cima de um desses caminhões.

Lúcio estava alegre e excitado com a nova experiência:

sua mente divagava, enquanto a brisa batia no seu rosto e o caminhão balançava. Ele pensava e contemplava atentamente a paisagem. O percurso era bem longo e as estradas não eram boas, mas Lúcio não esmorecia. À noite, no outro dia, já muito tarde, chegaram a João Pessoa. Lúcio agradeceu a Seu Humberto e saiu pela cidade, sozinho e com sua trouxa de roupas nas costas. Humberto ainda tentou contê-lo, mas ele insistiu que já era um homem e seguiu destino sozinho. Humberto ficara perplexo com a coragem e insensatez do garoto e não o impediu.

Lúcio caminhou até um posto de polícia e, com seu jeito

desinibido contou sua história aos policiais, conseguindo que eles o deixassem dormir ali. Ele disse que tinha vindo a João Pessoa se apresentar ao exército, no 15o Regimento de Infantaria (15RI). Lúcio sabia que seu irmão Lourival estava incorporado ao 15RI, e achava que ele poderia ajudá-lo a entrar nas Forças Armadas. No dia seguinte, aos primeiros raios de sol, Lúcio, num misto de ansiedade e excitação, levantou-se e se aprontou para ir ao 15RI.

Lúcio se chamava Marcelino Lúcio Mamedes e seu irmão, Lourival, chamava-se Lourival Lúcio Mamedes, mas Lourival tomou no exército o nome de guerra “Lúcio”. Ele era cabo, cabo Lúcio.

Lúcio chega ao 15RI e se identifica como irmão de cabo Lúcio, de Cajazeiras. - Cabo Lúcio, visita para você. Anuncia o Oficial do Dia a Lourival.

- Visita para mim? Minha esposa?

- Não, é um de seus irmãos de Cajazeiras, Lúcio. Que por sinal nem precisou dizer que era teu irmão, pois é a tua cara. - Eu não acredito. O que ele quer?



- Não disse. Está aguardando você. Cabo Lúcio, transtornado e irritado, dirige-se à sala de recepção e, sem sequer cumprimentar o irmão, pergunta de forma seca e ríspida: - O que você veio fazer aqui? - Eu vim passear... - Passear? Que conversa é essa? Viajar esse mundo todo para passear? - Seu José advogado não foi pra Europa viajando um monte de dia num navio só pra passear também, porque eu não posso passear em João Pessoa? - Não venha com suas gracinhas, Lúcio, o que você quer aqui? Você não tem a mínima idéia do que é a Europa, só ouviu falar pela boca de seu José, um loroteiro por sinal. Sabe quando você vai conhecer a Europa? Nunca! Além do mais, você devia estar em casa. Úrsola sabe que você está aqui? - Eu vim entrar para o exército, como você. Quero cuidar do meu próprio nariz. - O exército é muito pesado para você, Lúcio. Você não vai aguentar o rojão! Não me venha com essa história de cuidar do nariz, volte para casa logo, senão você não vai ter mais nariz, porque eu mesmo vou arrancá-lo, caso você for teimoso! - Mas, meu irmão... - Não tem mais nem menos, Lúcio. Olhe, tome esse dinheiro, coma alguma coisa decente e volte para casa. Lourival lhe dá dois contos de réis para ir para casa. Lúcio toma o dinheiro, com o semblante entristecido e decepcionado. Ele achava que seu irmão poderia ajuda-lo a entrar no exército.



Apesar da rispidez, a intenção de Lourival era a das melhores, pois ele sabia que o regime militar seria uma exigência muito grande para Lúcio. Seu irmão mais velho só queria poupá-lo. A vida na capital e no exército não era fácil. Lúcio, arrasado, despede-se do irmão e decide ir embora, mas antes, vai à praia e, por um momento, esquece a tristeza. Sentado na areia ele fica horas, muito pensativo, refletindo sobre tudo o que vivera desde sua infância até aquele momento. As lágrimas escorrem do seu rosto, enquanto mantém o olhar fixo no horizonte marinho. Após aqueles momentos, ele se levanta, enxuga as lágrimas, toma uma condução à estação ferroviária e retorna para Cajazeiras.



CAPÍTULO V DIAS DE CONSPIRAÇÃO

Ao retornar à casa de sua irmã, Lúcio encontrou um clima extremamente desfavorável e muitíssimo pesado. Úrsola estava à beira de um colapso nervoso, com o semblante iracundo e com a voz em tom de choro. Ela o repreende veementemente: - Lúcio, como você faz uma coisa dessas? Você quer me matar antes do tempo? Nós estávamos aperreados e pensando no pior. Sorte que Seu João da mercearia viu você entrar no caminhão com Seu Humberto, senão nós íamos morrer de desespero! Passei esses dias sem dormir! O que você tem na cabeça, menino? - Eu já sou um homem feito, minha irmã, eu não vou ficar na barra de sua saia o resto de minha vida. Eu já sou dono do meu nariz, não quero lhe dar mais despesa e preocupação. Está na hora de me sustentar sozinho. - Não quer dar preocupação? Você sai sem avisar, Lúcio, pelo amor de Cristo! Como você tem coragem de fazer uma coisa dessas? Você vai ficar de castigo, sem sair de casa por um mês! - Eu vou arrumar um emprego e cuidar da minha vida. Eu vou entrar no exército! Lourival não me ajudou a entrar em João Pessoa, mas eu vou entrar lá em Campina Grande! - Vá para seu quarto, você não sai de lá antes de minha ordem. Lúcio, contrariado e furioso, vai para o quarto. Guilherme, o marido de Úrsola, que apesar de estar muito indignado com a leviandade de rapaz, concorda que o jovem já está em idade de trabalhar e tenta argumentar com sua esposa:



- Meu amor, Lúcio fez uma coisa errada e nos encheu de preocupação, mas ele já está na idade de arrumar um emprego e de ter responsabilidade na vida. - Ele é só um menino... - Menino? Úrsola, seu irmão é um rapaz, um homem feito! Você não vai mais conseguir controlá-lo! Eu vou ajudá-lo a arrumar um emprego. Assim, ele se ocupa e para de fazer essas presepadas. - Ele está passando fome? Está faltando com o que ele se vestir? - Querida, ele é um homem e só quer ser dono do próprio destino. Seria pior se ele fosse um vagabundo que não quisesse nada com a vida. Seria pior se ele gostasse de viver sendo sustentado pelos outros. - Mas, se ele ficar sozinho, quem vai cuidar dele? - Você estragou o menino, Úrsola, e agora só a vida vai dar um jeito nele. Eu não vou mais sustentar marmanjo, se você quiser que ele fique aqui, ele vai ter que trabalhar. Fim de conversa! - Mas, eu amo meu irmão e só quero o melhor para ele... - Não discuta comigo, eu decidi e está decidido, ou trabalha ou volta para o sítio! Amanhã vamos procurar um serviço para ele. Se você o ama vai entender que isso é o melhor para ele. Nesse ínterim, Lúcio está a maquinar em seu quarto um plano de fuga. Já planejava ir para Campina Grande-PB, às escondidas. Seu objetivo era ir ao 40o Batalhão de Cavalaria, o 40BC, para se apresentar voluntariamente ao Serviço Militar. Ele tinha dinheiro suficiente para tal objetivo, daquele que seu irmão havia dado, quando foi a João Pessoa. Para ele era só uma questão de tempo. Deixaria as coisas se acalmarem e executaria seus desígnios, mas, desta vez, intentava deixar uma carta de despedida.



Os dias foram se passando e Úrsola havia se acalmado, apesar de angustiá-la a idéia de que Lúcio, mais cedo ou mais tarde, daria curso próprio à sua vida. Guilherme saía toda semana à procura de emprego para o jovem. Apesar de tudo isso, para Lúcio, o clima continuava pesado. Ele sentia que ali não havia mais lugar para ele. Ficava fechado e não dizia palavra alguma. Só pensava obcecadamente em como e quando fugiria dali. Até que, certo dia, ele toma conhecimento que os nascidos em 1918 estavam sendo convocados a se alistarem no 40o Batalhão de Cavalaria, em Campina Grande. Lúcio recebera aquela notícia como uma carta de alforria: sua idéia fixa de se alistar estava mais próxima de tornar-se real. Não havia como Úrsola se opor a que ele viajasse até Campina Grande para se apresentar, pois era uma convocação oficial.

O rumo das coisas estava conspirando para que o

querer de Lúcio fosse estabelecido. O jovem, então, dirige-se até Campina Grande, ao 40BC e demonstra aos oficiais o interesse em ficar entre os escolhidos. Nos exames Lúcio destaca-se (o porte físico de sertanejo, de alguém rústico, em muito colaborou para isso). Desta forma, ao ser divulgada a lista de convocados, ele estava entre os escolhidos para servir.

A notícia da convocação para servir ao Exército extinguiu as últimas esperanças de Úrsola exercer algum controle sobre a vida de seu irmão. O que ela temia se concretizou: Lúcio estava de partida. Seu coração sofria duplamente: de um lado, angústia por ver seu irmão como uma criança desprotegida lançada ao mundo e à vida; e de outro lado, saudades por ficar privada de sua companhia. Já seu esposo, Guilherme, apesar de solidário ao sofrimento de Úrsola, encarava a situação com naturalidade e como uma forma de Lúcio amadurecer:

- Meu amor, ele vai ficar bem. Úrsola apenas acena com a cabeça, numa concordância apática e incrédula. A contagem regressiva para o dia da partida de seu irmão massacrava seus sentimentos. O peso



da responsabilidade de substituir sua mãe, na tarefa de cuidar do menino, martelava em sua cabeça fazendo-a pensar: - O que mamãe diria se estivesse viva? Deus sabe que fiz o melhor. Mamãe sempre nos disse que nos criava para o mundo. Papai nunca gostou da idéia, acho que puxei a meu pai, meu Deus! Tentei fazer o melhor, meu Deus, me perdoe se falhei! Juntamente com esses pensamentos, ela balbuciava repetidamente a mesma prece: - Cuide desse menino meu Deus, por amor de Cristo, cuide desse menino! O dia da partida finalmente chega e todos se aprontam, dirigindo-se até a estação de trem. Fica patente ao chegar à estação a antítese de sentimentos entre os irmãos: o sentimento de Úrsola é lúgubre, enquanto que o de Lúcio, de excitação. Esses sentimentos são ainda mais aguçados e perceptíveis com a chegada do trem. Numa sincronia, Lúcio ergue a cabeça e sorri alimentando os mais diversos sonhos em seu íntimo, ao passo que Úrsola, baixando sua cabeça, chora e fixa o olhar no chão com os pensamentos distantes. Ela, apesar de resignada, faz uma última tentativa de reverter a situação: - Lúcio, meu filho, você tem certeza que é isso que você quer? Podemos arrumar um emprego melhor aqui mesmo em Cajazeiras. - Não fique triste, minha irmã, sempre que eu puder vou visitar vocês. - Você sabe que minha casa é sua casa, Lúcio... - Você foi como uma segunda mãe para mim e eu nunca vou esquecer. Mas preciso fazer isso por mim e por você. Eu preciso ser alguém na vida. Eu vou voltar e vou trazer um



presente bem bonito para você comprado com meu dinheiro, com o meu suor! Lúcio olha para Guilherme e diz: - Guilherme, cuide bem da minha irmã, senão quando eu for um general eu te boto na cadeia! Guilherme sorri e o abençoa: - Deus te abençoe, Lúcio. Vá com Deus. Ele se dirige novamente à irmã: - Úrsola, mamãe foi a pessoa mais importante na minha vida, mas você fez por mim tudo que ela fez e sem ser a minha mãe. Eu sou grato por tudo e quero que saiba que eu te amo muito! Espero que você me entenda. - Sua felicidade é a única coisa que me consola Lúcio. Vá com Deus! Eles se abraçam demoradamente em meio às lágrimas de ambos e fazem uma prece. Lúcio embarca no trem e acena melancolicamente, sentindo tristeza pelo sofrimento de sua irmã, mas decidido em crer que sua escolha era o melhor para todos. Sua vida estava tomando, literalmente, um novo trilho.



CAPÍTULO VI NOVOS DIAS

O olhar calmo e fixo de Lúcio, ao contemplar a paisagem durante a viagem, esconde o que se passa no seu íntimo: um turbilhão de pensamentos e sentimentos que eram criados ao fantasiar a respeito da nova vida que teria. Seus sentimentos eram um misto de grande expectativa e excitação. A nova cidade e a possibilidade de novas amizades, além da perspectiva de uma nova rotina, alimentavam uma íntima e profunda alegria em Lúcio, que via nos desafios de uma nova vida um novo e poderoso estímulo para viver. Entretanto, a maior das satisfações era a realização do sonho de entrar no Exército. Sonho que, num primeiro momento, havia sido frustrado pelas duras palavras de seu irmão em João Pessoa. Lúcio chega a Campina Grande e é incorporado ao 40BC, o Quadragésimo Batalhão de Infantaria. O 40BC era uma unidade que estava em organização e construção. A própria estrutura da unidade estava sendo erigida e aperfeiçoada pelos soldados. O trabalho nas construções era árduo, mas isso não fazia com que a irradiante alegria de Lúcio se esvaísse. O jovem, pela sua forma bem humorada de encarar as duras atividades, rapidamente cai nas graças de seus colegas e dos seus superiores. Seu vigor físico de sertanejo também colabora para que Lúcio receba atenção e apreço de seus superiores, pois se destacava na execução das atividades. Apesar da forma irreverente que, às vezes, confrontava o rigor e a disciplina militares, o bom desempenho nas atividades físicas, o carisma e o espírito de liderança fazem Lúcio ser visto com bons olhos pelos oficiais. Certo dia, todos os soldados foram colocados em ordem no pátio, criando um grande suspense. Geralmente essas convocações surpresa eram feitas quando algum ou alguns dos elementos da tropa tinham feito alguma coisa repreensível ou alguma atividade de forma incompetente. O resultado era sempre uma repreensão ou castigo coletivo.



Todos se organizam, em clima de tensão, defronte ao sargento Oficial de Dia. Ele andava de um lado para o outro, contemplando os semblantes temerosos dos jovens soldados. Parando de repente, o sargento exclama: - Senhores, há cerca de um ano vocês saíram da barra da saia de suas mães para aprenderem a serem homens! Hoje é um dia especial em que as mocinhas terão a oportunidade de crescer na carreira que escolheram (ou na carreira que foram obrigados a escolher). Eu quero que os elementos que sabem ler e escrever dêem um passo à frente! Todos os alfabetizados dão um passo à frente, exceto Lúcio. Tinha receio porque todos os outros que haviam dado um passo à frente tinham estudado mais que ele. O Oficial de Dia, que conhecia a ficha de Lúcio e sabia que ele tinha estudado o Primário, dirige-se até Lúcio e o indaga: - Qual o problema, Lúcio, não lavou as orelhas hoje? Eu disse que os elementos que sabem ler e escrever devem dar um passo à frente. - Mas eu só possuo o Primário, senhor! Todos os outros têm o Ginásio. Diz Lúcio, com a voz em tom baixo e envergonhado. - Eu fui claro, soldado! Você não tomou café hoje? Você bateu sua cabeça enquanto tomava banho? Eu não falei em Primário ou Ginásio, eu falei em ler e escrever! Você quer me desafiar? - Não, senhor! Desculpe-me, senhor! - Você gosta de lavar banheiros, soldado? - Não, senhor! - Então levante sua pata dianteira e dê um passo à frente!



Lúcio respira profundamente e, contrariado, dá um passo à frente. O Oficial de Dia prossegue em sua explanação: - Os que não deram um passo à frente estão dispensados; os demais me acompanhem. Todos são levados a uma sala de instruções e o Oficial de Dia esclarece a razão daquela convocação: - Uma circular interna abriu vagas para soldados que quiserem se tornar graduados. Vocês farão testes básicos, e os melhores colocados tornar-se-ão cabos após um curso de seis meses. Sentem-se e peguem o papel e lápis. Todos se sentam aliviados, pois não se tratava de castigo, mas de uma oportunidade. Entretanto, Lúcio tinha receio de sair envergonhado, pois todos os demais colegas tinham estudado mais que ele. À época, ter o Ginásio era uma grande conquista. As provas começam e Lúcio fica mais tranqüilo, pois consegue resolver os problemas e questões das provas com desenvoltura. Elas eram, em sua maioria, de conhecimentos básicos do Primário. Apesar de ter estudado só até o Primário, tudo que havia visto na escola estava bem fixado em sua mente. Ele sai da sala alegre e confiante, falando bem a respeito da prova, ao passo que seus outros companheiros reclamam que as provas abordaram temas que foram vistos por eles havia muito tempo. Dois dias depois, todos os que fizeram as provas são convocados para tomar conhecimento do boletim. Dos cinco elementos que fizeram as provas, Lúcio foi o único que atingiu nota suficiente para ingresso no curso de cabo. Ele estava aprovado. Algumas semanas depois tem início o curso de cabo. A primeira aula do curso era de Topografia. O professor, com serenidade e rigor técnico, tenta incutir na mente dos alunos a importância do conceito de Topografia:



- Senhores, gravem nas suas mentes este conceito: “Topografia é a arte de representar no papel uma porção de terreno com todos os seus detalhes”. Lúcio, num momento de regresso aos tempos de colégio, decide fazer uma gracinha. Pega uma régua e começa a medir os quadris de Bonifácio, um colega que tinha as nádegas muito grandes. O instrutor, indignado, repreende severamente Lúcio: - Lúcio! Que raios você está fazendo? - Senhor! O senhor disse que “Topografia é a arte de representar no papel uma porção de terreno com todos os seus detalhes”. Eu estava medindo os quadris de nosso colega porque já pensou se ele precisar sentar na nossa carta topográfica? Os quadris dele também são um detalhe que deve ser levado em consideração. O clima formal da aula é quebrado e todos caem nas gargalhadas. A ira do instrutor é aplacada de forma desconcertante, pois o mesmo também não se conteve com a gracinha. Seria nesse clima bem-humorado que Lúcio, seis meses mais tarde, tornar-se-ia cabo. Depois de se tornar cabo, Lúcio passou por uma situação esdrúxula. Certo oficial que havia conhecido o irmão de Lúcio, Lourival, em Recife-PE, estava passando em revista à tropa do 40 BC. Ocorre que Lourival chamava-se Lourival Lúcio Mamedes e tinha como nome de guerra “Lúcio” e era cabo. O mesmo nome de guerra e patente que Lúcio tinha agora. O general, quando conheceu Lourival em Recife, havia se impressionado com a habilidade dele com os cavalos, pois o mesmo tinha até curso de ferrador de cavalos do exército, e era exímio montador desde a época do sítio Angelim. Ao encontrar Lúcio em Campina Grande, o oficial creu tratar-se do mesmo rapaz, visto terem o mesmo nome, patente e aparência física. - Olá, cabo Lúcio! Como vai?



Lúcio apesar de estranhar a forma íntima com a qual fora tratado, responde com a mesma cordialidade: - Muito bem, senhor! Obrigado pela gentileza! Esperamos que goste da estadia. - E os cavalos? Estão sendo bem domados e treinados? - Sim, senhor! Os responsáveis são muitos competentes. - Aposto que você tem ensinado muitas coisas a eles, com um homem como você aqui não há cavalo que não seja domado! Lúcio fica perplexo com o elogio, sem entender direito o porquê daquilo, mas agradece: - Fazemos o possível para dar o melhor de nós, senhor. A conversa é interrompida por outro oficial que leva o general a outras instalações. Lúcio tenta entender a conversa que tinha tido com o oficial, mas não consegue compreender porque fora tratado tão gentilmente e porque as perguntas sobre cavalos. No dia seguinte, o oficial observa que os domadores estão passando por apertos para domar um cavalo. Dois homens estão de um lado para outro tentando apaziguar um animal. O oficial, indignado, dirige-se até os domadores: - Porque essa judiação com esse animal? - Esse é um animal difícil de lidar, senhor. - Difícil? Vocês parecem velhas fardadas! Será que eu vou ter que tirar um graduado de suas atividades para que ele ensine a vocês como devem fazer seu trabalho? Eu quero que chamem o cabo Lúcio aqui e agora para que ensine a essas velhas fardadas como se lida com um cavalo! Rapidamente trazem Lúcio à presença do oficial.



- Mandou me chamar, senhor? - Sim, cabo Lúcio. Mostre as velhas fardadas como se doma um cavalo. Monte nesse cavalo e desmoralize essas velhas fardadas! - Eu? - Sim, rapaz! Vamos logo, isso não é um pedido, é uma ordem! Lúcio arregala os olhos em direção ao animal que ferozmente tenta se livrar de dois soldados que o sustentam. Trêmulo, dirige-se até o bicho e consegue subir nele. O animal se irrita e, num movimento brusco, consegue se livrar dos soldados, partindo em disparada com Lúcio em cima dele. O equino corre até uma porteira, onde freia bruscamente e arremessa Lúcio a muitos metros de distância. Todos correm em direção a Lúcio que, todo arranhando, levanta-se gemendo. O oficial indaga-lhe, muito perplexo: - Não acredito que esse pangaré conseguiu derrubar você, cabo Lúcio! Quando você foi a Recife domou dois cavalos de lá que eram muito mais fortes e ferozes que este! - Mas, senhor, eu nunca fui até Recife e nunca fui domador pelo exército. - Como é a história? Você não é cabo Lúcio que foi transferido de João Pessoa para Recife? - Transferido? Eu nunca saí de Campina Grande, senhor! - Impossível. Era você, eu lembro muito bem de sua aparência. Lúcio, apesar de atordoado, raciocina um pouco e resolve a questão:



- Eu tenho um irmão não muito mais velho que eu que é cabo e tem por nome de guerra “Lúcio”. Foi ele que o senhor deve ter conhecido, pois desde pequeno gostava de cavalos. - Eu não acredito, homem! Porque não me disse que não era você? - Como eu que poderia saber disso, senhor? O oficial, decepcionado, ordena que levem Lúcio à enfermaria. Lúcio passa uma semana se recuperando na enfermaria e tendo que aturar as piadas dos colegas.



CAPÍTULO VII DIAS DE CONVOCAÇÃO

Era noite no 40BC, a sirene toca e todos são informados que o batalhão é declarado impedido: ninguém poderá sair sem autorização e os que entrarem não poderiam sair. Um colega do batalhão procura Lúcio com ar de desespero: - Lúcio! Lúcio! Se apronte rápido para ir embora daqui! - Que aperreio é esse, homem? O batalhão está impedido, por que eu tenho que sair? - Você recebeu uma sentença de morte! - Que conversa é essa que você está dizendo, rapaz? - Olhe aqui e veja com seus próprios olhos – o cabo de dia entrega-lhe uma relação com quarenta nomes de graduados, entre os quais está o de Lúcio. - Que lista é essa? Esse povo vai ficar preso? O que a gente fez? Quem trouxe aquelas meninas para cá no feriado foi cabo Rodolfo, por que o nome dele não está aqui? - Vocês não fizeram nada, homem. Essa é uma lista que recebi, é a lista de convocados para a guerra. Eu fui encarregado de entregar essa lista ao comandante do batalhão. Desapareça daqui que eu só vou entregar ela quando você sumir. - Guerra? A guerra na Europa? - Não. A guerra em Cajazeiras! Acorda, Lúcio! É lógico que a guerra na Europa! Você não lê jornal? Faz dias que o Brasil declarou guerra à Alemanha e está montando uma força expedicionária de defuntos! - Puxa! E me escolheram, foi?



- Sim, homem, é por isso que seu nome está aqui. Suma logo, porque nós não temos muito tempo. Daqui uma hora vou entregar a lista. Fique escondido até tudo se acalmar! - Por que está fazendo isso? - Porque somos amigos, Lúcio, essa guerra é sinônimo de morte. - Pode entregar a lista ao comandante, porque eu vou! - Como é? Você é louco? Já sei! Você acha que estou brincando? - Olha, meu caro, você tem família aqui. Esposa, filhos e parentes. Eu não tenho ninguém, não preciso ter medo. Se eu morrer ninguém vai sentir minha falta. - Lúcio, eu conheço sua teimosia, isso não é brincadeira, homem. É uma guerra: pessoas morrem, são mutiladas, assassinadas, torturadas... - Eu não vou me portar como um maricas! Eu não vou fugir. Eu não entrei no exército para ficar minha vida engraxando coturnos, fazendo trabalhos de pedreiro e cortando grama. Eu vou para a guerra, é para isso que estamos aqui! O colega, sabendo que Lúcio era irredutível quando colocava algo em sua cabeça (e sabendo que pouco tempo lhe restava) despediu-se de Lúcio e foi à procura de outro amigo para alertar-lhe a respeito da convocação. - Deus seja contigo, maluco! Eles apertam as mãos em tom de despedida. Duas horas depois, os quarenta homens da lista são convocados para comparecerem à sala do comandante. São informados sobre a convocação e ordenados a voltarem aos alojamentos em regime de impedimento. O batalhão também permanece impedido. Nos alojamentos, o clima entre os escolhidos é de desespero, medo e lamento.



Os convocados são informados de uma viagem para Recife-PE, de lá para o Rio de Janeiro – RJ e do Rio para Europa, esta última viagem tinha data provável para setembro de 1944. Todos recebem autorização para se despedirem de suas famílias e para providenciarem os últimos preparativos para viajar. Lúcio, não tendo família em Campina Grande para se despedir e não querendo preocupar sua família em Cajazeiras, não os informa sobre a convocação. Ele vai à casa da única pessoa que tinha em Campina, Marcela, sua namorada, e informa-lhe sobre a convocação. A moça fica profundamente triste pela despedida e pelo medo de Lúcio morrer. - As notícias são que esses nazistas são maus, que não tem piedade de ninguém. - Calma, eu sei que o medo que eu tenho do inimigo é o mesmo medo que ele tem de mim. - Lúcio, você é obrigado a ir? Não tem como mudar isso? Você pode ficar escondido aqui até eles partirem. - Eu nunca fugi na minha vida de nada! Não vai ser agora. A moça, que conhecia a teimosia de Lúcio e sua obstinação em suas decisões, toma consciência de que ele não vai desistir de ir à guerra, e cai aos prantos. Sua mãe ouve o alvoroço e se dirige ao terraço onde o casal estava. - O que é isso, minha filha? O que você fez Lúcio? - Tenha calma, Dona Rita, eu não fiz nada. Eu só disse a sua filha que eu fui convocado para ir à guerra lutar contra os nazistas. - Sério? - Sim, estou partindo amanhã para Recife e de lá vamos para o Rio tomar um navio até a Europa.



Dona Rita, num primeiro momento, fica pasma com a tranquilidade do rapaz frente à gravidade da convocação que havia recebido e, num segundo momento, busca confortar sua filha. - Calma, minha filha, Jesus vai levá-lo e Jesus vai trazê-lo. Se ele está no exército é para isto: lutar pelo país. Dona Rita dirige-se a Lúcio e lhe diz: - Olhe aqui, meu filho, eu reconheço sua coragem e só tenho uma coisa a te dizer e a desejar: Jesus vai te levar e Jesus vai te trazer. Aquelas palavras, apesar de muito singelas, são recebidas com surpresa por Lúcio. Afinal, eram as primeiras palavras de incentivo que havia recebido desde a convocação. E, por isso, guardou-as na sua mente e em seu coração. Lúcio se despede da namorada e da mãe dela, e retorna ao batalhão. O dia seguinte amanhece e o som daquela alvorada faz o interior dos convocados estremecer. Era o dia de viajar até Recife. Era o começo da jornada à Europa. Todos se aprontam, são colocados em ordem e, posteriormente, em caminhões para serem transportados até a estação de trem. Os demais integrantes do 40BC vislumbram a cena com perplexidade (uns aliviados, por não estarem nos caminhões; e outros, com certa inveja por não terem sido convocados). Os caminhões partem em direção à estação de trem.

Lá na estação, várias famílias já estavam reunidas para despedida. Entre esses familiares havia um misto de saudade antecipada e medo, mas também de orgulho por verem seus filhos, maridos e pais participando de algo que era importante e que não só mobilizara o país, mas todo o mundo. Os caminhões chegam e se inicia o rito de despedida final. O trem já se encontrava pronto para o embarque. A comoção entre os convocados é geral. Todos tinham consciência de que aquela poderia ser a última vez que veriam seus familiares. Eles sabiam que naquele trem poderiam embarcar numa viagem que não haveria retorno. A



sensação de não ter aproveitado os pequenos e preciosos momentos da vida mutilava o coração de alguns. O silêncio era para outros a única forma de expressar o que sua alma sentia naquele momento. Abraços, beijos e lágrimas. Nesse ínterim, Lúcio reencontra sua namorada, Marcela, e a mãe dela, Dona Rita. - Marcela? Dona Rita? Não esperava encontrar vocês. Dona Rita sorri e diz: - Só viemos aqui nos despedir do nosso herói. Marcela permanece em silêncio, ocultando mágoa pelo orgulho de Lúcio não abrir mão de ir à guerra. Abraça-lhe e só diz para tomar cuidado, tentando segurar as lágrimas. A despedida é interrompida pelo grito do comandante chamando os convocados para o embarque. Dona Rita repete o que já havia dito a Lúcio: - Não tenha medo Lúcio. Eu sinto dentro de mim que você está protegido. Jesus vai te levar e vai te trazer. Lúcio, mais uma vez, guarda aquelas palavras dentro do coração e se dirige ao trem. Todos os convocados embarcam. A guerra para aqueles jovens havia começado antes mesmo de pegar em armas. A primeira batalha era consigo mesmo, contra seus próprios sentimentos, que estavam dilacerados ao deixarem suas famílias para arriscar a vida numa guerra que não haviam iniciado. O trem começa sua jornada e algumas horas depois chega até Recife, com atraso. Da estação, os convocados são levados aos alojamentos militares, onde outros convocados da região Nordeste estavam sendo reunidos. Eles passariam algum tempo ali até que o número de convocados estivesse completo e, então, partiriam para o Rio de Janeiro – que à época era a capital do Brasil. Na região também havia militares americanos e outros brasileiros responsáveis pelo patrulhamento litorâneo.



Os dias que se seguem são de baterias rigorosas de

exames físicos e exames de saúde para os escolhidos. Mas os primeiros momentos de tensão vão sendo paulatinamente substituídos pelas novas amizades e brincadeiras entre os convocados. Ao passo que eles também começam a perceber um tratamento diferenciado que as pessoas lhes dão e até os superiores lhes dão: são vistos como heróis e pessoas especiais; afinal, estavam representando um país e eram os únicos militares da América do Sul que teriam o “privilégio” de combater o nazifascismo. Para muitos da população, eles eram os homens que iriam vingar a nação dos ataques covardes que os alemães perpetraram contra os navios brasileiros e contra as atrocidades nazistas na Europa. Todo esse assédio acaba aplacando o sentimento de medo e de revolta por se arriscar em algo que não tinham dado causa. O dia da partida para o Rio de Janeiro estava se aproximando, o número dos convocados da região Nordeste estava quase completo. Lúcio estava no alojamento deitado, quando um de seus companheiros, cabo Cleanto, adentra o alojamento com o semblante expressando muita tristeza. Lúcio percebe e solta uma farpa para tentar fazê-lo rir: - O que houve, Cleanto? Pensando na namorada? Não se preocupe que ela deve estar bem. Já deve ter arrumado outro namorado para espantar a solidão. Pense nisso: é impossível ela arrumar um namorado mais feio que você! - Não é isso, engraçadinho. Passei por uma situação muito chata. - Perdeu o soldo no baralho de novo? Você é um tolo por jogar! - Não. Eu fui dar uma passeada por aí e encontrei um bar muito simpático e cheio de belas moças. Aí entrei para dar uma limpada nas vistas, olhando aquelas pequenas enquanto tomava um chope. Mas o garçom veio até onde eu estava e disse que lá eles não atendiam militares brasileiros, só americanos.



Lúcio salta da cama, indignado: - Mentira? - Sério mesmo, homem. Eu tive que sair com o rabo entre as pernas enquanto as mocinhas riam da minha cara, abraçadas com os soldadinhos americanos e dizendo “bye, bye”; pense numa vergonha! - Mas isso é um absurdo. Estamos na nossa terra! Estamos de saída para guerra! Ah, mas isso não vai ficar assim, não vai mesmo! Vamos dar uma lição nesse garçom e no povo desse bar! Lúcio pega uma peixeira que tinha e se veste rapidamente. Nesse momento também chega ao alojamento o sargento Jader Ataíde, que fica a par da situação e decide acompanhá-los até o bar, para também tomar satisfações. Eles se dirigem até o estabelecimento, que está lotado, suas mesas estavam completamente ocupadas. Então, eles ficam à espreita, na entrada, esperando uma mesa ser liberada. No centro do bar, um casal desocupa uma mesa, eles rapidamente vão até lá. O mesmo garçom que advertira Cleanto se dirige até eles: - Boa noite. - Boa noite!

Responde Lúcio com ar de cinismo, enquanto os demais

ficam apenas calados.

- Esse bar só atende militares americanos. Peço, por gentileza, que os senhores procurem outro estabelecimento. Lúcio retruca: - Olha, meu filho, eu e meus colegas estamos com sede. Traga-nos um chope, e traga rápido! - Nós só atendemos militares americanos, senhor.



- Hoje vai ser diferente. Nós viemos tomar um chope e nós não vamos sair daqui sem ele. Para mostrar que nós somos seus amigos, vamos até poupar-lhe trabalho: vou limpar essa mesa para você. Lúcio pega uma cadeira e com ela derruba os copos, garrafas e pratos que estavam na mesa e que haviam sido utilizados pelo casal que estava antes deles a pegarem. Ele coloca a cadeira no chão, pega sua peixeira e a coloca na cintura. Sentando-se, diz com ar de deboche: - Um chope para cada um de nós. Cleanto e Jader Ataíde olham um para o outro com os olhos arregalados e ficam atônitos, não acreditando no que viram. As pessoas do bar percebem o alvoroço e também ficam perplexas. O garçom percebe o problema e tenta apaziguar. Ele traz mais uma cadeira para os jovens e diz em tom cordial: - Calma, meu amigo! Vou trazer um chope, mas não faça confusão. Lúcio retruca: - Muito bem, meu caro, não custa nada trazer um chope para nós. Você não vai ser menos homem se servir militares brasileiros ao invés de americanos. - Tudo bem, três chopes para os senhores. Lúcio tripudia: - Bem gelados, não esqueça! O garçom sai contrariado e furioso, mas, para não espantar e escandalizar a freguesia, ele vai pegar os chopes para os rapazes. Cleanto rompe o silêncio, com um entusiasmo um pouco comedido pelo medo da situação, e tenta colocar freios em Lúcio:



- Gostei dessa, Lúcio. Vamos tomar esse chope e ir embora. Esse cara aprendeu uma lição. Foi ele que pediu para eu sair da primeira vez que vim. - Nada disso, Cleanto! A noite é uma criança. Vamos ficar aqui e tomar chope até amanhecer o dia! Jader interfere: - Podemos ser presos por essa arruaça. Já nos vingamos, vamos embora antes que esse garçom chame uma patrulha. - Nada disso! Desde quando é crime tomar um chope?

Retruca-lhe, Lúcio.

O garçom chega com três canecas de chope. - Aqui senhores. Bem gelados, como pediram. Lúcio toma um gole e diz: - Isso está uma porcaria! Está tão quente que parece chá! Além de estar aguado! Meus colegas e eu somos exigentes, traga-nos um chope decente! Lúcio joga o conteúdo de sua caneca no chão do bar e arremessa a caneca para trás, quebrando-a. Repete a operação com as outras canecas. Os seus colegas arregalam ainda mais os olhos e se calam novamente. O garçom fica desconcertado. Lúcio pega sua faca e coloca em cima da mesa. Repete o pedido aos gritos: - Será que essa espelunca não tem um chope decente para homens decentes? Eu só vou falar mais uma vez: eu quero um chope gelado! Será que você me entende ou tem andado tanto com os maricas americanos que só entende se for feito o pedido na língua deles? - Calma! Vou trazer outras canecas de chope, senhor. Mas, por favor, não faça bagunça no estabelecimento.



- Tudo bem. Tem banheiro aqui, garçom? - Sim, senhor! O banheiro dos cavalheiros fica à esquerda. - E brasileiros podem usá-lo? Ou a urina e as fezes americanas são melhores do que as nossas? A urina e as fezes deles são mais cheirosas e limpas, garçom? - Não, senhor. Pode usar o banheiro. - Bom. Muito bom. Então me dêem licença. Vou deixar um pouco de urina brasileira lá.

Diz Lúcio dando tapinhas nas costas do garçom. Ele se levanta e vai até o banheiro. Seus companheiros ficam na mesa, sob os olhares perplexos dos demais visitantes do bar. Na saída do banheiro, Lúcio percebe que o garçom está usando o telefone, no balcão. O garçom estava chamando uma patrulha do Exército Brasileiro. Lúcio tenta puxar o telefone das mãos do garçom, mas não consegue. Então vai até a mesa, apressadamente.

- A brincadeira acabou, vamos picar a mula porque o maricas do garçom chamou uma patrulha para nos pegar. Jader e Cleanto se levantam rapidamente. Lúcio se dirige até o balcão e se despede do garçom: - “Bye, bye”, boneca! Pode ficar com os maricas americanos, esse bar é uma espelunca mesmo: o banheiro fede e o chope é aguado! Os três saem do bar às pressas e retornam ao batalhão às gargalhadas. Minutos depois, a patrulha chega ao bar, mas não os encontra e nem o garçom consegue identificá-los pelo nome. Eles escapam impunes da peripécia.



CAPÍTULO VIII LONGOS DIAS

PORTO DO RIO DE JANEIRO, 22 DE SETEMBRO DE 1944.

Era uma tarde calorenta no Rio de Janeiro. Os convocados, em longas filas indianas, e com grandes e gordas sacolas verdes sobre as costas, aguardam, ansiosamente, o momento do embarque em dois colossais navios americanos (USS General W.A. Mann, AP-112; e o USS General M.C. Meigs, AP-116). Eles parecem formigas através de várias

escadas espalhadas ao longo desses navios. Cada um que embarca recebe uma ficha com a

indicação exata do seu camarote. O embarque seria procedido de uma demorada leitura de regulamentos realizada nos salões dos navios. Tais regulamentos versavam sobre uma série de proibições e condutas de emergência próprias de tripulações de navios. Todos ganhariam um novo companheiro: o colete salva-vidas de lona impermeável; acessório necessário, mas extremamente desconfortável que, por força de regulamento, era compulsório e inseparável.

Lúcio, no meio daquela multidão de soldados, contempla

aqueles monstros marinhos com olhar pasmo, e observa que à frente do navio que ele estava para embarcar havia uma grande inscrição com o número “116” (numeração referente

ao USS General M.C. Meigs). Ele está um pouco anestesiado pela imensidão daquela

multidão de militares e pela grandeza dos navios. Ao contemplar a multidão, que está para embarcar no mesmo navio que ele, Lúcio começa a pensar se caberia tanta gente, pois havia cerca de cinco mil soldados para embarcar (só no seu navio). Perplexo, dirige-se a um parceiro que está a sua frente:

- Amigo, será que há lugar para todos nós aí? O navio é

grande, mas somos muitos.



- Acorda do soninho, rapaz! Você não vai fazer um cruzeiro, você não está de férias, eles vão nos empilhar aí como se fôssemos bichos. Estamos numa guerra e não em uma viajem de férias. Somos como frangos enfileirados para o abate. Espero que você já tenha confessado os seus pecados e se acostumado com a idéia de se encontrar com Papai do Céu antes do tempo!

Lúcio se cala, ressentido com a grosseria, amargura e

pessimismo do compatriota. Depois retruca indignado: - Quem morre de véspera é peru, não é frango! O companheiro meneia a cabeça em tom de desdém e

ambos permanecem calados enquanto aguardam na morosa fila.

Atrás de Lúcio, dois jovens conversam, em tom de

contrariedade: - Somos como cães para os norte-americanos. Eles vão

nos colocar na coleira e nos pagar um passeio de morte. - O que estamos fazendo aqui? Meu Deus, eu deveria

estar agora com minha namorada na praia, mas estou entrando num navio americano, lutar contra alemães em solo Europeu. O que é que eu tenho a ver com isso?

- Eles mataram nossos irmãos em nosso litoral, temos que

nos vingar! Rechaça Lúcio, veementemente. - Isso não é vingança, é suicídio! Treplica-lhe um dos jovens. - Eu entrei no exército para isso: lutar quando necessário! Insiste Lúcio.



- Eu não sou do exército, fui convocado entre os civis; jamais quis lutar uma luta que não é minha. Um governo que não escolhi está me mandando para uma guerra que eu não criei.

Fala-lhe um dos jovens, em tom de desabafo. Lúcio se cala, apesar de crer que estava ali para fazer

algo importante. Todavia, aquelas conversas trazem um confronto a sua mente: será que havia sentido em estar ali?

Ele prossegue na fila e repele de sua mente aquele

questionamento. Recebe sua ficha, as instruções dos regulamentos e o material salva-vidas e se dirige ao camarote indicado em sua ficha.

Ao contemplar as instalações, fica um pouco

decepcionado com o que vê: um compartimento pequeno, quente e cheio de beliches que já estavam praticamente lotadas. Havia gente por todos os lados. Uns ainda estavam se acomodando, outros conversando e outros deitados nos beliches contemplando fotos, lendo ou escrevendo cartas.

Lúcio olha para aqueles jovens e percebe a variedade de

expressões: semblantes de indiferença, mas que, na verdade, escondiam medo. Havia semblantes de medo que escondiam saudade. Havia semblantes saudosos que escondiam indignação. Mas a demora da saída dos navios, prevista para seis da manhã do dia seguinte, desperta um sentimento patente e comum a todos: a ansiedade.

No dia seguinte, no horário marcado, os navios zarpam.

Do convés era possível contemplar a cidade do Rio de Janeiro, que aos poucos vai sendo deixada para trás. Aquele momento de distanciamento do Rio é o único momento que parece passar rapidamente. Alguns ocupantes de barcos particulares, em comboios que seguem os navios de guerra, se despedem acenando para os militares, que respondem orgulhosos e lisonjeados. Depois de algum tempo, a única coisa que se passa a vislumbrar é o mar aos quatro cantos. Os sonhos, família e pátria iam se distanciando e a desconhecida e temida guerra começava a ficar mais próxima.



Entre os convocados, logo surgem rodas de amizade e de conversa. Há uma pergunta e uma discussão que passa a ser unânime entre os grupos, pois era o primeiro ponto lógico a ser indagado: o tempo de demora da viajem.

- E aí Lúcio? Quanto tempo você acha que vamos ficar

nessa lata aqui? Indaga-lhe um companheiro do beliche vizinho ao de

Lúcio. - Dizem que, se tudo correr bem, em vinte dias estaremos

lá – responde Lúcio sem muito entusiasmo. - Eu acho que “se tudo correr bem” é sinônimo de “se

nenhum torpedo alemão explodir o navio” – retruca um cabo que está à direita do beliche de Lúcio, arrancando gargalhadas dos demais com seu humor negro.

O primeiro dia no Meigs passaria de uma forma bastante lenta e enfadonha. A ansiedade e o desconforto do navio contribuíam para que o relógio parecesse trabalhar de forma mais lenta, mas, infelizmente, algo um pouco pior estava por vir: a primeira noite de viagem.

O cenário parecia apocalíptico: todo o barco, para evitar

o rastreamento ou visualização pelos exércitos inimigos, deveria ficar totalmente às escuras e completamente fechado. As únicas luzes que ficariam acesas seriam algumas lâmpadas vermelhas (pouco intensas) que ficavam nos corredores da embarcação. O fortíssimo calor obriga os convocados a ficarem seminus nos alojamentos, mas sem largar os coletes salva-vidas.

Dentro dos alojamentos mal dá para ver com quem se

está conversando, muitos enjoam. - Eu não entendo! Por que nos chamaram para ir à guerra

se vão nos matar de calor aqui dentro desses alojamentos abafados e escuros?



Murmura um dos ocupantes do alojamento de Lúcio que, pelas suas constantes lamúrias, passou a ser conhecido como Boca de Sapo.

- Melhor estarmos abafados do que sermos vistos e

bombardeados. Responde-lhe, com mais ponderação, um dos rapazes do

alojamento. - Por que será que só deixam acesas essas luzes

vermelhas aí fora, nos corredores? Pergunta-lhes outro jovem do alojamento. - Deve ser para ficar mais parecido com o inferno! Escarnece Boca de Sapo. - Nada disso, engraçadinho! Ouvi um oficial uma vez

dizer que as luzes dentro de navios de guerra são vermelhas porque se fossem de outras cores dificultariam enxergarmos na escuridão quando precisássemos ir para fora do barco. A luz sendo vermelha dá mais rápida adaptação quando expostos novamente à escuridão de fora do navio.

Interrompe um dos ocupantes do alojamento, que tinha

ar intelectual. - Como é isso, sabichão? Que história é essa? Pergunta Lúcio. - Nós precisamos de luz nos corredores para enxergar e

poder sair do navio em caso de alarme, certo? - Sim, claro! - Se essa luz do corredor fosse de outra cor que não

vermelha, ela nos ofuscaria tanto que quando saíssemos para eventuais posições de combate fora do navio iríamos demorar muito tempo para “enxergar” alguma coisa na escuridão do



oceano. Sendo a luz vermelha, em pouquíssimo tempo nossa visão no escuro estaria tão boa como se estivéssemos há muito tempo no escuro.

- Entendi! É como quando a gente deita para dormir e

apaga a luz: num primeiro momento fica tudo muito escuro e a gente não consegue ver nada, depois de algum tempo conseguimos enxergar alguma coisa mesmo estando escuro.

- É! Mais ou menos isso. - Eu preferia que essa luz vermelha fosse daquelas casas

habitadas por mocinhas libertinas que há lá onde eu moro! Lá, escuro ou claro, eu saberia o que fazer com as meninas.

Graceja Boca de Sapo. Ele acaba por levar alguns às gargalhadas e os mais

religiosos ao silêncio como forma de repúdio. Aquela seria a primeira de várias e várias noites muito

longas, às quais aqueles jovens seriam expostos. Para muitos, aquela primeira noite foi a mais longa de suas vidas. Como se não bastasse, a já existente e incômoda ansiedade, os convocados teriam de suportar e superar o grande desconforto noturno.

Depois de noites infernais, sempre nos moldes da

primeira, o amanhecer seria sempre recebido com ar de redenção. A permissão de poder ir ao convés servia como uma alforria após noites de clausura. Ao vento no convés, o humor dos convocados sempre ficava melhor. Muitos já estavam adaptados, não enjoavam mais e suportavam com menos murmurações as noites desconfortáveis.

Para haver manutenção da segurança, as regras nos

navios são sempre muito rígidas, ainda mais se tratando de navios militares e norte-americanos. Naqueles navios militares, os ocupantes que realizavam trabalhos teriam direito a fazer três refeições diárias, os que não trabalhavam teriam direito a fazer duas refeições. A alimentação parecia



estranha ao paladar do militar brasileiro, o que, no início, contribuía para o enjôo de muitos.

Para manutenção da ordem, era normal serem

realizadas inspeções aos alojamentos, geralmente às dez da manhã. Apesar do certo rigor na fiscalização, os tripulantes americanos ficariam surpresos e impressionados com a organização e limpeza dos militares brasileiros. Entretanto, toda essa higiene e organização estavam sendo motivadas pelas premiações dadas para os alojamentos que fossem mais limpos e organizados.

Durante a viagem eram realizados alguns exercícios de artilharia, o que entreteria a tropa. Havia também exibição de filmes, mas só para os oficiais. Alguns programas de divertimento eram desenvolvidos a cargo dos capelães de bordo. Havia um esforço por parte dos superiores para tentar tornar suportáveis os penosos dias de viagem. Afinal, precisavam que os militares chegassem com boas condições psicológicas e físicas para o combate. Durante toda a viagem os navios seriam acompanhados por um arrojado sistema de escolta que, num primeiro momento, fora realizado por contratorpedeiros brasileiros e navios de guerra norte-americanos até o chamado Estreito de Gibraltar. Nesse ponto do Mediterrâneo, que era reconhecidamente mais arriscado, o comboio era passado aos experientes marinheiros ingleses, que juntamente com os norte-americanos ficariam responsáveis pelos navios até sua chegada a Nápoles, na Itália. Além disso, haveria uma cobertura aérea realizada por aviões com base no Brasil e na África, que complementavam a segurança durante todo o itinerário. Seria nessa rotina de calor, escuridão, clausura, ansiedade e constante tensão que as tropas do segundo e terceiro escalões da Força Expedicionária Brasileira (FEB) chegariam à Itália, em outubro de 1944.



CAPÍTULO IX DIA DA CHEGADA

NÁPOLES, ITÁLIA, 06 DE OUTUBRO DE 1944.

Após quinze longos dias, os navios Meigs e Mann chegam ilesos ao destino. Os navios atracam na cidade de Nápoles, sudoeste da Itália. Os militares brasileiros que desembarcaram desses dois navios na cidade italiana somavam cerca de 10 mil homens.

Com raríssimas exceções – adstritas, em geral, aos

superiores de alto escalão –, todos estavam pisando em solo europeu pela primeira vez em suas vidas e, alguns deles, teriam naquele solo desconhecido os seus últimos dias de vida. Todos sabiam que a triste e perturbadora possibilidade de não voltar mais para casa era válida para todos, mas o desejo de estarem em terra firme era tão grande que até mesmo os riscos de um local em guerra pareciam melhores do que a permanência naqueles navios.

De Nápoles, após algum tempo, a tropa deveria seguir

para Livorno, cidade italiana, também litorânea, situada a noroeste da do país. Em Livorno, eles receberiam um fardamento mais apropriado e instruções táticas, tudo a cargo dos norte-americanos. Todavia, o porto de Livorno estava danificado, os navios de grande porte não poderiam acessá-lo face à destruição de suas docas. Esse cenário

inviabilizava o uso do Meigs e Mann. Desta forma, toda a tropa teve que ser dividida em várias lanchas especiais, denominadas Embarcações de Desembarque de Infantaria ou

LCI (sigla em inglês referente à Landing Craft Infantry). Todos seriam novamente expostos a uma desconfortável

e penosa viagem marítima nas LCI e com um agravante de ordem climática, pois o percurso até Livorno estava sendo sacudido por uma forte tormenta.

Eles embarcam e seguem viagem nas lanchas um tanto

quanto inconformados:



- Esses generais só podem ser loucos. Eles nos chamaram para a guerra, mas querem porque querem nos matar aqui no mar! Afinal, somos marinheiros ou uma força expedicionária? Reclama Boca de Sapo (aquele murmurador sarcástico que havia no alojamento de Lúcio quando estavam

a bordo do Meigs). - Meu Deus, eu não aguento mais ver e engolir água

salgada! Daria tudo por uma cerveja bem gelada – desabafa Lúcio.

- Ah meu Deus! Preferia morrer por uma bomba ou bala

alemã do que afogado, ia ser mais rápido e menos agonizante – complementa Boca de Sapo.

Nesse instante, todos visualizam vários aviões, vindo em

direção ao comboio dos militares brasileiros. Um dos integrantes da barca LCI, onde estão Lúcio e o murmurador, um tanto quanto perturbado pela viagem, exclama em tom aterrorizado:

- Ai, meu Deus! Será que são aviões alemães? São aviões

alemães! Vamos morrer! Boca de Sapo fica bastante tenso pela possibilidade de

serem submetidos ao primeiro bombardeio aéreo, e pondera, com remorso, sobre o que havia dito antes:

- Ah, meu Deus! Eu retiro o que disse! Eu não quero

morrer por bala nem por bomba! Eu até nado bem, se essa barca afundar eu posso até me salvar! Desvia as balas alemãs de nós! Por amor de Cristo! Eu prometo nunca mais reclamar!

- Vamos morrer! Vamos morrer! Vamos morrer! Repete aos gritos histéricos o jovem que havia dado o

alarde sobre os aviões, deixando todos ainda mais tensos. Os aviões tomam uma posição mais próxima à água e

fazem uma formação mais organizada, passando rasantes às barcas e fazendo um barulho ensurdecedor. Todos da balsa de Lúcio se agacham; alguns rezam. Mas os aviões não eram



alemães, eram aliados que estavam de passagem, em direção a Nápoles.

Todos se levantam atônitos até que o silêncio é

quebrado: - Se você praguejar ou agourar mais uma vez, eu mesmo

meto uma bala em você! Se falar mais alguma bobagem colo seus lábios com uma baioneta – diz aos gritos um dos ocupantes da balsa a Boca de Sapo, que a partir desse dia passou a ponderar melhor suas palavras.

Após trinta e seus horas de viagem em um mar agitado,

a tropa chegaria exausta a Livorno. Ela seguiria em

caminhões até Quinta Real de San Rossore, região limítrofe a Pisa, onde já havia um acampamento devidamente montado, dotado de recursos básicos.

Nesse acampamento os militares iriam receber os

equipamentos, armamentos e adestramento necessários à efetiva entrada em combate.

Após o penoso trajeto, todos ficariam surpresos e satisfeitos com a organização e os recursos do acampamento. Por um momento, teriam um pouco de descanso após a penúria marítima.

No acampamento, os militares seriam divididos em cabanas, uma para cada dupla de militares. Lúcio ficaria com Jader Ataíde (o mesmo sargento do episódio do bar em Recife-PE).

- Puxa meu amigo, Jader, está anoitecendo! Tudo que eu queria agora, para terminar minha noite de forma bem descansada, era uma cerveja! Depois de ver e engolir água salgada durante quase um mês, eu preciso de algo para molhar minha goela!

Diz Lúcio ao seu parceiro de cabana.



- Ouvi dizer que aqui há uma cantina na qual há cerveja em lata, mas só comandantes de pelotão podem adquiri-las. Fala, de forma resignada, o sargento Jader.

- Serio? Isso é uma beleza! Não sabia que tinha essa cantina aqui!

Exclama Lúcio, com um brilho em seus olhos. - Mas a aquisição só pode ser feita por comandantes.

Nenhum de nós está em comando. - Mas os rapazes da cantina não precisam saber disso!

- Que cara é essa, Lúcio? Você não está pensando nisso? Não! Aqui não Lúcio, aqui não dá para fazer aquela arruaça que fizemos em Recife! - Quem falou em arruaça? Eles querem um comandante e vão ter um! - Quem? - Ora, comandante Jader Ataíde! - Não, Lúcio, eu não posso! - Não! Quem não poderia seria eu, pois sou cabo e dificilmente eles acreditariam, mas você é sargento! Aí fica mais fácil. Ora, há milhares de nós aqui, como irão saber? - Isso não vai dar certo... - Você vai lá e tenta comprar; se colar, aí colou! Ora Jader, nós estamos na guerra, já pensou se morrermos sem ter tomado essa tal cerveja em lata? Ia ser muito ruim! Além do mais, eles nos devem um descanso depois de todo esse sofrimento que foi a viagem. Jader meneia a cabeça como se estivesse discordando, mas aceita a proposta:



- Bem, é melhor ser preso por má conduta do que morrer em combate. Vamos às cervejas! - Não me importo de ser preso, desde que me deixem levar a tal cerveja em lata para a cela.

Diz Lúcio, em tom irônico.

- Você tem um parafuso a menos, Lúcio! Jader vai até a cantina e se identifica como comandante de um pelotão. O servente da cantina nem desconfia. Eles pegam seis cervejas e seguem até sua cabana. De repente, através da difusora do acampamento, é dada a ordem para que todos se recolham às suas cabanas em caráter de urgência. Lúcio arregala os olhos e fica calado. Jader fica atemorizado: - Eu sabia que aquele rapaz da cantina não era bobo! Está vendo, Lúcio, mal chegamos e já nos metemos em encrenca! Quantos dias de prisão devem dar isso? Eu sei como funciona isso: eles estão mandando todo mundo para as barracas, depois fazem uma revista e aí nos acham e as cervejas. Ai, meu Deus, como vai ficar minha carreira? Será que vamos ficar em alguma cela solitária?

Novamente, através do alto-falante é dada uma ordem de recolhimento às cabanas e, juntamente, é dada a ordem de serem desligadas todas as luzes e lanternas, fogueiras e cigarros; em complemento, todos são alertados de que há risco de ataque aéreo – pois havia suspeita de que um avião inimigo sobrevoando a área.

- É pior do que ser preso, Lúcio! É um ataque aéreo! Se eu morrer não vou ter mais carreira também!

- Ótimo, não fomos descobertos, vamos tomar nossa cerveja em paz!

Tranquiliza-se Lúcio, tentando abrir uma das latas de

cerveja.



- O quê?

Questiona-lhe Jader, indignado e colocando uma das mãos sobre a lata de cerveja de Lúcio.

- Esqueça o avião, nós estamos nessas cabanas e não

podemos fazer nada para nos defender. Se uma bomba cair aqui, só teremos o direito de morrer. Tome sua cerveja e eu tomo a minha.

Nesse momento, fora das cabanas, os integrantes da bateria antiaérea tentam focalizar o avião com holofotes. Conseguem visualizá-lo e metralhá-lo, abatendo-o. De dentro das cabanas, Lúcio e Jader percebem que o avião caíra, pois vêem uma grande bola de fogo caindo do céu. - Eles o derrubaram!

Comemora Lúcio, levantando uma lata de cerveja como se estivesse brindando.

Jader olha para Lúcio, para por um momento, pensa um pouco e lhe interpela: - Sabe Lúcio, você já pensou?

- Em quê? Que você agora tem uma carreira?

- Não. Estou pensando no piloto desse avião. É um alemão e é nosso inimigo, mas muito provavelmente era um pai de família. Provavelmente há uma criança órfã agora ou alguma mãe que vai chorar a perda de seu filho. Lúcio fica sério e se lembra do dia da perda de sua mãe. Baixa sua cabeça e diz com revolta: - Guerra é uma estupidez! Mas estamos aqui para isso...

Dá uma pausa na fala e depois levanta sua cabeça: - Não quero pensar nisso agora!



Deita-se e murmura, buscando justificativas: - Esses nazistas mataram muitos pais de família

brasileiros e pais de família de outros países aqui, eles vão ter que colher o que plantaram. Além do mais, temos que evitar que esses bárbaros cheguem até nosso país!

Jader, sentado, respira fundo e faz outro

questionamento:

- Você já pensou quando você tirar a primeira vida de um homem aqui? O que vai pensar: que somos assassinos ou heróis? Lúcio, sem resposta, fala zangado: - Vamos tomar essa cerveja e não vamos pensar mais nisso hoje. Depois daquele diálogo não conversariam mais nada durante aquela noite. Ambos ficariam durante um bom tempo refletindo sobre o que haviam conversado. O momento de situações de vida ou morte e de matar ou morrer estava cada vez mais próximo de ocorrer.



CAPÍTULO X DIAS DE ADESTRAMENTO

ACAMPAMENTO DE SAN ROSSORE, 11 DE OUTUBRO

1945, 05 h 00 min.

O som da corneta, propagado através do auto-falante, anuncia a primeira alvorada no acampamento de Quinta Real

de San Rossore. O bom e merecido sono que os soldados brasileiros estavam tendo, depois de uma noite tensa, é interrompido. Todos deveriam se levantar, arrumar suas barracas e fazer a formação com os respectivos comandantes. A tropa é colocada em frente aos mastros das bandeiras brasileira e americana, que ficavam à frente do acampamento.

Após a execução do Hino Nacional, receberiam as

primeiras instruções sobre as regras do acampamento e sobre as suas respectivas rotinas.

Lúcio havia acordado de mal-humor. Ele contempla as

bandeiras do Brasil e Estados Unidos tremulando juntas enquanto são hasteadas, lembra-se do episódio do bar em Recife e se angustia:

- Fui maltratado no Brasil por causa desses americanos e

agora estou aqui olhando para bandeira deles, comendo de sua comida deles e sujeito aos seus comandos.

Após o hasteamento das bandeiras, todos cantam o

Hino Nacional Brasileiro e a canção Deus Salve a América. Lúcio, enquanto canta de forma mecânica e desinteressada, divaga em seus pensamentos. A conversa que teve com Jader, na noite anterior, deixara-lhe bastante perplexo. Sua consciência questionava e respondia várias coisas ao mesmo tempo. Parecia que havia duas pessoas dentro dele discutindo:

- Meu Deus! Será que eu posso matar um homem? - Sim, se ele for mal!



- Mas será que eu sou bom o suficiente para julgar alguém mal?

- Os nazistas e fascistas não são gente! Tenha piedade

deles e acabará num cemitério! - E se eu deixar alguém órfão? - Bobagem! Você prefere nunca chegar a ter filhos por

causa desses facínoras? - E se eu deixar alguém sem seu marido? - Tolice homem, você prefere que esses animais

sobrevivam e deflorem mulheres inocentes? A execução das canções é encerrada e um dos

superiores anuncia uma síntese das regras do acampamento.

O material de instruções que seria fornecido pela Peninsular Base Section – PBS (base de operações norte-americanas que ficava em Carseta, cidade ao norte de Nápoles) não havia chegado; por isso, os militares seriam dispensados das instruções após o rancho. Porém, antes de seguirem para a alimentação, todos recebem plaquetas de identificação com números. Lúcio, juntamente com seu grupo, recebe sua plaqueta e sai para o rancho.

- Cabo Lúcio! Grita alguém que Lúcio não reconhece. - Será que descobriram das cervejas? Pensa Lúcio, desconfiado, enquanto a pessoa se

aproxima.

- Cabo Lúcio! Lúcio, ainda desconfiado, espreme os olhos e depois abre um sorriso: - Instrutor! Tenente Cláudio! - Isso mesmo, meu caro!



- Puxa, desde meu curso de cabo que não via o senhor! Como vai? Se é que essa é uma boa pergunta para fazer aqui no meio desta guerra. O senhor veio nesses escalões de agora? - Não, vim no primeiro escalão, mas tive um problema e fui encaminhado de volta ao Brasil.

- Mas já? Nem aproveitou a festa direito e já vai embora. Cláudio muda o semblante e fica sério. - Isso aqui não é uma festa, Lúcio. Tome muito cuidado

filho, isso é totalmente diferente das instruções de paz que você teve no curso de cabo. Aqui é “salve-se quem puder”.

Lúcio percebe a forma inapropriada que havia falado e

se redime: - Desculpe-me, tenente, não queria brincar, foi só uma

forma de falar.

- Eu sei disso, filho. Não estou repreendendo você, estou te alertando. - Ainda vai demorar até eu entrar em combate, vamos ter algumas semanas de instrução aqui. O senhor poderia me dar algumas dicas de combate.

- Sabe, só existe uma regra: tenha muito cuidado com as “mashinengewehr”, elas têm o som da morte!

- As macho o quê? - Maschinengewehr! São as MG-34, as metralhadoras alemãs. - Que nome esquisito! É capaz de um sujeito morrer só tentando soletrar o nome desta peste!

- Quanto a isso, fique tranqüilo, porque todos conhecem a metralhadora alemã por “Lourdinha”.



- Lourdinha é um nome mais fácil do que esse “macho não sei o quê”. Mas porque é Lurdinha?

- Algum gaiato brasileiro apelidou essas pestes de “Lurdinha”. Dizem que um pracinha tinha uma namorada chamada Lourdes que falava pelos cotovelos, aí acharam que a forma dela falar era parecida com o som da metralhadora e o apelido pegou.

- Interessante. Lá em Cajazeiras tinha uma pequena

chamada Josefina, feia que doía, parecia um canhão, ela vivia atrás de mim e eu tentava fugir de todo jeito. Vou me lembrar dela, para fugir das armas alemãs.

Tenente Cláudio sorri e coloca a mão sobre o ombro de Lúcio: - Sempre brincalhão! Tenho certeza que você um dia ainda vai ser um bom oficial, Lúcio. Mas, tome cuidado! Vi gente muito boa morrer; esses alemães não estão de brincadeira, são experientes e malandros. Cuide-se bem para sobreviver e fazer uma boa carreira. - Obrigado, tenente. - Até mais, Lúcio... - Tenente... - Sim? Lúcio respira fundo e olha nos olhos de Cláudio: - Eu não tenho medo de morrer, mas tenho medo do que vou sentir se matar alguém... - O que é isso, Lúcio? Você não está no exército para brincar, está para defender seu país! - Eu sei. Só não sei se estou fazendo a coisa certa. As pessoas lá no Brasil achavam que era mais fácil uma cobra fumar do que o nosso exército participar dessa guerra, não esperava vir para cá.



- Meu jovem, você está numa situação sem volta. Você tem duas escolhas: ou deixar que destruam seu corpo (te matando ou te ferindo) ou dilacerar a sua própria alma (matando ou ferindo seu oponente). Você escolhe: sua vida ou sua alma. Vou te dizer uma coisa: na sua alma você pode dar um jeito, mas se você morrer não haverá volta! - Obrigado, tenente. - Cumpra seu dever sem culpa e não pense nas vidas que você vai tirar, mas nas vidas que você irá livrar do jugo desses bandidos. Lúcio meneia a cabeça em sinal de afirmação se despede do tenente. Ele se dirige ao rancho, mais aliviado de seus questionamentos. Ao receber sua refeição, Lúcio se surpreende com a variedade e qualidade da comida, que vinha acompanhada de chocolates e de um maço de cigarros

Chesterfield.

- Sabe o que fazem com um animal antes de o matarem? Engordam!

Ironiza um dos soldados que tomara sua refeição. - Nosso governo se vendeu e nos vendeu por uma

siderúrgica! Somos como porcos sendo engordados para o abate nas mãos desses americanos!

Complementa o soldado. - Que bobagem é essa? Pergunta Lúcio em tom indignado. - O Brasil construiu uma siderúrgica com dinheiro

emprestado dos americanos, você não sabia? - Sim, mas e daí?



- Daí que estamos aqui por causa disso, porque a moeda de troca somos nós! O Presidente Getúlio conseguiu aço dos americanos e nós é que vamos levar chumbo alemão!

Os que estão à sua volta acham engraçado o trocadilho

do soldado e vão às gargalhadas. Lúcio, num primeiro momento, pensa em intervir e responder ao soldado rebelde, mas percebe que seria algo inócuo, cala-se e respeita a

opinião do soldado. Pega o maço de Chesterfield que ganhara e dá ao soldado murmurador, em atitude conciliadora:

- Pode ficar, porque eu não fumo. Mas eu ainda acredito

que “a cobra vai fumar”. Os que estão à volta novamente vão às gargalhadas com

o trocadilho de Lúcio.

Os dias em San Rossore vão se passando, e a logística da PBS continuava passando por problemas. O grosso do material de treinamento demora a chegar. Os soldados ficam ociosos, pois não havia material para a realização do treinamento. Entretanto, após alguns dias, o problema vai paulatinamente sendo dirimido. O material começa a ser fornecido nas quantidades ideais e os soldados vão sendo submetidos a um treinamento avançado em relação ao que estavam acostumados no Brasil.

Os brasileiros aprendem a diferenciar os tiros das armas americanas das armas alemães, com demonstração de ruídos a diferentes distâncias. Também são submetidos a treinamentos com granadas (ofensivas, defensivas, iluminativas, de morteiro e fumígenas) e a instruções com os detectores de minas (inovação criada pelos americanos).

O moral e autoestima da tropa melhoram. O contato

com o bom armamento e as instruções inovadoras, além de gerar segurança, instigam na tropa o desejo de se colocar em prática tudo que haviam aprendido. Apesar de prejudicados em seu adestramento pela falta de material, ao fim de trinta e cinco dias, os integrantes dos escalões criam estar aptos ao combate.



CAPÍTULO XI DIAS DE NOVOS SIGNIFICADOS

Durante os dias em que os segundo e terceiro escalões da Força Expedicionária Brasileira estavam em treinamento

na Quinta Real de San Rossore, o primeiro escalão da FEB (que havia chegado à Itália em julho de 1944) havia formado um grupamento tático conhecido como Destacamento FEB, comandado pelo general Zenóbio da Costa. O Destacamento FEB estava em pleno combate desde setembro de 1944. Em novembro de 1944, em razão de já terem chegado os segundo e terceiros escalões da FEB e de terem sido submetidos a adestramento, o Destacamento FEB foi extinto e o efetivo dos três escalões, que já era denominado 1a Divisão de Infantaria Expedicionária (1a DIE) desde a formação no Brasil, foi reunido num único grupamento sob o comando do general João Batista Mascarenhas de Moraes. A 1a DIE estava incorporada ao 4o Corpo do 5o Exército Norte-Americano,

comandados respectivamente, pelo general Crittenberger e pelo tenente-general Mark Clark.

Às tropas brasileiras, naquele momento da guerra,

incumbia substituir as tropas norte-americanas que já

estivessem cansadas. A área de substituição era um front de 15 km ao longo da rodovia no 64, que acompanhava o traçado do rio Reno, mais especificamente entre os rios Silla e Marano (afluentes do Reno). O trecho crítico da rodovia se iniciava em Porreta Terme (onde estava o Quartel General da FEB) e ia além da cidade de Bolonha.

Ainda em novembro de 1944, os comandantes do 5o

Exército Norte-Americano, ao qual estavam sujeitas as tropas brasileiras, intentavam conquistar um caminho direto até Bolonha, antes da chegada do inverno europeu – que inviabilizaria as ações táticas ofensivas. Um dos grandes obstáculos para esse objetivo era Monte Castelo – região íngreme, montanhosa e de difícil acesso, recheada de barricadas naturais e que era dominada pelos alemães. Conquistar e atravessar esse forte natural também seria uma das tarefas atribuídas aos militares brasileiros.



Lúcio estava mais tranqüilo em relação aos questionamentos que perturbavam sua alma. A conversa que teve com tenente Cláudio havia trazido um pouco de paz ao seu coração. As instruções trouxeram motivação e o espírito militar dele havia recrudescido. Ele, como os demais, aguardava o momento de uma designação por parte dos superiores, isto é, uma ordem para entrada em efetivo combate.

Enquanto esperava uma designação, Lúcio descansava

juntamente com o sargento Jader Ataíde na barraca do

acampamento de Quinta Real de San Rossore: - E aí, Jader? O que você está fazendo? - Ora, estou escrevendo uma carta. Não está vendo? - Para quem? Arrumou uma namorada italiana? - Não, é para minha família no Brasil? - Sério? Que bom! - Olha Lúcio, há um serviço de correios disponível aqui.

Deveria escrever para seus parentes. Nunca vejo você escrever nada para seus familiares.

- Não quero preocupá-los. Por isso, não escrevo. - Mas não dar notícias é que vai deixá-los angustiados,

vão achar que você morreu. - Não vão achar não, porque eles não sabem que vim para

cá. - Como é isso, homem? Não acredito que não avisou sua

família! - Isso mesmo! Nenhum parente meu sabe que vim para

cá. A maioria mora em Cajazeiras e eu não os avisei quando sai de Campina Grande para vir para cá. Só minha namorada



sabe que vim, mas não escrevo para ela, porque sei que ela já deve ter arrumado outro namorado.

- Você tem hábitos estranhos às vezes! Pense direito

nisso, homem, deveria escrever pelo menos para saber como estão seus parentes lá na Paraíba.

Lúcio reflete um pouco, a saudade aperta e ele acaba concordando.

- Sinto saudade deles e, com fé em Deus, ainda voltarei

para vê-los. Vou acatar seu conselho, mas só vou escrever para uma irmã de criação: Noca. Ela é mais tranqüila que meus outros parentes e vai receber com menos alarde uma carta minha, dando notícias sobre a guerra. Veja-me um destes papéis e um lápis, por favor.

- Tome estes aqui. Lúcio pega o lápis e à medida que escreve fala em voz

alta sob o olhar atento de Jader: - “Querida Noca, esta carta é de seu irmão Marcelino

Lúcio Mamedes. Estou aqui na Europa em serviço pelo Exército, tudo está correndo às mil maravilhas: tenho boa comida, bons amigos e um excelente armamento. De vez em quando nos é dado cerveja, chicles e chocolates. Como estão nossos irmãos aí? E o nosso pai? Fiquem com Deus! Jesus me trouxe aqui e Jesus vai me levar de volta”. Pronto! Está bom assim!

- Só isso Lúcio? Pergunta Jader, com expressão

contrariada. - Você quer que escreva um livro? Quanto menos forem os

detalhes, menor será a preocupação deles! Nesse instante o comandante do pelotão chega à

cabana, Lúcio e Jader levantam-se rapidamente em posição de continência.

- Arrumem suas sacolas, nosso pelotão vai fazer um

exercício de reconhecimento. Estejam alerta, pois na área em



que vamos explorar há possibilidade de combate real, podemos encontrar alguns tedescos.

- Sim, senhor! Respondem os dois ao mesmo tempo. Encontrar tedescos era um sinônimo de encontrar

alemães, porque era assim que os soldados brasileiros chamavam os soldados alemães.

Naquele momento da guerra, a Itália estava dividida, a maior parte da população havia se mobilizado contra Mussoline, após ele ter sido deposto, e se colocando a favor dos Aliados (que naquele momento da guerra era representado por Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética); outra parte, composta eminentemente pelo exército fascista (com fortes subsídios e ingerência do exército nazista) continuava fiel ao Eixo (Alemanha e Japão).

Desta forma, ao norte, a Itália ainda estava fortemente

dominada pelo nazifascismo; ao passo que ao sul, o país se encontrava sob a tutela dos Aliados.

Os militares brasileiros estavam sendo submetidos a

exercícios de reconhecimento em áreas próximas ao front da rodovia 64, local onde paulatinamente iriam substituir as

tropas americanas. É para um ponto nesse front que o pelotão de Lúcio, juntamente com outros pelotões, é levado. Eles seguem em caminhões até um pequeno grupo de cidades previamente designadas.

O pelotão de Lúcio é incumbido de fazer um

reconhecimento numa pequena vila, cujo único acesso viável era através de uma ponte. A área não havia sido devidamente coberta pelas tropas anteriores e havia grande possibilidade de soldados inimigos infiltrados entre os habitantes do local.

Os soldados atravessam a ponte e ingressam na vila sob

os olhares desconfiados e assustados dos seus habitantes. De repente, um dos integrantes do pelotão, chamado Artênio Sapatel, que tinha descendência européia e falava um pouco da língua italiana, exclama em tom enfurecido:

- Malditos!



- O que houve, Artênio? Pergunta-lhe o comandante do pelotão, assustado. - Veja comandante, naquele poste! Todos se viram para o poste com os fuzis apontados, já

prontos para atirar, mas não vêem nenhum soldado inimigo. - Onde estão, Artênio? Onde estão eles? Questiona-lhe. - Não são eles, estou mostrando o cartaz no poste! Todos observam um cartaz preso ao poste, um pouco

deteriorado. Nele há uma caricatura de um soldado com a bandeira do Brasil, com feições monstruosas e com muitos equipamentos militares. Na base do cartaz há uma frase

escrita em italiano: “attenzione con brasiliani, qui mangia tutti bambini”.

Todos baixam as armas e ficam em silêncio olhando uns

para os outros, sem entender do que se trata e o motivo de tanta indignação por parte de Artênio. Lúcio, curioso, pergunta:

- Isso neste cartaz é um xingamento às nossas mães,

Artênio? - Quase isso, cabo Lúcio. O cartaz diz que se deve ter

“atenção com os brasileiros porque eles comem todas as criancinhas”. Estão insinuando que somos monstros.

Artênio se dirige ao cartaz e o arranca, sob o olhar temeroso de alguns italianos que estavam contemplando o pelotão. Ele se dirige a esse grupo de pessoas que os observava, tira um enlatado de alimentos da bolsa e dá a uma criança, dizendo com feição tenra: - Non siamo qui per fare male, ma aiutare! A criança sorri e agradece com voz tímida:



- Grazie!

Artênio volta para junto do pelotão. - O que você disse a essa gente, Artênio? Pergunta-lhe o comandante.

- Disse que não estamos para fazer mal, mas para ajudar. Todos do pelotão ficam mais tranquilos e continuam a fazer buscas na cidade, mas com muito cuidado para não ofender nenhum dos habitantes da localidade e, assim, demonstrar toda a boa vontade e boas intenções dos soldados brasileiros.

Nas rondas, nada de suspeito é encontrado. O pelotão

faz acampamento, às margens da ponte, e aguarda novas instruções superiores. Lúcio, Artênio Sapatel e mais dois soldados são incumbidos para integrar a primeira turma a vigiar a ponte, enquanto os demais descansariam.

Durante o crepúsculo da tarde, sendo quase noite, uma

mulher se aproxima da ponte onde Lúcio e Artênio estavam vigiando. Questionada por Artênio sobre o que desejava, ela diz em tom desesperado que precisa sair da cidade para ir até outra cidade próxima dali, para trazer seu filho que escondera com medo do pelotão de soldados do Brasil. Lúcio observa a mulher, que estava muito bem vestida e que era muito bonita, vê em seus olhos e em suas palavras um ar de desespero por causa de seu filho e se compadece. Mas, ao mesmo tempo, fica um tanto quanto desconfiado. Então ele sugestiona a Artênio:

- Diga que ela poderá passar depois que for revistada.

Nós não somos monstros devoradores de crianças, mas, faz parte dos procedimentos que aprendemos há pouco, a revista pessoal em qualquer pessoa que cruzar nossos domínios, sejam homens ou mulheres.



Artênio acena com a cabeça para Lúcio, em sinal de afirmação e transmite, em italiano, a mensagem. A mulher, apesar de constrangida, consente em ser revistada. Lúcio e Artênio a levam a uma cabana e solicitam a bolsa para ser revistada, nada encontram de suspeito. Depois pedem que tire cuidadosamente sua roupa. A mulher tira as peças de roupa e transparece muita preocupação, mas em nenhuma de suas peças de roupa são encontrados objetos suspeitos. A mulher tira todas as suas vestes a ponto de ficar só com suas roupas íntimas. Lúcio pede a Artênio que diga a ela que terá de tirar toda a roupa, inclusive sua roupa íntima. Artênio transmite a mensagem, mas a mulher se irrita e diz:

- Obbligazione de la fermata! Obbligazione de la fermata! - Ela está dizendo que é “parada é obrigatória”. Eu acho que ela não vai tirar o resto da roupa.

Traduz Artênio a fala da mulher para Lúcio.

Lúcio fica irritado e gesticula para mulher, dando a entender que deve tirar a roupa que faltava. Ela ignora, apesar de entender, e se dirige às suas roupas para se vestir novamente. Lúcio a segura, e a tocar seu corpo sente que há na sua barriga um volume por baixo das vestes íntimas. Ele a toma pelos braços e arranca o volume que sentira: era uma pequena bolsa em forma de cinta. Ele abre a pequena bolsa e encontra vários croquis correspondentes a posições das tropas brasileiras na região. - Essa mulher é uma quinta-coluna! Ela é uma espiã!

Exclama Lúcio sob o olhar espantado da mulher e o olhar surpreso de Artênio.

Os soldados que acompanhavam os dois na vigília da

ponte ouvem o alarde e se dirigem ao local. Ficando a par do que ocorrera, um deles fala enfurecido, apontando o fuzil para a mulher:

- Vamos meter uma bala na cabeça desta peste!



- Não! Vamos atrair a revolta do povo se fizermos isso aqui!

Pondera Artênio, baixando o fuzil do soldado. - Essa mulher é mais útil se for interrogada pelos nossos

superiores. Chame o comandante. Complementa.

O comandante é chamado e colocado a par de todo o ocorrido, Artênio e Lúcio são muito elogiados e a mulher é presa para posteriormente ser encaminhada aos oficiais superiores. No dia seguinte, a atividade de reconhecimento é dada por concluída e o pelotão de Lúcio é destacado para combater numa tentativa de tomada de Monte Castelo. O local já havia sido objeto de dois ataques frustrados, executados por tropas americanas e brasileiras. Tais ataques haviam custado muitas vidas, e Monte Castelo passara a ganhar fama mítica de obstáculo instransponível. Era 29 de novembro de 1944, quando os batalhões designados para terceira tentativa de tomar Monte Castelo já se encontravam prontos para entrada em combate; inclusive o pelotão de Lúcio, que fazia parte do 11o Regimento de Infantaria (11RI). Estava determinado que, durante o ataque, o pelotão de Lúcio, juntamente com outros pelotões menos experientes, permaneceria na base do monte e só seria usado para reposição de eventuais baixas que porventura sofressem os primeiros pelotões mais experientes que entrassem em combate.

Monte Castelo era defendido pela 232a Divisão de Infantaria Alemã, que apesar de qualitativamente ser inferior a outras divisões nazifascistas e de possuir algumas dificuldades de remuniciamento e transporte de armamentos, estava numa posição extremamente cômoda, pois a formação geográfica de Monte Castelo fazia dele uma fortaleza natural quase intransponível; a formação geográfica servia como escudo para os que estavam em seu cume.



O dia escolhido para a tomada de Monte Castelo estava

sendo assolado por uma intensa chuva. Essa circunstância de ordem climática fazia com que as tropas incumbidas da tarefa de tomar Monte Castelo já começassem com desvantagens: impossibilidade do uso de apoio aéreo e a limitação do apoio de blindados. Entretanto, o ataque não foi suspenso, pois os superiores criam suprir essa desvantagem com um maciço apoio da artilharia. Assim sendo, à medida que a artilharia lançasse suas marteladas, as tropas brasileiras começariam a avançar em direção ao cobiçado monte, partindo de vários pontos. E, assim, inicia-se a operação.

- Esse barulho de artilharia é para deixar qualquer um louco e surdo!

Reclama Lúcio, conversando com Artênio. - E isso é porque estamos distantes do local de bombardeio!

Fala Artênio, concordando.

- Faz duas horas que estamos aqui! A cada martelada dessa artilharia eu sinto um frio na barriga! Se eu escutar isso mais meia hora vou ficar louco. - Vejam! O comandante está vindo para cá.

Observa um dos soldados do pelotão de Lúcio e Artênio.

- Atenção pelotão! Atenção pelotão!

Exclama o comandante do batalhão de Lúcio. Lúcio e Artênio se olham com os olhos arregalados e tomam posição junto com o pelotão. - É nossa hora de subir! Vamos lá acabar com esses filhos da mãe. Vamos fazer a cobra fumar!

Determina o comandante.



- Se nos chamaram é porque alguém foi ao chão! Conclui Artênio, dizendo a Lúcio.

Eles se aprontam e começam a se dirigir ao local

designado para combate. Quando estavam cerca de 100m de um dos locais onde estavam sendo travados combates, eles começam a enxergar várias macas descendo com pessoas mutiladas e gritando desesperadas. A cena era complementada com o som das explosões das artilharias americanas e alemãs, que criavam um repertório infernal: gritos, explosões e tiros.

Eles continuam vagarosamente subindo e chegam

vagarosamente ao local onde estava o front de batalha. O fogo intenso e o terreno íngreme pareciam transformar os 100m em 100 km. A tensão começa a se generalizar.

Os alemães tinham visão muito privilegiada do cume de

Monte Castelo e sabiam o momento exato de contra-atacar quem tentasse subir. A tropa brasileira estava praticamente inerte, não conseguia enfrentar a artilharia alemã. Eles estavam sendo massacrados pelo fogo alemão. Mesmo assim, tentavam subir um pouco mais e encontrar posições para alvejar o inimigo. Mas, pouco ou nada conseguiam atingir aos alemães, que se valiam das barricadas naturais do monte. Além do mais, a chuva forte e o frio intenso castigavam a maioria dos soldados acostumados a temperaturas mais altas no Brasil.

Lúcio tenta tomar posição e usar seu fuzil. Ele e os

demais atiravam sem muita visão do inimigo. Os fuzis pareciam inócuos, pois só os ataques com os morteiros portáteis e a artilharia pesada é que geravam algum efeito. Além das barricadas naturais de Monte Castelo, a chuva forte também dificultava a visão.

Ciente de que não havia possibilidade de avançar, os

superiores determinaram o recuo das tropas às posições iniciais, pois percebem, tardiamente, que prosseguir seria suicídio. As tropas estavam encurraladas em paredões de fogo, criados pelos canhões antiaéreos de 88 mm (que



estavam sendo usados como artilharia comum contra os soldados brasileiros), pelos morteiros e pelo fogo cruzado de fuzis MG-34.

- Recuar! Recuar! Esgoela-se o comandante em ordem ao pelotão!

Lúcio recebe a ordem e começa e recuar, todavia percebe que há um companheiro caído de bruços, vai tentar levantá-lo, mas quando vira o soldado vê que ele está morto, totalmente dilacerado em sua face e com seus órgãos internos expostos por causa de um morteiro. - Meu Deus!

Diz Lúcio horrorizado, largando repentinamente o corpo.

- Vamos Lúcio, vamos!

Chama-lhe o comandante do pelotão.

- Temos que dar um enterro decente a este companheiro!

Retruca Lúcio querendo levar o corpo.

- Não vai poder ser agora, veja essa chuva de fogo, homem! Podemos ser atingidos por um morteiro. A ordem é recuar. Recuar! - Mas, senhor... - Vamos, cabo! Isso é uma ordem! - Sim, senhor! As tropas recuam e o fogo em ambos os lados cessa. As tropas brasileiras recuam às posições iniciais com 185 baixas. A missão de tomar Monte Castello tinha sido mais uma vez frustrada.



Lúcio, já no acampamento à base de Monte Castelo, está sentado em uma pedra e olhando fixamente para o chão, muito pensativo. - Você se feriu, Lúcio?

Pergunta Artênio, preocupado.

- Meu Deus! Eu pensei que ia me sentir mal em atirar

numa pessoa, mas o barulho das bombas e das pessoas feridas faz com que você não pense em nada, você não reflete nada, você não raciocina, você só atira! Não importa quem está do outro lado, seu desejo é de matá-lo.

Responde Lúcio, perturbado. Ele ainda complementa:

- Bem que tenente Cláudio me disse que aqui não é uma

brincadeira, nunca tinha visto pessoas mortas dessa forma, meu Deus! Por que estamos aqui? O corpo do pracinha ficou lá, só Deus sabe quando poderemos resgatá-lo para dar-lhe um enterro decente! E a família desse companheiro?

O comandante do pelotão interfere ao escutar as

murmurações de Lúcio:

- Aqui não é lugar para filosofar, cabo! Quer um dia melhor amanhã? Então trate de sobreviver! Sua vida e a dos outros integrantes do pelotão dependem de você, não se entregue a estas lamúrias! Cale-se e cumpra seu dever como um homem! Não gostou de ver companheiros mortos? Então trate de destruir o inimigo, pois é ele que gera isso! Amanhã pode ser você estraçalhado e morto se continuar com essas atitudes de bom samaritano. Lúcio se cala, resignado. O sonho militar definitivamente transmudara-se num pesadelo infernal. A palavra guerra ganhara uma nova e assombrosa acepção.



CAPÍTULO XII DIAS INFERNAIS

ESTRADA 64, DEZEMBRO DE 1944.

Lúcio e seu pelotão retornam para defesa da estrada 64, ficando às proximidades de Silla, ao norte de Porreta Terme (onde ficava o quartel-general da FEB) e às margens do rio Reno.

O vale do rio Reno era cercado de montanhas que

estavam completamente dominadas pelos alemães. Eles detinham posições privilegiadas para atacar os brasileiros, que ocupavam posições mais baixas, na base do complexo montanhoso. Para agravar a situação, já desfavorável aos brasileiros, o inverno italiano estava próximo e as temperaturas já estavam começando a cair bruscamente.

O regime de combate adotado pelos superiores era o de

defesa agressiva. Por conta disso, a região da estrada 64 era objeto de vigilância diuturna, sendo as ações militares, ao longo dela, eminentemente de patrulhas. O pelotão de Lúcio, juntamente com outros pelotões, encontrava-se num posto avançado nas proximidades de uma vila daquela região.

Era noite quando o pelotão de Lúcio estava acampado,

juntamente com outros pelotões, na retaguarda do front, aguardando o momento de substituir outros pelotões na realização de patrulhas. Alguns militares haviam sido destacados para fazer vigília em pontos do acampamento e tinham ordem para matar qualquer pessoa que se aproximasse sem se identificar com a senha predeterminada para o dia.

Um dos soldados do pelotão de Lúcio foi incumbido de

substituir um dos militares que estava de vigília, o que na linguagem militar chama-se render. Havia chovido e o caminho mais curto até esse ponto de vigília estava alagado.

- Soldado, a senha para render seu companheiro é

Mascarenhas de Moraes!



Determina o comandante do pelotão ao soldado

incumbido da substituição. - Sim, senhor!

Quem estava de vigília tinha obrigação de pedir que fosse dada a senha dizendo “avance a senha”. Isso deveria ser dito três vezes, antes de se atirar em quem se aproximasse sem se identificar. Como estava alagado o caminho até o ponto de vigília, o soldado que tinha a tarefa de substituir o que estava em vigília decidiu transitar por um caminho seco um pouco mais por fora do acampamento, para evitar que se molhasse e sofresse mais com o frio.

Ele segue até o ponto onde estava o colega que tinha que render e toma de surpresa o soldado responsável pelo ponto de vigília. Este só observa uma pessoa se aproximando no escuro por fora do acampamento. O vigilante espera atemorizadamente ele se aproximar até cerca de dez metros e diz aos berros e de forma repentina:

- Avance a senha! O outro que vinha para lhe render se assusta com o grito e acaba escorregando no terreno molhando, vindo a cair numa poça no chão. O que vigiava percebe que quem se aproximava havia se assustado e fica mais atemorizado ainda: - Avance a senha!

Diz o soldado todo trêmulo e já apontando o fuzil para o outro que se aproxima.

O que caíra se levanta irado e começa a se limpar. Ele sussurra, murmurando pelo medo que o outro lhe causou e não presta atenção ao alerta do parceiro nem no perigo que corria.



- Estúpido, me assustou! Estou todo molhado! - Avance a senha!

Repete, pela terceira vez, o vigilante.

O outro soldado não se atém ao pedido do colega e se concentra em se limpar, pegando no fuzil para limpá-lo também. O vigilante vê a pessoa tomar uma arma entre as mãos, mira em direção ao companheiro e, por pensar se tratar de um inimigo, dispara um tiro certeiro na cabeça do suposto invasor:

- Tedesco! Tedesco! Tedesco!

Grita o atirador, numa referência a um suposto invasor alemão.

Lúcio ouve o disparo e os gritos e se dirige (juntamente com o comandante, Artênio Sapatel e outros soldados) ao local. Ao chegarem lá, veem o soldado que atirara aos berros com o corpo do companheiro nos braços, já sem vida. Ele tentava recolocar a massa encefálica do companheiro dentro do crânio que havia formado uma cratera após o disparo. - Meu Deus! O que eu fiz? O que eu fiz? Olha para o céu e dá um longo grito dizendo não. Depois, volta-se para o corpo.

- Acorda! Acorda! Repete ele, balançando o corpo e chorando

desoladamente, como uma criança.

- Quem fez isso? Onde estão os invasores?

Questiona o comandante.

- Senhor, eu atirei nele, eu matei um irmão! Meu Deus! Ele não disse a senha e eu achei que era um alemão. Eu não tive culpa, pois esse estúpido veio do escuro e não disse nada!



Acorda idiota! Acorda! Não, meu Deus, não! Digam que isso é um pesadelo se não eu vou enlouquecer! Lúcio e Artênio levam as mãos à cabeça em sinal de desespero, pois eram amigos dos dois soldados. Um outro soldado, que acompanhava o grupo, ao ver o corpo, começa a vomitar. - Meu Deus, o que é isso? O que é isso? Que droga de guerra! Que droga de guerra!

Diz Lúcio descontrolado e sem saber direito o que fazer naquela situação trágica.

O soldado que atirara no companheiro fica histérico e desnorteado, pega sua pistola e aponta para sua própria cabeça. - Meu Deus! Eu não mereço viver! Lúcio e Artênio se arremessam sobre o soldado e conseguem tomar a arma dele e o imobilizam antes que efetuasse o disparo. - Parem! Soltem minhas mãos! Deixem-me morrer! Deixem-me morrer! Eu não vou levar essa vergonha pelo resto de minha vida! O que eu vou dizer para meus filhos?

Questiona-se o soldado.

- Foi um acidente, você não teve culpa soldado! Ele não se identificou e você fez o que era para fazer.

Tenta consolá-lo o comandante.

- Meu Deus isso não é real, eu não estou aqui! Eu não fiz isso!

Lamuria-se o soldado que é sustentado, com dificuldade, por Artênio e Lúcio.



- Levem-no para a enfermaria e peçam ao enfermeiro que lhe dê alguma coisa para ele se acalmar.

Ordena o comandante a Lúcio e Artênio.

Aos outros soldados que haviam chegado ao local, o comandante ordena que removam o corpo.

Os dois soldados envolvidos nesse episódio trágico são levados: um para ser sepultado e o outro para ser sedado.

Todos os que haviam presenciado aquela trágica cena,

de alguma forma, estavam marcados pelo resto de suas vidas.

Instantes depois, já na barraca, e após entregarem o soldado na enfermaria, Lúcio e Artênio estão calados, pois não conseguiam pensar em nada que pudesse ser dito sobre a situação. Entretanto, Lúcio se recorda do que lhe havia dito tenente Cláudio, e acaba por quebrar o silêncio: - A verdade é que hoje perdemos dois homens! - O quê?

Pergunta Artênio, perplexo.

- Hoje perdemos dois homens, pois um perdeu a vida e o outro destruiu a própria alma. O rapaz que deu o tiro nunca mais será a mesma pessoa, nunca mais vai querer pegar e nem olhar para uma arma, a não ser que seja para se matar. - Nem me fale! - Bem que um conhecido me disse que nessa guerra estúpida ou se perde a vida ou se perde a alma. Somos uns infelizes! - Olha Lúcio, não vamos pensar nisso. Se ficarmos matutando isso muito, vamos ficar loucos como o rapazinho que deu um tiro no soldado. - Isso aqui não é vida, meu caro Artênio. Não quero morrer e nem perder minha alma. Mas a verdade é que depois que vi



um companheiro de piadas com a sua cabeça estraçalhada eu acho que não dá para ser a mesma pessoa. - Meu amigo! Vamos fazer um pacto de não falar mais de guerra enquanto estivermos aqui na retaguarda descansando. Já basta ter que sofrer vendo estas coisas! Pensar e falar nelas só vai piorar o que já está péssimo. - Tem razão. Os dois vão dormir, mas a imagem do que viram ficaria gravada em suas mentes e perturbaria o sono deles durante muitas noites. Quatro dias depois, três pelotões que estavam na retaguarda, inclusive o de Lúcio, são destacados para realizar

patrulhas num front nas proximidades de um bosque ao norte de Porreta Terme. Por determinação superior, os pelotões ficariam sob o comando imediato do comandante do pelotão de Lúcio, que era o pelotão mais experiente entre os destacados (pois já havia combatido em Monte Castello). Cada pelotão possuía cerca de dezoito homens.

A área desse front era crítica, pois os alemães possuíam casamatas (abrigos militares camuflados e geralmente possuidores de artilharia pesada) nos pontos mais altos da região e, por conta das posições privilegiadas e da facilidade de visualização, atacavam constantemente. A frente de batalha neste ponto estava estabilizada, sem avanços e sem recuos, mas era assolada por ataques diários. Os militares

brasileiros ao longo desse front e que ficavam em posições fixas possuíam abrigos individuais chamados de fox-holes (que são como trincheiras individuais).

Nessa localidade, a leste, havia também uma ponte que

era constantemente atacada quando algum veículo ou tropa se aproximava. Isso impossibilitava a passagem de comboios e estava prejudicando a logística das tropas após aquela ponte. Por conta disso, as ações de patrulha dos pelotões

convocados se estenderiam ao longo do front e culminariam com o reconhecimento do local onde estava essa ponte. Eles tinham como objetivo principal a eliminação do problema que



aquela ponte representava, isto é, teriam que descobrir e eliminar a origem dos ataques.

Três soldados de patrulhas anteriores haviam

desaparecido, havia dois dias, nos bosques da mesma região que seria patrulhada e, esta nova patrulha também teria como objetivo incidental tentar encontrá-los.

O comandante dos pelotões, às quatro da manhã, com as tropas formadas e já acampadas nas proximidades do local da patrulha, faz a preleção: - Senhores, vocês estão cientes que esta área está infestada destes malditos tedescos. Temos cerca de dois quilômetros a percorrer com o ápice de nossa missão em desobstruir uma ponte a leste. As ordens são simples: a ordem número um é sobreviver, a ordem número dois é matar quem se opor às nossas ações. Irão nos acompanhar os especialistas em minas e teremos alguns aparelhos detectores de minas. Portanto, cuidado onde pisam e cuidado com os bosques, porque o que pode sair deles com certeza não será chapeuzinho vermelho. Nossa missão também tem como objetivo secundário tentar encontrar três pracinhas que desapareceram numa patrulha. Sejam sóbrios e estejam alerta. - Sim, senhor!

Responde a tropa em coro. - Eu passo a palavra ao capelão para que ele abençoe-

nos nessa missão e já faça, antecipadamente, a extrema-unção para os alemães que encontrarmos pelo caminho, que o diabo possa os receber com fogo, muito fogo!

O capelão toma a palavra e executa um sermão sem um acompanhamento muito entusiasmado por parte dos soldados: - Meus amigos, a palavra que deve estar em suas mentes e corações é sacrifício! Jesus morreu por nós e nos deixou o exemplo para que morrêssemos pelos nossos irmãos. Então, não tenham medo porque vocês estão do lado do bem na



missão de destruir o mal, ainda que isso custe suas vidas, ou seja, custe-nos sacrifício. Nossa nação está do lado do bem, devemos amá-la e defendê-la a qualquer custo. - Eu achei que o capelão ia nos abençoar e nos animar, mas pelo jeito quem está recebendo a extrema-unção somos nós, ele já está dizendo que devemos morrer!

Murmura, cochichando, um dos soldados do pelotão de Lúcio.

- Isso é um absurdo! Não tem como encaixar Jesus como motivo para uma guerra estúpida. Tudo isso que esse cidadão está falando é conversa para boi dormir!

Reclama outro soldado, contrariado.

- É conversa para pracinha dormir, dormir um sono eterno.

Ironiza o soldado que havia murmurado primeiro.

O capelão prossegue com suas analogias e reforça a necessidade de sacrifício por parte dos soldados, sempre enaltecendo o país e governo do Brasil. O sermão é concluído, os pracinhas rezam um Pai Nosso, cantam o Hino Nacional e, após o rancho, seguem para sua missão. Os militares se deslocam em veículos, cerca de um quilômetro em direção ao bosque e iniciam a atividade de patrulhamento. Os veículos, juntamente com um dos pelotões, permaneceriam na entrada do bosque, para cobrir a retaguarda dos outros dois pelotões e para se deslocar com eventuais feridos de lá ao acampamento, caso fosse necessário.

Os outros dois pelotões começam a caminhar, adentrando ao bosque. O clima era de muita tensão.

Quando tinham caminhando cerca de 500m, eles ouvem

uma explosão a oeste, a cerca de 100m de onde estavam. - Que droga é essa?



Pergunta um dos jovens soldados do pelotão. - Só não são fogos de São João! Ironiza o comandante. O comandante ordena que todos se abaixem e questiona

por voluntários que queiram fazer um reconhecimento no local da explosão. Ninguém se oferece, então ele nomeia dois soldados para averiguar a área e transmitir a situação local através de um radiotransmissor.

Os escolhidos, muito atemorizados, iniciam a marcha cuidadosamente por entre o bosque, em direção ao local de onde veio a explosão. Após alguns instantes, um dos soldados que havia sido destacado para o reconhecimento, e que portava o rádio, chama pelo aparelho:

- “Mãe coruja” chamando “lobo guará”. “Mãe coruja”

chamando “lobo guará”. - Prossiga “mãe coruja”, “lobo guará” na escuta. Responde o comandante. - Tenente, a situação aqui é tranquila. Mas há dois corpos

aqui, um de um javali estraçalhado porque pisou numa mina e foi quem nos deu esse susto.

- Certo! E o outro corpo? - O outro corpo é de um soldado, parece ser um pracinha.

Ele não se mexe, mas não está com maiores lesões, talvez esteja vivo. Estamos a cerca de dez metros deles. Esse deve ser um dos desaparecidos.

- Tudo bem. Não se mova daí, porque pode haver mais

minas. Estamos deslocando para o local soldados com os detectores de minas.

- Sim senhor! “Mãe coruja” desligando.



Os soldados responsáveis pelos detectores de minas vão primeiro para fazer o reconhecimento do local e, após algum tempo de buscas, não encontram nenhuma mina.

- “Mãe coruja” chamando “lobo guará”. “Mãe coruja”

chamando “lobo guará”. - Prossiga “mãe coruja”, “lobo guará” na escuta. - Tenente, a área está limpa! Diz um dos soldados que possuía detectores. - Muito bem. Vamos deslocar a tropa até aí. Desligando. - Sim, senhor. A tropa avança com o comandante e um dos militares

dirige-se apressadamente ao corpo, para verificar se ele ainda estava com vida. Ele olha para o corpo e vê que não há ferimentos graves. Verifica os sinais vitais e vê que estava morto, pois não tinha pulso e nem respiração, e apresentava coloração cadavérica. O único ferimento que havia era em seu pescoço, ele aparentava ter sido asfixiado e, pelo aspecto do corpo, não fazia muito tempo que morrera.

O soldado decide levantar o colega para encaminhá-lo ao

sepultamento e pede ajuda a um companheiro. - Ajude-me a levantá-lo. Nesse mesmo instante, o comandante avança e observa

que a cabeça do javali que havia acionado a mina estava amarrada a um arbusto e fica perplexo. De repente, sua mente dá um estalo:

- Recuar! Recuar! Emboscada! Emboscada! Grita o comandante. Os soldados não entendem o porquê da ordem. O

soldado que estava com o corpo do pracinha levanta-o juntamente com um colega, mas os alemães haviam colocado



uma mina embaixo do corpo, para que ela explodisse quando alguém o retirasse. Tudo que estava ali fazia parte de uma armadilha.

- Boom! A mina explode, ferindo três soldados, além de matar os

dois soldados que levantaram o corpo. Os alemães haviam preparado tudo para surpreender as tropas brasileiras, tinham colocado o javali amarrado para explodir uma mina e para atrair os soldados para o corpo do colega. O comandante percebera que o animal amarrado era um indício de armadilha, mas sua percepção e ordem fora tardia para alguns.

Dois soldados que haviam sido feridos conseguem ser socorridos pelos colegas enquanto as tropas recuam, mas quando Lúcio e Artênio iam resgatar o terceiro soldado ferido, tem início um ataque com morteiros. - Socorro!

Clama o terceiro ferido, chamado de Deuslim Barbosa.

- Recuar! Recuar! Ordena o comandante dos pelotões. O zunido dos morteiros vinha de longe, de uma casamata no topo do bosque. Os alemães haviam preparado tudo, pois tinham as coordenadas exatas do local. Só estavam esperando o som da segunda explosão como sinal, para iniciar o ataque com morteiros. - Recuar!

Ordena o comandante com a voz já rouca.

Lúcio e Artênio ficam angustiados e olhando um para o outro: não sabem se recuam ou se vão socorrer o amigo que clama desesperado. - Por favor! Não me deixem aqui!



Clama o colega.

O comandante corre até Lúcio e Artênio e os segura pelo braço, puxando-os para a direção que a tropa recuava. - Recuar seus idiotas, vocês querem morrer? - Temos que resgatar Deuslim!

Retruca Lúcio.

- Agora não! Vamos esperar cessar o fogo, não quero perder mais homens. Vamos! Lúcio se livra do comandante e corre em direção a Deuslim. Artênio tenta se livrar também, mas o comandante o derruba e não o deixa acompanhar Lúcio. - Lúcio, seu imbecil, volte aqui! Isso é uma ordem!

Repete, aos berros, o comandante.

Lúcio ignora o pedido e se dirige ao colega. Os morteiros zunem e explodem um atrás do outro. Quando ele se aproxima de Deuslim e dos outros corpos, um morteiro explode muito perto deles, e faz Lúcio se jogar no chão.

Quando a fumaça se dilui, Lúcio vira seu rosto e olha face a face um militar que havia sido arremessado pela explosão da mina e morrido. Para por alguns segundos, contemplando, atônito, os olhos estáticos e mórbidos e a face regada de sangue de seu colega. Ele fica numa espécie de transe que só é interrompido com o grito de Deuslim, à direita:

- Cabo Lúcio! Lúcio! - Estou aqui amigo, calma! Lúcio coloca Deuslim nas costas e começa a se dirigir de volta de onde saíra. A tropa acompanha apreensiva a operação. De repente, outro morteiro explode frente a Lúcio.



Todos ficam atônitos esperando a fumaça baixar e ver se Lúcio e Deuslim teriam sido atingidos.

- Eu sabia que ele ia se dar mal! Eu avisei! Lamenta o comandante. Artênio leva as mãos à cabeça em sinal de lamento. A

fumaça baixa e todos vêem Lúcio no chão, juntamente com Deuslim. Lúcio se levanta, coloca novamente o companheiro nas costas, e consegue retornar ao local onde estavam as tropas.

- Estúpido e imbecil! Quer dar uma de bom samaritano cabo? Então está no lugar errado!

Repreende o comandante.

- Desculpe comandante, mas as palavras do capelão foram que devemos nos sacrificar por nossos irmãos. A única coisa boa nessa guerra é que temos oportunidade de salvar vidas. Foi um tenente amigo meu que me ensinou isso. - Vou indicar você ou para ser Papa ou para ser político, cabo!

Ironiza o comandante.

O diálogo é interrompido por um morteiro que explode próximo de onde estavam. A tropa recua às posições iniciais e os feridos são levados às pressas de volta ao acampamento.

As baixas, que foram cinco, são repostas com militares do acampamento.

O comandante decide iniciar uma marcha para leste, em

direção à ponte que deveria ser desobstruída e que era o objetivo máximo da patrulha. Eles não têm muito tempo para se refazer do ataque que sofreram e já começam a caminhar às proximidades da ponte.



O grupo faz trinta minutos de uma lenta e cuidadosa caminhada, até que o comandante dos pelotões determina a parada e reúne as tropas para uma nova preleção:

- Senhores! Estamos a cerca de 400m da ponte que motivou nossa vinda até aqui. Nossos veículos não conseguem transpor essa ponte. Toda vez que os veículos se aproximam dela, eles são alvejados por uma chuva de artilharia. Alguém vai ter que fazer o reconhecimento da ponte e nos passar a situação. Voluntários? Todos ficam calados, pois ainda estavam abatidos pelo insucesso no episódio anterior. - Ótimo! Eu nomeio cabo Lúcio para fazer o reconhecimento. Ele não morreu pelos morteiros hoje, eu acho que ele não morre mais.

Convoca o comandante.

Lúcio sente o tom de retaliação do comandante, mas não se rebela contra a ordem: - É uma honra, tenente!

Ironiza. Lúcio começa a caminha em direção à ponte. Ele se entranha pelo bosque, na lateral direita da estrada que levava até a ponte. Ele sente muito medo enquanto caminha e olha constantemente para os lados, andando vagarosamente e se assustando cada vez que ouve ruídos do bosque. O militar chega até a ponte e dá um grande suspiro. Verifica o vale à esquerda e à direita com um binóculo e não visualiza nenhuma casamata ou tropa inimiga, pelo que fica intrigado.

Para um pouco, esfrega o rosto, toma uma goma de mascar e senta-se para descansar, enquanto observa mais atentamente a área, em busca de localizar algum ponto inimigo que fosse a origem dos ataques à ponte. Não encontra nada.



Lúcio pega o chicle que mascara e joga a sua direita. Quando contempla o chicle caindo no chão vê algumas marcas de pegadas descendo em direção à área abaixo da ponte. Ele se levanta rapidamente e fica muito temeroso. Começa a pensar consigo quantos soldados poderiam ter ali embaixo e se eles haviam visualizado sua chegada.

As pegadas eram recentes, mas pelo padrão pareciam

ser de apenas uma pessoa. Lúcio, então, decide acompanhar vagarosamente a trilha das pegadas para levar o máximo de informações à tropa. Quando anda cerca de 50m para baixo, vê a sua frente uma pessoa sentada, fumando um cigarro e com um radiotransmissor, ele estava ao lado de uma pequena cabana, montada numa clareira aberta no bosque. A pessoa era um militar italiano, um soldado fascista.

Lúcio se barrica numa árvore e aponta seu fuzil para

aquela pessoa, mirando a cabeça do soldado. Enquanto acertava a mira ele estava um pouco trêmulo. De repente, tira o fuzil da mira, raciocina um pouco, e decide render o soldado ao invés de matá-lo.

- Esse infeliz vai ser mais útil vivo do que morto.

Pensa consigo, querendo se justificar.

Ele vai caminhando vagarosamente pela retaguarda da cabana. Quando está cerca de cinco metros do italiano, o inimigo percebe a presença de Lúcio, levanta-se e corre em direção à barraca onde estava seu fuzil. - Parado aí, seu porco!

Diz Lúcio apontando o fuzil para o soldado.

O italiano não entende o que Lúcio diz, mas compreende que o gesto de um fuzil apontado significava que deveria parar. Assim, ele para e fica com os olhos arregalados e com as mãos para cima. Lúcio contempla o jovem, que aparenta ter menos de dezoito anos.



O jovem começa a chorar e se ajoelha diante de Lúcio. Este olha para os lados, com medo de haver mais inimigos ali e gesticula com o fuzil, ordenando ao jovem que se levante. Lúcio pega o radiotransmissor do italiano e põe em suas costas. O jovem se levanta e Lúcio gesticula, mandando-o caminhar em direção ao cume da ponte. O jovem chora muito e se lamenta em italiano, Lúcio não entende nada do que ele diz. Ambos caminham até a ponte e da ponte até o local onde estavam as tropas brasileiras.

Todos estavam em grande expectativa, e quando Lúcio chega, um dos pracinhas percebe que ele havia aprisionado um inimigo, então, dirige-se ao soldado italiano, cospe em seu rosto e lhe dá uma bofetada. O jovem cai no chão e se levanta de joelhos, chorando muito. O soldado aponta o fuzil para a cabeça do italiano. - Seu safado, você vai morrer agora! - Não!

Diz Lúcio desviando o fuzil que o soldado apontara para o italiano.

- Lúcio, o bom samaritano em mais uma de suas boas ações!

Ironiza o comandante.

- Não dá para ser valente agora depois que o jovem está desarmado. Além do mais, não é questão de ser bom. Esse homem é mais útil se for interrogado. Talvez ele dê a localização das casamatas que assolam a ponte quando alguém se aproxima. Eu encontrei esse rádio com ele. Ele é quem estava avisando os inimigos quando alguém se aproximava. Se ele nos informar a localização das casamatas, muitas vidas e recursos poderão ser poupados! Tenente!

Diz Lúcio, colocando o rádio aos pés do comandante, ao mesmo tempo em que é congratulado pelos colegas.



O comandante cala-se por um momento e depois reconhece: - Bom trabalho, cabo! - Obrigado, tenente. O italiano continua aos prantos e muito assustado, mas Artênio o tranquiliza dizendo, em italiano, que se ele colaborar ninguém irá matá-lo. Ele para o choro, tira uma medalhinha de seu uniforme e coloca no uniforme de Lúcio, pois entendera que não havia sido executado graças à intervenção dele. O soldado italiano é levado aos superiores e dá a localização exata da casamata que alvejava a ponte. Três dias depois, a posição da casamata é localizada e os soldados inimigos são eliminados. A ponte estava desobstruída.



CAPÍTULO XIII DIAS DE “RECESSO”

ITÁLIA, 13 DE DEZEMBRO DE 1944.

Todas as frentes de batalha italiana ao longo da Estrada 64 estavam totalmente estabilizadas, isto é, não era possível às tropas realizar avanços. Isso se deu em virtude da chegada definitiva do inverno que, ao trazer chuvas, lama, espessas camadas de neve, além das baixas temperaturas (que chegavam até a 19oC abaixo de zero) e do céu fechado, tornavam impraticáveis as ações ofensivas, pois afastavam quaisquer possibilidades de apoio aéreo e do uso de blindados ou demais veículos, e ainda dificultavam a visualização para as ações de artilharia pesada.

Por conta dessas circunstâncias, criou-se uma espécie

de “recesso extra-oficial”, no que concerne a ações ofensivas de conquista. Ninguém se arriscava a impetrar ações mais ousadas. Entretanto, não haveria recesso para as

hostilidades no front localizado ao longo do vale do rio Reno, pois as ações de patrulha dos beligerantes seriam mantidas. Muitas vidas ainda seriam sacrificadas. Tal situação de “recesso” hibernal iria perdurar até fevereiro de 1945, totalizando cerca de 70 (setenta) dias de um “inferno branco e frio”.

O pelotão de Lúcio tinha concluído, com sucesso, a sua missão de desobstrução da ponte ao norte de Porreta Terme e regressara para a região do rio Silla, para um merecido descanso na retaguarda. Lúcio e Artênio estavam andando pelo acampamento. Eles estavam conversando quando, de repente, Lúcio interrompe a conversa, para e fica curioso, observando atentamente uma barraca de um soldado. Nela havia uma

pilha grande de cigarros de marcas variadas, como Camel, Chesterfield e Lucky Stricke. Havia também uma pilha considerável de latas de alimentos, chocolates e chicles. Ele, intrigado, questiona o soldado:



- O que é isso pracinha? Está juntando a comida que recebe para abrir um mercado na Itália?

- Não senhor! Isso é minha moeda de troca. - Moeda de troca? Não entendi. O soldado se aproxima de Lúcio olhando para os lados e fala cochichando: - Há na cidade de Silla algumas moças que aceitam esses presentes em troca de amores. Entende? - Prostitutas? - Se prefere chamar assim! Mas não são prostitutas. - Sei. - Eu só preciso de uma autorização para sair para Silla, mas o senhor sabe como é difícil para um soldado conseguir essas autorizações.

- Sei.

- Mas o senhor é cabo, talvez consiga com mais facilidade. - E o que eu ganharia em conseguir uma autorização para você vadiar fora do acampamento?

- O senhor e o seu colega iriam comigo! Há três beldades na casa que eu frequento. Eu consegui negociar algumas garrafas de vinho, e vou lá para fazer uma festa. Que tal? Vamos nós três! Depois vocês me pagam de alguma forma esse estoque que vou levar hoje.

- Você vai levar tudo isso soldado?

Pergunta Artênio. - Sim.



- Marcelino Lúcio Mamedes não paga por mulheres, ele conquista mulheres! Se eu dançar com uma criatura dessas, ela vai me pedir em casamento e de graça! - Vamos lá Lúcio, vai dizer que você não está subindo pelas paredes, há meses que não vejo mulher!

Insiste Artênio com Lúcio.

- É! Não vai fazer mal tomar um vinho na companhia de belas italianas.

Concorda Lúcio.

Eles três fazem um acordo. Lúcio e Artênio vão até sua barraca, pegam alguns chicles e chocolates, alguns maços de cigarro que tinham, pois não fumavam e geralmente juntavam para dar aos colegas, além de algumas latinhas de alimentos. Ambos disputam um espelho para se pentear e saem apressadamente até onde estava o soldado que os convidara para a “festa”.

Eles três vão até o comandante e pedem autorização para irem até a cidade, sem dizer o que realmente pretendiam fazer. Lúcio gozava de prestígio, em virtude de sua última ação no episódio da ponte, e consegue convencer o comandante a disponibilizar um jipe para o deslocamento. O comandante dá uma autorização, mas os ordena voltarem antes de escurecer. Eles seguem eufóricos até a casa das moças, que ficava na cidade de Silla, e já começavam a fazer planos para a “festa”:

- Eu falo italiano e vou deixar vocês chupando o dedo,

talvez com minha lábia arremate as três. Diz Artênio, vangloriando-se.

- Deixe-me dançar uma música com as pequenas e você vai ver quem leva vantagem.

Retruca Lúcio.



- Calma! Cada macaco no seu galho! Lembre-se que quem as conhece sou eu! É uma para cada!

Reclama o soldado que os convidara. Ao adentrar a cidade, Lúcio fica pasmo com a destruição das casas e o aspecto mórbido das pessoas que passam por eles:

- Meu Deus! Um povo tão bonito, mas parece que saiu de um enterro. Veja as casas, tão bonitas. Todas destruídas.

Lamenta-se.

Após algum tempo, eles chegam até uma casa, muito modesta em relação às outras. O soldado chama à entrada. Lúcio e Artênio arrumam o cabelo enquanto aguardam ansiosamente a saída do mulheril. De repente, sai do interior da casa um senhor de idade.

- Buonasera! Diz o senhor gesticulando com os braços em sinal de

apreço aos visitantes.

Lúcio e Artênio se olham e ficam intrigados. Artênio estranha sair um velhinho da casa e pergunta: - Esse cara não está muito velho para ser cafetão? Se essa é a qualidade do chefe das moças, imagine como elas serão! - Ele não é cafetão.

Diz o soldado.

Lúcio olha para Artênio e solta uma farpa, em tom bem-humorado:

- Você está certo que é aqui moram moças, soldado? Todos nós estamos numa secura só por mulher, mas, olhar para esse velho barbado e imaginar que ele é uma italiana,



nem com trinta litros de vinho. Você não anda vendo coisas não é, soldado? Não anda trocando gato por lebre?

- Eu odeio pederastas.

Complementa Artênio. - Calma, não façam piadas! Esse é o pai das meninas!

- Pai?

Perguntam simultaneamente, e em coro, Lúcio e Artênio, mudando imediatamente as feições bem-humoradas.

- Sim. O pai.

O soldado acende um cigarro para o senhor e dá um abraço nele, cumprimentando-o e lhe mostrando uma das garrafas de vinho que levara.

- Rapaz, isso não vai dar certo!

Cochicha Artênio, olhando para Lúcio com feição de reprovação.

Lúcio e Artênio ficam desconfiados, mas adentram a casa, pelo convite insistente do senhor que saíra dela. Eles acessam a modesta sala da casa e se sentam. O senhor dá um grito em direção ao interior da casa: - Ragazze! - Ele está chamando as meninas. Elas vão se arrumar e virão logo.

Diz o soldado, todo animado e contemplado por Lúcio e Artênio que não estavam muito entusiasmados.

Alguns instantes depois, saem de um quarto três moças com aparência muito jovem, todas enfeitadas e muito maquiadas. As moças tinham faces magras e suas feições eram lúgubres. Elas mal levantavam suas cabeças. A mais



velha aparentava ter dezesseis anos e a mais nova aparentava ter uns treze, esta última, mal tinha seus seios formados. - Meu Deus! São crianças!

Diz Lúcio, chocado.

- Seu mal-caráter!

Diz Artênio dando uma tapa na nuca do soldado.

- O que foi que eu fiz?

Diz o soldado, sem entender o motivo da revolta e frustração de Artênio e Lúcio e esfregando a sua nuca para passar a dor.

O senhor, pai das meninas, toma sua filha mais velha pela mão e a leva até Artênio, como se estivesse a oferecendo a ele. Artênio diz, em italiano, que não vai possuir uma moça tão jovem. O senhor insiste. Artênio pega as coisas que havia separado e dá ao senhor, dizendo que não quer nada em troca, muito menos que as meninas se prostituam. O senhor fica perplexo, não acreditando na atitude de Artênio. Lúcio entende a intenção de Artênio e também dá as coisas que havia separado. O senhor olha para as filhas e fica atônito. Lúcio e Artênio olham para o soldado, que questiona: - O que foi? Por que vocês estão me olhando assim?

- Dê suas coisas a eles, soldado! Ordena Artênio.

- Mas assim? De graça? Lúcio dá outra tapa na nuca do soldado e repete a ordem: - Você está surdo? Dê logo essas coisas ao velhinho.



- Mas eu levei três semanas para juntar este estoque! Passei até fome. - Pois você vai perder seu estoque, e agora, seu pilantra! Como é que você tem coragem de tocar nessas crianças?

Repreende Lúcio, dando mais uma tapa na nuca do soldado.

O soldado despeja o estoque que juntara aos pés do senhor. Artênio diz ao senhor para tomar os alimentos e para negociar os cigarros e as bebidas por comida. O senhor não acredita no que vira. Aqueles alimentos seriam suficientes para suprir aquela família por uma semana. - Vocês estão loucos? Se elas não deitarem conosco, deitarão com outros quando essa comida acabar.

Diz, em tom de revolta, o soldado.

- Você quer voltar a pé para o acampamento soldado? Ameaça Artênio, dando mais uma tapa na nuca do soldado.

- Não senhor! Diz o soldado, esfregando sua nuca e com olhar de

choro. - Então cale esta sua boca suja! Lúcio e Artênio tomam o soldado pelos braços, se

despedem do senhor e das meninas e saem da casa em direção ao jipe. O senhor de idade sai da casa em direção ao jipe e chama Artênio, dando a entender que quer lhe dizer algo em particular. Artênio para e volta para ouvi-lo. Lúcio e o soldado prosseguem e aguardam dentro do jipe. Artênio ouve atentamente o que o senhor lhe diz, depois o cumprimenta e retorna ao jipe, às pressas. - O que foi homem?

Questiona Lúcio, sem entender o motivo da pressa.



- Ele vai devolver minhas coisas?

Pergunta o soldado, com feição esperançosa.

- Cale-se. Dizem Lúcio e Artênio ao mesmo tempo e mostrando a palma de suas mãos ao soldado. - Em agradecimento pela nossa atitude o senhor me revelou algo muito importante. Ele me disse que há uma casa onde estão abrigados alguns espiões.

Revela-lhes, Artênio.

- Quinta-coluna aqui? Surpreende-se Lúcio. - Sim. - Faz sentido, pois um patrulha nossa entrou em combate com uma patrulha inimiga a cerca de dois quilômetros daqui. Temos que voltar para o acampamento e solicitar um pelotão para invadir a casa onde esses espiões se escondem.

Pondera Lúcio.

Eles saem apressadamente com o veículo em direção ao acampamento. Ao chegar lá, se dirigem imediatamente à barraca do comandante do seu pelotão. Informam o que descobriram por informação de um dos habitantes de Silla (mas sem entrar em detalhes em relação a como tomaram conhecimento dessa informação). O comandante ouve atentamente e convoca seu pelotão para uma ação surpresa, à noite. Por volta de 22h00min, o pelotão desloca-se para Silla em direção ao exato local indicado por Artênio. Era uma casa ao Sul da cidade e um pouco mais afastada das demais. O caminhão se aproxima vagarosamente e com as luzes apagadas. O veículo para cerca de vinte metros do local. Doze dos soldados desembarcam, já tomando posição para cercar a casa. Outros seis militares (entre eles o comandante, Lúcio e Artênio) deslocam-se à entrada da casa, para arrombar a porta e fazer buscas.

O comandante dá o sinal e eles arrombam a porta, invadindo a casa. Ao invadir a casa, eles surpreendem três



pessoas que estavam na sala: duas mulheres e um homem. Artênio grita, ordenando-os que deitem no chão com as mãos em suas cabeças. Eles obedecem. Os demais soldados fazem buscas, mas não encontram armas.

- Eu não ser militar, eu ser desenhista. Não matar eu e minha esposa, por favor. Não fazer mal a minha filha.

Diz o homem, com um Português ruim e chorando muito.

- O que você tem aqui?

Questiona-lhe o comandante.

- Eu não ter armas, eu ser alemão, mas eu não ter armas. Eles dizer que se eu não obedecer eles matar família. - Você trabalha para os alemães? - Nós trabalhar sim. Eu desenhar para eles e minha esposa ser da rádio. - Desenhar, rádio? Esse cidadão é lunático!

Diz Lúcio, sem entender o que o alemão falava.

- Não. Eu mostrar onde nós trabalhar para alemães. O comandante levanta o alemão pelos braços e ordena às moças que se levantem do chão e se sentem, enquanto são atentamente vigiadas pelos soldados. O alemão leva o comandante até um porão onde havia duas pequenas saletas.

Na primeira sala havia uma prancheta de desenhos, uma máquina de impressão manual e vários panfletos já prontos. Na outra sala, havia uma pequena estação de rádio clandestina.

O comandante adentra a saleta onde havia as pranchetas de desenhos e o homem mostra a sua última obra. Era um desenho em dois quadros: no primeiro quadro,



acima, há um soldado americano hasteando uma bandeira dos Estados Unidos e pisando na bandeira do Brasil, nas proximidades do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Nesse primeiro quadro há uma inscrição “enquanto no Brasil”; no outro quadro, abaixo, há um soldado brasileiro morto na Itália e a inscrição “na Itália”. - O que significa isso?

Pergunta o comandante, perplexo.

- “A buon intenditor poche parole”. Diz o alemão, em boa pronúncia de italiano. - Como é? - “Para bom entendedor meia palavra bastar”. Os alemães querer mostrar que vocês estar sendo usadas pelas americanas. Enquanto vocês morrer aqui eles dominar sua terra na Brasil e pegar sua petróleo, minerais e borracha. - Isso é tolice! E a quem devemos nos aliar? A Hitler? - Eu estar apenas explicando. Também odiar essa guerra estúpida. Eu vir para Itália quando tinha quinze anos, eu não amar Hitler. Só fazer issa porque eles dizer que matar eu, esposa e filha se eu não obedecer. - Então é você que faz esses desenhos estúpidos que são transformados em panfletos e depois lançados às nossas tropas. - Sim. - Você trabalha sozinho ou há outros como você? - Eu ser apenas uma das desenhistas, não sei quantas ter. O comandante observa outro panfleto sem desenhos, mas só um texto, que dizia: “Brasileiros, vocês já pensaram por que é que os americanos vos pagam tão bem? É para vos



levar no pacote! Por que é que querem levar-vos ao pacote? Para afastar do Brasil os seus melhores soldados. Por que é que querem afastar do Brasil os melhores soldados? Para que vocês não possam defender sua Pátria dentro do Brasil. Quem ameaça às fronteiras brasileiras? O inimigo que se encontra lá! Quem é o verdadeiro inimigo do Brasil? É o americano imperialista que quer fazer do Brasil uma colônia”. - Que baboseira sem sentido! Esses cachorros matam centenas de brasileiros em nossas costas e depois querem ser nossos conselheiros.

Diz o comandante meneando a cabeça e jogando o panfleto de volta ao local onde estava.

- Onde aprendeu a falar Português? - Eu ter uma namorada portuguesa durante cinco anos. O comandante aponta o fuzil para o alemão e o ordena mostrar a saleta onde há a rádio clandestina. Eles se dirigem até ela e o comandante se surpreende ao encontrar alguns discos de música brasileira. - Para quê vocês usam isso? - Nós transmitir para tentar fazer as brasileiras de Porreta Terme escutar. - Sei. Entendi! Vocês colocam música brasileira e recitam esses textos malucos para fazer nossos soldados do quartel-general sentir saudades de casa e ódio dos americanos. - Sim. - Bem que outro dia captamos uma música de Carmem Miranda num rádio do acampamento. - Esta aqui. Diz o alemão mostrando um disco da cantora. - Quem vem buscar aqueles panfletos quando estão prontos?



- Eu levar até um bosque longe daqui e deixar lá. Aí eu pegar a comida que eles me pagar.

- Eles te pagam! Achei que você fazia isso para proteger

sua família. - Sim minha jovem, mas as pessoas morrer de fome

também.

O comandante se cala por um instante e depois questiona: - Quando vai ser a próxima entrega? - Daqui a cinco dias. O comandante conclui as buscas na casa, apreende o material e retorna com os espiões presos para o acampamento. No dia marcado para a próxima entrega dos panfletos, o alemão é levado até o local designado. Ele abandona o maço de panfletos no local que sempre costumava colocá-los e pega os alimentos que lá haviam sido deixados para ele. Enquanto isso, o mesmo pelotão que havia invadido a casa do desenhista, aguarda entranhado entre o bosque a chegada da pessoa que os buscaria. Todos estão em silêncio e muito ansiosos.

Passam-se quatro horas de espera e ninguém vem buscar os panfletos.

- Será que alguém avisou que estaríamos aqui?

Pergunta Lúcio, cochichando a Artênio.

- Não deixa de ser uma possibilidade.

Diz Artênio, colocando um chicle na boca para passar a ansiedade.

Enquanto isso o comandante questiona ao desenhista:



- Você disse que eles vinham buscar aqui. Se estiver nos enganando você vai morrer, seu desgraçado! Onde estão eles? - Calma! Eu nunca ver quem pegar as panfletos. Eu só deixar elas aqui. O tempo vai passando, até que o dia amanhece e não aparece ninguém para vir buscar os panfletos. O comandante já ia dar a ordem de retorno, quando se ouve um barulho entre o bosque. Todos tomam posição com os fuzis já apontados para o local de onde saíra o barulho. Após algum tempo, aparece um soldado alemão, que se dirige calmamente ao buraco onde ficavam os panfletos, ele estava cantarolando.

O comandante do pelotão faz o sinal com as mãos apontando para três soldados e gesticulando para eles caminharem em direção ao inimigo. Eles saltam repentinamente à frente do soldado e, apontando seus fuzis, rendem o alemão. Todo o pelotão se desentranha da mata. O soldado inimigo, muito assustado e surpreso, joga sua arma ao chão e levanta as suas mãos em sinal de rendição. Dois dos soldados correm para tomá-lo pelas mãos. Quando eles baixam os braços do alemão para manietá-lo, o inimigo abre uma granada que estava em uma cinta nas suas costas, sustenta os braços dos dois brasileiros e grita:

- Heil Hitler! - Boom! A granada explode e mata os três: o alemão e os dois brasileiros. A missão de capturar o alemão havia fracassado.



CAPÍTULO XIV O ÚLTIMO DIA

ACAMPAMENTO ÀS MARGENS DO SILLA, 09 DE JANEIRO DE 1945.

Lúcio e Artênio estavam descansando tranquilamente em sua barraca. Eles conversavam a respeito do frio intenso, pois a temperatura girava em torno de treze graus abaixo de zero – o inverno europeu daquele ano estava sendo um dos mais rigorosos dos últimos cinquenta anos.

No seu horário de folga eles não falariam sobre as

tragédias nos campos de batalha, pois haviam pactuado isso. Eles evitariam comentar, em especial, acerca do último episódio trágico que resultara na morte de dois brasileiros:

- Rapaz! Que frio! Exclama Lúcio. - Pois é! - Pior que não dá nem para molhar a goela com uma

cerveja! Não tem como fugir desse frio saboreando uma boa bebida!

- Você já experimentou uma das novidades que nossos

soldados criaram para escapar desse frio? Pergunta Artênio a Lúcio. - Qual? Cerveja quente? - Não. A forma de usar a bota para evitar congelamento e

gangrena nos pés. - Eu já ouvi falar, mas será que funciona? Uma bela

italiana seria mais adequada parta resolver esse problema! - Mas não dá para levar a italiana para o front! Eu estou

usando a fórmula dos pracinhas na minha bota. É uma beleza mesmo!



- Como eu faço? - Olha, para funcionar direitinho você tem que,

primeiramente, colocar uma meia, mas tem de ser uma meia que não seja muito espessa, mas fina; depois, você coloca jornal e palha, cobre com uma meia de lã e, por fim, calça uma galocha grande ao invés da bota comum.

- Sei. - Todos os gringos estão copiando a ideia. Nenhum de

nossos soldados teve problemas com gangrena nos pés. - Esses gringos têm poder e dinheiro, mas somos o povo

mais criativo do mundo, basta palha e jornal para fazermos algo melhor do que eles!

- É verdade! - Lúcio e Artênio, de pé! Temos um problema para resolver

na cidade de Silla! Surpreende-os o comandante do pelotão à entrada da

barraca. - O que foi dessa vez? Alguma pequena precisando de um

homem de verdade? - O serviço de inteligência tem informações sobre a

possibilidade de uma ofensiva inimiga ao longo de nosso front. Há possibilidade de invasão a Silla, para que ela possa ser usada como via de acesso ao nosso QG, em Porretta Terme. Vocês têm cinco minutos para se apresentar.

Complementa o comandante que, logo em seguida,

dirige-se às barracas dos outros comandados. - Ofensiva? Nesse inverno? Questiona Artênio.

- Não estou gostando disso!



Reclama Lúcio com tom apreensivo.

- Não me diga! Eu achei que você adoraria sair nesse frio para se arriscar a morrer!

- É sério, estou com uma sensação ruim. - Não me diga! É sempre uma sensação ótima ir a

combate! - Fico pensando se este será meu dia?

- Homem, vire esta boca para lá! Isola! Vamos nos arrumar logo, senão vamos receber uma chamada de nosso comandante xarope. Tome jornal e palha, faça o que eu te ensinei! Se você virar um defunto, será um sem gangrena nos pés. Alguns instantes depois, o pelotão faz a formação e segue em direção a Silla, para patrulhamento de uma área pré-determinada, ao norte.

O pelotão faria uma varredura partindo de um local a um quilômetro ao norte da cidade de Silla e indo até o centro dela, onde iria encontrar-se com outros três pelotões, que estavam incumbidos de fazer a mesma varredura, a partir da mesma distância, vindo respectivamente, do oeste, leste e sul da cidade. As tropas teriam um comandante-geral, que estaria num pelotão denominado Carcará. Os demais pelotões seriam chamados Filhote 01, Filhote 02 e Filhote 03.

Os pelotões iniciam o deslocamento, que estava dificultado pelo frio, que gerava pane nos veículos. O pelotão de Lúcio chega ao local designado e aguarda o início das atividades de patrulhamento. A ordem superior era para que todos os quatro pelotões iniciassem a varredura de forma sincronizada.

A tropa estava incrédula na possibilidade de haver realmente alguma ação ofensiva do inimigo, por conta do frio intenso e da neve. Entretanto, quando todas as tropas estavam posicionadas para começar a varredura, ocorrem,



simultaneamente, explosões em locais próximos a cada um dos quatro pelotões. Via rádio todos os pelotões se comunicam entre si e informam sobre as respectivas ocorrências.

Todos ficam muito apreensivos. A coincidência das

explosões os fez concluir que os inimigos estavam monitorando toda a ação das tropas brasileiras. O comandante do pelotão de Lúcio entra em contato com o comandante-geral dos pelotões. O diálogo é acompanhado com ansiedade pelos soldados:

- Carcará, aqui é Filhote 02! - Prossiga Filhote 02, Carcará na escuta! - Comandante, vamos recuar? Pela ação simultânea é provável que estejamos sendo monitorados pelo inimigo. - Negativo! Nomeie alguém para fazer um reconhecimento, só iremos recuar se houver fogo intenso, o que não é o caso. Cada pelotão deverá fazer o reconhecimento de sua respectiva área. Estamos aqui para confronto e não para fuga. - Filho de uma cadela! Ele quer nos matar!

Murmura um dos soldados do pelotão, conhecido como Tatu, contra o comandante-geral, ao escutar a ordem dada via rádio.

- Afirmativo! Filhote dois desligando. - Bem, senhores, alguém vai ter que ir lá ao local da explosão fazer um reconhecimento!

Complementa o comandante.

- Vamos lançar sortes, comandante!

Sugere o soldado apelidado de Tatu, que sempre gostava de lançar sortes e tapear os outros soldados.



- Certo! Excelente ideia! Você tem uma moeda?

Questiona o comandante, com um ar de cinismo em seu semblante.

- Sim!

- Ótimo! Você venceu, o escolhido pela sorte é você!

- Isso não é justo!

- A guerra é injusta! Você está sempre se esquivando e se escondendo para não enfrentar o perigo de frente como todos estes outros homens têm enfrentado. Não é à toa que te chamam de Tatu, pois você sempre acha um buraco para se esconder.

- Tudo bem, tudo bem. Eu vou, não precisa me humilhar.

Tatu, resignado, dirige-se ao local da explosão, que distava cerca de 60m de onde estava o pelotão, ele vai munido de um rádio para fazer a passagem de eventuais informações.

A explosão tinha ocorrido numa área aberta, fora do

bosque onde o pelotão estava entranhado. O pelotão o acompanhava dando um espaço de cerca 30m.

Tatu chega ao fim do bosque e observa atentamente o

que há nas imediações, não visualizando nada de suspeito. Ele fica tranquilo e entra em contato com sua tropa:

- Atenção, Filhote 02, Coruja chamando! - Filhote 02 na escuta, prossiga com a mensagem, Coruja! - A área está limpa, estou visualizando a marca onde

houve a explosão, está a cerca de 10m de onde estou, mas não há nada de suspeito. Entretanto, há algumas formações montanhosas aqui, pode haver tedescos entranhados lá.



- Entendido, Coruja, aguarde que vou entrar em contato com o comando para saber quais são as instruções.

- Carcará, Filhote 02 chamando! - Prossiga com a mensagem, Filhote dois! - Nosso observador está a dez metros do local da

explosão, nada de suspeito nas imediações, recuar agora? - Negativo! Filhote 01 e Filhote 03 fizeram reconhecimento

da explosão em seu exato local, ordene o avanço do reconhecimento até o local exato da explosão.

- Filho da mãe! Ele quer nos matar. Exclama o comandante do pelotão de Lúcio ao ouvir a

ordem! - Mas senhor, a área possui formações montanhosas, há

risco da exposição de nossos homens. - Negativo! Seus homens vieram aqui para se arriscar.

Não questione minhas ordens! Desligo! O comandante fica revoltado, mas dá a ordem a Tatu: - Atenção, Coruja! - Prossiga! - A ordem é avançar até o exato local da explosão! - Comandante, não seria mais fácil eu dar um tiro na

cabeça? Seria mais rápido! - São ordens do comandante-geral! - Sim senhor, foi muito bom conhecer vocês. Ironiza.



- Aguarde nosso avanço, vamos chegar 10m mais próximo do local onde você está parado, para te dar cobertura.

- Sim, senhor. A tropa avança 10m em direção ao local onde Tatu

estava e ele inicia seu deslocamento até o local exato da explosão.

Tatu se dirige ao local exato da explosão, para e olha atentamente a sua volta, não vendo nada de suspeito. Por deboche, coloca as mãos na cintura e começa a sambar em cima do local da explosão, arrancando gargalhadas dos colegas, que contemplavam tudo. De repente, ouve-se um disparo e Tatu cai, aos gritos, no chão. Lúcio, imediatamente, levanta-se e corre em direção ao colega, para socorrê-lo. O comandante tenta contê-lo, mas não consegue segurá-lo.

Ele corre em direção a Tatu e para ao seu lado,

colocando-o sobre os ombros. Nesse instante, ele começa a ouvir zunidos: eram morteiros.

Um dos morteiros explode à sua direita, Lúcio corre em

direção à esquerda, mas outro morteiro explode e Lúcio é atingido pelos seus estilhaços, vindo a cair no chão com Tatu.

- Estúpido! Eu sabia que ia acabar nisso! Exclama o comandante. Após esses dois morteiros, inicia-se uma sequência de

bombardeio, que impossibilitava o resgate de Lúcio e Tatu. - O que vamos fazer, comandante? Pergunta Artênio, desesperado.

- Fumaça! - O quê? - Peguem suas granadas fumígenas e vamos lançá-las à

direita deles, no sentido contrário ao vento!



Todos pegam suas granadas fumígenas e as lançam no

local onde estavam os dois feridos, criando uma grande nuvem de fumaça sobre eles.

Com a fumaça, o fogo cessa, pois os inimigos não têm visibilidade do local. Então, quatro soldados vão resgatar os feridos. O comandante do pelotão de Lúcio contraria a ordem do comandante-geral dos pelotões e inicia um recuo às pressas para realizar o socorro dos feridos, em tempo hábil.

Artênio fala com Lúcio, que está desorientado por conta

da dor: - Lúcio? Lúcio? A visão de Lúcio começa a escurecer e ele desmaia. O

enfermeiro presta os primeiros socorros e adverte o comandante:

- Senhor, se eles não forem transferidos imediatamente

para o acampamento, não vão resistir! - Certo! Vamos ter que nos deslocar para o acampamento.

- Eu e mais dois soldados podemos ir com o enfermeiro, comandante! Nós nos deslocamos e vocês ficam aqui, para não contrariar o comandante-geral.

Diz Artênio.

- Certo! Cuide bem desse estúpido! Se ele morrer nosso pelotão não será mais o mesmo! - Nem me fale nisso comandante. - E eu? Vocês não se importam comigo não?

Reclama Tatu.

Os quatro soldados, levando as duas macas com os feridos, se deslocam até um dos veículos. - Será que eles vão sobreviver?



Questiona Artênio ao enfermeiro.

- O caso de Tatu não é tão grave, mas o de Lúcio eu acho que ele não escapa não. - Meu caso não é grave? Não foi contigo!

Reclama, novamente, Tatu. Lúcio acorda desorientado, dá um grito e depois

desmaia novamente. - Lúcio? Lúcio? Meu amigo! Você não pode morrer!

Aquele seria o último dia de Lúcio, o seu último dia nos campos de batalha.



CAPÍTULO XV OS DIAS DO FIM

LIVORNO, HOSPITAL DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA.

- Acorda safado! Você estava me bolinando! Lúcio acorda por causa de uma gaze jogada em seu

rosto. Quando olha à sua frente, vê Tatu em uma outra cama, enfaixado. Tatu joga um outro pedaço de gaze no rosto de Lúcio e repete rindo:

- Acordou não é? Seu safado! Você estava me bolinando!

Os outros soldados disseram que você tentou me bolinar quando estava me socorrendo!

- Onde estamos? Pergunta Lúcio, ainda desorientado. - Estamos no céu! Está vendo tudo isso branquinho e

limpinho, aqui é o céu! Lúcio olha para sua direita e vê uma enfermeira ao seu

lado, ajustando o soro. - Estamos num hospital! Meu Deus! - Bingo Lúcio! Para onde você acha que iria depois de

ferido? Além de bolinador você é burro? - Que história é essa de bolinador? Você não tem

vergonha de dizer estas coisas indecentes na frente de uma senhora?

Questiona Lúcio, indignado. - Sua enfermeira é italiana, ela não compreende direito

essas coisas! Quer ver?



- Como é? Ela é italiana? - Princesa! Vem cá me dar uma beijoca! Quer casar

comigo e morar no Brasil? A enfermeira olha e apenas sorri. - Está vendo! Ela não entende nada! - Você é doente meu jovem, doente mesmo! Devia ter

deixado você ferido lá na neve, não ia fazer muita falta! - Você não entende o motivo de minha alegria e das

minhas piadas? A guerra acabou para nós! - Como assim? Vencemos? - Ainda não, mas nós não vamos mais voltar para

combate, somos feridos de guerra! Só morreremos agora se alguém bombardear ao hospital ou se os tedescos ganharem a guerra e entrarem metralhando todo mundo aqui, inclusive a sua enfermeira farta de carnes!

- Muito animador! Seu juízo deve ter sido perdido quando

você foi baleado. Não há outra explicação. Seu lugar era num hospício e não num hospital!

- Você é um homem de sorte Lúcio, minha enfermeira é

uma tremenda chata, uma gorda que não tem o mínimo de delicadeza comigo! Sua enfermeira é um anjo com você. Eu observei muito bem o trato fino que ela está te dando.

- Como se você merecesse algo melhor! - Estou tão feliz de não precisar voltar para os campos de

batalha, que até me inspirei para fazer uma poesia. - Não sabia que, além de louco, você era poeta. - Eu fiz uma poesia para sua enfermeira. Quer ouvir? - Até parece que eu poderia dizer que não quero. Vamos

lá, leia logo!



- “A Bunda”, poesia do soldado Tatu: Quando ela passa todo mundo espia, Não o seu rosto, porque não é formosa, Mas a sua bunda, que bunda maravilhosa! Em matéria de bunda nunca vi tanta magia, Requebra, treme, balança, rodopia, Dentro de uma expressão maravilhosa, Deve ser uma bunda cor de rosa, Cor do céu quando desponta o dia. E ela que sabe que sua bunda é boa, Vem por ali requebrando à toa. Eu a contemplo num silêncio mudo, Embora o corpo não valha nada, A bunda, por si só, vale tudo!

- Não é uma coisa de salão, mas tenho que reconhecer

que foi muito engraçado. Reconhece Lúcio, desconcertado e rindo.

- Obrigado! Obrigado! Quando voltarmos para o Brasil, vou iniciar a carreira de escritor. - É uma boa mesmo! Você não tem muito juízo, mas tem criatividade de sobra.

- O que você achou do poema? Pergunta Tatu à enfermeira de Lúcio. - Brasiliano inteligente! Lúcio e Tatu ficam surpresos e atônitos, a italiana

estava entendendo o que eles conversavam. O silêncio deles, ao se surpreenderem com a enfermeira, é repentinamente quebrado:

- Marcelino Lúcio Mamedes?



Questiona um jovem, com muitas cartas na mão, à

entrada do quarto onde eles estavam.

- Sou eu! - Carta para o senhor. - Carta para mim? - Sim. Tome e assine aqui, por favor. - Meu Deus. É uma carta de Úrsola!

Diz Lúcio pasmo ao pegar a carta. Ele a abre e lê em voz baixa:

- “Querido Lúcio, nós estamos rezando todos os dias para que você esteja bem. O nosso pai ficou triste por você partir do Brasil sem se despedir dele. Eu quase tive um ataque quando soube, através de Noca, que você estava na guerra. Lourival foi chamado para fazer o patrulhamento do litoral e também ficou surpreso quando soube que você estava na Europa. Nossos outros irmãos estão bem, não tive como falar com todos. Como estão as coisas por aí? Estou rezando todos os dias para que essa guerra chegue logo ao fim e você retorne para casa. As notícias é que a guerra está perto do fim e que nós vamos vencer. Aqui no sertão estamos sentindo os efeitos da guerra também. Os sete filhos de Dona Dorinha (aquela mulher pobre que morava de favor no sítio de Seu Ernesto) foram levados pelo Governo para o Norte, para a floresta dos seringais. Dizem que este trabalho nas florestas é para ajudar na guerra, que com o que tiram de lá fazem borracha. Mas a verdade é que lá não é um bom lugar para se viver e trabalhar. Quatro dos filhos de Dona Dorinha já morreram de doenças típicas de lá e as notícias que chegam é que muitos dos que vão para essas florestas não voltam mais. Toda família sertaneja que já enviou alguém para este maldito trabalho, já chorou a morte de alguém. Mas o povo não tem escolha, as coisas aqui estão difíceis e qualquer oportunidade de trabalho é defendida com unhas e dentes. Esperamos que nossa família tenha uma melhor sorte do que a de Dona Dorinha e que você esteja bem.



Guilherme manda lembranças. Por favor, responda logo e volte logo para casa. Nós te amamos”. Lúcio fica emocionado e começa a chorar. Tatu, ao perceber que Lúcio chorava, não aguenta de curiosidade e pergunta: - Quem é Úrsola? - Não te interessa!

- Já sei! Deve ser sua namorada do Brasil e ela deve

estar dizendo que arrumou outro. Não fique assim! Você é feio, mas arruma outra!

Diz Tatu.

- Estúpido! Úrsola é a minha irmã. - Ah! E por que você está chorando, alguém da sua família morreu? - Não, mas se você não parar de falar bobagens talvez eu cometa um homicídio aqui. - Puxa! Esses paraibanos são muito irritados! Lúcio ainda seria submetido a muitas das gracinhas inconvenientes de Tatu, mas, ao menos uma das coisas que ele havia dito seria verdadeira: o inferno dos campos de batalha havia acabado para eles dois, pois não retornariam ao combate. Os primeiros dias de recuperação no hospital eram um tanto quanto repetitivos e monótonos. Devido à gravidade dos ferimentos, Lúcio cumpria uma rotina de cama, refeições e remédios. O que fazia com que ele quebrasse a monotonia e a rotina eram as boas notícias que vinham dos campos de batalha. O inverno chegara ao seu fim e com o fim dele, também findara o recesso hibernal. Nos campos de batalha, e nos diversos teatros de operações, havia claros sinais que a guerra estava chegando ao fim, pois as tropas nazistas



estavam sendo derrotadas e os Aliados avançavam vertiginosamente.

No teatro de Operações da Itália, ainda em fevereiro de 1945, os aliados deflagram a primeira fase de uma ofensiva

que ficaria conhecida como plano “Encore”. Encore é uma palavra francesa que significa “ainda, de novo, novamente” e fazia alusão a uma região onde os Aliados haviam experimentado sucessivos fracassos: a região montanhosa do famigerado Monte Castello.

A intenção dos aliados era seguir em direção ao norte,

em direção à Bolonha e, em uma ação conjunta de tropas dos norte-americanos e brasileiros, Monte Castello foi finalmente conquistado.

Em março, as tropas brasileiras conquistaram

Castelnuovo di Vergato (região na rota da estrada no 64 e, portanto, na rota de Bolonha).

Em abril, os aliados iniciam a segunda fase da ofensiva,

que ficaria conhecida como Ofensiva da Primavera. Nesse mês, as tropas brasileiras conquistam Montese (região a sudoeste da cidade de Bolonha).

O avanço dos aliados no caminho para o norte da Itália

(reduto nazifascista no país) e as derrotas nazistas em outros teatros de operação, demonstrava, cada vez mais, que a guerra estava chegando ao seu fim. A partir da conquista de Montese, o avanço em direção ao norte italiano se deu de forma rápida. Temendo isso, o líder fascista, Mussoline, tentara escapar, mas fora capturado por membros da resistência italiana antifascista e executado, juntamente com sua companheira, Clara Petacci.

Na Alemanha, dois dias após a morte de Mussoline,

Hitler, que se via encurralado pela proximidade das tropas

americanas e soviéticas em seu bunker, comete suicídio, acompanhado de sua esposa, Eva Braun.

As tropas alemãs começariam a perceber a inutilidade

de sua resistência e iriam começar a se render. Em 02 de



maio de 1945, todas as agressões na Itália findariam, com a rendição incondicional dos alemães que estavam na Itália.

Em 08 de maio de 1945, a Segunda Guerra Mundial

chegaria ao fim. Os Aliados haviam vencido.

Lúcio estava em seu quarto no hospital, percebe um grande alvoroço: pessoas gritando e comemorando.

- Lúcio! Lúcio! Entra Tatu aos berros no alojamento do hospital. - O que foi que houve, Tatu?

Responde Lúcio, assustado.

- Você vai descobrir que é corno! - Que história é essa, rapaz? - Nós vamos para casa, a guerra acabou! Acabou! Aí você vai poder pegar sua namorada com outro! Hoje é o Dia da Vitória! Vencemos! Vencemos! - Acabou! Graças a Deus! Tatu corre em direção a Lúcio e o abraça. - Vamos encher a cara de cachaça! Vamos comemorar Lúcio! - Finalmente você falou alguma coisa de futuro, Tatu. Vamos comemorar! No dia seguinte, Lúcio e Tatu saem para o refeitório. Lúcio começa a contemplar uma jovem que estava nas imediações do refeitório do hospital. Ele fica perplexo, porque ela era muito magra e tinha a aparência faminta. Ela se aproxima e contempla a mesa farta de alimentos e dizia, gesticulando em direção à mesa:

- Brasiliano lavorare niente e avere troppo, italiano lavorare troppo e avere niente.



Lúcio e Tatu se olham e não entendem nada. Um outro soldado que ouvira as lamúrias da italiana, traduz para eles: - A moça está dizendo que “os brasileiros não trabalharam nada e eles têm essa fartura, os italianos trabalharam muito e não têm nada”. Lúcio e Tatu, constrangidos, tomam alguns alimentos e dão à moça. A guerra havia chegado ao fim, mas havia deixado suas mais profundas marcas.



CAPÍTULO XVI OS DIAS DE REGRESSO

A guerra havia chegado ao fim e a monotonia dentro do hospital se instalara definitivamente. Tal monotonia era aumentada também pela gigantesca ansiedade em torno da expectativa de se voltar para casa. Não havia mais o que se fazer, pois até as notícias dos campos de batalha haviam cessado.

Entretanto, certo dia, numa manhã, sendo bem cedo,

João Batista Mascarenhas de Moraes, o chefe máximo das tropas brasileiras no teatro de operações europeu, estava visitando o hospital de Livorno. Ele estava confortando os feridos de guerra individualmente e os parabenizando pelo sucesso da tropa. Em certo ponto de sua visita, ele chega à entrada do quarto que Tatu e Lúcio dividiam. Tatu havia acordado e estava perambulando pelo hospital, mas, quando soube da visita do general, tentou voltar às pressas para o quarto. Já Lúcio, estava acordado, mas não havia se levantado, pois os ferimentos ainda o incomodavam e ele se deslocava apenas para tarefas mais necessárias, como ir ao refeitório ou ao banheiro.

- Bom dia! Diz o general à entrada da porta do quarto de Lúcio.

- Meu Deus! É o General!

Diz Lúcio com semblante espantado ao virar o pescoço para a entrada do quarto.

Lúcio, que estava de costas para a entrada, tenta se levantar para prestar continência ao seu superior, mas o general João Batista, percebendo a limitação que lhe infligia os ferimentos, pede para que ele não se esforce e o dispensa de formalidades militares. - Qual é seu nome meu jovem?



- Meu nome é Marcelino Lúcio Mamedes, senhor. - Pelo seu sotaque, percebo que você deve ser nordestino.

De que cidade do Brasil você veio?

- Eu sou natural da cidade de Cajazeiras, mas estava destacado no 40o Batalhão de Cavalaria na cidade de Campina Grande, ambas na Paraíba. - O que houve? Como você se feriu? Nesse momento chega Tatu entrando apressadamente no quarto e, surpreso e assustado com a presença do general lá dentro, acaba tropeçando e caindo aos pés de João Batista. - Eu me feri tentando salvar esse lixo que está aí nos pés do senhor.

Diz Lúcio apontando para Tatu.

Tatu com um sorriso amarelo, ainda no chão, acena de forma desconcertada para o general, e depois lhe presta continência levando a mão até a testa bem devagar e sem tirar o sorriso cínico do rosto. - Desculpe-me, senhor!

Diz Tatu, com voz embargada.

João Batista levanta Tatu, limpa os seus ombros e também o dispensa das formalidades. - Você está bem, meu jovem? Vejo que está com alguns curativos. Espero que não tenha forçado seus ferimentos. - Eu estou bem, obrigado. Os ferimentos estão quase todos bons, eu estou tomando medicação. - Eu sou tão feio assim meu jovem para você se assustar e sair caindo pelos cantos? - Olha general, eu não quero ser falador, mas o senhor não é muito bonitinho não.



- Como é que é?

Pergunta um dos acompanhantes do general, em tom enfurecido.

- Calma aí ô “jaleco branco”, foi apenas uma piada. Diz Tatu ao acompanhante do general, que era da junta médica do hospital. João Batista dá uma boa gargalhada e diz em tom de empolgação: - Mesmo feridos e longe de casa, nossos homens conseguem manter o seu bom-humor, nós brasileiros somos um povo feliz. - É verdade.

Concorda Lúcio.

- Meus jovens, vocês são casos especiais. Um é um herói por se arriscar ao tentar salvar a vida do amigo; e o outro é um grandessíssimo gozador, que, mesmo com as fatalidades da guerra, manteve-se bem-humorado. O general dirige-se ao coronel-médico, diretor do hospital, e que também acompanhava a comitiva de visita. - Coronel, assim que esses homens receberem alta médica eu ordeno que sejam imediatamente encaminhados para serem levados para casa, para o Brasil. Não há mais razão para estarem aqui, já cumpriram o seu dever. - Sim, senhor! Lúcio e Tatu se olham arregalados e não acreditam no que ouvem. - Meus jovens, tenham um bom dia! Que Deus os acompanhe na volta para casa!



A comitiva se retira, mas Lúcio e Tatu permanecem calados, ainda incrédulos com a notícia de que iam voltar para casa, tão logo recebessem alta médica. No outro dia vem à entrada do quarto de Lúcio o jovem Deuslim Barbosa, o companheiro que Lúcio salvara no episódio da emboscada que os alemães armaram para os brasileiros. - Olá, Lúcio! Lúcio olha desconfiado, sem perceber num primeiro momento de quem se tratava, mas logo o reconhece. - Deuslim! Não acredito que você está aqui, sempre quis saber como você se saiu depois daquele ferimento. Venha cá me dar um abraço. - Olha meu amigo, eu me recuperei logo e estou cumprindo funções administrativas aqui no hospital. Estou com muito trabalho lá, apesar do fim da guerra. - Que coisa! - Eu observei na administração do hospital um documento que determina a imediata remoção de alguns soldados para o Brasil, assim que tiverem alta. O nome de um deles era o seu. - Que bom! Estou me recuperando bem e logo voltarei para casa, se Deus quiser! - Olha Lúcio, eu sei que você já salvou a minha vida, mas eu preciso que você me faça outro grande favor. - Favor? - Eu preciso que você leve esta carta para meu pai, lá no Rio de Janeiro. - Rio de Janeiro? Mas eu moro na Paraíba, como farei isso?



- Mas você vai para o Rio antes de voltar para casa, é a praxe. - É? - Sim. Aqui está a carta e aqui está o endereço. - Mas Deuslim, se você mandar pelo correio militar vai ser bem mais rápido. - Eu sei, mas isso foi um desejo de meu pai, numa das cartas que ele me enviou. Ele quer conhecer você, antes de vestir o “paletó de madeira” como ele gosta de dizer. - Será uma honra, meu caro! - Tudo bem meu amigo, tenho que ir. Boa sorte e fique com Deus! Eles se cumprimentam e se despedem. Nesse momento, em que Deuslim sai do quarto, Tatu entra muitíssimo feliz e com um objeto nas mãos. - Olha isto aqui, Lúcio! - O que é isso? - É uma máquina fotográfica. Eu acabei de ganhar de um superior numa rodinha de carteado.

- Não acredito que você está roubando as pessoas com suas malandragens no baralho.

- Não estou roubando ninguém, se eles são amadores o problema não é meu. - Sei. - Isso é para registrarmos os momentos de nossa volta para casa. - Bem, isso é uma boa mesmo.



- Com certeza. - Mas sabe de uma coisa Tatu? - O quê? - Já pensou ter que enfrentar aquela agonia de navio de novo? - É uma péssima! Mas nada como voltar para casa, nem que seja a pé. - É. Algumas semanas se passam, Lúcio e Tatu recebem alta juntos e, para surpresa e alegria deles, a viagem seria de avião e não de navio.

Os dois militares começam a se aprontar, fazendo suas malas, pois o grande dia da volta estava bem próximo:

- Ah, que alegria, voltar para casa!

Diz Tatu, suspirando. - Não sei nem dizer o que estou sentindo, achei que eu nunca iria voltar. - E aí, Lúcio, você vai levando muitas lembranças daqui? - Sem dúvida! Pena que a maioria delas sejam lembranças ruins. - Não, meu caro! Não estou falando desse tipo de lembrança, estou falando de souvenires. - Ah, estou levando sim. - O quê? - Tenho essa permissão para passear escrita em inglês, uma munição de fuzil, essa medalhinha de um soldado



italiano e essa bolsa na qual achei um mapa de espionagem. E você? - Eu estou levando a munição que me atingiu, uma calcinha de Gioconda, uma calcinha de Rafaela e uma calcinha de Maria; as minhas namoradas italianas. - Você não tem jeito, não é mesmo! Sempre arrumando um jeito de fazer perversões! - O que posso fazer se elas não resistiram ao meu charme? O grande dia havia chegado. Numa manhã de céu limpo e calor, Lúcio e Tatu embarcam num avião militar, rumo ao Rio de Janeiro. O sonho de voltar para casa, vivos, estava se concretizando.

O avião decola da Itália e faz sua primeira escala numa cidade africana: Casa Blanca, em Marrocos. Os passageiros desembarcam. Lúcio observa de longe algumas mulheres levando suas crianças nas suas costas, como se fossem mochilas. Ele chama Tatu e pede para que ele tire algumas fotos daquela cena inusitada.

- Olhe isso, Tatu, que coisa mais engraçada! As mulheres estão levando seus filhos como se fossem bolsas. Vamos tirar uma fotografia? - Mas precisamos chegar mais perto e atravessar aquela grade lá.

Diz Tatu, referindo-se a grade que isolava a pista de pouso.

- Vamos lá. Eles atravessam a grade e se dirigem às mulheres. - Vamos tirar uma foto delas com os aviões por trás, para ficar uma cena bem bacana.

Diz Tatu, com ar de profissional de fotografia.



Enquanto eles se preparam para tirar as fotos, dois

militares ingleses, que não estavam familiarizados com o uniforme brasileiro, observam-nos e, mesmo com a guerra tendo chegado ao fim, pensam que se trataria de espiões fotografando a base aérea anglo-americana. Os dois se aproximam rapidamente, com os fuzis apontados para Lúcio e Tatu.

- Calma, rapazes! Nós somos brasileiros! Diz Lúcio, sem ser compreendido pelos ingleses. - Ai, Lúcio! Esses gringos vão nos fuzilar por engano.

Estamos fritos! - Espere, eu tive uma idéia! Minha permissão para

passear, escrita em inglês, está aqui comigo, vou mostrar para eles.

Lúcio gesticula para os militares ingleses pedindo calma,

enquanto tira do bolso da camisa a permissão que falara, gesticulando para que os ingleses a vejam. Um dos soldados toma a autorização na mão e reconhece sua originalidade.

Eles baixam os fuzis, mas um deles ainda fica

desconfiado, dirige-se a Lúcio e revista seu outro bolso, encontrando a medalhinha que o militar fascista havia lhe presenteado. Ao identificar a medalha, o soldado inglês fica assustado e se comunica com o outro, dando a entender que poderiam ser fugitivos de guerra, provavelmente italianos.

Eles retomam a posição de guarda e começam a intentar

fuzilar os dois supostos espiões. Nesse ínterim, um dos tripulantes da aeronave que Lúcio e Tatu viajavam, sente a falta dos dois e começa a procurá-los, pois o avião já havia sido abastecido e só faltavam os dois, para que o avião levantasse vôo de novo. Ele observa através da grade que os dois estão rendidos por militares ingleses e corre em direção aos dois. O tripulante, que falava inglês, se identifica aos militares ingleses, dizendo que Lúcio e Tatu são das forças aliadas. Os ingleses, ainda muito desconfiados, mostram a



medalha fascista. Lúcio explica ao tripulante o motivo que estava com aquela medalha e o tripulante retransmite a história aos ingleses que, só então, liberam os dois para voltar para o avião.

Lúcio e Tatu são duramente repreendidos e voltam para

a aeronave. A curiosidade quase lhes custara suas vidas.

- Eu vou te dizer, Lúcio, mulher é a desgraça do homem mesmo. A gente quase morre por causa daquelas pragas.

Murmura-lhe, Tatu.

- Ia ser uma desgraça mesmo, depois de passar por tantos apertos na guerra, morrer em tempo de paz e com fogo amigo.

A viagem continua. E após longas horas, o avião atinge espaço aéreo brasileiro. - Atenção senhores, é com alegria e satisfação que informamos que estamos em espaço aéreo brasileiro. Sejam bem-vindos ao Brasil, sejam bem-vindos a Natal. Faremos uma escala para abastecimento da aeronave e os ocupantes e a tripulação farão um passeio pela cidade e um lanche. Em seguida, iremos continuar nossa viagem até o Rio de Janeiro.

Anuncia-lhes o comandante da aeronave.

Todos dentro do avião fazem uma grande comemoração com assovios e palmas. O avião pousa e os ocupantes adentram a um ônibus militar, para fazer um passeio pela cidade. Na saída da base aérea, uma multidão já se aglomerava para ver os pracinhas, os heróis de guerra. Na saída do aeroporto o ônibus é recebido com aclamação: as pessoas acenam, gritam e vibram.

- Tatu! Olha só isso. O povo nos aclamando, somos importantes.

Diz Lúcio em tom de empolgação.



- Olha só! Cada pequenina linda acenando. O ônibus se dirige a uma lanchonete, para que os militares façam uma refeição, antes de seguir para o Rio de Janeiro. Do outro lado da rua da lanchonete havia um bar. - Olha ali, Lúcio, do outro lado da rua, é um barzinho! - Sim, estou vendo. Você está pensando no que eu estou pensando? Tatu apenas sorri marotamente e ambos penteiam os cabelos e se dirigem ao bar. - Boa tarde, amigo, poderia servir uma cerveja gelada para dois pracinhas sedentos!

Solicita Tatu, com ar arrogante.

- Pracinhas? Vocês estavam na Europa? Vocês lutaram contra os nazistas? - Sim! Lutamos.

Diz Tatu, com ar ainda mais soberbo.

- Nossa! Inacreditável. A cerveja é por conta da casa. Tatu e Lúcio começam a contar histórias de guerra e o tempo se vai se passando. O ônibus que os havia trazido vai embora sem que os dois percebessem. Quando se dão conta de que o ônibus já havia saído, eles não dão muita importância e continuam bebendo e contando histórias.

Enquanto isso, na base aérea, o mesmo tripulante que os salvara no episódio em Marrocos, percebe que eles não estão entre os passageiros. Ele indaga outros passageiros e recebe a informação de que Lúcio e Tatu haviam ficado no bar em frente à lanchonete. O tripulante se enfurece e chama uma patrulha militar para buscar os dois beberrões. Os soldados da patrulha se dirigem até o bar e os prendem. Eles perdem o vôo daquele dia e são levados para um alojamento



militar, onde ficariam presos até o dia seguinte, quando então, embarcariam, finalmente, para o Rio de Janeiro.



CAPÍTULO XVII DIAS DE FRUSTRAÇÃO

Apesar constrangedores contratempos em Natal, a chegada ao Rio de Janeiro foi muito festejada por Lúcio e Tatu. Eles se dirigiram ao bar mais próximo à base militar para comemorarem, desta vez, sem interrupções.

Como em Natal, logo reuniram curiosos e admiradores,

aos quais contaram suas histórias de guerra. Entretanto, ao fim da tarde, quando já não havia mais gente no bar e a hora de ir embora havia chegado, a alegria seria duramente contrastada com uma realidade ainda não refletida: a separação. Eles iriam se separar e talvez nunca mais se encontrassem novamente em suas vidas. Isso os incomodava.

Tatu morava no Rio de Janeiro e iria para casa. Já Lúcio

iria para o alojamento militar. - É, está tudo acabado. A guerra acabou. Estamos em

casa e tudo vai voltar à normalidade. Bebemos nossa cerveja muito tranquilamente e estamos satisfeitos. Pensando bem, está tudo tão bom e calmo, que eu vou embora logo antes que nós nos envolvamos em outra confusão. Você parece que tem um ímã para essas coisas. Além do mais, preciso dormir cedo para amanhã procurar o endereço da casa de Deuslim e entregar uma carta aos pais dele.

Diz Lúcio em tom de despedida.

- Foi um prazer, meu amigo. Responde Tatu com voz de choro.

- Vou sentir falta de suas presepadas, Tatu. - Até mais, Lúcio. Eles se cumprimentam e seguem sentidos diferentes.

Após andar uma pequena distância, Tatu olha para trás e grita para Lúcio:



- Quando for entrar numa porta baixa tome cuidado! - Por quê? Pergunta Lúcio, perplexo. - Para não machucar os chifres! Lúcio meneia a cabeça rindo e diz em voz baixa: - Quem diria que eu iria sentir falta dessa criatura. Lúcio se dirige ao alojamento da base militar e vai

dormir. No outro dia, sendo bem cedo, Lúcio se levanta e, munido do endereço que Deuslim havia lhe dado, questiona aos colegas da base como chegar até lá. Ele recebe as instruções e apanha um bonde até o exato local do endereço.

Quando chega à rua indicada por Deuslim, Lúcio vê um

aglomerado de pessoas à entrada de uma casa, ele se aproxima e verifica que a casa indicada no endereço fornecido por Deuslim é o mesmo em que há o aglomerado de pessoas. Ele fica intrigado, pois algumas pessoas estavam chorando.

- O que houve? Pergunta Lúcio a uma das pessoas. - O Seu Sebastião Barbosa faleceu esta madrugada. Responde a pessoa em tom de lamento. Lúcio olha a carta e verifica que o nome do pai de

Deuslim era Sebastião Barbosa. - Meu Deus! Diz Lúcio levando a mão à boca. Lúcio observa que há uma fila de pessoas organizada em

direção à casa de Deuslim. Eles estavam ali para uma última despedida do senhor Sebastião. Lúcio, com a carta em mãos e sem saber direito o que fazer, ingressa na fila. A fila vai



avançando e ele chega à entrada da sala da casa. Lúcio fita o interior da sala da casa e observa uma senhora de idade avançada, sentada ao lado do caixão (ainda aberto), tocando as mãos do senhor Sebastião e chorando muito. Lúcio deduz que aquela seria a mãe de Deuslim e a esposa de Sebastião.

Lúcio sente-se constrangido e imagina que seria

inconveniente se apresentar a ela. A alegria de notícias do filho não teria efeito nenhum diante daquela tristeza toda – imagina.

- O que é que eu vou dizer? Martiriza-se Lúcio em seu íntimo. Ele prossegue na fila e, quando chega sua vez de

despedir-se, Lúcio apenas deposita a carta sobre o corpo e se retira chorando. A senhora que chorava sobre o caixão toma a carta e fica perplexa. Lúcio vai embora sem se identificar.

Lúcio, transtornado com o que acontecera, sente uma

forte angústia e uma vontade incontrolável de rever sua família. Ele retorna à base e questiona os superiores sobre seu retorno à Paraíba. Lúcio recebe uma autorização para uma viagem de avião de volta a Natal, e instruções para se reapresentar a sua unidade militar de origem em trinta dias.

No outro dia, pela manhã, ele voa de volta a Natal, de lá

vai para João Pessoa. No mesmo dia em que chega a João Pessoa, ele viaja para Cajazeiras. Já em Cajazeiras, o primeiro lugar que Lúcio se dirige é à casa de Úrsola, sua irmã mais próxima. Ela estava preparando o almoço quando Lúcio chama à entrada da casa.

- Quem será a essa hora? Isso é hora de estar na casa

dos outros. Murmura Úrsola. Ela abre a porta um tanto quanto enfurecida e, sem

reconhecer Lúcio num primeiro momento – pois fazia muitos anos que não o via –, questiona:



- Pois não, moço? Se for para vender alguma coisa não

posso atender o senhor agora, estou muito ocupada. - Úrsola, você está caducando? Tão nova e não conhece

mais seu próprio irmão? Úrsola franze a testa e olha para Lúcio entortando sua

cabeça para o lado. Quando, finalmente, ela leva a mão ao rosto de Lúcio e diz trêmula e emocionada:

- Meu Deus! Lúcio? Eles se abraçam prolongadamente. - Jesus ouviu minhas preces! Ele guardou você. Eles entram na casa. Alguns instantes depois,

Guilherme, esposo de Úrsola, chega e também se congratula com Lúcio. Eles almoçam e, no fim da tarde, por insistência de Lúcio, dirigem-se até o sítio Angelim, onde visitariam o pai de Lúcio, Seu João.

Lúcio não diz muita coisa ao seu pai, apenas lhe abraça

fortemente, imaginando que Deuslim não tivera a mesma sorte de rever seu pai.

No dia seguinte, que era um domingo, os moradores da

cidade de Cajazeiras, sabendo da chegada de um ex-combatente, aproveitaram as comemorações religiosas de uma padroeira da localidade e organizaram uma festa para Lúcio.

Na festa Lúcio é celebrado por todos, até na missa o

sermão do padre enaltece o jovem Lúcio. Tudo aquilo o enchia de orgulho. Entretanto, após alguns dias, toda aquela badalação tem fim e as pessoas passam a tratar Lúcio com normalidade, e alguns até com indiferença e desinteresse. Lúcio se sente ferido com isso e decide retornar antecipadamente de sua dispensa temporária. Ele, crendo que no exército seria mais valorizado, volta para Campina Grande e vai ao 40o Batalhão de Cavalaria (40 BC).



Lúcio segue ao setor administrativo do batalhão. Lá ele

aguarda um bom tempo para ser atendido pelo responsável e é tratado com total indiferença pelos atendentes. Ele se sente como um estranho à Unidade que adotara como casa. Finalmente, após o longo período de espera, Lúcio consegue falar com o responsável pelo setor administrativo:

- Olá, tenente! Cumprimenta Lúcio ao oficial responsável pelo setor.

- Olá, Cabo! Diz o tenente em tom seco. Lúcio percebe a frieza do tenente e questiona sobre a

existência de algum problema. - Não tenho boas notícias meu jovem. Você está

desincorporado, você não faz mais parte do Exército Brasileiro. Foi dispensado.

Responde o tenente. - Eu já imaginava que isso iria acontecer, pelos ferimentos

que tive não posso mais exercer funções militares, mas eu serei reformado, vim acertar minha aposentadoria por invalidez.

Retruca Lúcio com ar de tranqüilidade. - Não, Lúcio, você não vai ser reformado. Você foi

desincorporado. Sinto muito. Você não tem mais nenhum vínculo militar, é um civil como outro qualquer.

- Mas eu sou cabo e sou um ferido de guerra. Não posso

ser jogado fora como um lixo indesejável! Eu tenho direito à reforma.

- O comando militar está desincorporando todos os

pracinhas, sem direito a indenizações, só os que ficaram incapazes para atividades da vida civil é que vão ser contemplados com aposentadoria.



- Mas não me examinaram, não sabem se eu estou apto às atividades civis.

- Sua alta do hospital de Livorno atesta que você tem

essas condições. Sinto muito, mas você não vai mais ficar aqui. - Mas, tenente! Isso não é justo, eu derramei meu sangue

nessa guerra e o que recebo em troca é um pé no traseiro? - Olha, Lúcio, eu vou fazer um favor a você. Vou conseguir

passagens e uma autorização de exame com médicos em Recife. Mas não tenha muitas esperanças que algo mude.

- Não é possível. Eles não podem me jogar fora desse

jeito! - Tome, aqui está o dinheiro para as passagens e aqui

está a autorização de exame. Boa viagem. Lúcio sai do 40BC revoltado. Sem ter onde ficar, ele vai

até a casa de sua namorada, Marcela. Quando chega a casa, ele observa que outras pessoas estavam morando ali, Marcela havia se mudado para Fortaleza, no Ceará. Lúcio não tinha mais ninguém em Campina Grande. Desconsolado, Lúcio decide viajar naquele mesmo dia para Recife. Ele chega em Recife à noite e vai até o comando militar da cidade, onde dorme e aguarda, pela manhã, a chegada do médico do exército responsável pelo exame autorizado.

Lúcio, pela manhã, aguarda longas horas à entrada do

consultório, quando, finalmente, é chamado para ser atendido.

- Bom dia! Diz Lúcio ao entrar no consultório e se sentando. - Quem mandou você sentar! Esbraveja o médico. - Calma! Desculpe-me. Vou me levantar.



- Você deve ser mais um desses vadios de guerra, que

querem se aposentar porque cortaram o dedinho na Itália.

- Como é? Vadio?

Diz Lúcio ainda incrédulo ao tratamento que recebia.

O médico pega a autorização de exame que estava nas mãos de Lúcio e a lê, mas depois a rasga. - Você está perdendo seu tempo aqui, meu jovem. O senhor foi julgado incapaz na guerra, mas o senhor tem plenas condições de prover os meios de subsistência, vá trabalhar para se manter! O senhor quer se tornar um parasita no exército?

- Parasita é você! O que é que o senhor já fez pela nação? O senhor fica trancado aqui nessa sala tomando cafezinhos e humilhando as pessoas. Isso sim é ser parasita!

- Soldados! Soldados! Prendam esse cidadão! Esbraveja o médico à guarnição. - Seu porco! Você vai se arrepender por isso! Diz Lúcio, indignado. - Tirem esse lixo daqui e providenciem para que seu

cabelo seja raspado, ele vai aprender quem é porco! Lúcio é violentamente tirado da sala e recolhido ao

xadrez. Ele permanece lá durante todo aquele dia. No dia seguinte, pela manhã, um capitão chamado Carlindo, passava em revista ao estabelecimento prisional da base, quando para em frente à cela de Lúcio. Ele observa atentamente o prisioneiro e pergunta perplexo:

- Cabo Lúcio?



Lúcio se levanta rapidamente e de pronto reconhece o capitão Carlindo, a quem conhecera dos tempos do 40BC. Lúcio conta, detalhadamente, todo o ocorrido ao capitão Carlindo.

- Eu não acredito que aquele pederasta maldito fez isso com você, Lúcio. Ele além da fama de boneca tem a fama de maltratar as pessoas, mas isso já foi demais.

- Ele é boneca? Bem que notei que a forma dele falar era

macia demais para um homem de verdade. Constata Lúcio. - Você quer cair fora daqui, Lúcio? - Claro capitão! Mas como? O senhor vai falar com ele? - Aquela boneca safada não manda em nada aqui. Ele

não é nada e nem ninguém, apenas um médico de quinta categoria que não gosta de mulher. Eu vou fazer assim: vou te pegar pelo braço e te levar até lá fora, aí você toma destino.

- Obrigado, capitão.

O capitão pega os pertences de Lúcio e faz como eles combinaram. Na saída Carlindo escreve num pequeno papel um endereço e o entrega a Lúcio.

- Este é o endereço de um amigo meu de Campina Grande. Enquanto você não resolve seu problema aqui no exército, este rapaz pode te arrumar um emprego.

Lúcio retorna para Campina Grande e, por não ter lugar

para ficar, acaba indo dormir em uma praça.



CAPÍTULO XVIII DIAS DE NOVAS BATALHAS

No dia seguinte, Lúcio (bastante abatido e com a cabeça raspada, com as roupas sujas e com a barba por fazer), se dirige ao endereço indicado por capitão Carlindo.

O local indicado era da casa do senhor Manoel, um

gerente de uma empresa algodoeira que atuava no Nordeste brasileiro e que possuía uma filial na cidade de Campina Grande. Lúcio para em frente à entrada da casa e chama pela campanhinha. Após algum tempo, um senhor de idade sai à porta, muito lentamente. Quando o senhor observa e percebe Lúcio e seu estado, fica um tanto quanto desconfiado e para com olhar de espanto.

- Bom dia! Gostaria de falar com Seu Manoel. Diz Lúcio, cordialmente. - Quem é você? - Eu sou amigo de capitão Carlindo, ele me indicou esse

endereço, disse que o senhor está precisando de empregados. Estou procurando um novo emprego.

O senhor que estava à porta, que era o senhor Manoel,

fica um pouco mais confiante e se aproxima ao portão da casa, mas sem dar total confiança ao jovem Lúcio.

- O senhor é Seu Manoel? Questiona-lhe Lúcio. - Sim. - Preciso de um emprego e Carlindo me indicou o senhor.

- O que você sabe fazer meu jovem?

- Eu posso fazer qualquer coisa senhor.



- Tem experiência em quê? - Eu só trabalhei até hoje no exército, a experiência que tenho é de lá e de uma guerra. - Guerra? Você esteve nessa guerra de agora? - Sim, senhor! O senhor se atenta que as vestes de Lúcio são de militar e muda subitamente seu tratamento comedido para com Lúcio, abrindo o portão rapidamente e pedindo para que Lúcio entre. Manoel o leva até a sala de estar e pede para que aguarde. Após alguns instantes, volta com sua esposa da cozinha com suco e bolo para Lúcio. - Tome meu jovem. Coma um pouco. - Obrigado! - Me diga uma coisa meu jovem, porque você está procurando emprego? Se você estava na guerra é porque é do Exército Brasileiro. Você está de uniforme e tudo. - Eu era. Mas fui licenciado, sem direito à aposentadoria. Como fui ferido em guerra eles me rejeitaram. - Eu não acredito! Isso não é correto. Mas como foi que você se feriu? - Com um morteiro.

- Tenho muita curiosidade em relação à guerra. Diga-me como era o seu dia-a-dia em combate?

Lúcio conta detalhadamente toda sua história de guerra desde o dia de chegada à Europa ao dia em que foi ferido. Manoel fica impressionado e compadecido com a história de vida de alguém tão jovem que acaba lhe fazendo uma proposta: - Eu só tenho um emprego para você meu jovem.



- Ficaria muito grato com qualquer coisa que o senhor puder me arranjar. - Você vai ser um de nossos motoristas. É a única coisa que poderá fazer, pelo menos, no momento. - Puxa! Muito obrigado! Quando posso começar? - Amanhã mesmo. Mas antes você vai tomar um banho e fazer esta barba. Você está péssimo! - Não tenho palavras para agradecer! - Não quero palavras, meu jovem, quero trabalho. Na manhã seguinte Lúcio começa a trabalhar e fica num dos galpões da indústria algodoeira, até receber seu primeiro salário e poder ter condições de alugar um local para morar.

Lúcio, acostumado à disciplina militar, trabalha de forma muito austera e começa a se destacar entre todos os motoristas – que, no geral, eram relaxados. Não demora muito e ele logo cai nas graças do senhor Manoel.

O tempo passara e mesmo após um ano de sua volta ao Brasil, Lúcio ainda estava profundamente ressentido com o tratamento recebido pelo exército. Ele andava amargurado e muito triste, apesar de seu novo emprego, dos novos amigos que fez na indústria algodoeira e da satisfação de seu patrão em relação aos seus procedimentos no trabalho.

O exército era a razão de vida de Lúcio e sua exclusão dele havia deixado um grande vazio. Ele, ainda assim, de bom grado participava dos desfiles de Sete de Setembro como ex-combatente.

Lúcio possuía uma rotina repetitiva: do trabalho voltava

para casa e da casa ia ao trabalho. Entretanto, certo dia, por insistência de seus amigos de trabalho, Lúcio foi até uma festa que estava acontecendo na rua em que um desses amigos de trabalho morava.



Era o mês de junho de 1947. Era dia de festa junina na

cidade de Campina Grande, Lúcio estava tomando uma cerveja e assistindo uma quadrilha junina. De repente, uma jovem chamada Ana, muito bem vestida e bela, que estava passando em frente à mesa que Lúcio e seus amigos estavam, fica assustada com uma bombinha de São João, jogada por uma criança, e bate na mesa derrubando um copo de cerveja sobre as pernas de Lúcio. Ele, enfurecido, se vira para reclamar com a pessoa que derrubara o copo. Quando observa a moça, fica estático olhando em seus olhos, encantado com ela.

- Desculpe-me moço! Diz Ana a Lúcio, desconcertada. Lúcio permanece calado olhando para ela de forma

abobalhada.

- Moço? - Cuidado Ana, ele é um ex-soldado, vai te fuzilar por isso.

Diz Jandir, um dos colegas de Lúcio que estavam à mesa, em tom de chacota.

Lúcio desperta de seu transe momentâneo e diz com voz doce: - Eu jamais faria algo de mal contra uma criatura angelical dessas. Ainda que ela me batesse no rosto! - Lúcio, essa é minha vizinha, Ana. Ana, meu colega de trabalho, Lúcio.

Diz Jandir.

- Prazer e, mais uma vez, me desculpe. - O prazer é meu.



Diz Lúcio beijando a mão da jovem.

Lúcio se apaixonou pela jovem Ana e passaria a frequentar a casa de Jandir, quase todos os fins de semana, só para conversar com a moça. Ana não resistiria aos galanteios de Lúcio e, um mês e meio depois, eles começariam a namorar. Não demoraria muito e, já no ano seguinte, num mês de dezembro, eles se casariam. Cerca de nove anos se passaram e as coisas na indústria algodoeira haviam mudado um pouco. O senhor Manoel já não era mais gerente, pois falecera em 1951. Um novo gerente, vindo da matriz da empresa, havia assumido e tinha ordem da administração superior para evitar que os funcionários atingissem a estabilidade. A legislação trabalhista, à época, determinava que, com dez anos de serviço, o empregado não poderia ser despedido, senão por falta grave.

Lúcio possuía nove anos e nove meses de tempo de serviço. O novo administrador buscava meios de pegar Lúcio em alguma falta para dispensá-lo por justa causa (e evitar que ele atingisse a estabilidade). Todavia, o procedimento exemplar e irrepreensível de Lúcio evitava que ele fosse pego, ele era o único da turma de amigos que ainda não havia sido demitido e substituído.

Entretanto, como não conseguiu demitir Lúcio por justa

causa, o novo administrador demitiu Lúcio sem justa causa e lhe pagou indenização. Com o dinheiro da indenização, Lúcio comprou um caminhão e se tornou caminhoneiro autônomo.

A vida de caminhoneiro autônomo era difícil e o ganho

variava muito, Lúcio acabaria desistindo da profissão, aceitando um modesto emprego na prefeitura de Campina Grande.

Cerca de um ano após assumir o emprego na prefeitura, um influente deputado estadual, natural de Campina Grande, estava num bar de um homem conhecido por Zequinha, que era vizinho de Lúcio. O deputado sempre



frequentava o local e, após a terceira dose de bebida, ele externa um desejo ao dono do bar: - Zequinha! - Pois não, deputado! Mais uma dose? - Não, eu gostaria que alguém me indicasse um ex-pracinha para que eu nomeasse para o Fisco do Estado. Um dos meus irmãos foi combatente e morreu na guerra, gostaria de lhe prestar essa homenagem. Zequinha conhecia Lúcio e não pensou duas vezes: - Eu tenho a pessoa certa para o senhor. O nome dele é Lúcio! - Quando poderei falar com esse rapaz? - O senhor estará aqui amanhã? - Sim. - Amanhã mesmo eu falo com ele para vir aqui! No dia seguinte, Lúcio vem com Zequinha até o bar com todos os seus documentos e apresenta ao deputado. Duas semanas depois, Lúcio é nomeado agente do Fisco Estadual. Lúcio vai até o gabinete do prefeito e anuncia a novidade. - Lúcio, meu rapaz, tenha cuidado porque o governo estadual está em término de mandato. O novo governo pode assumir e tirar você, aí você vai ficar no olho da rua.

Admoesta-lhe o prefeito.

- Será? Estava bom demais para ser verdade.

Pondera, com pessimismo.



- Mas pensando melhor, o novo governador não poderá tornar sem efeito uma nomeação oficial. Eu acho que você deve assumir. - Sério? O senhor acha isso? - Sim. Lúcio assume o novo emprego e passa a ganhar muito melhor que na prefeitura. Entretanto, tudo ocorre como já havia alertado o prefeito: um novo governo estadual assume e exonera os funcionários contratados na gestão anterior. Lúcio, então, dirige-se à Prefeitura, com a intenção de falar com prefeito e reaver seu antigo emprego: - Bem que o senhor disse que eu seria demitido assim que o novo governo assumisse.

Diz Lúcio, resignado.

- Calma, meu jovem. A Assembléia Legislativa vai anular esse abuso, você foi nomeado oficialmente, não podem fazer o que fizeram, lembre-se que também te disse isso. - Eu quero meu emprego aqui da prefeitura de volta. - Não, Lúcio! Olhe, vá para casa, faça sua feira fiado e descanse numa rede bem confortável. Não vai demorar muito e você será reconduzido ao seu emprego. Os dias após aqueles foram longos e difíceis, a casa ficou sendo sustentada com o dinheiro que Ana ganhava como professora. Todavia, após dezessete dias, a Assembléia Legislativa tornou nula a exoneração dos funcionários, e todos que foram demitidos voltaram aos seus cargos. Lúcio permaneceria no Fisco Estadual até se aposentar.



CAPÍTULO XIX E O DIA DE AMANHÃ?

CAMPINA GRANDE, 07 DE SETEMBRO DE 2001.

Cinquenta e seis anos após o do término da guerra,

Lúcio e Ana tinham constituído uma bela e grande família. Quatro dos seus cinco filhos já haviam se tornado adultos e independes.

Lúcio e Ana moravam com Mônica, a filha caçula – e a

única que ainda não havia tomado destino próprio. O casal estava à mesa de sua casa, pois tinha acabado de se levantar para tomar café. Aquele era um dia especial, era dia de desfile de Sete de Setembro, o Dia da Independência do Brasil, todos os ex-combatentes eram convidados a desfilar. Mônica estava ajudando a colocar o café à mesa, enquanto Lúcio e Ana aguardavam.

Lúcio estava muito pensativo e com olhar fixo, bastante

compenetrado. Sua esposa, ao perceber isso, questiona: - O que você está pensando?

Lúcio apenas meneia a cabeça, em sinal de negação, dando a entender que não estava pensando nada de relevante. - Eu conheço você, Lúcio, o que está te incomodando?

Insiste Ana.

- Eu tive um sonho muito estranho. - Com o quê? - Eu estava no acampamento de guerra na Itália, e havia soldados brasileiros e americanos rendendo um grupo de alemães. De repente, um avião americano, que estava sobrevoando o local, explode em pleno vôo e cai sobre nosso grupo. Eu me baixava para me proteger e, quando me



levantava, via que, curiosamente, só os soldados americanos eram atingidos e mortos. Quando olhava para cima, eu via os mastros das bandeiras do acampamento e via a bandeira americana queimando e seu mastro vindo ao chão. Depois, eu era transportado daquele local e, como se eu viajasse no tempo, via nossos netos Itiel, Lucas, Dimas e Iuri, já adultos, com fardamento militar. Eles estavam entrincheirados num deserto. Ninguém me dizia nada, mas eu sabia que eles estavam lutando na Terceira Guerra Mundial. Eu via que um grande e incontável exército de homens vestidos de túnicas negras começava a se aproximar deles. Eu começava a gritar para alertá-los, mas eles não me escutavam, então eu começava a chorar. De repente, uma voz cordial, que não sei de onde vinha, me dizia “lembre-se da frase”. Eu, instantaneamente me lembrava de uma frase que me disseram antes de eu ir para guerra: “Jesus vai te levar e Jesus te trazer”. Eu levantava minha mão em direção a eles e dizia “Jesus os leva e Jesus os traz”. No mesmo instante, duas mãos gigantescas e luminosas os cobriam, a luminosidade das mãos encandeava os homens vestidos de negro e eles começavam a tropeçar e não conseguiam achar nossos netos. A luz das mãos ficava mais forte e acabava me encandeando também, nesse momento eu acordei.

- Que sonho estranho. - É. Acho que vou esquecer isso e me arrumar para o

desfile, afinal de contas, foi só mais um sonho maluco desses que, de vez em quando, eu tenho.

Lúcio se levanta e vai até o quarto para se aprontar. De

lá se dirige ao local do desfile, no centro de Campina Grande. Em determinado momento do desfile, um grupo de agitadores observa os ex-combatentes desfilando e começa a vaiar e a dizer impropérios:

- Tirem esses velhos daí! Eles já estão mortos e não

sabem! - Ei vovô, vai para um asilo!



- Sai daí, múmia! Vai para a fila dos aposentados que é teu lugar!

Lúcio olha para os jovens e pensa em rebatê-los, mas no

mesmo instante, após refletir um pouco consigo mesmo, permanece atônito até o término do desfile. Ele volta para casa muito triste, com aquele episódio na mente. Sua esposa, mais uma vez, percebe que ele não está normal.

- Está pensando naquele sonho ainda?

- Não. Estava pensando nas vaia que recebi hoje no desfile. - Vaias? Como assim? - Um grupo de jovens nos vaiou hoje e nos chamou de velhos. - Essa juventude de hoje não respeita nada! - É. Não respeitam nada mesmo. - Eu conheço você, sei que não ia ficar calado. O que você disse a eles? - Não disse nada, pensei em dizer algo, mas refleti melhor e fiquei com pena deles. - Pena? - Sim. - Por quê? - Porque sei que um dia eles ou seus filhos ou seus netos vão passar pelo que eu passei. Sei que a maldade do ser humano, mais cedo ou mais tarde, vai gerar outras guerras mundiais. E aí eles, de alguma forma, vão passar pelo que eu passei. - Você está triste por isso?



- Não estou triste por eles nem pelo que fizeram, mas porque sei que nossos netos ou bisnetos também estão sujeitos às mesmas coisas. - Não diga bobagens, Lúcio. Lúcio olha para Ana, suspira profundamente e se cala. Lúcio passaria os dias seguintes ao episódio das vaias muito pensativo, sendo sempre flagrado pela sua esposa, tristonho, pelos cantos da casa. Num desses dias, numa manhã de terça-feira, dia 11 de setembro de 2001, quatro dias após ser vaiado no desfile, Lúcio estava no sofá de sua casa. Ele

contemplava seus netos brincando de bang-bang com armas de brinquedo, correndo pelos cômodos da casa.

Ele estava sereno e pensativo. Ana, mais uma vez percebe isso e tenta fazer algo para distrair o marido:

- Amor, ligue a televisão e vá assistir alguma coisa para passar o tempo.

Lúcio só olha para ela e meneia a cabeça em sinal de desaprovação. Então Ana vai para seu quarto, juntamente com Mônica. Quando elas saem, Lúcio, entediado, pega o controle da televisão e a liga. Ele observa que todos os canais estão apresentando as mesmas imagens de dois prédios tomados pelas chamas. Ele fica perplexo, sem entender direito do que se trata. Em um dos canais o repórter anuncia:

- Estamos ao vivo, diretamente de Manhattan, Nova Iorque, onde dois aviões lotados de passageiros atingiram o World Trade Center, coração financeiro da cidade. Há informações que outros dois aviões tenham se envolvidos em acidentes similares, sendo que um deles atingiu o quartel general do departamento de defesa dos Estados Unidos, o Pentágono, no Condado de Arlington, Virgínia, próximo a Washington D.C.; e o outro caiu em um campo próximo a Shanksville, Pensilvânia. As autoridades americanas ainda não se pronunciaram oficialmente, mas há suspeitas de que seja um mega-atentado terrorista de autoria do al-Qaeda, grupo radical islâmico. Analistas internacionais acreditam que,



se comprovado que o atentado foi executado pelo al-Qaeda, haverá uma tendência de forte baixa em todas as bolsas de valores do mundo e a criação de um foco de tensão entre as nações ocidentais e o Oriente Médio, podendo desencadear em conflitos armados e até em uma guerra de proporções globais... Lúcio fica pasmo e contempla as imagens, entre elas vê um mastro de bandeira americana caído, pegando fogo, exatamente como sonhara. Quando olha ao seu lado vê seus quatro netos, parados próximo a ele, observando atentamente às imagens da televisão. Todos estavam com suas armas de brinquedo nas mãos. Ele se inclina para trás e diz abismado:

- Meu Deus! - O que é isso, vovô? Por que essas pessoas estão correndo? Quem fez isso nesses prédios? Isso é um filme de guerra?

Pergunta um dos netos de Lúcio.

Lúcio começa a chorar e chama seus netos para junto de si. - Venham aqui meus netos, abraçar seu vovô. Eles se aproximam, mas o caçula deles acaba batendo na estante e derrubando um livro. Lúcio se levanta para ajudar a criança e pegar o livro que caíra no chão. Quando o toma nas mão percebe que era uma Bíblia, e que ela havia caído aberta no livro dos Salmos, exatamente no Salmo 27. Lúcio percebe que há alguns versículos do salmo grifados, mas, como estava sem os óculos e não consegue ler de perto, pede para que seu neto mais velho os leia. A criança lê os versículos grifados: - O SENHOR é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O SENHOR é a força da minha vida; de quem me recearei? Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, se chegarem contra mim, para comerem minhas carnes, tropeçaram e caíram. Ainda que um exército me cercasse, o meu coração não temeria; ainda que a guerra se



levantasse contra mim, nisto confiaria. Porque no dia da adversidade me esconderá no seu pavilhão; no oculto do seu tabernáculo me esconderá. Lúcio fica perplexo, mas sente-se confortado ao ouvir aquilo. - Vovô, eu aprendi na aula de religião que, quando a gente se entrega a Deus e confia nele, Ele nos guarda de todo mal. Ele guardou o senhor na guerra que o senhor foi? Não é? Foi por isso que você pediu para eu ler isso?

Pergunta o neto mais velho que lera o texto bíblico.

Lúcio pega a criança e a abraça.

- Sim, meu filho. Deus nos guarda quando confiamos nele.

Nesse momento, chega até a sala um dos filhos de Lúcio, pai de uma das crianças que estavam brincando na casa de Lúcio. Ele percebe que seu pai estava estranho.

- Papai? O que houve? - Nada meu filho, só estava assistindo a TV. Você viu que tragédia?

Diz Lúcio, disfarçando.

- Vi sim. Que coisa inacreditável. Esses terroristas foram longe demais, é capaz disto acabar numa outra guerra mundial. O senhor não acha? Lúcio olha serenamente para o filho e fica calado.

- Onde está mamãe? Pergunta o filho de Lúcio.

- Ana está lá dentro com Mônica.



- O que você tem de errado, papai? Estava chorando? - Não, eu só estava com um cisco no olho e ajudando ao caçula se levantar. Ele estava traquinando e caiu. - Quer ajuda? - Não, obrigado. Vá ver se sua mãe está precisando de alguma coisa. O filho de Lúcio vai falar com sua mãe. Lúcio pega a Bíblia das mãos de seu neto e chama as outras crianças junto de si, para abraçar a todas juntas. - Aconteça o que acontecer daqui em diante, que Jesus guarde vocês! Após dizer isso, Lúcio balbucia consigo mesmo:

- O que será do amanhã, meu Deus? Quem dará fim a essa maldade do homem e a essas malditas guerras? Quem trará paz a esta Terra?

FIM Em 2002, Lúcio, orientado por um advogado, conseguiu, mediante requerimento administrativo, o direito à pensão especial devida aos ex-combatentes da Segunda Guerra. Direito que tinha sido tolhido dele cinquenta e sete anos antes, desde sua chegada da Europa. MARCELINO LÚCIO MAMEDES tem cinco filhos (Ilma, Robson, José Jackson, José Ramos e Mônica), oito netos (Alidiane, Itiel, Marcelino, Lucas, Dimas, Maíra, Iuri e Ilma) e dois bisnetos (Felipe e Ana Eurídice). Atualmente LÚCIO, viúvo, vive com sua filha caçula na cidade de Campina Grande – PB. Ele mantém o humor e vigor de quando era um jovem.



Esta obra foi entregue como homenagem ao ex-combatente no dia do seu octogésimo oitavo aniversário, em 02 de junho de 2006.



CAPÍTULO ESPECIAL DIA DE REFLEXÃO

Nós, seres humanos, temos uma tendência a idolatrar outros seres humanos tão limitados quanto nós. Essa nociva tendência se enrobustece quando nos deparamos com homens aos quais atribuímos grandes feitos. Costumamos dar a esses homens o título de “heróis”.

A nossa concepção ou acepção de “herói” evoluí de acordo com nossa faixa etária. Quando somos crianças, nossa imaginação pueril só consegue vislumbrar como idôneas ao título de heróis as pessoas mais fortes (e geralmente providas de poderes sobrenaturais ou especiais). Nossos heróis infantis são aqueles que, por aptidões sobre-humanas, não conhecem derrotas.

Na nossa adolescência e juventude, nossos heróis são as

pessoas mais ousadas, desafiadoras e questionadoras, aquelas pessoas que se mostram rebeldes às verdades impostas, nossos heróis dessa fase da vida são rebeldes e impávidos.

Quando amadurecemos e nos tornamos adultos, nos

deparamos com as decepções de um mundo de ações e pessoas malignas e passamos a desacreditar em heroísmo. Mas, ainda assim, nos fixamos em grandes “heróis” da História, geralmente os mais famosos, as pessoas que promoveram ações mais corajosas e inigualáveis ou que foram grandes líderes, isto é, os heróis da vida adulta são as pessoas que historicamente são tidas como responsáveis por mudar o rumo da Humanidade em suas gerações.

Apesar das variações conceituais da palavra “herói”,

que, como vimos, é diretamente proporcional à nossa vivência e amadurecimento, em todas as fases de nossa vida a tendência é enxergar os grandes acontecimentos atribuídos aos “heróis” como realizações individualizadas. Seja qual for nossa faixa etária, contemplamos os “heróis” sempre como seres autossuficientes, que sozinhos vencem os inimigos, fazem revoluções e justiça, mudando o rumo dos acontecimentos. Nossa percepção individualizada dos fatos é



fruto de nosso próprio caráter individualista – nós não conseguimos ter a capacidade e discernimento para distribuir o crédito e o louvor dos acontecimentos de uma forma coletiva, estamos sempre individualizando os acontecimentos e os fatos.

A História é a mais fértil fábrica de heróis

individualizados: o general que mudou o rumo da guerra, o líder que mudou o rumo de seu país, o ato que mudou o rumo da História, etc. Nossa carga de valores individualistas nos entorpece a ponto de não nos darmos conta que o ser humano é um ser social e nenhum de seus feitos pode ser analisado e creditado individualmente. Ainda que executado por uma só pessoa, o ato humano é sempre uma ação ou reação fruto de uma vivência e participação coletiva. Não nos damos conta que os grandes feitos históricos, ainda que representados, liderados ou identificados numa única pessoa, são fruto de ação, esforço e, muitas vezes, de derramamento de sangue de uma multidão de anônimos, muitas vezes mais heróis, dignos e bravos do que os heróis aos quais os doutos da História atribuem o crédito de forma individualizada. Isso precisa ser refletido.

Esse livro é uma homenagem aos soldados e civis que lutaram e que derramaram seu sangue na Segunda Guerra Mundial e que, coletivamente, representam a imagem dos verdadeiros heróis desse período crucial da História da Humanidade. Este livro é um memorial individual e coletivo desse episódio histórico. Individual, porque é uma biografia de um dos milhões de heróis que participaram desse evento; coletivo, porque, quando narra os acontecimentos de guerra, busca trazer à tona, de uma forma mais próxima, a nefasta realidade de um episódio histórico que afetou e ceifou milhões de vidas, de homens e mulheres, de militares e civis. Nosso “herói”, protagonista desse livro, e que representa todos os heróis da Segunda Guerra Mundial, não é conhecido dos grandes eruditos nem dos estudiosos das táticas militares; nosso herói não tem poderes sobrenaturais ou aptidões extraordinárias; nosso herói não tem um físico descomunal; nosso herói é apenas um singelo, sorridente e feliz senhor idoso. Ser (e envelhecer) feliz é uma dos



grandes desafios para a maioria das pessoas da pós-modernidade.

Esse idoso nasceu numa dura realidade do Sertão nordestino e, desde cedo, foi em busca de sua autonomia, sofrendo nos percalços da vida. Na guerra ele arriscou sua vida em prol de algo que não havia dado causa e que, para nossos governantes à época, refletia mais interesses políticos e econômicos do que necessidades morais. Ao voltar da Itália, ele foi desprezado pelos mesmos que o convocaram, humilhado quando merecia honras e abandonado quando suas prerrogativas eram de amparo.

Marcelino Lúcio Mamedes é um desconhecido que dever

servir de exemplo à nossa geração (tão complexada, fútil e vazia) e às gerações futuras. Ele é um herói por ter tido a capacidade de gerar, sustentar e criar, com amor, uma linda família mesmo com as dificuldades e decepções que a vida e as pessoas lhe infligiram. Ele é um herói não por lutar ou por sobreviver a uma guerra, mas por superar todos os contratempos e tornar-se uma pessoa feliz. Ele é um herói porque onde a vida lhe semeou dor, ele teve a capacidade de colher força; onde a vida lhe semeou infortúnio, ele teve a capacidade de colher paciência; onde a vida lhe semeou decepção, ele teve a capacidade de colher perseverança; onde a vida lhe semeou violência, ele teve a capacidade de colher o bom-humor; onde a vida lhe semeou desprezo, ele teve a capacidade de colher perdão. Ele é um herói porque ama e tem orgulho do País que lhe foi ingrato.

A vida e os acontecimentos lhe abrasaram com FOGO,

mas ele tornou-se um FILHO DA PAZ. Algum poder sobrenatural e divino o conservou como um ser pacífico e feliz.

Os heróis são humanos e não são transcendentais ou

intangíveis, mas estão a nossa volta, descubra-os e os valorize. Quando se deparar com os grandes feitos da História, saiba que por trás deles há inumeráveis responsáveis dignos de honra.



Saibamos, portanto, reconhecer e valorizar as pessoas e os acontecimentos coletivamente por novas óticas não alienadas por nocivos e injustos valores individualistas.

O único que, individualmente, mudou a História da

Humanidade com o derramamento do seu sangue e dividiu a História em antes e depois dele foi Jesus Cristo. Mas não se tratava de um homem comum, na verdade, não se tratava de um homem, mas do próprio Deus que, por um instante, abriu mão de sua condição glorificada de Deus para se tornar um ser limitado como um de nós e nos salvar com sua morte e ressurreição. Esse DEUS é o mesmo que, retornará a Terra para dar cabo de toda maldade e sofrimento que a Humanidade gerou, e trazer justiça sobre cada ato individual e coletivo dos seres humanos, estabelecendo a VERDADEIRA E DEFINITIVA PAZ:

“Vi um grande trono branco, e o que estava assentado

sobre ele, de cuja presença fugiu a terra e o céu; e não se achou lugar para eles. E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante de Deus, e abriram-se os livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras. E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o inferno deram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras. E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte. E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo. E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já

as primeiras coisas são passadas. E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: Escreve; porque estas palavras são verdadeiras e fiéis. E disse-me mais: Está cumprido. Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. A quem quer que tiver sede,



de graça lhe darei da fonte da água da vida. Quem vencer, herdará todas as coisas; e eu serei seu Deus, e ele será meu filho. Mas, quanto aos covardes, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.” (Apocalipse, capítulo 20, versículo 14 ao capítulo 21, versículo 8).

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