Natureza, populações tradicionais e sociedade de risco

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  • Org. Heline Sivini Ferreira, Diogo Andreolla Serraglio e Andreia Mendona Agostini

    NATUREZA, POPULAES TRADICIONAIS E SOCIEDADE DE RISCO

    Curitiba2013

  • Al. Pres. Taunay, 130. Batel. Curitiba-PR.CEP 80.250-210 - Fone: (41) 3223-5302.

    [email protected]

    diagramao do miolo LETRA DA LEI

    N285 Natureza, populaes tradicionais e sociedade de risco / organizao Heline Sivini Fer-reira, Diogo Andreolla Serraglio e Andreia Mendona Agostini. Curitiba : Letra da Lei, 2013. 239 p.

    ISBN 978-85-61651-12-1

    1. Direito ambiental - Brasil. 2. Direitos sociais - Brasil. I. Agostini, Andreia Mendon-a. II. Ferreira, Haline Sivini. III. Serraglio, Diogo Andreolla. IV. Ttulo.

    CDU 502:316

  • SUMRIO

    O CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO SOCIOAMBIENTAL DE 2013 ..........................................7

    PREFCIO ................................................................................................................11

    OS SABERES POPULARES INTERGERACIONAL E O TRABALHO INFANTIL NA CATA DA MANGABAAccia Gardnia Santos Lelis e Fbia Carvalho Figueiredo .....................................13

    ENTRE O DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE: A POBREZA COMO PARADIGMA DE INJUSTIA AMBIENTALAmadeus Elves Miguel e Guilherme Nazareno Flores ...........................................27

    A IMPLEMENTAO DO SOCIOAMBIENTALISMO E O PENSAMENTO DE LEONARDO BOFFCelso Leal da Veiga Jnior ....................................................................................45

    O PROBLEMA DA DIVERSIDADE CULTURAL CONFRONTADO COM OS DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS E UMA TICA UNIVERSAL ANLISE DE CASO CONCRETO COM BASE NO RELATRIO DA COMISSO MUNDIAL DE CULTURA E DESENVOLVIMENTO DA UNESCO: NOSSA DIVERSIDADE CRIADORADaniel Antonio de Aquino Neto ..........................................................................57

    O REMANEJAMENTO DA COMUNIDADE DE MUTUM PARAN E O MEIO AMBIENTE CULTURALDiego Weis Junior e Rosimery do Vale Silva Ripke ...................................................75

    MERCADO, PATRIMNIO GENTICO, CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E RISCO UMANIDADE: REFLEXES LUZ DA PROTEO JURDICA BRASILEIRAGustavo de Macedo Veras e Mario Jorge Tenrio Fortes Jnior .................................89

  • CONFLITOS ECOLGICOS DISTRIBUTIVOS E O PROTAGONISMO DA COMUNIDADE DO ASSENTAMENTO PONTAL DOS BURITIS: UM ESTUDO DE CASOLarissa Carvalho de Oliveira e Helga Maria Martins de Paula ..............................105

    O DESENVOLVIMENTO DA INDSTRIA DO PETRLEO E OS RISCOS AMBIENTAIS PARA A SOCIEDADE ATUAL NA AMRICA LATINA: SUTENTABILIDADE X DEMANDA ENERGTICAJos Gomes de Britto Neto ..................................................................................115

    A PROTEO JURDICA DAS POPULAES TRADICIONAIS ENQUANTO SOCIEDADEDE RISCO, PATRIMNIO GENTICO E CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOSJos Washington Nascimento de Souza ...............................................................131

    NATUREZA: ENTRE A TRADIO E O RISCOLuciana Xavier Bonin .........................................................................................145

    CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E PROTEO JURDICA: UMA REFLEXO SOBREA A ACESSIBILIDADE DO KAMB LUZ DOS PRINCPIOS DA BIOTICA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANARaimundo Giovanni Frana Matos e Ronaldo Alves Marinho da Silva ..............155

    CAPITALISMO, NATUREZA E DESENVOLVIMENTO NO PERU: A PROPSITO DO PROJETO AURFERO CONGARicardo Serrano Osorio .......................................................................................171

    BIOPROSPECO, POPULAES E CONHECIMENTOS TRADICIONAIS: REFLEXES SOBRE A REPARTIO DE BENEFCIOSRodolfo Souza da Silva ........................................................................................191

    PACHAMAMA: UM NOVO PARADIGMA SOCIOAMBIENTALZelma Tomaz Tolentino e Liziane Paixo Silva Oliveira .........................................207

  • 7O CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO SOCIOAMBIENTAL DE 2013

    A questo socioambiental esteve no centro da discusso jurdica do Progra-ma de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Paran desde seu incio, que dedicou sempre um conjunto de disciplinas para tratar dire-ta ou indiretamente do problema.

    Muito cedo foi criado um grupo de Pesquisa chamado Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemnica, para dar cabo do conjunto de projetos de pesquisas de iniciao cientfica, mestrado, doutorado e estudos avan-ados, que forem sendo propostos e aceitos no seio do programa. A coordenao do Grupo sempre esteve a cargo dos professores Heline Sivini Ferreira, Vladimir Passos de Freitas e Carlos Frederico Mars de Souza Filho.

    H sete anos atrs se entendeu que era necessrio juntar essa pesquisa re-alizada e exp-la num Congresso prprio, alm dos Congressos e outros eventos acadmicos que seus membros regularmente participam, por isso se inaugurou o Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental.

    O Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental, portanto, tem como ob-jeto estudar e aprofundar o entendimento de como o sistema econmico hegem-nico da modernidade excluiu os povos e a natureza, promovendo sua destruio ou os tornando invisveis e de como essa excluso e inviabilidade, mediada pelo direito, foi desastrosa. Por isso mesmo, no final do sculo XX, o sistema descobriu, entre atnico e incrdulo, que a humanidade sucumbiria junto com a destruio da natureza e comeou o impor, por meio dos sistemas regulatrios, limites para a essa destruio. Na Amrica Latina essa busca do retorno da natureza imprimiu um forte ressurgimento das antigas lutas dos povos invisveis, ndios, quilombolas, camponeses, comunidades que foram chamados de povos, populaes, sociedades, comunidades, gentes, somadas ao adjetivo de tradicionais, locais, originrios, con-tra-hegemnicos, exatamente porque estas populaes desde sempre reclamavam que a relao do ser humano com a natureza no podia ser marcada pelo egosmo e cegueira da lgica do lucro e da acumulao de riquezas sem fim.

  • 8No mesmo sentido, parte das pessoas que foram tomando conscincia des-sa realidade destrutora, passaram a entender que independentemente dos povos tradicionais, h um direito de todos sobre a natureza saudvel e viva, sobre a plenitude da biodiversidade, assim como sobre a profunda e bela diversidade cul-tural, expressa numa vigorosa sociodiversidade. Tanto o direito das comunidades como o direito de todos so coletivos e no se confundem com os direitos indivi-duais construdos pela modernidade, at ao contrrio, na maioria das vezes estes direitos se contrape aos individuais de propriedade e de livre uso da propriedade, ainda que o sistema jurdico no saiba como trabalhar essa contraposio e na maioria das vezes sacrifica o coletivo em benefcio do individual.

    Foi o direito o instrumento que a modernidade usou para fixar a ideia do individualismo e garantir que sujeito de direitos, individual e humano, tivesse su-premacia sobre o objeto de direito, a terra e a natureza; com isso, excluindo todo o humano que no fosse individualizado (povos tradicionais) e todo natural no transformado em bem, coisa, objeto no patrimonializvel. A esse mesmo instru-mento caberia, por certo, promover a reintegrao dos excludos. Quer dizer, se, e enquanto, o direito no regulamenta os direitos coletivos das populaes e do todo, inexistem direitos, portanto de pouca valia reconhecer que necessria a reintroduo se o sistema jurdico no modificado. Por isso a importncia das legislaes e constituies latinoamericanas presentes.

    Entretanto, a questo, como se v, no apenas jurdica (talvez no exista nada que seja apenas jurdico), necessria sua interao com outras cincias, an-tropologia, sociologia, economia, biologia, agronomia, histria, geografia, etc. O direito sozinho pouco pode. necessrio tambm ouvir, conhecer, aprender, com os povos e populaes tradicionais. Para isso, necessrio ir alm do aprofunda-mento acadmico no mbito interno da Universidade, como se faz no Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, for-talecendo em especial as atividades de pesquisa e extenso desenvolvidas no m-bito da Linha de Pesquisa SOCIEDADES, MEIO AMBIENTE E ESTADO, mas tambm promover visitas as comunidades, discusso com os povos, defesa de direitos especficos, etc. Para isso essencial a organizao de eventos com a participao de pesquisadores de outras instituies e com pensadores de outras culturas, como os indgenas e quilombolas, pescadores, faxinalenses e ciganos.

    Exatamente por isso se organizou o Congresso Brasileiro de Direito Socio-ambiental, que no ano de 2013 completou a sua IV edio nos dias 17, 18 e 19 de setembro. Junto ao Congresso se realizou o Encontro pr-RELAJU (Rede Lati-noamericana de Antropologia Jurdica) Congresso 2014, o Seminrio A Questo Indgena Av-Guarani no oeste do Paran, o II Simpsio de Polticas Pblicas, Democracia e Poder Judicirio e uma Mostra de Fotografia, chamada Socioam-bientalismo em Imagens.

  • 9O Congresso RELAJU o mais importante evento de antropologia jur-dica das Amricas e ocorre a cada dos anos. Sua ltima edio foi em 2012, na cidade de Sucre na Bolvia e a prxima, em setembro de 2014, em Pirinpolis, Gois. O encontro pr-RELAJU foi uma reunio da coordenao internacional para definir os parmetros do evento do ano que vem, tendo sido organizado no Congresso um painel especfico, com a participao de antroplogos, sobre o tema geral de antropologia jurdica.

    O Seminrio a Questo Indgena Av-Guarani no oeste do Paran foi uma discusso sobre o tema no mbito de um projeto desenvolvido no Grupo de Pes-quisa e contou com a participao de ndios para atualizar a discusso sobre essa profunda contradio socioambiental do Paran, a insistncia pela produo de commodities, soja especialmente, contra a natureza e a vida indgena.

    O II Simposio de Polticas Pblicas, Democracia e Poder Judicirio se insere na questo socioambiental em um de seus aspectos mais crticos que a eficcia das normas jurdicas protetoras ou garantidoras de direito por meio do Poder Judicirio. Compete ao Poder Judicirio, exatamente, a interpretao das normas que via de regra se contradizem com os direitos individuais de proprieda-de. Aqui se trata de entender como se comporta o Judicirio frente a alternativas socioambientais.

    Por fim a Mostra de fotografias foi o momento e espao ldico do Con-gresso, no qual, por meio da arte se buscou demonstrar que no s a cincia moderna e suas categorias fechadas so capazes de difundir o conhecimento e a conscincia.

    Foram organizados cinco Grupos de Trabalho que receberam uma enorme quantidade de propostas para apresentao. A riqueza e quantidade das teses apre-sentadas possibilitou a publicao de cinco livros, um para cada Grupo, dos quais este um deles. Alm dos anais do Congresso com todos os resumos, entregues na abertura.

    Os livros publicados e que esto disponveis em forma eletrnica no site www.direitosocioambiental.org, so:

    1) Consolidao e dificuldades para a implementao do socioambientalismo.2) Biodiversidade, espaos protegidos e populaes tradicionais.3) Natureza, populaes tradicionais e sociedade de risco.4) Desafio dos povos indgenas, quilombolas e ciganos no Brasil.5) Polticas pblicas democracia e poder judicirio.A riqueza e profundidade das teses e o debate havido demonstram a cor-

    reo de linha do Congresso que escolheu para a conferncia de abertura o paj Yanomami David Kopenawa, pensador indgena que fala da sociodiversidade e da biodiversidade com tal conhecimento e profundidade que deixa patente a sabedo-ria dos povos que vivem em harmonia com a natureza e com os outros povos. Para

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    a conferncia de encerramento foi escolhida a Prof. Dra. Germana de Oliveira Moraes, da UFC (Universidade Federal do Cear), que tem dedicado seus estudos ao entendimento e possibilidade de aplicao do viver bem proposto como alter-nativa, desde sempre, pelos povos andinos e pelo povo guarani.

    Estes livros so o registro dos debates e so a base para ainda maior apro-fundamento terico que haver no V Congresso de Direito Socioambiental que haver de acontecer no ano de 2015.

    Curitiba, setembro de 2013Carlos Mars

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    PREFCIO Esta obra o resultado das discusses promovidas no Grupo de Tra-

    balho intitulado Natureza, populaes tradicionais e sociedade de risco do IV Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental, organizado pela Pontif-cia Universidade Catlica do Paran (PUCPR).

    Objetivou-se, nesse encontro, promover a anlise de temas relacio-nados sociedade de risco, teorizado por Ulrich Beck, especialmente no que tange as suas consequncias no meio ambiente e nas populaes tradicionais. Cumpre observar, em sntese, que os perigos trazidos pela sociedade de risco, tambm chamados de riscos da modernidade avanada, encontram-se estrita-mente relacionados a uma superproduo industrial de ameaas globais, visto que tais fatos podem atingir a todos. Em outras palavras, as consequncias produzidas j no esto ligadas ao lugar de seu surgimento; ao contrrio, colo-cam em perigo a vida no planeta Terra e, em verdade, em todas as suas formas de manifestao.

    Denota-se que as consequncias do processo de industrializao tornaram-se, em muitos casos, imprevisveis, escapando, dessa maneira, do alcance das instituies vigentes na sociedade industrial. Assim, situaes pre-visveis passaram a se apresentar como situaes de perigo, ou seja, trouxeram baila a condio de incerteza dos efeitos resultantes da interveno tecno-lgica no meio ambiente e impactos negativos natureza e s populaes tradicionais, os quais ainda carecem de solues.

    Tenha-se presente que os perigos e as incertezas no se limitam ape-nas a eventuais possibilidades de acidentes no plano ambiental. Em que pese a crise ambiental seja uma das dimenses desencadeadas pela presena de situaes de risco na atualidade, estas apresentam um carter mais amplo, acarretando tambm alteraes de cunho social.

    Portanto, o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaas pro-vocadas pelo desenvolvimento tcnico-industrial exige a auto-reflexo e uma nova leitura das bases da sociedade contempornea, enfatizando-se a impres-

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    cindibilidade da proteo ambiental e o amparo s populaes tradicionais, as quais so caracterizadas por grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperao social e relaes prprias com a natureza.

    Andria Mendona Agostini e Diogo Andreola Serraglio

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    OS SABERES POPULARES INTERGERACIONAL E O TRABALHO INFANTIL NA CATA DA MANGABA

    Accia Gardnia Santos Lelis1Fbia Carvalho Figueiredo2

    INTRODUO

    A comunidade tradicional das catadoras de mangaba, que desenvolvem suas atividades na Barra dos Coqueiros, foi escolhida para a pesquisa em razo de possuir como caracterstica o extrativismo para fins de subsistncia, e por utilizar a mo de obra familiar. A finalidade do estudo analisar os riscos sociais a que esto expostas crianas e adolescentes, que exercem com suas famlias atividades na cata da mangaba. No estado de Sergipe o extrativismo da mangaba ocorre nos municpios de Aracaju, Indiaroba, Brejo Grande, Estncia, Itaporanga dAjuda, Japaratuba, Japoat, Pacatuba, Pirambu, So Cristvo e Barra dos Coqueiros. Esse ltimo foi o escolhido pela facilidade do acesso local para observao, e em razo da vasta quantidade de trabalhos de pesquisas j realizados no local.

    A escolha do local deu-se em decorrncia das formas de organizao das famlias que vivem em comunidades locais, e exercem suas atividades extrativis-tas de forma associada. Dentro desse contexto possvel analisar a reproduo das relaes sociais dessas famlias, e como elas praticam a cata da mangaba sob o regime de economia familiar. Esse regime permite a reproduo dos saberes

    1Advogada, Mestranda em Direito pela PUC/PR do Programa de Direito Econmico e Socioambiental, linha de Sociedade e Direito, Especialista em Direito Processual pela Universidade Federal de Sergipe, professora do Curso de Direito e Servio Social da Universidade Tiradentes Se, associada do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia-IBDFAM e integrante da Comisso de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB/SE, integrante do grupo de pesquisa Justia, Democracia e Direitos Humanos da PUC/PR e do grupo de pesquisa sobre a mulher e a famlia da Faculdade Tiradentes. E-mail: [email protected]. 2Advogada, Mestranda em Direito pela PUC/PR, do Programa de Direito Econmico e Socioambiental, linha de Sociedade e Direito Especialista em Direito Empresarial pela FECAP, professora do Curso de Direito da Universidade Tiradentes Se. E-mail: [email protected]

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    intergeracional, quando as famlias passam para os filhos o modo de ser e fazer, transferem seus conhecimentos a partir de experincias de vida.

    A categorizao das comunidades tradicionais se d atravs da identidade cultural possibilitada por essa reproduo de saberes, que acarreta um custo so-cial. O custo consiste na violao de direitos fundamentais dos filhos, atravs de suas experincias na cata da mangaba, locus de aprendizagem dos saberes popula-res que lhes so transmitidos por seus pais, desde a tenra infncia. A questo que se perquire com o presente estudo que, a partir da identificao dos riscos socio-econmicos a que esto sujeitos os filhos, das catadoras de mangaba, e analisar se h possibilidade de conciliao entre a preservao de seus direitos fundamentais e o respeito ao direito da reproduo dos saberes populares.

    1 A CATA DA MANGABA E OS SABERES POPULARES.

    No mapa do extrativismo da mangaba em Sergipe, segundo VIEIRA et al. (2010) milhares de famlias que vivem nos tabuleiros costeiros e restingas de Ser-gipe tm no extrativismo sua principal fonte de renda. Afirmam os autores que, so comunidades tradicionais que habitam a regio h dcadas, mas que na maio-ria nunca tiveram a posse da terra onde coletam recursos naturais. Para conhecer melhor essa realidade foi realizada pesquisa de campo no Povoado Capo, na ci-dade de Barra dos Coqueiros, tendo contato direto com as catadoras de mangaba.

    As catadoras de mangaba integram uma comunidade tradicional, respons-veis pela produo de saberes e formas de manejo com as mangabas. A regio esco-lhida, localizada no municpio da Barra dos Coqueiros tem um alto potencial de extrativismo da mangaba, o que a torna importante sob o aspecto cultural, uma vez que mais de sessenta famlias vivem da cata da mangaba. O extrativismo da man-gaba no estado de Sergipe ocorre em terreno prprio das catadoras ou em terreno alheio, com a permisso do proprietrio. Quando o proprietrio no autoriza a cata da mangaba, o extrativismo depende de desapropriao do terreno, que representa uma das principais questes que ameaam a sua preservao. Apesar de ser uma questo de grande importncia para a preservao dos saberes e da biodiversidade da cata da mangaba, essa no ser abordada no presente estudo, por necessitar um estudo mais aprofundado e mais detalhado, a ser realizado em outro momento.

    As catadoras da mangaba que exercem suas atividades no Povoado Ca-po so consideradas como comunidade tradicional, em razo de suas prticas e experimentaes culturais a ele relacionados. Adequam-se, assim, aos requisitos estabelecidos pela Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais, Decreto n. 6.040/2007, lanada em 7 de fevereiro de 2007 que a define como,

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    Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam terri-trios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, so-cial, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio.

    A rea do extrativismo da mangaba no nordeste, tpico das comunidades tradicionais pela conservao dos recursos genticos pela populao, que segundo Mota e Silva Jnior apud Silva Jnior e Ana Ldo so As reas de boa conservao dos recursos genticos, em que h uma alta densidade de plantas no mesmo espa-o e a populao conhece todas as fases e faces do processo extrativista, alm da ps-colheita e comercializao. (SILVA JNIOR; LDO, 2006, p.69). Por ser o extrativismo a principal fonte de renda dessa populao as comunidades extrati-vistas se organizaram criando o Movimento das catadoras de mangaba de Sergipe. Atualmente o movimento tem projeto patrocinado pelo programa Petrobrs De-senvolvimento & cidadania, em parceria com a Universidade Federal de Sergipe, denominado projeto catadoras de mangaba, gerando renda e tecendo vida em Sergipe, que segundo BEZERRA; SODR; BRITO (2012), o projeto tem o objetivo de contribuir para o fortalecimento e sustentabilidade das comunidades extrativistas, por meio da difuso de tecnologia social e auto-organizao de grupos.

    Todas essas informaes evidenciam que a cata da mangaba est inserida em comunidades tradicionais que reproduzem seus saberes. Os saberes na explo-rao na cata da mangaba, que segundo SILVA JNIOR ET AL. (2006) deve ser feita de forma rstica, proporcionando uma maior produtividade. Para os autores as prticas culturais residem ainda nas podas, no controle de plantas invasoras, e na cobertura morta, em razo da mangabeira encontrar-se ainda em fase de domesticao. Essas tcnicas podem ser identificadas como saberes tradicionais, ou conhecimentos que advm do saber que nada tem a ver com conhecimento cientfico. Para CUNHA (2009, p. 301),

    O conhecimento cientfico se afirma, por definio, como verdade abso-luta, at que outro paradigma o venha sobrepujar, como mostrou Thomas Kuhn. Essa universalidade do conhecimento cientfico no se aplica aos saberes tradicionais - muito mais tolerantes, que acolhem frequentemente com igual confiana ou ceticismo explicaes divergentes, cuja validade entendem seja puramente local.

    Complementa CUNHA (2009, p.306) que costuma-se chamar de saber ecolgico tradicional ao conhecimento que populaes locais tm de cada detalhe do seu entorno, do ciclo anual, das espcies animais e vegetais, dos solos etc. A partir desses conceitos, conclui-se que a tcnica utilizada no extrativismo da man-

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    gaba trata-se de conhecimentos ou saberes tradicionais, que merecem reconheci-mento para a sua preservao e valorizao enquanto tais. Para SILVA e PILAU (2013), citando CALDAS os conhecimentos ou saberes tradicionais no podem ser atribudos a um nico indivduo e sim a uma coletividade, e representam, pois, direitos coletivos, e se ope ao carter individualista, privatista e exclusivista dos direitos de propriedade.

    A renda das famlias da comunidade de Capo no exclusiva da cata da mangaba, decorrendo tambm de outras atividades, como a pesca e a cata do caranguejo. Segundo BEZERRA; SODR; BRITO (2012) a grande importn-cia que o extrativismo da mangaba tem na renda no aspecto cultural de mais de sessenta famlias da zona rural. Apesar de toda famlia sobreviver da cata da mangaba, quem executa essa atividade, na maioria dos casos a mulher. A diviso das tarefas peculiar comunidade tradicional, ficando a cata das mangabas a cargo das mulheres, acompanhada de seus filhos menores, e a quem cabe o dever de cuidar. Os homens geralmente trabalham em atividade pesqueira e na cata do caranguejo. Os papeis ficam bem definidos, devendo os filhos acompanhar as mes, em suas atividades, ajudando-lhes, e aprendendo os segredos na cata da mangaba, surgindo ai, o que se denomina de trabalho infantil.

    2 O TRABALHO INFANTIL COMO QUESTO CULTURAL NA CATA DA MANGABA

    As crianas e os jovens, nas comunidades tradicionais recebem dos seus pais o conhecimento sobre a cata da mangaba, tornando-o um instrumento de trabalho. A definio de papeis na cata da mangaba, onde se faz presente questo de gnero, fundamental para acarretar a insero de crianas na cata da manga-ba. Culturalmente o papel da mulher desempenhar as obrigaes domiciliares, o cuidado da casa, dos filhos, e, o trabalho mais pesado atribudo aos homens. H uma definio dos papeis, incumbindo s mulheres cata da mangaba, e aos homens a pesca e a cata do caranguejo. A incumbncia da mulher na cata da mangaba no a exime das obrigaes domiciliares e do cuidado com os filhos. Por essa razo, os filhos acompanham as mes em seus afazeres, o que permite a sua incluso no mundo trabalho.

    A realidade do trabalho infantil nas comunidades tradicionais tem caracte-rsticas prprias, diferenciadas do trabalho infantil da zona urbana. A insero de crianas no mundo do trabalho se d de forma natural e paulatina, sem que isso seja percebido enquanto trabalho pelas famlias. As mes carregam seus filhos, levando-os para a cata da mangaba, no para trabalharem, mas para ocuparem o

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    tempo, para estar sob seus cuidados, como forma de insero social e pertenci-mento ao grupo ao qual esto vinculados. A eles so atribudas outras funes, para que os mesmos no fiquem ociosos, enquanto elas trabalham. Passam, assim, a lhes ensinar o conhecimento sobre o uso de equipamentos da cata, como por exemplo, preparar os ganchinhos para tirar a mangaba do p. (BEZERRA; SO-DR; BRITO (2012). No documentrio, Catadoras de Mangaba: gerando renda e tecendo vida em Sergipe (ASCANAI, s.d), o trabalho infantil evidenciado nas falas das catadoras de mangaba, que mostram o incio do extrativismo, com incio desde a infncia e que lhes acompanha at a senilidade. Nas falas das catadoras a questo intergeracional do trabalho evidencia-se pela afirmao que o trabalho foi passado para seus filhos e netos, a exemplo da fala de D. Elena ao dizer que come-ou a cata da mangaba aos dez anos, e j ensinou essa a sua filha. A fala que mais enaltece a questo intergeracional a da Sra. Isa de Japoat/SE, ao relatar que:

    [...] vivo da mangaba desde os quatro anos de idade. Via minha me ir, minha av, ns ia tambm. Naquela poca era dificulutoso, no tinha bol-sa famlia, bolsa de nada. [....] Ia catar mangaba, levava um cesto peque-nininho na cabea e ia vender em Pacatuba. [...] As duas filhas tambm entraram no mesmo ramo. [...] e os netos tambm. (sic) (ASCANAI, s.d)

    O trabalho infantil nas comunidades tradicionais considerado, assim uma questo econmico-cultural. Econmico pela necessidade de toda famlia na participao do extrativismo. A necessidade econmica da complementao da renda fundamental, uma vez que as mulheres colaboram com seus maridos no sustento do lar, atravs da cata da mangaba. Enquanto os maridos trabalham na pesca, elas tm a funo de realizar a cata da mangaba, uma vez que podem conciliar tal atividade com o cuidado da casa e dos filhos.

    Para SARTI (2009, p.52/53), a famlia no apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o ncleo da sua sobrevivncia material e espiritual, o instru-mento atravs do qual viabiliza seu modo de vida, mas prprio substrato de sua identidade social. Alm disso, para SARTI (2009, p. 104), o trabalho dos filhos faz parte do compromisso moral entre as pessoas na famlia. Afirma a autora que:

    V-se, assim, que fechando o crculo do valor do trabalho referido fa-mlia para os pobres, o trabalho dos filhos- crianas e jovens-faz parte do prprio processo de sua socializao como pobre urbanos, em famlias nas quais dar, receber e retribuir constituem as regras bsicas de suas relaes. (SARTI, 2009, p 106)

    Desta forma, constata-se que h na questo cultural, definio de papeis, questo de gnero presente na cata da mangaba. As crianas so envolvidas nesse

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    ambiente por fatores culturais, pelo envolvimento sociocultural que envolve a famlia. A participao de crianas no trabalho para as famlias pobres ocorre no s pela necessidade econmica, mas tambm pelo valor do trabalho como instru-mento de integrao e socializao familiar.

    3 O RISCO SOCIOAMBIENTAL DECORRENTE DO TRABALHO INFANTIL

    A integrao social dos filhos das catadoras de mangaba atravs do trabalho acarreta riscos socioeconmicos, inerentes condio de vida que lhes imposta naturalmente para acompanhar suas genitoras na realizao do extrativismo. A interao familiar atravs do trabalho pressupe um nus aos filhos, que para estarem sob os cuidados de suas mes e por elas serem educados, devem acompa-nha-las na rdua tarefa da cata das mangabas. rdua em razo do horrio em que realizada, que se inicia na madrugada e pela longa jornada de quase dez horas, no mato, sob o sol, a chuva, o vento e o frio. Os perigos da noite e da mata como insetos, cobras e outros animais. Alm dos riscos decorrentes da natureza, esto presentes outros riscos decorrentes do trabalho, com o uso dos equipamentos para a execuo da cata da mangaba, com o uso dos ganchinhos e o transporte da carga da mangaba at a suas residncias. Todos esses riscos decorrentes do ambiente do trabalho podem acarretar danos sade das crianas e adolescentes. Riscos, segundo Yvette Veyret (2007, p.30)

    a percepo de um perigo possvel, mais ou menos previsvel por um grupo social ou por um indivduo que tenha sido exposto a ele. (...) a representao de um perigo ou alea (reais ou supostos) que afetam os alvos e que constituem indicadores de vulnerabilidades.

    Alm dos riscos sade decorrentes dos fatores ambientais, tambm esto presentes os riscos sociais, uma vez que em razo do horrio e da jornada de trabalho, h o impedimento da frequncia escolar, com privao e/ou limitao educao, convivncia social, alm do risco ao desenvolvimento fsico e ps-quico das crianas. Em face da questo cultural que envolve a cata da mangaba, com a reproduo dos saberes e os valores que lhes so incorporados, o trabalho de crianas perpetua a misria e a pobreza, pela privao dessas pessoas terem oportunidades de melhores condies de vida, impedindo por consequncia o desenvolvimento econmico da comunidade.

    Os riscos so inerentes preservao da cultura e saberes das comunidades tradicionais, pertinente garantia de direitos de crianas e adolescentes. A neces-sidade da sobrevivncia humana pressupe uma sociedade de risco. O trabalho

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    dos filhos das catadoras de mangabas tm por objetivo o crescimento econmico da famlia e a preservao da sua cultura. A busca desse crescimento acarreta da-nos sociais, nos modos de vida das comunidades tradicionais, na perspectiva do sistema jurdico de uma sociedade hegemnica. A garantia de direitos de crianas e adolescentes, determinado pelo sistema jurdico nacional e internacional fra-gilizado pelo modo de vida das comunidades tradicionais. Essas comunidades so causadoras dos riscos que a afetam, em conformidade com os ditames legais em vigor, provocando questionamentos sobre a autonomia de soluo.

    Para Ulrich Beck (2010), uma sociedade de risco decorre das transforma-es, e afetam naes e classes sociais sem respeitar qualquer fronteira. Para o autor a sociedade global de risco se verifica tambm nos riscos diretamente liga-dos a pobreza, vinculando problemas em nvel de habitao, alimentao, perda de espcies e da diversidade gentica, energia, indstria e populao. Na viso de BECK (1998) em busca do progresso a sociedade admite os riscos ao afirmar que os riscos so determinados por decises da sociedade, ou, mais especificamen-te, no que se concentram em decises tcnico-econmicos vantagens e oportuni-dades e aceitar os perigos como o lado escuro simplesmente de progresso.

    No entender de BECK (1998) risco a abordagem moderna de prever e controlar as consequncias futuras da ao humana, as consequncias no inten-cionais da modernizao radicalizada. Nessa viso o autor compreende o risco a partir de atitudes individualistas, da auto-realizao, da realizao individual. No caso das comunidades tradicionais identifica-se o interesse coletivo pela preserva-o da cultura, dos saberes e experincias. Todos os riscos so compensatrios na busca da auto-preservao.

    As condies de trabalho no extrativismo da mangaba no so adequadas para garantir as crianas e aos adolescentes o exerccio dos seus direitos. Na rea-lidade elas no so apropriadas para garantir nem os direitos dos adultos, pois, a estrutura de trabalho de uma forma geral se mostra violadora do direito sade fsica e mental do trabalhador.

    As condies acima apresentadas tipificam a prtica de trabalho infantil em suas piores formas, conforme o artigo 3, alnea d da Conveno 182 da Organizao Internacional do Trabalho-OIT que estabelece trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstncias em que so executados, so suscetveis de prejudicar a sade, a segurana e a moral da criana. 3 Constata-se a norma de proteo internacional aos direitos humanos de crianas e adolescentes. Quanto violao de direitos, no dizer de ALMEIDA (1996, p. 115) O Direito es-sencialmente violvel. Ele existe em funo da violao das regras. Quando cada

    3 Conveno 182 e a Recomendao 190 da OIT sobre a proibio das Piores de Trabalho Infantil e a Ao Imediata para sua Eliminao, promulgadas pelo Decreto Presidencial n 3.597 de 12/09/2000. Texto dispo-nvel em . ltimo acesso em 11/06/2013.

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    individuo respeitar os demais de maneira total, as regras jurdicas deixaro de ser necessrias.

    Nas condies de trabalho no extrativismo da mangaba evidencia-se a vio-lao dos direitos fundamentais das crianas, quais sejam o direito sade, a edu-cao, ao desenvolvimento sadio e o direito ao lazer. O ambiente e as condies de trabalho violam o direito sade, no s da criana, mas de todos os trabalha-dores, e em especial da criana em razo da sua vulnerabilidade fsica e mental. O direito sade tambm violado, em razo do horrio de trabalho, realizado das 02:00 ou 03:00 horas at as 12:00, impedindo a frequncia e/ou aproveitamento escolar. Da mesma forma, prejudica o lazer, uma vez que a criana privada de tempo de brincar, encarregada de obrigaes, e o tempo que sobra do trabalho, s permite o tempo para descansar. Sobre a garantia dos direitos fundamentais na relao de trabalho rika Yumi Okimura in PIOVESAN; FACHIN (2012, p.308) afirma que Assim, necessrio garantir no apenas o trabalho, mas tam-bm a existncia de trabalho com garantia dos direitos fundamentais previsto no ordenamento jurdico.

    Quando h a violao dos direitos fundamentais na relao de trabalho, segundo a OIT, o trabalho no considerado trabalho decente. Segundo a OIT trabalho decente aquele desenvolvido em ocupao produtiva, justamente re-munerada e que se exerce em condies de liberdade, equidade, seguridade e respeito dignidade da pessoa humana. 4 Dignidade Humana para SARLET (1988, 51/52) no pode ser definida de forma fixista, ainda mais quando se verifica que uma definio dessa natureza no harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democrticas contempo-rneas. Na definio de SARLET (1998, p.73),

    [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrnseca e dis-tintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegu-rem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desu-mano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover sua participao ativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres que integram a rede da vida.

    A preocupao da OIT, quando estabeleceu atravs da Conveno 182 que a violao do direito sade como uma das piores formas de trabalho infantil, foi no intuito de garantir os direitos fundamentais, o respeito dignidade hu-

    4 OIT. Documento GB.280/WP/SDF/1, de maro de 2001, Disponvel em http://www.ilo.org/public/en-glish/standards/relm/ilc/ilc89/pdf/pr-1.pdf Acesso em 11 de julho de 2013 (traduo livre)

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    mana, e o respeito, ao desenvolvimento da criana, considerada pessoa ainda em formao. Essa proteo internacional fundamental para garantia dos direitos humanos de crianas e adolescentes diante da explorao, pois na viso de Flvia Piovesan (2012, 123),

    A necessidade de uma ao internacional mais eficaz para a proteo dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalizao desses direitos, culminando na criao da sistemtica normativa de proteo in-ternacional, que faz possvel a responsabilizao do Estado no domnio in-ternacional quando as instituies nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.

    Apesar de todas as condies de suposta explorao de crianas e jovens, da violao dos direitos fundamentais em razo do trabalho, as comunidades de catadoras de mangabas veem como natural a insero de seus filhos na cata da mangaba, como forma de socializao, fazendo essa parte de sua cultura, alm de uma necessidade de sobrevivncia.

    4 A INTERVENO DO ESTADO PARA A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    A proibio do trabalho infantil est prevista na Constituio Federal e fruto de vrios estudos que identificaram os danos causados em razo do trabalho precoce, com riscos para o desenvolvimento fsico, psquico, moral e social de crianas e adolescentes. Alm do disposto no artigo 7, inciso XXXIII da Cons-tituio Federal, cuidou ainda o legislador constitucional de enfatizar a proibio do trabalho infantil, ao estabelecer a idade mnima de 16 anos para o trabalho, exceto na condio de aprendiz a partir dos 14 anos, conforme estabelecido no art. 227, pargrafo 3, na forma de proteo especial. Por essa razo, esse trabalho desenvolvido por crianas e adolescentes proibido, em razo do princpio da proteo integral, para garantia dos direitos humanos.

    As normas nacionais e internacionais proibitivas do trabalho infantil bus-cam a garantia dos direitos da criana, decorrentes do processo de formao do conjunto da classe trabalhadora. Faz parte da histria mundial que a busca do desenvolvimento econmico acarretou prejuzo ao exerccio de direitos dos tra-balhadores, em especial de mulheres e de crianas. Entretanto, a partir de vrios estudos j realizados, foi possvel compreender que o trabalho infantil no ape-nas uma questo econmica, e identificaram que a permanncia de crianas que trabalham com os pais, decorre de uma questo cultural.

    A questo de embate a no percepo de riscos pela comunidade tradi-

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    cional em razo do trabalho realizado por crianas na cata da mangaba. Para Paul Slovic, citado por ZANIRATO et al. (2008), os riscos no possuem um atributo especfico, relacionado a um hazard. Cada fato define, pelo juzo humano, o risco e sua relao com o hazard, a partir do conhecimento sobre ele. ZANIRATO (2008) acrescenta ainda, a partir de Mary Douglas que o risco no um conceito objetivo e mensurvel, mas sim como algo construdo social, cultural e politica-mente. A percepo transversal de riscos sociais diante do trabalho infantil pelas comunidades tradicionais merecedora de respeito e considerao pelo sistema jurdico, em razo do respeito pluralidade e as sociedades no-hegemnicas. O trabalho dos filhos para os pais no significa s o complemento da renda fami-liar, mas tambm a integrao e socializao dos filhos, a reproduo dos valores culturais, valores esses no absorvidos pela legislao. A viso de Amilton Bueno de Carvalho in RUBIO; FLORES; CARVALHO (2002, p. 131), sobre a crise da legalidade que,

    Cada vez mais fica claro entre os pensadores do direito que o princpio da legalidade est em profunda crise: a lei no consegue dar respostas supor-tveis s situaes que ela busca prever- seja pela inflao legislativa, pelo mau uso (e criao), pela impossibilidade lgica de alcanar a realidade que se altera brusca e incontrolavelmente, pela inconfiabilidade no legislador.

    No se vislumbra um liame satisfatrio entre o interesse da comunidade e a legislao que probe o trabalho infantil. O interesse comunitrio, que se re-veste na preservao dos saberes, compreende o que se denomina biodiversidade. CARVALHO (2010, p. 70) define biodiversidade como a associao de vrios componentes hierrquicos, quais sejam, ecossistemas, comunidades, espcies, po-pulaes e genes em uma rea definida. Os saberes do extrativismo da mangaba representam a interao homem e natureza.

    A resposta a estas indagaes complexa. Para CARVALHO (2010, p.447) ao afirmar que o objetivo conciliar o intrnseco valor dos seres humanos com o das outras espcies e do meio ambiente. Acrescenta o autor que o respeito pelo intrnseco valor da vida poderia guiar a relao entre o individuo e a sociedade por um lado e a relao entre os seres humanos e o ambiente por outro (CAR-VALHO, 2010, p.447).

    Em uma posio firme e conciliadora encontra-se PIOVESAN (2012, p. 49/50), que apresenta uma soluo que harmoniza os direitos humanos e o res-peito cultural. Ao fazer um dilogo entre os que sustentam cada uma das corren-tes, chega autora a concluso que se apresenta mais razovel. Fazendo uma an-lise a partir de autores como Boaventura Souza Santos, Joaquim Herrera Flores, Bhikhu Parekh, Amatya Sen e outros, a autora afirma que a abertura do dilogo entre as culturas, com respeito diversidade e com base no reconhecimento do

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    outro, como ser pleno de dignidade e direitos, condio para a celebrao de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observncia do mnimo tico irredutvel, alcanado por um universalismo de confluncia.

    5 CONCLUSO

    O estudo mostrou que o sistema patriarcal existente nas comunidades tra-dicionais determina os papeis a serem desempenhados por cada membro da fam-lia. Nesse sistema, atribuda mulher a responsabilidade dos afazeres domsticos e os cuidados com os filhos, que por essa razo devem acompanh-la, inclusive na cata da mangaba. Essa participao envolve a realizao de trabalho, que podem acarretar danos sade, ao desenvolvimento fsico e moral, formao intelectu-al, considerados riscos socioeconmicos. Os riscos presentes no extrativismo da cata da mangaba, para as comunidades, so naturais e dizem respeito s experin-cias inerentes sociedade em que vivem e necessrios sua preservao.

    O paradoxo que se estabelece entre a preservao das comunidades, seus saberes e experincias, importantes para a sociedade global, e por isso protegidos legalmente, e a garantia dos direitos humanos de crianas e adolescentes inseridos nesse contexto. A proibio do trabalho infantil nessa comunidade por essa razo uma questo de impacto sociocultural. Salvaguardar os interesses da criana e do adolescente trabalhador o dever do Estado, e objetivo das normas de pro-teo criana, tanto a nvel nacional como internacional.

    O problema do trabalho infantil nas comunidades tradicionais comple-xo, e distingue-se, portanto, do trabalho na zona urbana. No se pode, no entan-to, em razo da proteo da cultura e dos saberes das comunidades tradicionais, desprivilegiar o interesse da criana, privando-as dos seus direitos fundamentais. Ao mesmo, tempo em que se pretende respeitar a cultura, como forma de garantir a proteo das comunidades e de suas experincias culturais, pretende-se respeitar os direitos de crianas e jovens que l residem, e que no podem ter seus direitos renegados, uma vez que esses so indisponveis e irrenunciveis.

    O entrave entre os interesses que se contrape entre a cultura das comuni-dades e o trabalho infantil, vistos pelas famlias como necessrio preservao de sua identidade, e os direitos fundamentais de crianas e adolescentes foi discus-so que se pretendeu no presente trabalho. A soluo que se apresenta razovel o no radicalismo das posies, onde possa ser considerada a pluralidade cultural, os valores ticos e morais dos grupos no hegemnicos, e que os direitos humanos sejam considerados nessa amplitude. Entretanto, nenhum valor cultural pode se sobrepor a dignidade humana. Para garantia dessa, pressupe a preservao e res-peito de direitos essenciais de crianas e jovens, que so irrenunciveis. Conclui-

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    se, assim que vivel a harmonizao dos interesses, preservando a cultura e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos humanos de crianas e adolescentes, criando-se condies dignas de trabalho.

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    ENTRE O DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE: A POBREZA COMO

    PARADIGMA DE INJUSTIA AMBIENTAL

    Amadeus Elves Miguel5Guilherme Nazareno Flores6

    INTRODUO

    O meio ambiente, ou ecossistema em que vivemos est constantemente a se transformar devido a ao direta do homem sobre ele. A interveno humana sobre o ambiente trouxe e continua a trazer consequncias graves que se tornam evidentes a diferentes escalas. A intensidade desta interveno, o uso contnuo e crescente dos recursos no renovveis tal que muitas vezes, a destruio de recur-sos ultrapassa a prpria capacidade de recuperao dos ecossistemas eno permite que a natureza se renove. Isto parece ser uma das caractersticas mais flagrantes da atualidade.

    O Desenvolvimento industrial (sculo XVIII) trouxe mais ameaas do que se esperava para o meio ambiente. A degradao generalizada fez conscientizar pela lutar contra a m qualidade do ar, da gua, da destruio de florestas, da extino de vrias espcies de animais, buraco da camada de oznio e efeito estu-fa, dentre outras questes. A partir dos anos de 1970 com o avano da cincia e da tcnica, comeou a tornar-se mais visvel a desvantagem da industrializao, devido ao empobrecimento da biodiversidade, poluio e alteraes climticas, a

    5 Mestrando em Cincia Jurdica pela Universidade do Vale do Itaja UNIVALI, em, Itaja, Santa Catarina, Brasil, linha de pesquisa Direito Ambiental, Sustentabilidade e Transnacionalidade, Ps-graduando em Docn-cia do Ensino Superior pela UCDB. E-mail: [email protected] 6 Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itaja UNIVALI, em, Itaja, Santa Catarina, Brasil com linha de pesquisa em Direito Ambiental, Sustentabilidade e Transnacionalidade. Policial Militar e Professor Universitrio. E-mail: [email protected]

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    exploso dos grandes centros urbanos, a escassez de recursos naturais, a incapaci-dade do ecossistema planetrio para reciclar resduos, a contaminao das guas dos rios e dos oceanos.

    O modelo de desenvolvimento baseado no consumo excessivo de recursos naturais levou a um desastre energtico acima do suportvel pelo planeta causan-do um enorme cenrio de poluio do ar e da gua, ameaas natureza, destrui-o da camada de oznio, aquecimento global, dentre outros, o que mais tarde Hobsbawn denominou de era dos extremos 7.

    1 DA RELAO DO HOMEM COM O AMBIENTE AO LIBERALISMO ECONMICO: REFLEXOS AO MEIO AMBIENTE

    As relaes sociais so movimentos cclicos que se alteram constantemente de acordo com diversas circunstncias, sendo necessrio um esforo para compre-ender os contextos em que elas ocorrem. Nestas relaes, deste os tempos mais remotos, homem e natureza mantm-se em conflito. Na antiguidade a postura do homem em relao a natureza era exclusivamente antropocntrica8 em que o meio ambiente lhe servia (SOARES, 2007).

    Neste conflito de interesses, dicotomia entre homem versus natureza, inte-grao versus explorao, a ideia da acumulao de capital aos poucos vai minan-do o pensamento social tornando-se uma verdade absoluta, e um objetivo perse-guido por muitos. Assim, o homem se desenvolveu e com ele sua relao com o meio ambiente e, num salto atravs da linha do tempo, de se reservar aos sculos que testemunharam as revolues industriais a histria deste desenvolvimento e da relao do homem com o meio ambiente, eis que deste momento histrico que o nascimento de cidades, na maioria das vezes de forma desordenada9 tem uma maior influncia no modo de vida, cultura, atitudes que vivemos hoje.

    7 O Autor referia-se a poca mais extraordinria da humanidade, caraterizada por grandes avanos de ordem cientfica, tecnolgica, conquistas materiais, econmicas e sociais, ao mesmo tempo em que ocorriam calamida-des de grandes dimenses, pandemias alarmantes, destruio e insustentabilidade global e problemas que trans-cendem a agendas domsticas dos Estados. In HOBSBAWN, Eric. Globalizao, Democracia e Terrorismo. Trad. Jos Viegas. So Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.9.8 A viso kantiana do mundo fundou-se no antropocentrismo, cuja teoria apregoa que os objetos so contami-nados pela razo humana, criando a ideia de que o ser humano dono do meio em que vive e ETA acima dos recursos naturais, criando indivduos como um fim em si mesmos, indiferentes vontade coletiva e do meio ambiente circundante.(GORCZEVSK e MORAIS, 2011).9 O xodo rural, a descoberta das mquinas a vapor, a qualificao da mo de obra, as relaes comerciais e tra-balhistas promoveram a sedimentao de uma sociedade socioambientalmente deformada, no s do ponto de vista estrutural, mas tambm da cultura, da educao, da racionalidade crtico-reflexiva, contm determinantes que no podem ser resumidos unicamente a um problema poltico-organizacional. A excluso e a desordem so-cial possuem razes muito mais amplas do que puramente uma negligncia nas formas de administrar a poltica pblica de saneamento, a habitao popular, os planos gestores, desafetao das reas verdes etc. (BALDO e CUSTDIO, 2011)

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    Neste sentido, todas las civilizaciones han desarrollado medios, ms o me-nos eficaces, ms o menos agresivos, para poner a sus entorno natural al servicio de sus objetivos colectivos o individuales. Estas intervenciones han supuesto en ocasiones el deterioro o desaparicin de ecosistemas ms all de lo que convena a las mismas colectividades que las acometan, producindose la consciencia de que, en su proceso de poner la naturaleza a su servicio, comprometan la capacidad de sta de proveer aquellos recursos que necesitaban (FERRER, 2002). O perodo de revolues atri-buiu ao mundo um novo rumo em que a industrializao e o capital tomaram as rdeas do sistema passando a ditar as regras e trazendo tona uma infinidade de problemas socioambientais decorrentes deste desenvolvimento.

    O impacto do homem sobre o meio ambiente, para Chiras, depende de variveis histricas, como o modo de produo, a estrutura de classes, os recur-sos tecnolgicos e a cultura de cada sociedade ao longo do tempo. A Revoluo Industrial estabelece a necessidade social da expanso permanente do mercado, como forma de garantir a acumulao de capital que realimenta a economia capi-talista. Os recursos naturais no renovveis minrios, combustveis fsseis, por exemplo - passaram a ser consumidos mais aceleradamente a partir esta poca. Fauna e flora passam a ser ameaadas e recursos como gua, solo e ar passam a ser alvos de poluio trmica, visual, sonora, radioativa. A concepo de crescimen-to ilimitado gerado neste contexto histrico influenciando pases de diferentes orientaes polticas e ideolgicas (CHIRAS, 2011).

    Assim, desta construo se pode perceber um contexto no qual o capi-tal passou a imperar pela necessidade de sua acumulao, o que se constitui no iderio capitalista. Nesta perspectiva, o homem, ao longo da evoluo socioeco-nmica explorou, interferiu e modificou drasticamente o meio ambiente (GOR-CZEVSKI e MORAIS, 2011). Por consequncia, dada a acentuada degradao presenciada at ento, este incremento vertiginoso na forma de explorao de recursos naturais passa a ameaar aquele que se via como senhor e proprietrio dos bens ambientais.

    Nestes termos, vale dizer, que (...) a utilizao ilimitada dos recursos natu-rais revelou-se irracional, pela tamanha degradao, pois o homem no pode ser visto como ser supremo e isolado do meio, eis que representa um todo maior, ou seja, como refere Capra, a vida composta por sistemas vivos, em que o homem apenas uma parte desse sistema, e por sua condio racional possui capacidade de organizao poltica, tecnolgica, cientfica e econmica, sem necessidade de desligar-se do ecossistema vivo do qual faz parte (GORCZEVSKI e MORAIS, 2011).

    O homem parte do meio em que vive, no podendo dissociar-se dele, contudo, notvel que o desenvolvimento do processo de industrializao e da era tecnolgica, o homem no demorou a contaminar o ambiente em que vive

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    como se dele no fizesse parte. Tal fenmeno talvez ocorra pela falta de percepo de sua posio no planeta e da noo da ideia de que os bens ambientais no so finitos. A atividade humana diga-se negligente busca pelo lucro gera pobreza e riqueza, formando uma sociedade dividida em dois extremos, mas que convi-vem lado a lado nos mesmos conglomerados urbanos, contaminando as guas, o ar que consome, o solo do qual retira seus alimentos dentre outros.

    Redundante dizer que este cenrio de explorao econmica de recursos naturais se constitui no mais significativo ponto demarcatrio a partir da era industrial, ou seja, da implantao definitiva do que se convencionou chamar capitalismo industrial (BREITENBACH e REIS, 2011).

    Mais adiante, a ps-modernidade desponta, na era da velocidade, com uma forte descrena no poder absoluto da razo, com desprestgio ao Estado, na sua forma tradicional Internacionalmente, decai a noo tradicional de sobera-nia, pois as fronteiras perdem resistncia em favor da constituio de expressivos blocos polticos e econmicos, intensificao e circulao de capitais (PEREIRA, 2003). O fenmeno da globalizao surge com o sculo XXI, evidenciando a desigualdade das relaes. Alm disso, presencia-se grande avano da cincia e da tecnologia (BREITENBACH e REIS, 2011). Nesta seara, todo o contexto apresentado anteriormente esta embasado no fenmeno da transnacionalizao10 presente no novo contexto mundial, surgido principalmente a partir da intensifi-cao das operaes de natureza econmico-comercial no perodo do ps-guerra fria, caracterizado especialmente pela desterritorializao, expanso capitalis-ta, enfraquecimento da soberania e emergncia de ordenamentos jurdicos gera-dos margem do monoplio estatal (GIDDENS, 1991).

    A ps-modernidade deflagrou uma mudana no mundo. Se no uma mu-dana geogrfica, mas uma nova forma nas relaes desenvolvidas entre pessoas e estados e, principalmente no modelo adotado em que vigora a mundializao da economia, a globalizao, a queda de fronteiras, baseada em polticas neoliberais.

    10 A transnacionalidade insere-se no contexto da globalizao e liga-se fortemente concepo do transpasse estatal. Enquanto globalizao remete ideia de conjunto, de globo, enfim, o mundo sintetizado como nico; transnacionalizao est atada referncia do Estado permevel, mas tem na figura estatal a referncia do ente em declnio. Com efeito, no se trata mais do Estado-territorial, referncia elementar surgido aps a Paz de Ves-tflia e que se consolida at o Sculo XX, viabilizando a emergncia do direito internacional sob amparo da ideia soberana. Esse um quadro alterado que se transfigura de internacional (inter-naes) para transnacional (trans-naes), de soberania absoluta para soberania relativa, de relaes territoriais para relaes virtuais, de trnsito entre fronteiras para trnsito em espao nico. A desterritorializao (por exemplo, quando a produo de um bem ocorre em vrios pases) uma das principais circunstncias que molda o cenrio transnacional, especial-mente porque diz respeito ao aspecto alm fronteira, pois no o espao estatal e tambm no o espao que liga dois ou mais espaos estatais. O territrio transnacional no nem um nem outro e um e outro, posto que se situa na fronteira transpassada, na borda permevel do Estado. Com isso, por ser fugidia, borda tambm no , pois fronteira delimita e a permeabilidade traz consigo apenas o imaginrio, o limite virtual. In Transnacio-nalizao: o emergente cenrio do comrcio mundial. Revista porturia Economia & Negcios. Disponvel em http://www.revistaportuaria.com.br/site/?home=artigos&n=CCNU&t=transnacionalizaco-emergente-cenario-comercio-mundial. Acesso em 20.07.2013

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    Assim, a expanso capitalista acabou por enfraquecer, por mitigar a soberania dos Estados e possibilitando uma queda de fronteiras, onde tudo pode circular mais livremente fortalecendo o capital fazendo o mundo caminhar no sentido da consolidao deste.

    Para Cruz e Bodnar, o cenrio transnacional da atualidade pode ser ca-racterizado como uma complexa teia de relaes polticas, sociais, econmicas e jurdicas, no qual emergem novos atores, interesses e conitos, os quais deman-dam respostas ecazes do direito. Estas respostas dependem de um novo paradig-ma do direito que melhor oriente e harmonize as diversas dimenses implicadas (CRUZ e BODNAR, 2011). Esta transnacionalizao, somada ao fenmeno da globalizao econmica, pode ser entendida como uma internacionalizao da economia na qual se pode destacar a forma instantnea com que se alastra uma informao, as diversas possibilidades para a imediata comunicao, a cone-xo de mercados e de economias de pases e blocos econmicos. A globalizao oportunizou humanidade um imenso desenvolvimento tecnolgico at ento hollywoodiano, hoje tomado com uma panaceia adotada pela civilizao para justificar o uso, consumo e criao de bens de consumo e assim, proporcionar bem estar ao homem.

    Some-se a isto o fato de que a ideia precpua trazida pela categoria globali-zao era a de que nas indstrias as novas tecnologias, por si s, seriam respons-veis pelo aumento da produtividade e pela obsolescncia da mo de obra humana, o lucro, a reduo das desigualdades. Isto ocasionou o aumento da desigualdade social em que uma porcentagem gigantesca do capital estava nas mos de uma nfima minoria de pessoas e o restante deveria ser dividido pelos demais, ocasio-nando misria, desemprego, desigualdade social e obviamente de degradao am-biental. Na busca pelo lucro, as empresas precisam retirar da natureza a matria prima para construrem seus produtos. Para tanto, precisaro de energia eltrica, custear funcionrios, ter uma estrutura e ento precisaro vender seus produtos, o que o faro atravs de uma empresa de marketing e propaganda. Em pouco tempo o produto, produzido em quantidade muito superior demanda, estar nas residncias de milhares e milhares de pessoas atravs de comerciais de rdio televiso, mensagens eletrnicas, propagandas em stios cibernticos ou qualquer outro meio tecnolgico disponvel11.

    Aquelas pessoas que trabalham para desenvolver um produto em uma em-presa e que recebem salrios por isto, so as mesmas que agora utilizaro seus vencimentos para a aquisio de outros bens de consumo produzidos por outras pessoas que tambm recebem salrios e que tambm tem necessidades de consu-

    11 Neste sentido esclarece Fernanda Furtado que os bens e servios a serem produzidos devem ser apenas aqueles necessrios para a sociedade, o parmetro no deve ser a rentabilidade, e a eficincia econmica deve ser medida pelo grau de afetao aos recursos naturais (FURTADO 2003), p, 152.

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    mo, seja alimentao, lazer ou vesturio ou servios. O consumo tem se revelado um dos grandes viles do meio ambiente nos dias atuais em virtude da produo de resduos12, a contribuio da rpida obsolescncia de equipamentos13 dentre outros aspectos que agravam o problema da disposio final ambientalmente ade-quada.

    Para Ferreira, o avano tecnolgico e as polticas econmicas vm se ex-pandindo cada vez mais, incentivando demasiadamente o consumo das socie-dades, seja com uma melhora no designer de um produto j comercializado, ou no lanamento de uma nova verso, ou ainda, pelas facilidades das linhas de crdito espontneas das empresas. (FERREIRA e FERREIRA, 2008). E assim se desenvolve um ciclo em que as pessoas trabalham para consumir, fomentar a riqueza nas mos de poucos, num sistema cruel e que muitas vezes no percebi-do pelas pessoas que dele fazem parte. Arrematando, contrariando a lgica esta-belecida e imposta pelo capitalismo, o que deveria prevalecer uma ponderao entre a proteo ambiental e o desenvolvimento econmico, harmonizando-os e conciliando-os e, fazendo sempre preponderar o interesse coletivo atravs de um equilbrio ecolgico.

    2 DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL E GOVERNANA SOCIOAMBIENTAL COMO CATEGORIAS PRIVILEGIADAS: RUMO A UM NOVO DIREITO DA SUSTENTABILIDADE

    Tal como a essncia terica do Direito Ambiental vem evoluindo do tec-nicismo para o socioambientalismo, tambm as categorias de Desenvolvimento Sustentvel e Governana Ambiental tm sofrido importantes transformaes. O conceito de Desenvolvimento Sustentvel, em si j fruto de uma importante tomada de conscincia axiolgica mais complexa: como reatar com o crescimen-to de forma a fazer recuar as desigualdades e a pobreza, sem deteriorar o meio ambiente legado s futuras geraes? O conceito evoluiu sem precedentes reco-nhecendo trs dimenses - econmica, ambiental e social - base do que seria mais tarde um incremento de participao da cidadania em contexto globalizado. O mesmo se pode dizer em relao a Governana Ambiental. Esta categoria recente que pareceria uma utopia h algumas dcadas, atualmente constitui uma neces-

    12 O lixo urbano um dos maiores problemas ambientais da atualidade, pois pelos moldes de consumo adotado pela maioria das sociedades modernas provocam o aumento contguo e exagerado das quantidades de lixo pro-duzido. (FERREIRA e FERREIRA, 2008).13 O lixo eletroeletrnico teve origem pela fixao do homem pelos avanos tecnolgicos, pela lei da oferta e da procura, pela competitividade capitalista, pelo consumo elevado e o ritmo rpido de inovao tecnolgica dos equipamentos eletrnicos, os quais se transformam em sucata numa velocidade assustadora. FERREIRA e FERREIRA, 2008. p 158.

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    sidade e vem dando o tom do discurso nacional (governana ambiental local) e internacional (governana ambiental global).

    Isto fica claro, sobretudo, aps a entrada em vigor de tratados como a Con-veno da Diversidade Biolgica, a Conveno Quadro das Naes Unidas sobre Mudana Climtica e o Protocolo de Quioto. Ambos os conceitos acima tm levado a uma nova formatao de Governana e Polticas Pblicas Ambientais (LEIS e VIOLA, 2002), que passam a ser marcadas por uma maior participa-o da sociedade civil nos processos decisrios e de gesto ambiental. Trata-se de experincias recentes e como tal os desafios so inmeros, sobretudo no campo prtico. Destacam-se direitos de acesso informao, participao pblica na tomada de decises e o acesso justia em matria ambiental - cidadania socio-ambiental. Neste particular tem evoludo o papel da sociedade civil organizada.

    As implicaes e desafios descritos requerem uma postura interdisciplinar envolvendo temas relacionados economia (Desenvolvimento Econmico Susten-tvel) e Gesto Pblica (Polticas pblicas; novos modelos de gesto: democrticos e participativos) e cultural (com o surgimento de novos bens ambientais como o caso dos chamados conhecimentos de populaes tradicionais). Estes novos conceitos e desafios tem sido pano de fundo para a construo das polticas pblicas ambientais nas suas diversas reas, onde destaca-se para o presente estudo a gesto integrada dos resduos slidos, que um dos mais importantes temas, pois fonte de inmeros problemas socioambientais, em nvel local, regional e global.

    3 O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL E A EMERGNCIA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    Com o crescimento das indstrias, fruto do desenvolvimento da cincia e tcnica permitida pela Revoluo Industrial iniciada nos princpios do sc. XVIII e expandida at o sc. XIX, houve um profundo impacto no processo produtivos em nvel econmico e social e ocorreu uma mudana nos padres de consumo (RAUEN, 2006). A partir da dcada de 70 comea a tornar-se visvel a desvanta-gem da industrializao, notando-se o empobrecimento da biodiversidade, polui-o e alteraes climticas, a exploso dos grandes centros urbanos, a escassez de recursos naturais e a incapacidade do ecossistema planetrio para reciclar resduos slidos. O primeiro passo para a emergncia de uma conscincia ambiental foi com o tema Ecodesenvolvimento, no qual a partir dos movimentos ecolgicos como a Greenpeace, os Estados foram sensibilizados para a necessidade de se mo-bilizarem para fazerem face a catstrofes naturais que acontecem em grandes di-menses por todo o mundo. Com o surgimento do conceito de Desenvolvimento Sustentvel, foram definidos valores comuns ao nvel da sobrevivncia no planeta,

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    a necessidade de uma estratgica global que possa travar o rumo atual do desen-volvimento econmico para um futuro ecolgico do planeta.

    Historicamente, embora as questes ligadas ao Desenvolvimento Sustentvel no sejam estranhas a humanidade, seus antecedentes mais recentes esto ligados ao Clube de Roma, sobre a inviabilidade do crescimento econmico contnuo. assim que em 1971 foi publicado um informe com o ttulo os limites do crescimento, que advertia sobre a necessidade do crescimento zero. Na sequncia, em 1974 no Mxico foi realizado um encontro das Naes Unidas no qual se elaborou uma declarao, que ficou conhecida por Declarao de Cocoyoc, na qual se fazia meno ao termo Sustentabilidade. Este termo passou a ser assumido definitivamente em 1980 com a publicao da Estratgia Mundial da Conservao da Natureza. Todavia, a con-cretizao e a difuso em escala planetria do termo s ocorreu aps a reunio da Comisso Mundial para o Meio Ambiente CMMAD.

    De acordo com MICHAEL, 1996, o projeto de Desenvolvimento Susten-tvel ganhou mais destaque em 1987 com a elaborao do Relatrio Brudtland, que definia o Desenvolvimento Sustentvel como sendo aquele desenvolvimento que visa satisfazer as necessidades das geraes presentes, sem no entanto com-prometer a sobrevivncia das geraes futuras. CAMARGO, 2005 entende que o Relatrio Brudtland tambm conhecido por Our Common Future fundamen-tou-se numa anlise comparativa entre a situao do mundo no comeo e no final do sculo XX, declarando que no princpio do sculo XX o nmero de pessoas existentes e a tecnologia vigente no prejudicavam significativamente os sistemas de apoio a vida na terra e que, ao findar aquele sculo a situao havia mudado radicalmente.

    A preocupao para com o Desenvolvimento Sustentvel, representa a pos-sibilidade de garantir mudanas sociopolticas que no comprometam os sistemas ecolgicos e sociais que sustentam as comunidades, sendo que o relatrio Bru-dtland traou um rol de medidas para serem tomadas pelos Estados, nomeada-mente: A limitao do crescimento populacional; a garantia de recursos bsicos (gua, alimentos, energia); a preservao dabiodiversidadee dos ecossistemas; a diminuio do consumo de energia e desenvolvimento de tecnologias com uso de fontes energticas renovveis; o aumento da produo industrial nos pases no-industrializados com base em tecnologias ecologicamente adaptadas; controle da urbanizao desordenada e integrao entre campo e cidades menores; o atendi-mento das necessidades bsicas (sade, escola, moradia), a adoo da estratgia de Desenvolvimento Sustentvel pelas organizaes de desenvolvimento (rgos e instituies internacionais de financiamento); a proteo dos ecossistemas su-pranacionais como a Antrctica e oceanos pela comunidade internacional; bani-mento das guerras; implantao de um programa de desenvolvimento sustentvel pela Organizao das Naes Unidas (ONU).

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    O relatrio props tambm que o conceito de desenvolvimento sustent-vel deve ser assimilado pelas lideranas de uma empresa como uma nova forma de produzir sem degradar o meio ambiente, estendendo essa cultura a todos os nveis da organizao, para que seja formalizado um processo de identificao do impacto da produo da empresa no meio ambiente e resulte na execuo de um projeto que alie produo e preservao ambiental, com uso de tecnologia adap-tada a esse preceito.14

    4 DESENVOLVIMENTO HUMANO E DESENVOLVIMENTO SUSTNTAVEL

    O conceito de Desenvolvimento Humano foi introduzido pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD, com o objetivo de com-bater a pobreza no mundo. O PNUD uma instituio multilateral com repre-sentao em 166 naes em todo o mundo que trabalham juntas em busca de solues para desafios na rea do Desenvolvimento e Sustentabilidade. O progra-ma foi criado para servir de auxlio aos pases, e colaborar com a construo e so-lues para desafios como, reduo da pobreza, recuperao de pases devastados, utilizao sustentvel da energia e do meio ambiente, promoo de governabili-dade democrtica, incluso digital, luta contra doenas, principalmente a AIDS.

    Junto com os governos o PNUD busca promover os direitos humanos, para proporcionar condies de vida mais favorveis.15 Com o mesmo objetivo, foi introduzido o ndice de Desenvolvimento Humano IDH, que procura via-bilizar uma visualizao dos graus de Desenvolvimento Humano das diferentes regies do mundo, fazendo um contra peso ao Produto Interno Bruto PIB. O PNUD admite que o IDH privilegia somente o campo econmico do desen-volvimento, embora se apresente como uma forma alternativa de mensurar o Desenvolvimento Humano.

    O PNUD reconhece algumas fragilidades no conceito do IDH, ao cons-tatar que o mesmo no abrange todos os aspetos de desenvolvimento pois, no uma representao da felicidade das pessoas, nem indica o melhor lugar no mun-do para se viver. Todavia, a medio baseada em trs critrios: sade, educao e renda, sendo que, os critrios possuem pesos e medidas iguais, ou seja, todos tm igual importncia (ARBIX; ZILBOVICIUS, ABRAMOVAY, 2001).

    O Desenvolvimento Humano procura deslocar os esforos para a esfera humana do desenvolvimento, para alm das esferas econmica, poltica, social. Por isso ela carrega a ideia de expandir, atravs da promoo de polticas pblicas, as escolhas e oportunidades de cada pessoa. Em outros termos, o PNUD procura

    14 Relatrio Brudtland,1987.15 Relatrio de Desenvolvimento Humano, 2003, p.13.

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    dar centralidade ao ser humano, tendo como propsito do desenvolvimento do homem e no a acumulao de riquezas, ao contrrio do ideal do desenvolvimen-to praticado aps a II Guerra Mundial que colocava o progresso econmico como principal objetivo dos modelos de desenvolvimento, sendo que no entanto que as desigualdades sociais, as assimetrias mundiais e as catstrofes ambientais fizeram emergir a necessidade de construir novos modelos de desenvolvimento mais jus-tos tanto para o homem como para o ambiente.

    Com o surgimento do debate sobre o Desenvolvimento Sustentvel abre-se espao para se equilibrar as dimenses dos modelos de desenvolvimento, mor-mente, o social, o econmico e o ambiental de forma a assegurar a sobrevivn-cia das geraes atuais e das futuras, e o Desenvolvimento Humano como uma questo fundamental para os modelos de desenvolvimento das sociedades, que se pretendem sustentveis.

    Desde os anos de 1960 que As Naes Unidas tomaram conscincia das assimetrias econmicas do mundo. Face e essa situao durante a dcada de 90 fo-ram promovidas cimeiras e encontros para se debaterem as transformaes a que o planeta terra estava a enfrentar. O processo de industrializao originou fatores desestabilizadores das identidades, em vrios mbitos. O mundo de hoje encon-tra-se dividido em um mundo desenvolvido, subdesenvolvido e pobres (MUR-TEIRA, 1995, p.95). AMBRSIO considera que o Desenvolvimento Humano depender de condies de sustentabilidade do processo de desenvolvimento, isto , depender de condies de responsabilidades cvicas de cada individuo.

    O Desenvolvimento Humano tem a ver com pessoas, com a expanso das suas opes para viverem vidas plenas e criativas com liberdade e dignidade. Cres-cimento econmico, maior comrcio, investimento e progresso tecnolgico. O processo de desenvolvimento das sociedades segundo o relatrio do Desenvolvi-mento Humano, deve ter como diretriz a formao de sistemas democrticos que permitam a participao de todas as pessoas, de modo a que se sintam parte in-tegrante e que contribuem para a sociedade em que vivem (AMBRSIO, 2003).

    GRIFFIM & MCKINLEY so unnimes em considerar que uma abor-dagem baseada no Desenvolvimento Humano tem vrias vantagens: primeiro, porque contribui diretamente para o bem-estar das pessoas; segundo porque construdo tendo por base a igualdade de oportunidades; terceiro, porque ajuda a criar uma distribuio mais igual dos benefcios do desenvolvimento; em quarto lugar, porque permite explorar os vrios tipos de benefcios de investimento nas pessoas, e finalmente a vantagem de complementar o capital fsico com o capital humano (GRIFFIM & MCKINLEY, 1994, p.6). A liberdade individual a base e o meio mais eficaz para a sustentabilidade da vida econmica e para pobreza e a insegurana. A liberdade tida como sinnimo de desenvolvimento, e o de-senvolvimento visto enquanto liberdade. Existe um movimento recproco entre

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    ambos. Amartya Sem conclui que o desenvolvimento tem de ser mais referido promoo da vida que construmos e as liberdades que usufrumos16.

    5 POBREZA E (IN)JUSTIA AMBIENTAL: O CASO SUMMERS

    Em 1991, nas vsperas da realizao da Conferncia das Naes Unidas So-bre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - ECO-92, o economista chefe do Banco Mundial Lawrence Summers escreveu um memorando que circulo nos Gabinetes do Banco Mundial e por causa do seu teor se espalhou pelo mundo inteiro. Fazendo uma traduo ipsis verbis, esse documento dizia o seguinte: C entre ns, o Banco Mundial no deveriaencorajar uma maior migrao das indstrias mais poluentes para os LDC - Less Developed Countries, ou pases menos desenvolvidos? Lawrence acreditava que esta transferncia de poluio para os pases pobres e subdesenvolvidos fazia sentido eco-nmico, e tinha o que ele chamou de lgica impecvel, eque deveria ser enfrentada de frente e, fundamentava sua posio em trs argumentos:

    1. Pela lgica econmica asmortes e doenas provocadas pela poluio so mais baratas em pases pobres, pois, praticam salrios mais baixos. segundo ele bvio que a preocupao com um agente que provoca uma probabilidade de cncer de prstata por milho ser muito maior num pas onde as pessoas vivemo suficiente para ter cncer de prstata do que noutro onde a mortalidade de crianas com menos de cinco anos de muito maior.2. Esses pases normalmente so ainda poucopoludos ou em suas pala-vras: sempre pensei que os pases da frica soextremamente subpolu-dos, a qualidade do seu ar provavelmente vasta e apoluio ineficiente-mente baixa se comparada a Los Angeles ou Cidade doMxico.3. possvel que, em funo da pobreza, essesmiserveis no possam se preocupar com problemas ambientais, ou seja, o meio ambiente seria uma questo apenas esttica, tpica dos bem de vida.Como se pode ver, tratou-se claramente de uma ao de injustia ambien-

    tal, no qual h uma lgica perversa de um sistema de produo, de ocupao de solo, de destruio de ecossistemas, de alocao espacial de processos poluentes, que penalisa as condies de sade de populaes que moram em locais pobres, desfavorecidos e excluidos dos grandes projetos de desenvolvimento.

    O conceito de injustia ambiental define as situaes onde a carga dos da-nos ambientais do desenvolvimento se concentra geralmente onde vivem popula-es mais vulneraveis e hiposuficientes. O termo injustia ambiental, conside-rado como o paradoxo da justia ambiental, ou seja a necessidade de se trabalhar 16 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Libedade. So Paulo: Scwarcs, 1999, p.31.

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    a questo do ambiente no apenas em termos de preservao, mas tambm de distribuio e justia. MARTINEZ compartilha a ideia de que a justia ambiental representa o marco conceitual necessrio para aproximar em um mesmo palco as lutas populares pelos direitos humanos, pela qualidade coletiva de vida e pela sustentabilidade ambiental (MARTINEZ, 2006). Trata-se de uma justia socio-ambiental, que integra as dimenses ambiental, social e tica da sustentabilidade e do desenvolvimento, frequentemente dissociados nos discursos e na prtica. PORTO-GONALVES diz que com o advento do ambientalismo nos de 1960, cresceu a conscincia de que h um risco global que se sobrepe aos riscos locais, regionais e nacionais (PORTO-GONALVES, 2006).

    De qualquer das formas, foram tantas as criticas ao memorando Summers de tal modo que, parecendo que no, acabou por contribuir na diminuio da fragmenta-o e isolamento de vrios grupos sociais, desfavorecidos e vulnerabilizados em funo das suas situaes econmicas. A justia ambiental mais do que uma expresso de mbito jurdico um campo de reflexo e mobilizao de lutas de diversos estratos da sociedade afetada por riscos ambientais, j que as dificuldades que esses estratos enfrentam na compreenso do mundo atual contribuem imensamente para a repro-duo desse quadro predominante de imobilismo e apatia, arremata MARTINEZ.

    6 POBREZA E DEGRADAO AMBIENTAL

    A pobreza vista como uma questo de privao, afetando o bem-estar das pes-soas, sendo que essas privaes de que sofrem os indivduos em condio de pobreza so variadas e podem ser analisadas sob diferentes pontos de vista. O significado do que pobreza, assim como a forma de sua medio e avaliao so aspetos que dividem a opinio de grandes tericos. RAVALLION por exemplo considera que a pobreza est as-sociada ao facto de numa determinada sociedade, as pessoas no serem capazes de atingir o nvel material e de bem-estar assumido como o mnimo razovel nessa sociedade. De-fende assim um estudo da pobreza a partir da renda, que a considera uma boa medida de avaliao de oportunidades de consumo (RAVALLION, 2001). A concepo da po-breza baseada no aspeto material tambm vista por grande parte das organizaes in-ternacionais, tal o entendimento da ACEP que considera pobre todo aquele que vive numa situao de privao permanente da satisfao das suas necessidades bsicas tais como sade, segurana alimentar, habitao, saneamento bsico, gua potvel e outras, e ainda, de acesso educao, informao, participao social e a um rendimento que confere a si e ao seu agregado familiar um modo de vida durvel.17 Contudo, o estudo da pobreza a partir da renda levanta um debate terico.

    17 ACEP Associativismo para a luta contra a pobreza e promoo do bem-estar rural. Coleo Cooperao, Vol 1, Lisboa. 2000, p.38.

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    Para o PNUD a pobreza vista como uma negao de escolhas e de opor-tunidades para uma vida mais aceitvel. No Relatrio do Desenvolvimento Hu-mano de 1997, o PNUD considera que a pobreza mais do que uma questo de baixa renda, pois reflete um problema de educao e sade escassos, privao de conhecimento e de comunicao, falta de condies para exercer os direitos humanos e polticos, ausncia de dignidade, confiana e respeito prprio.

    O Professor emrito do Instituto Internacional de Estudos Sociais ISS - da Erasmus University Rottendam Marc Wuryts sugere dicotomias conceptuais da pobreza, nomeadamente, a primeira em que a pobreza vista como uma insufici-ncia de recursos ou como produto de desigualdades sociais e a segunda em que a pobreza um estado em si ou comum processo. A pobreza como insuficincia de recursos significa analisar a pobreza entanto que um problema de insuficincias que caracteriza os indivduos de baixa renda e como uma condio especfica de vida num dado momento. Finalmente como um processo significa centrar-se nos processos de empobrecimentos existentes numa sociedade.

    Um estudo realizado por CAVENDISH sobre a relao entre a pobreza rural e degradao ambiental, o autor identificou nos pases pobres uma con-tribuio dos recursos naturais na composio da renda dos agricultores, bem como a importncia que esses recursos tm em vrias atividades exercidas pelos pobres. Os resultados do estudo, mostraram que se por lado os pobres so mais dependentes dos recursos naturais do que os ricos, por outro, os ricos exploram quantidades muitos superiores as quantidades utilizadas pelos agricultores pobres, pois a procura dos recursos naturais varia de acordo com a renda de cada pessoa, de cada famlia e de cada Estado. O estudo conclui que a crescente procura dos recursos naturais e a m utilizao desses recursos causam degradao ambiental, e que a pobreza a maior causa da degradao ambiental (CAVENDISH, 1999).

    A multidimensionalidade da condio de pobreza deve ser levada em con-siderao ao analisar-se a relao entre essa condio e a degradao ambiental, j que a pobreza um conceito complexo e no pode ser precisamente mensurada e entendida por ndices estatsticos como linha de pobreza, tal o entendimento da IUCN.18 A vida econmica de muitos pobres rurais parece ser diretamente dependente da explorao de terras, as quais so altamente vulnerveis a degra-dao. BARBIER diz que A pobreza extrema desses agricultores influencia suas habilidades e disposies de controlar a degradao das terras, e para o autor, o pobre transforma a terra em subsistncia, fazendo com que a pobreza rural tenha um papel significativo na degradao do meio ambiente (BARBIER, 1998).

    18 IUCN- International Union for Consenvation of Nature, 2003, p.8

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    CONSIDERAES FINAIS

    O meio ambiente, ou ecossistema em que vivemos est constantemente a variar e a se transformar devido a ao direta do homem sobre ele, tanto pelo desenvolvimento como pela pobreza. A interveno humana sobre o ambiente trouxe e continua a trazer consequncias graves que se tornam evidentes a diferen-tes escalas, tornando-se paradoxo ao desenvolvimento sustentvel. A intensidade desta interveno humana sobre o ecossistema tal que muitas vezes, a destruio de recursos ultrapassa a capacidade de recuperao dos mesmos, sendo que a so-licitao crescente dos recursos no renovveis um dos exemplos mais flagrantes da atualidade.

    O Desenvolvimento industrial iniciado nos meados do sculo XVIII trou-xe mais ameaas do que se esperava para o meio ambiente. A degradao genera-lizada constituiu um fator importante para que se comeasse a lutar contra a m qualidade do ar, da gua, da destruio de florestas, da extino de vrias espcies de animais, o buraco da camada de ozono e do efeito estufa, de entre outras questes.

    Com o crescimento das indstrias no mundo, principalmente na Europa resultado do desenvolvimento da cincia e tcnica permitida pela Revoluo In-dustrial iniciada nos princpios do sc. XVIII e expandida at o sc. XIX, houve um profundo impacto no processo produtivos em nvel econmico e social e ocorreu uma mudana nos padres de consumo, sendo que na dcada de 70 comeou a tornar-se mais visvel a desvantagem da industrializao, devido ao empobrecimento da biodiversidade, poluio e alteraes climticas, a exploso dos grandes centros urbanos, a escassez de recursos naturais, a incapacidade do ecossistema planetrio para reciclar resduos slidos, a contaminao das guas dos rios e dos oceanos.

    O modelo de desenvolvimento industrial baseado no consumo excessivo de recursos naturais levou a um desastre energtico acima dos valores suportveis pelo planeta, causando consequentemente um enorme cenrio de poluio do ar e da gua, ameaas para a natureza, destruio da camada de ozono, aquecimento global.

    J a pobreza vista como uma questo de privao, afetando o bem-estar das pessoas. A relao entre a pobreza rural e degradao ambiental, o autor iden-tificou nos pases pobres uma contribuio dos recursos naturais na composio da renda dos agricultores, bem como a importncia que esses recursos tm em vrias atividades exercidas pelos pobres. Se por um lado os pobres so mais de-pendentes dos recursos naturais do que os ricos, por outro, os ricos exploram quantidades muitos superiores as quantidades utilizadas pelos agricultores pobres, pois a procura dos recursos naturais varia de acordo com a renda de cada pessoa,

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    de cada famlia e de cada Estado. A crescente procura dos recursos naturais e a m utilizao desses recursos causam degradao ambiental.

    Como objetivo principal era erradicar a pobreza no mundo, recuperar os pases devastados e criar mecanismos de utilizao sustentvel da energia e do meio ambiente, o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD - introduzido o conceito de Desenvolvimento Humano. Com o mesmo objetivo, foi introduzido o ndice de Desenvolvimento Humano IDH, que procura viabilizar uma visualizao dos graus de Desenvolvimento Humano das diferentes regies do mundo, fazendo um contra peso ao Produto Interno Bruto PIB.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ACEP Associativismo para a luta contra a pobreza e promoo do bem-estar rural. Coleo Cooperao, Vol 1, Lisboa. 2000.

    AMBRSIO, Teresa. A Complexidade da Adaptao dos Processos de Forma-o e Desenvolvimento Humano. In: Formao e Desenvolvimento Humano: Inteligibilidade das suas Relaes Complexas, Lisboa, 2003.

    ARBIX, Glauco; ZILBOVICIUS, M. & ABRAMOVAY, Ricardo (org.), Razes e Fices do Desenvolvimento. So Paulo, Editora da Unesp/Edusp, 2001.

    BALDO, Iumar Junior. CUSTDIO, Andr Viana. Desenvolvimento Urbano: Um discurso sobre a organizao socioambiental e habitacional so a panor-mica da igualdade e da justia em John Rawls. In: Meio Ambiente Constitui-o & Polticas Pblicas. CUSTDIO; Andr Viana. BALDO, Iumar Jr (orgs). Curitiba: Multideia, 2011.

    BARBIER, E. Land Degradation and Rural Povert in frica: Examining the Evidence. UNU/INRA annual Lectures, 1998.