NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME,...

10

Click here to load reader

Transcript of NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME,...

Page 1: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER

Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Apresentação

1. A motivação principal de nossa pesquisa é propor uma reconstrução da prova kantiana da validade do princípio causal como uma resposta ao problema cético formulado por Hume. Pretendemos ilustrar a cogência da prova de Kant mostrando como ela pode resistir a algumas objeções feitas por Schopenhauer.

Introdução ao problema

2. Dizer que tudo o que acontece possui uma explicação do por que acontece, grosso modo, é enunciar o princípio causal. Aqui, uma explicação do porquê de um evento se dá ao se identificar um conjunto circunstâncias de tal maneira que ele não poderia ter deixado de ocorrer dado essas circunstâncias. A clarificação do “não poderia ter deixado de ocorrer” em “o evento não poderia ter deixado de ocorrer dado determinado conjunto de circunstâncias” é objeto da análise de Hume que também procura por uma justificação da nossa crença no princípio.

O movimento geral do projeto epistemológico humeniano é: primeiramente, questionar-se acerca da possibilidade de justificação racional de certo conjunto de crenças e atitudes chegando à resposta negativa ou cética de que, em realidade, carecemos de qualquer base racional para essas crenças que, no entanto, são de inegável existência factual; em seguida, uma explicação naturalística para esses fenômenos é proposta de maneira positiva apelando-se para conceitos como de costume ou hábito.1

É instrutivo reconstruir, mesmo que muito brevemente, a parte negativa ou cética da argumentação de Hume contra o princípio causal. Observamos constantemente mudanças, chamamos umas de causas e outros de efeitos e acreditamos que se as causas acontecem necessariamente os efeitos se seguiriam. De onde tiramos essa ideia de que há alguma necessidade conectando o efeito com sua causa? Primeiro, entre as qualidades sensíveis nos objetos se modificando, nenhuma é uma impressão de necessidade. Se descrevo, por exemplo, minha experiência ao observar duas bolas de bilhar batendo uma na outra, vejo cores, sinto texturas e ouço sons, mas, não tenho nenhuma impressão sensível de conexão necessária (HUME[9], Livro 1, Parte 3, Seção 2). Podemos chamar isso de argumento fenomenológico contra a ideia de poderíamos justificar o princípio de causação meramente por observação imediata. Segundo, o princípio não é intuitivamente certo nem passível de demonstração, uma vez que consigo imaginar seu contraditório como possível (HUME[9], Livro 1, Parte 3, Seção 7).

Portanto, segundo Hume, o princípio não pode ser demonstrado, nem por observação imediata, nem por raciocino puro. A única possibilidade de justificação que restaria seria por apelo à experiência passada e a pressuposição de que o futuro se assemelhará ao passado. A última possibilidade considerada aqui é a seguinte: talvez por lembrarmos que tivemos muitas 1No caso do conceito de conexão necessária entre a causa e seu efeito, a explicação positiva naturalística de Hume é que o que queremos dizer aqui com “necessidade” é meramente uma expectativa psicológica que adquirimos pelo costume de observar diversas conjunções constantes (ver Seção 7 de HUME[8] e, por exemplo, Seções 6 e 14 da Parte 3 do Livro 1 de HUME[9]).

Page 2: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

impressões de eventos Y se seguindo depois de eventos X, isto é, de observamos os eventos X sempre sendo seguidos de Y, inferimos indutivamente que o X que observo agora será seguido de um Y. Mas, essa inferência pressupõe que o que acontecerá será semelhante ao que aconteceu. Contudo, não podemos justificar essa proposição de que o futuro se assemelhará ao passado nem por raciocínios demonstrativos, já que seu oposto contraditório é possível, nem por raciocínios indutivos, sob pena de argumentação circular já que todas as inferências indutivas estão fundadas na ideia de o futuro se assemelhará ao passado (HUME[8], Seção 4). Em linhas gerais, é assim que Hume conclui que precisamos abandonar a ideia de que nossa crença em uma necessidade causal possui qualquer fundamento racional.

Consciente da problematização feita por Hume à legitimamente da aplicação do conceito de conexão causal necessária aos objetos da nossa experiência, Kant escreve a seção da Crítica

da razão pura intitulada “Segunda Analogia” para justificar a validade de que “Todas as mudanças acontecem de acordo com princípio de ligação de causa e efeito” (B232)2.

3. Antes de nos debruçarmos sobre a prova da Segunda Analogia, se faz necessário aclarar

qual é exatamente o princípio que Kant pretende demonstrar. Nessa seção, evitaremos alguns mal-entendidos declarando em que lado do debate interpretativo nos posicionamos. Para isso, consideremos uma formulação: “todo evento tem uma causa”. Essa maneira resumida e popular de formular o princípio causal pode induzir a alguns erros.

Primeiro, há uma ambiguidade nesta formulação. Podemos entendê-la como se estivesse se referindo a um princípio causal geral como “todo evento possui alguma causa” (every-event-

some-cause) ou podemos entendê-la como se aludindo a leis causais particulares da forma “causas similares produzem efeitos similares” (same-cause-same-event). Não defenderemos que a Segunda Analogia afirme a necessidade de que certas leis causais particulares possam ser demonstradas a priori. Tanto Kant como Hume negam tal tese. Ambos concordam que só temos conhecimento de relações causais particulares através de inferências indutivas: só sabemos que eventos do tipo específico X são a causa de eventos do tipo especifico Y devido à observação a posteriori de conjunções constantes. O principal ponto de discordância entre os dois, na interpretação que seguimos, é que Kant, diferentemente de Hume, acredita na necessidade do princípio causal geral, i.e. que “todo evento possui alguma causa” (ALLISON[1], p. 247, BIRD[3], p. 455).

Segundo, um evento é algo observável, uma mudança no espaço e tempo, algo que pode ser percebido. Aqui, podemos notar um outro ponto de contato entre Kant e Hume (ponto compartilhado inclusive por Schopenhauer): o princípio de causa e efeito não versa sobre ocorrências fora do espaço e tempo. Ele não pode ser utilizado para provar que supostos acontecimentos completamente apartados de nossa experiência possível possuem uma causa (BIRD[3], p. 456, DICKER[4], p. 164).

Um terceiro ponto problemático é que a formulação “todo evento tem uma causa” não faz referência explícita ao conceito de necessidade. É evidente a centralidade desse conceito em qualquer formulação do princípio de causalidade, sendo esse exatamente uma das principais discordâncias entre Hume e Kant (ALLISON[1], p. 247). Se Hume não consegue sequer dar significado, i.e. tornar inteligível, a ideia de conexão causal necessária, nossa posição é que, para Kant, necessidade (em geral) significa nada mais que estar de acordo com uma lei ou regra estritamente universal. Temos consciência que muito mais precisaria ser dito para justificar e explicar essa última afirmação, mas, para os presentes propósitos, basta mencionarmos

2Seguindo modo tradicional de referência, todos os números entre parênteses antecedidos pelas letras ‘A’ ou ‘B’ se referem a páginas, respectivamente, da primeira e segunda edições da Crítica da razão pura (ambas as edições se encontram traduzidas em KANT[10]). Por exemplo, ‘(B232)’ significa página 232 da segunda edição da Crítica da razão pura.

Page 3: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

passagens onde Kant escreve “necessariamente, isto é, segundo uma regra” (A194/B339, A91/B124) e lembrarmos que necessidade e “universalidade verdadeira e rigorosa” são conceitos coextensivos, ambos critérios separadamente infalíveis do a priori (B4-5).

Demonstração do princípio

4. Podemos escrever esquematicamente a prova do princípio causal geral na Segunda Analogia nos seguintes passos:

[P1] Nossa experiência é tal que podemos distinguir percepções de eventos de percepções de objetos estáticos. [P2] Podemos perceber um evento, i.e. um estado se alterando em outro, apenas se a ordem temporal dos estados é concebida como determinada e irreversível. [P3] Uma condição que deve ser satisfeita para representamos a ordem temporal desses dois estados como irreversível é representarmos o segundo estado como seguindo do primeiro de acordo com uma lei. [C] Experiência é possível apenas se todo evento possui alguma causa.

É importante ter em mente que o argumento não afirma que realmente ocorrem tais e tais

eventos ou que existam tais e tais objetos no espaço e tempo. O que se defende é uma condição para que possamos conhecê-los por observação. E, seguindo Graham Bird, Kant não está aqui procurando um critério para se determinar se uma experiência particular concreta de um determinado evento é verídica ou não (BIRD[2], pp. 158-9). É uma questão empírica saber se, por exemplo, eu agora julgo verdadeiramente que um cubo de gelo derrete na minha frente ou se eu estou apenas sonhando ou se estou sob a ilusão de que vejo tal evento. O argumento procede em outro nível, a saber, no nível transcendental, no sentido em que se pergunta sobre condições que tornam possível ter um pensamento que se refira a um evento, seja esse de fato uma percepção de um evento ou do mero se enganar que se observa um evento. A investigação de Kant, aqui como em outros lugares, é o explicitar de uma condição necessária para julgarmos sobre objetos que experienciamos como reais.

Com o passo [P1] estamos descrevendo o fato de que entendemos alguns episódios perceptuais conscientes como a experiência de eventos e outros como a experiência de estados de coisas estáticos. Seguindo o texto de Kant (B235-8), consideremos, como exemplo de estado de coisa estático, uma casa e, como exemplo de evento, um barco descendo um rio impelido pela corrente. Ao observarmos uma casa, podemos primeiro olhar para uma janela, depois para a porta e posteriormente para seu telhado, apreendendo essas partes da casa em ordem sucessiva. Ao vermos um barco descendo um rio, primeiro o vemos mais acima e, depois, mais a abaixo no curso do rio. Mesmo quando temos consciência sucessiva das partes de um objeto, mesmo quando nossas percepções estão mudando, nós podemos identificar o objeto singular ou como um estado de coisas estático particular ou como um determinado evento.

Ainda que se aceite como óbvio o fato de que perceber eventos é parte da nossa experiência ordinária, pois muitas vezes experienciamos um objeto como realmente passando de um estado para outro estado, faz sentido perguntar: dado que nossa percepção das partes de algo estático pode também surgir em série na consciência, por que em um caso não consideramos que o objeto mudou e no outro que a mudança de estados ocorreu no objeto? A continuação do argumento pode ser entendida como a explicitação de uma condição de possibilidade para que consigamos representar como distintos a observação de um objeto

Page 4: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

estático e a observação de um evento, dado que em ambos os casos percebemos sucessivamente suas partes. O que permite que façamos essa distinção?

5. Para clarificar o que dissemos, examinemos uma famosa observação de Schopenhauer. Esse alega, comentando os exemplos kantianos da observação de uma casa e de um barco descendo um rio, que ambos são exemplos de eventos (SCHOPENHAUER[11], pp. 123-5). No exemplo da observação de uma casa, Schopenhauer pede que lembremos de incluir o observador na nossa descrição. Se assim o fizermos, notaríamos que também se trata de uma modificação no espaço-tempo. O evento em questão seria, por exemplo, a modificação da posição de meus olhos ou diríamos que o evento foi, se imagino um observador dando a volta na casa, o andar do sujeito em torno da casa, movendo suas pernas, cabeça e olhos para observar as partes da casa.

Descrever uma alteração num sujeito concreto determinado é claramente um exemplo de evento. Por exemplo, podemos considerar o evento: meus olhos se movem percebendo sucessivamente uma janela, uma porta, o telhado etc. Porém, esse não é exemplo de Kant. No exemplo da casa utilizado na Segunda Analogia não há alteração no objeto casa (BIRD[3], p. 460). Isso não exclui a possibilidade de outros eventos numa instância concreta da situação: uma modificação no corpo do observador, o movimento da fumaça que sai da chaminé, um pássaro que pousa na janela da casa, etc.

Para analisar o conceito de evento, Kant tem o direito de considerar, para fins de contraste, a descrição de um estado de coisas estático que pode ser conhecido por observação e se perguntar como, mesmo que a ordem temporal de nossas percepções de suas partes seja sucessiva, representamos o conteúdo do que foi percebido como permanecendo o mesmo. Em outras palavras, o exemplo da casa tem por objetivo descrever uma situação onde ordinariamente diríamos que não houve uma modificação no objeto percebido, i.e. onde o conteúdo de nossa percepção é (ou foi) um não evento, mas, sim, um estado de coisas estático. Isso não implica que, da observação em concreto de uma casa, não possamos inferir ou dirigir nossa atenção para um evento (BIRD[2], p. 160).

Além disso, uma das coisas que queremos dizer quando falamos que um objeto é empiricamente real é que ele existiria ou ocorreria independentemente que alguém esteja lá para observá-lo. Ao falarmos sobre um objeto estático concreto não estamos incluindo necessariamente alguém que o observa, pois, o conceito de casa empiricamente real é o conceito de um objeto exterior que existe independentemente do ato de perceber e da existência de qualquer observador particular. Essa nota, que se segue da análise do conceito de objetividade empírica, é mais um indício do disparate que seria dizer que uma casa (que não está sendo construída, nem demolida) é também um exemplo de um evento apelando para o suposto movimento de olhos de alguém.

De fato, há um vínculo conceitual estreito entre o objeto empírico e como ele pode ser conhecido por observação.3 Essa pode ter sido a fonte da confusão de Schopenhauer. Claramente, o conceito de um objeto da nossa experiência possível implica que alguém pode conhece-lo olhando, talvez, para cada uma das suas partes, uma depois da outra. Mas não devemos confundir um objeto com uma forma possível de se vir a observa-lo – e nem com os diversos eventos que poderiam ser assim descritos.

6. Seguimos analisando o conceito de evento com o segundo passo [P2]. Um evento é uma ocorrência, uma mudança no espaço e tempo, um acontecimento que pode ser observado.

3Em se tratando de um objeto empírico real, poderia ser que, factualmente, ninguém o percebesse, mas como é um objeto empírico real, em princípio, diversos sujeitos poderiam, de uma multiplicidade de pontos de vista, conhece-lo através da percepção.

Page 5: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

Enquanto podemos dizer de um objeto estático que ele “existe”, “permanece o mesmo” e que suas partes tem uma configuração espacial determinada; de um evento, dizemos que ele “acontece” ou “ocorre” e que suas diferentes partes, “fases” ou “estados” podem ser ordenados no tempo.

Se um determinado evento, uma particular modificação espaço-temporal observável, é a transição, digamos, do estado A para um estado diferente B, a ordem dos estados não pode acontecer de maneira invertida, pois a inversão da ordem temporal dos estados (primeiro B, depois A) resultaria, por definição, num evento diferente (BIRD[3], p. 461). Por exemplo, o evento barco descendo a corrente de um rio possui as fases A (barco mais acima) e B (barco mais abaixo) nessa ordem (A, B). Considerar a inversão dessas (B, depois A), implica em considerar a ocorrência de um evento diferente (o barco subindo o rio, talvez). A impossibilidade da inversão aqui não é lógica no sentido de ser contraditório que B ocorresse antes de A. Podemos até considerar que é física e logicamente possível de que as coisas tivessem se dado diferentemente, mas o ponto é que a sucessão dos estados acontecendo na ordem invertida (B, A) não seria o mesmo evento (A, B).

Como a sequência específica dos estados que constituem certo evento tem a ver com aquilo que faz o evento ser o evento singular que é, podemos estabelecer, portanto, uma proposição sobre a identidade de eventos: para cada evento, a ordem temporal de como as suas fases se dão objetivamente no mundo é determinada e irreversível.

7. Tendo estabelecido uma proposição sobre identidade de eventos, seguimos

investigando qual seria sua relação com a possível ordem das impressões que sujeitos teriam ao observar um evento.

Se lembrarmos que “conhecer” é um verbo que indica sucesso epistêmico e, “por observação”, que esse conhecimento foi adquirido pelo sujeito, pelo menos em parte, devido ao conteúdo da sua percepção4, concluímos que uma condição para que se julgue que se conhece um evento por observação é representar a ordem temporal das percepções dos estados como tendo de ser a mesma ordem que se concebe ou julga que os estados realmente aconteceram5, isto é, como determinada e irreversível. Daí, temos [P2]: se pode considerar ou julgar que realmente se vê um evento6 somente se a ordem temporal do conteúdo das nossas impressões dos estados seja concebida como fixa e irreversível, como não podendo ter ocorrido em outra sequência.

Consideremos que o evento do barco descendo o rio é empiricamente real, que ele acontece objetivamente no mundo. Esse objeto, alvo agora do meu contato sensível imediato e particular, é pensado como podendo existir independente da minha observação concreta, mas, sendo um objeto da nossa experiência possível, pode ser conhecido por observação, deve ser possível que alguém o perceba ou viesse a percebê-lo. Isto é, experiencio ele como algo empiricamente real e minha experiência concreta como sendo apenas uma perspectiva singular dentre tantas outras, reais ou possíveis. Há uma infinidade de posições que um sujeito poderia ocupar: perto ou longe da margem, deitado no solo, em pé ou num alto de uma montanha, etc. Ou seja, o evento empiricamente real do barco descendo a corrente poderia ser conhecido por

4Faz parte do que significa “conhecer por observação” dizer que se um sujeito S conhece ou sabe por observação que p, então, o conteúdo da sua percepção é p e que p tem de ser o caso. 5Juntando com o resultado anterior acerca identidade de eventos (§6). 6Se de fato o sujeito vê corretamente ou se se ilude achando que vê não é a questão aqui. Como já dissemos, a Segunda Analogia não está interessada em descobrir se a percepção particular concreta de um determinado evento é verídica ou não. Em particular, a irreversibilidade de que se fala aqui não é um critério que uma pessoa possa usar privadamente para distinguir sem equívocos se, em certa situação concreta, está diante de uma ilusão ou não.

Page 6: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

observação dos mais diversos pontos de vista. Contudo, esses possíveis observadores, se são mesmo sujeitos que conhecem por observação que o barco desce a corrente, nunca poderiam perceber o barco abaixo antes de percebê-lo acima.

Concedemos prontamente que não é uma impossibilidade lógica ou física que alguém perceba B (o barco mais abaixo do rio) antes de ter a impressão de A (barco mais acima). Contudo, na situação proposta, de duas uma: ou não atribuiríamos conhecimento observacional de que o barco desce o rio a esse sujeito, isto é, não diríamos que ele percebe esse evento7, ou diríamos que o sujeito está diante de outro evento ou de um não evento e que o barco descendo

a corrente não acontece.8 Em resumo, ou tal sujeito não sabe por mera observação que o barco desce o rio, ou o sujeito sabe o que vê e o evento conhecido por observação não é o evento do barco descendo o rio.

Podemos, juntando os resultados na nossa análise da noção de objetividade, da relação entre objetos e suas formas de observação, enunciar o seguinte fato modal9: pensamos as partes de um objeto estático como estando simultaneamente coexistindo, apesar delas poderem ser observadas por sujeitos em ordens diversas e variadas. Já um evento, algumas das suas partes ou fases são pensadas como ocorrendo numa ordem temporal determinada e, além disso, caso sejam conhecidas por observação, necessariamente teriam de ser percebidas nessa ordem.

8. Com relação à [P2], Schopenhauer chega a sugerir que se tivéssemos a capacidade e força de movermos o barco para cima e para baixo como bem quiséssemos, não consideraríamos como irreversíveis as observações dos estados que podemos perceber quando vemos um barco descendo o rio (SCHOPENHAUER[11], pp. 124-5). Ele escreve ainda que, no caso da casa, Kant defende a reversibilidade das percepções por acreditar que se poderia observar as partes da casa na ordem de sua preferência. Um sujeito poderia observar a casa vendo primeiro a janela, depois a porta e, por último, seu telhado e o mesmo sujeito acredita que poderia também ter olhado o telhado antes da porta e da janela - na verdade ele pode, uma hora mais tarde, assim faze-lo e ainda assim observaria a mesma casa. Schopenhauer nos diz repetidas vezes que as modificações na consciência são tomadas como subjetivas e não baseadas no objeto apenas por se acreditar que a ordem foi fruto de uma escolha da vontade do sujeito. E, no caso do barco, a ordem fora considerara por Kant como irreversível por ser pensada como independente do arbítrio do sujeito (SCHOPENHAUER[11], pp. 123-5).

É claro que Kant concordaria que factualmente um sujeito observando uma casa julgaria que conseguiria ou poderia facilmente fazer a sucessão das percepções ocorrer numa ordem reversa, enquanto que observando a situação do barco, não julgaria que conseguiria modificar a ordem das percepções por um ato de vontade. Todavia, não se deve confundir a crença subjetiva de um sujeito concreto (ou mesmo uma crença universal factual) com o fato modal

7Nesse primeiro caso, diríamos que o sujeito está equivocado, que ele se engana e, no máximo, acha que sabe que B veio antes de A. Diríamos talvez que o sujeito delira ou está sob algum tipo de ilusão perceptual, pois a ocorrência do barco descer o rio não se tornou manifesta a esse sujeito através da percepção. 8Nesse segundo caso, se de fato o sujeito sabe através da observação que B veio antes de A, então, como estamos adiante de um caso de conhecimento, as coisas se deram, real e objetivamente, na ordem temporal assim percebida (B, A) e o que o sujeito percebe não pode ter sido o barco descendo a corrente. 9Essa é uma nomenclatura que tomamos emprestada de Paul Guyer (GUYER[6], pp. 247-249 GUYER[7], p. 126). Guyer formula seu “fato modal” em primeira pessoa, sem fazer referência a irreversibilidade das percepções nem a nossa proposição sobre identidades de eventos. Acreditamos que ele concordaria mais facilmente que o que ele chama de fato modal é parecido com nosso [P2].

Page 7: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

estritamente universal que envolve referência a todas as perspectivas que um experienciador poderia ocupar concebendo a ordem de suas percepções como necessariamente irreversível ou possivelmente reversível.

Afirmamos também que a ideia de sujeitos possíveis serem concebidos (e se conceberem) como podendo alterar ou não o conteúdo da sua experiência pela sua própria vontade é mais uma distinção conceitual entre objetos empiricamente reais e não reais, não tanto entre, em experiências sucessivas, a representação de partes de um objeto estático e estados de um objeto que muda.

Retomemos mais uma vez a análise do conceito de evento empiricamente real de um barco descendo um rio. Diferentemente do conceito de um evento imaginário ou ilusório que faz referência a alguém que o imagine ou se iluda, o conceito de um evento real faz referência a algo que está ou acontece objetivamente no mundo e não é criado pelo nosso ato de perceber. O conceito de evento imaginário se conecta com a possibilidade que esteja no poder de alguém fazer com que a sua experiência do barco descendo o rio mude da noite para o dia, a cor do barco mude de amarelo para branco, sua velocidade de lenta para rápida, tudo por um mero ato da vontade. Já quando se experiencia o barco descendo o rio como de fato acontecendo, essas coisas já se encontram decididas e somos forçados a vê-las assim. Na experiência de um objeto real, concebemos a situação como sendo infinitamente detalhada e sem nenhuma lacuna, quer estejamos conscientes dessas características ou não (A160/B199, A162-176/B202-218).

Podemos imaginar um barco descendo a corrente em isolamento do resto do mundo, na verdade, não há nada (se modificando ou não) de determinada maneira em qualquer outra parte do mundo imaginário a não ser que aquele que imagina especifique para si mesmo isso. Em contrapartida, um objeto real que observo aqui e agora é concebido como distinto mim, como podendo existir independente da minha vontade ou percepção, como habitando uma realidade espaço-temporal da qual agora só estou experienciando apenas uma pequena parcela (A20-5/B34-40). Mesmo no caso de estar imaginando, o sujeito não pode conceber no conteúdo do que imagina o barco abaixo do rio antes dele acima, sob pena de não estar representando o evento do barco descendo o rio.10 E a proposição sobre identidade de eventos que afirma a irreversibilidade assim como [P2] continua convincente como condição de possibilidade para representação de eventos.

9. Tendo estabelecido que uma condição de possibilidade para que se tenha um pensamento de que se está diante de um evento é conceber a ordem temporal dos estados como objetivamente irreversível [P2], o argumento segue investigando a questão sobre como um sujeito concreto que sempre tem uma visão perspectivada e finita do mundo pode representar para si essa irreversibilidade.

Sabemos que nenhum apelo, nem mesmo implícito, ao fato modal da irreversibilidade das suas percepções qua impressões subjetivas ajudaria aqui. Tendo em vista que o fato modal depende de [P2] e se o que queremos explicar é exatamente a possibilidade de [P2], seria circular dizermos que o sujeito considera a ordem das suas “impressões subjetivas” como irreversível.11

10Não é importante aqui discutir se, na mente do sujeito empírico que imagina ou delira, a ordem das representações consideradas como meras modificações mentais poderiam se dar em diversas ordens. O ponto é que, mesmo num evento imaginário, se o conteúdo for um evento, devemos conceber os estados numa ordem determinada e irreversível, mesmo que essa ordem determinada faça referência a um tempo que é considerado equivocadamente como objetivo. 11Para representar um evento, i.e. para percebamos uma modificação num objeto, um estado A passando para um outro estado B, não basta pensar a ordem das minhas “impressões subjetivas” de A e de B como não reversível. Estamos, portanto, de pleno acordo com Paul Guyer quando

Page 8: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

Um sujeito não obtém a noção de irreversibilidade fazendo uma referência à observação direta da ordem objetiva do tempo, dado que a ordem das suas percepções pode não ser necessariamente a ordem objetiva (ele pode estar percebendo um objeto estático, talvez). Ademais, um sujeito finito não percebe uma marca que indique a posição relativa que o conteúdo das representações ocupam na ordem temporal objetiva do mundo (BIRD[3], p. 457, GUYER[5], p. 120). Não percebemos o tempo, mas as coisas se modificando nele.

A irreversibilidade também não é dada pela sensibilidade passiva não interpretada (B75-76), nem por uma série de experiências particulares desse tipo, pois a experiência só nos diz que as coisas estão assim e não que não poderiam estar de outro modo (A1). Aqui podemos apelar para o argumento fenomenológico de Hume que afirma que não podemos ter nenhuma impressão de conexão necessária.12 Dessa maneira, o evento real empírico é dado como algo que não é definido meramente pela sensação do que se observa aqui e agora. Se não é apenas pela sensibilidade, o entendimento deve estar envolvido para pensar essa irreversibilidade.13

Por essa irreversibilidade não ser concebida como o produto do ato de vontade de um sujeito concreto, ela não pode ser trabalho da imaginação.14 Como a imaginação é caracterizada, tanto por Kant e como por Hume, como possuindo uma peculiar liberdade para combinar representações15, ela não seria capaz de nos dar a noção de não poder ser reversível (B233, A201/B246, HUME[9], Livro 1, Parte 1, Seção 3).

A questão permanece: como um sujeito empírico pode através da sua consciência perceptiva experienciar os estados como não podendo ser reversível?

Na experiência de algo como um evento real, a experiência afirma que os conteúdos percebidos não coexistem simultaneamente no mundo e que um se segue de outro objetivamente no tempo. Como o estado que se seguiu de outro é representado como realmente

ocorrendo irreversivelmente nessa ordem, devemos pensar que se o evento (A, B) não fosse observado, caso A ocorresse, e todas as demais coisas no mundo sendo iguais, o estado B teria se seguido necessariamente após A.16 (A76s/B102s, A137s/B176s) Em outras palavras, essa irreversibilidade deve ser concebida como condicionada (suficientemente explicada) por algo da própria natureza do objeto ou do mundo, sem referência a minha vontade. Esse algo é uma regra que afirma que se um conjunto relevante de condições, então uma situação se segue necessariamente de outra.

esse enfatiza que só posso pensar a irreversibilidade das minhas sensações (modificações internas na minha consciência subjetiva) de A e B, se já concebo A e B como ocorrendo (objetivamente) na ordem A, B (DICKER[4], p. 171, GUYER[5], p. 217). 12Como explicamos na §2, se nenhuma impressão me dá a ideia de conexão necessário, não adianta apelar para nenhum número delas. Além disso, Hume também concordaria, devido ao modo como argumenta contra a indução, que nenhum número de observações de conjunções constantes poderia lhe dar a ideia de que algo deve necessariamente se seguir de outro. 13O que se segue pode ser entendido como uma defesa de que a sensibilidade deve ser entendida como mobilizando capacidades conceituais do entendimento para que a experiência de objetos (eventos e não eventos) seja possível. Isto significa: o fato de eu pensar sobre o que experiencio de maneira não completamente conectada com ponto de vista concreto em que me encontro é o que me permite formular um juízo sobre um objeto. 14Vide nosso resultado anterior que usa o critério da vontade para diferenciar o conceito de um objeto real de um conceito de um objeto imaginário (§8). 15Mais ainda, como nos diz Hume, podemos imaginar o princípio causal como falso e, inclusive, que qualquer coisa se segue de qualquer coisa (HUME[9], Livro 1, Parte 3, Seções 7 e 15). 16Através desses condicionais, podemos representar a regra que afirma que, dado um conjunto relevante de condições C, uma situação B se segue necessariamente de outra A. Esse é exatamente o conceito de necessidade causal (A144/B184).

Page 9: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

Sendo esses passos aceitos, estabelecemos [P3] e, assim, que se o princípio causal não for verdadeiro, não teríamos o tipo de experiência que nós temos. Logo, [C] o princípio causal geral seria uma condição necessária da experiência.

Considerações finais

10. Kant argumenta que a lei universal de causação é uma condição necessária para conhecimento de eventos e que não podemos fazer juízos sobre uma sucessão objetiva, diferenciando-a da mera sucessão subjetiva de representações, a não ser que toda mudança objetiva seja governada por uma regra necessária de sucessão, isto é, por uma lei causal.

Enquanto Hume não consegue tornar inteligível um conceito digno de necessidade causal nem por apelo a diversas observações de conjunções constantes de eventos, Kant argumenta que representarmos um mundo governado por conexões causais necessárias é uma condição para julgarmos que observamos um evento que seja.

Entendida como uma resposta ao ceticismo de Hume, a ideia geral da prova de Kant é clarificar a noção de objetividade mostrando que o conceito de experiência com que Hume trabalha é equivocado.

Referências

1 - ALLISON, H. Kant’s Transcendental Idealism: An Interpretation and Defense. 2. ed. London: Yale University Press, 2004. 537p.

2 - BIRD, G. Kant’s Theory of Knowledge: An Outline of One Central argument in the Critique of Pure Reason. New Your: Routledge, 1973. 210p.

3 - BIRD, G. The Revolutionary Kant: a Commentary on the Critique of Pure Reason. Illinois: Open Court, 2006. 877p.

4 - DICKER, R. Kant’s Theory of Knowledge: An Analytical Introduction. New York: Oxford University Press, 2004. 278p.

5 - GUYER, P. Kant. 2. ed. London: Routledge, 2006. 502p.

6 - GUYER, P. Kant and the Claims of Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. 482p.

7 - GUYER, P. “Schopenhauer, Kant, and the methods of philosophy”. In: JANAWAY, C. (ed.). The Cambridge Companion to Schopenhauer. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, pp. 93-137.

8 - HUME, D. An Enquiry Concerning Human Understanding. Editado por Peter Millican. New York: Oxford University Press, 2007. 238p.

9 - HUME, D. A Treatise of Human Nature. Editado por David Fate Norton e Mary J. Norton. New York: Oxford University Press, 2011. 432p.

10 - KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. 681p.

Page 10: NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E … · Departamento de Filosofia NECESSIDADE CAUSAL EM HUME, KANT E SCHOPENHAUER Aluno: German Lourenço Mejia Orientador: Luiz Carlos Dias Pereira

Departamento de Filosofia

11- SCHOPENHAUER, A. On the Fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason. Tradução de E. F. J. Payne. Illinois: Open Court, 1997.

12 - STROUD, B. Hume. London: Routledge, 1981. 293p.