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Negócios Estrangeiros Publicação semestral do Ministério dos Negócios Estrangeiros Nº 8 Julho 2005 . Preço: 8 União Europeia: os elefantes também dançam Portugal, a CPLP e a Lusofonia Tribunal Internacional de Justiça

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NegóciosEstrangeiros

Publicação semestral do

Ministério dos Negócios Estrangeiros

Nº 8

Julho 2005 . Preço: € 8

União Europeia: os elefantes também dançam

Portugal, a CPLP e a Lusofonia

Tribunal Internacional de Justiça

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NegóciosEstrangeirosEdição do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros

Conselho Editorial

Membros Natos

Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros

Embaixador Rui Quartin Santos

Director-Geral de Política Externa

Embaixador Manuel Tomás Fernandes Pereira

Presidente do Instituto Diplomático

Professor Doutor Armando Marques Guedes

Membros Convidados

Professor Doutor André Gonçalves Pereira

Embaixador João Hall Themido

Embaixador José César Paulouro das Neves

Embaixador Pedro Ribeiro de Menezes

Embaixador António Monteiro

Embaixador Vasco Valente

Embaixador José Guilherme Stichini Vilela

Embaixador Manuel Côrte-Real

Dr. José Júlio Pereira Gomes

Dr. Nuno Brito

DirectorJorge Roza de Oliveira

EditoraMaria Madalena Requixa

Design GráficoRisco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.

Pré-impressão e ImpressãoEuropress

Tiragem1000 exemplares

PeriodicidadeSemestral

Preço de capa€8

Anotação/ICS

N.º de Depósito Legal176965/02

ISSN1645-1244

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Editorial

União Europeia: os elefantes também dançamDomingos Fezas Vital

“Alice no País das Maravilhas” ou breve história de um processo no TribunalInternacional de Justiça: Sérvia e Montenegro c. Portugal e outros membros daNATO sobre a “Legalidade do Uso da Força”Luís Serradas Tavares e Patrícia Galvão Teles

Sistema Internacional e ONU – em crise?José Manuel Duarte de Jesus

A Proliferação das AmeaçasAndré de Melo Bandeira

As famílias separadas pela zona desmilitarizada da CoreiaMaria Ermelinda da Silva Arede

Portugal, a CPLP e a Lusofonia – Reflexões sobre a Dimensão Cultural da PolíticaExternaVictor Marques dos Santos

HISTÓRIA DIPLOMÁTICA

Leonel de Sousa e o sucesso da diplomacia económica no século XVIJoão Sabido Costa

COLUNA LIVRE

Voz(es) da AméricaManuel Silva Pereira

Índice

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41

Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores.

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NegóciosEstrangeiros . N.º8 Julho de 2005

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1. QUANDO SAIR ESTE novo número da “Negócios Estrangeiros”, estaremos provavelmentenum contexto de grande instabilidade do projecto europeu. Era nossa intençãopublicar a revista bem antes dos referendos que terão lugar dentro de poucos dias,mas constrangimentos de vária ordem não o permitiram.

2. É com esta ressalva que o leitor deverá ler o artigo que abre este número, ondeDomingos Fezas Vital descreve alguns caminhos que a União deveria percorrer a fimde a reaproximar de um ideal que tem vindo a ser excessivamente depreciado. Portermos insistido demasiado em determinada direcção, encontramo-nos hoje nestaencruzilhada.

Mas também outras dimensões da vida multilateral estão perante encruzilhadas.Luís Tavares e Patrícia Galvão Teles, do Departamento de Assuntos Jurídicos do

MNE, descrevem os complicados processos que correram no Tribunal Internacionalde Justiça movidos pela Sérvia e Montenegro contra os membros da NATO.

O Embaixador Duarte de Jesus, no ano do 60.º aniversário da ONU, escrevesobre a crise do sistema internacional, nomeadamente no seio daquela Organização.

A suposta crise das instituições e da ordem internacional é fruto do novo contextogeopolítico que hoje vivemos, e é esse o mote para o ensaio de André de Melo Bandeira.

Maria Ermelinda Arede, que trabalha na Embaixada de Portugal em Seul, fala-nosde dramas escondidos, os das famílias separadas pelo Paralelo 38.

E Victor Marques dos Santos fala-nos de outra frente multilateral que parecetambém por vezes esquecida, a CPLP, na sua vertente cultural.

A secção dedicada à história diplomática é neste número ocupada por um artigode João Sabido Costa sobre Leonel de Sousa, que redigiu o primeiro tratado luso--chinês, de 1554, assegurando privilégios comerciais e alfandegários que lançaramas bases para a fundação de Macau três anos mais tarde.

Manuel Silva Pereira assina a já habitual coluna “Voz(es) da América”. Pormotivos de redacção, é para ele que vão já os meus agradecimentos, por ter queridocolaborar neste projecto de quase dois anos e me ter ajudado a cumprir a minhapromessa de tornar as Voz(es) presença regular na Revista.

3. Estes agradecimentos significam que, ao contrário da União Europeia, que não irácertamente paralisar por muito que uma minoria o deseje, está mesmo a chegar aofim a minha permanência como director da Revista.

Editorial

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O meu primeiríssimo obrigado, esse sim, vai para a Madalena Requixa, sem aqual esta Revista não vive nem sobrevive. Deveria ser ela a ter o nome no topo dalista dos responsáveis pela publicação.

Agradeço também ao anterior Presidente do Instituto Diplomático, EmbaixadorFernando de Castro Brandão, que tanto ajudou a consolidar o caminho da revista, ea todos aqueles que ao longo destes números colaboraram, com a sua experiência esabedoria, para a afirmação e a qualidade da “Negócios Estrangeiros”. E aos nossospatrocinadores, que apostaram neste projecto e o têm ajudado a manter.

Por último, agradeço a todos os que continuam a ver na NE uma fonte para oseu interesse por diplomacia e relações internacionais.

J.R.O.Junho de 2005

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Introdução “JUST THINK WHAT Europe could be”. Assim começa, prudentemente, o documentoapresentado pela Comissão com as suas propostas para relançar a Estratégia de Lisboa1.Note-se que não se diz “what Europe will be”. A razão é óbvia: ninguém sabe o que seráo amanhã da UE. Não havendo excepções a esta regra... o que se segue não são,portanto, previsões.

Como concluía recentemente um conhecido articulista de um muito lidoperiódico britânico, “o futuro está entregue aos acontecimentos”. Dito assim, semmais, terá o ar das coisas evidentes; leia-se o artigo e percebe-se o que lhe está por trás:a angústia que nasce da conclusão de que, no despique entre o EU – ou melhor, paraeste efeito, a UE – e a circunstância, a segunda tem cada vez mais peso. O mesmo édizer que nos parece que o nosso futuro depende cada vez menos de nós.

Afastada a veleidade das previsões, acredito, no entanto, que a evolução da Uniãonos pode dar indicações sobre algumas tendências para o futuro e que, sendo múltiplosos desafios que nos esperam, enquanto portugueses e europeus, vale a pena o esforço deas procurar identificar. Para que a resposta não tenha de começar pela “fall back position”.

Poder-se-á questionar como procurar tendências, com um mínimo de seriedade,no domínio político-institucional, quando os dois grandes desenvolvimentos de quequase tudo dependerá, a Constituição e o alargamento, são, em muitos aspectos – aprimeira, desde logo, quanto à sua própria sobrevivência – uma fonte de incógnitas.Ou no domínio económico-financeiro, quando as implicações de um Pacto deEstabilidade e Crescimento (PEC) renovado, de uma Estratégia de Lisboa revisitada, ou,sobretudo, do próximo quadro financeiro – as Perspectivas Financeiras (PF) para operíodo 2007-2012 – estão longe de se poderem avaliar.

Domingos Fezas Vital | Representante Permanente-Adjunto de Portugal junto da União Europeia

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1 “Working together for growth and jobs – a new start for the Lisbon Strategy”.

União Europeia: os elefantes também dançam“Um dia de rosas”, há quanto tempo não ouvia aquilo! Era tão simples que chegava a sercomovente. “Como uma mãe que faz a trança à filha”. Era um verso do Torga. As coisassimples não estavam na moda. Onde teriam ido parar as coisas simples?

Agustina Bessa-Luís

Antes do degelo

Si nous ne savons pas vers quel avenir le présent nous mène, comment pourrions-nous dire quece présent est bon ou mauvais, qu’il mérite notre adhésion, notre méfiance ou notre haine?

Milan Kundera

L’ignorance

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Acontece que não se chegou aqui, as dúvidas não são as que são, por mero acaso.O que foi sendo decidido foi criando a necessidade de outras decisões, em resposta auma dinâmica que é aquilo a que, em conversa com uma delegação americana, nosmeus tempos de Secretariado da então Cooperação Política Europeia, me lembro deter chamado o 13.º Estado-Membro (ainda éramos 12) e que os teóricos da escolaneo-funcionalista baptizaram de “dinâmica comunitária”2.

Entre nós, a melhor definição do que seja tal coisa deu-ma involuntariamente omeu colega luxemburguês, Christian Braun, após duas horas de discussão no ConselhoEducação Juventude e Cultura: “Domingos, já reparaste que estivemos duas horas adiscutir o futuro da Juventude? O futuro dos jovens é serem adultos!”. Claro que háos que nunca lá chegam, ou que tudo fazem para lá não chegarem, mas é essarealmente a tendência a que a dinâmica do processo geralmente conduz.

Embora não seja propósito prioritário destas linhas alimentar a discussão sobre omodelo institucional que será o da União, aceito que algumas das conclusões a quechegar o impliquem. Aliás, parto desde logo do princípio que qualquer análise sobreas tendências que se vêm afirmando na UE não pode ignorar a lógica federalizadoraque lhes está subjacente. A tal “f word”, como lhe chamava Lady Thatcher, conscienteque estava de que a primeira condição para que algo exista é que se lhe dê um nome.

A partilha de soberania (ou, aquilo a que alguns prefeririam chamar cedência desoberania) resultou, até agora, com mais ou menos imperfeições – e se quisermosreduzir os exemplos a alguns dos que mais se associam aos atributos de um Estadonacional – na criação de uma moeda única, na eliminação de fronteiras, num mercadoúnico, na definição de políticas comuns que passam, algumas vezes, por umarepresentação única na frente externa, no primado do direito comunitário sobre aordem constitucional dos Estados-Membros (EM).

Não há uma verdadeira política externa, de segurança e de defesa comum? Éverdade, mas veja-se o que já existe hoje e, ainda mais, o que se admite que possaexistir amanhã, e julgo difícil que também aqui se não tenha que reconhecer que atendência não vem sendo o reforço das competências nacionais dos EM...

É verdade que o que temos é híbrido, sinuoso, exasperante às vezes na falta declareza.Tenho para mim, aliás, que esta permanente dúvida sobre o que somos e o queseremos está frequentemente por detrás do afã legislativo e normalizador que tantasvezes se ridiculariza (os EUA não sentiram qualquer necessidade de se afirmar pela viada harmonização das condições do transporte animal). Mas é o que temos e é a partirdos sinais que nos vai passando a dinâmica que conduziu a esta realidade queprocurarei identificar o que me parecem ser algumas das tendências mais relevantespara a defesa dos nossos interesses.

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2 Droit Institutionnel de l’Union européenne, Jean-Paul Jacqué, edições Dalloz.

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São tendências que decorrem de uma evolução que levou a um certo desenhoinstitucional; que nos trouxe novos temas de discussão; que nos obriga a novas formasde negociação.

1. Um novo desenho institucional, incluindo novos actores Independentemente do quevenha a ser o futuro do Tratado Constitucional, valerá a pena notar alguns desen-volvimentos recentes no que diz respeito ao equilíbrio entre as diferentes instituiçõesda UE. Alguns deles podem ser lidos como uma espécie de aplicação avant la lettre doTratado Constitucional, outros resultam da própria dinâmica comunitária, no que estacontém de federalizador.

Na base desses desenvolvimentos está, em meu entender, a crescente importânciade considerações demográficas face ao princípio da igualdade entre Estados. Um bomexemplo desta evolução estará nos esforços que Portugal precisou de desenvolver paralograr que o texto do Tratado Constitucional incluísse no seu articulado uma referênciaà igualdade entre Estados. Só o conseguiria, recorde-se, em torno de uma fórmula decompromisso que se limita a afirmar que essa igualdade se deve ver “na relação dosEstados perante a Constituição” (artigo I-5.º, parágrafo 1).

As reticências de alguns dos grandes Estados-Membros (e do Serviço Jurídico doConselho) quanto à proposta portuguesa tinha na origem o receio de que, perante umprincípio deste tipo, sem as limitações que acabaram por ser introduzidas, um Estadopudesse vir a pôr em causa a distribuição de votos no Conselho, alegando que estacomprometeria a igualdade, na medida em que, como efectivamente acontece,favorece os grandes Estados, em nome da “verdade demográfica”.Ainda recentemente,um editorial do FT lembrava aos franceses que deveriam votar favoravelmente oTratado, desde logo porque este “has the effect of increasing the say of bigger states in EU decision--making [...] in ways that ought to appeal to the French”3. To the French, mas não só....

Não se pense que a tendência para atribuir um peso crescente à variável demo-gráfica se deve às negociações em torno do Tratado Constitucional. Como saberão,melhor que ninguém, os que participaram nas negociações que conduziram aoTratado de Nice, esta já era a questão em cima da mesa naquela altura e as tensõesentre França e Alemanha muito deveram à exigência por parte de Berlim de que Parisreconhecesse que a realidade demográfica dos dois países obrigava a umarepresentatividade diferente no quadro comunitário. O compromisso far-se-ia nãotanto em torno dos votos no Conselho, mas na distribuição de deputados no PE4.

Sinais desta “deriva demográfica” podem ser encontrados na evolução por que passa-ram as três principais instituições comunitárias: o Conselho, o Parlamento e a Comissão.

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3 Finantial Times, 19 de Março de 20054 Recomenda-se, a este propósito, a leitura do que escreveu, à altura, o Embaixador Francisco Seixas da Costa.

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No que diz respeito ao Conselho, os resultados de Nice são elucidativos: para láda distribuição de votos, a ponderação demográfica passa a constituir, também ela, umelemento passível de ser invocado por um EM para que se constate a existência de umamaioria qualificada. Assim, para que esta seja possível, haverá que se constatar aexistência de 232 votos, atribuíveis a um mínimo de 13 EM, mas, se assim o entender,um EM pode também solicitar que se verifique se este resultado corresponde, ainda,a 62% da população, circunstância que, caso se não confirme, obstará à formação damaioria qualificada.

Também a Convenção, que precedeu a Conferência Inter-Governamental de queresultaria o actual projecto de Tratado Constitucional, se viria a debruçar sobre aquestão da votação no Conselho, em termos que alegadamente visavam melhorconciliar o sistema com a realidade demográfica. Partia-se, portanto, do princípio, queNice não resolvera esta equação de uma forma adequada.

De facto, Nice resolvera o problema entre a França e a Alemanha, mas os grandesEM entendiam que o preço pago havia sido demasiado elevado: a perda de umsegundo Comissário na Comissão europeia e uma ponderação de votos no Conselhoque, no seu entender, atribuía “demasiada influência aos pequenos e médios EM”5.

Mesmo se as sugestões da Convenção para a definição de uma maioria qualificada(maioria dos EM, representando pelo menos 3/5 da população da União) acabarampor não ser retidas no projecto de Tratado Constitucional, é inegável que o sistema queacabou por vingar resulta num muito maior peso relativo para os Estados de maiordimensão demográfica (55% dos EM, mínimo de 15 EM representando 65% dapopulação, com minoria de bloqueio reunindo um mínimo da 4 EM).

Por seu lado, o Parlamento Europeu (PE) – instituição onde se entende que acomponente demográfica se deve afirmar, por excelência, – tem visto os seus poderescrescentemente reforçados. Capaz de derrubar a Comissão, como já o demonstrou (V. Comissão Santer) e de recusar legislação que lhe venha do Conselho, com quemdivide a actividade de co-legislador num cada vez maior número de matérias, o PEcontinua a não poder ver a duração do seu mandato posta em causa por nenhumadestas duas outras instituições.

O seu grau de responsabilização é, assim, muito menor do que, desde logo, o daComissão, ou, até do que o do Conselho, onde os Governos dos EM podem, emvirtude da legislação que aprovem, ou recusem, vir a ser punidos, mais cedo do queos calendários eleitorais a isso obrigariam (não hesitando, aliás, em utilizar esteargumento, quando se aproximam períodos eleitorais e está em causa a eventualadopção de legislação que lhes não agrada). Os eurodeputados podem, no limite, fazer

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5 “Voting can be Simple and Efficient – without introducing the massive transfer of power implied in the Convention’s Double MajorityProposal”, Institute for Advanced Studies,Vienna, December 2003, da autoria de Iain Paterson e Peter Silárzsky.

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e decidir como entenderem, que em nenhum caso arriscarão uma sanção política doseleitores, antes do final do seu mandato.

Obtido o reconhecimento da importância da variável demográfica, quer naconstituição do Parlamento Europeu, quer na distribuição de votos no Conselho, nãoespanta a argumentação que nos é frequentemente apresentada, segundo a qual aaparente fragilização da Comissão se deveria ao facto de ser a única estrutura onde adimensão demográfica dos Estados se não vê ainda reflectida. De acordo com estalinha de raciocínio, enquanto o peso dos grandes EM no Colégio dos Comissários nãofor reposto (leia-se, através da recuperação dos dois Comissários de que benefi-ciavam), a situação só poderá agravar-se.

Sabendo-se que a fragilização da Comissão é muito anterior à redução do númerode Comissários dos grandes Estados, esta argumentação, com tudo o que encerra dewishful thinking – quem isto defende é quem tem interesse em tudo fazer para que assimseja – visará, em última instância, condicionar, desde já, o debate sobre a composiçãode um Colégio com menos membros, após a adesão de Roménia e Bulgária(garantindo, por exemplo, um maior peso relativo para os Comissários dos grandesEstados, por via da sua permanência num Colégio em que os Comissários dos outrosEstados, quanto a eles, obedeceriam a regras de rotatividade).

Responsabilizada, para maior comodidade dos Governos e do próprio ParlamentoEuropeu, por tudo o que “Bruxelas” possa ter de mais indigesto face aos olhos dasopiniões públicas nacionais – postura que pode revelar-se contraproducente emsituações politicamente mais sensíveis, como nos ensina o caso do referendo francês,onde o “não” muito deverá à diabolização da Comissão/Bruxelas – tem a seu favor,para fazer valer as suas responsabilidades de guardiã dos Tratados e do interesse geraleuropeu, dois instrumentos particularmente relevantes: o direito de iniciativa, ou sejaa exclusividade no domínio da apresentação de propostas legislativas, e o papel deintermediário entre os dois co-legisladores, Conselho e Parlamento.

No entanto, são muitos os desafios que se colocam à intervenção da Comissão.Quanto ao direito de iniciativa, há nuances interessantes. Assim, não deixa de

ser curioso que no projecto de Tratado Constitucional, o artigo I-26.º, parágrafo 2,diga que “os actos legislativos da União só podem ser adoptados sob proposta daComissão, salvo disposição em contrário”, traduzindo a ortodoxia, mas que oProtocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia definacomo projecto de acto legislativo europeu “as propostas da Comissão, as iniciativasde um grupo de Estados-Membros, as iniciativas do Parlamento Europeu, os pedidosdo Tribunal de Justiça, as recomendações do Banco Central Europeu e os pedidos doBanco Europeu de Investimento, que tenham em vista a adopção de um actolegislativo europeu”...

Por outro lado, a existência de programas conjuntos plurianuais elaborados pelasPresidências do Conselho (Portugal, que presidirá ao Conselho no segundo semestre

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de 2007, deverá apresentar o seu, em conjunto com quem nos antecede – a Alemanha –e quem se nos segue – a Eslovénia) obrigaram a uma coordenação com a Comissão,também ela responsável pela apresentação de programas plurianuais. Essa coorde-nação, ao implicar um esforço de compatibilização entre os objectivos programáticosa atingir, constitui, em última linha, um novo constrangimento à livre afirmação dodireito de iniciativa da Comissão.

Note-se que isto não tem de ser sempre negativo: de facto, o tempo que se perdee o desgaste que resulta de uma luta entre a Comissão e os Estados-Membros muitodificilmente se justificam quando é possível atingir resultados através de estratégiasmenos conflituosas. Como sublinhava recentemente o próprio Presidente daComissão, em almoço com os Representantes Permanentes dos EM, “é melhor obter60% de qualquer coisa, do que 100% de coisa nenhuma”, ou como já dizia Sun Tzu,“aquele que sabe quando pode e quando não pode lutar será vitorioso”.

Outro factor que valerá a pena assinalar, pelas implicações que tem quanto àafirmação de competências por parte da Comissão, é o processo de criação deestruturas comunitárias descentralizadas. Iniciado na década de 70, sofreu um forteimpulso nos anos 90, tendo dado origem a cerca de 20 Agências, Fundações, Centrose Observatórios, com sedes espalhadas pelo espaço europeu e estruturas defuncionamento e decisão sempre muito semelhantes (Conselhos de Administração,Director Executivo e um, ou mais Comités Técnicos e Científicos).

Se a grande maioria destas estruturas é financiada pelo orçamento comunitário,algumas delas financiam-se a si próprias6, reforçando, assim, a sua independência.

Nestes casos, de organismo a quem cabe a iniciativa legislativa, a Comissão passaa entidade que se vê obrigada a negociar o peso da sua representação num órgão cujofuncionamento não controla, mas cujos pareceres não pode ignorar.

Outro dos elementos que valerá a pena assinalar, numa perspectiva de avaliaçãosobre os factores com implicações no peso institucional da Comissão – e, com ela, nopróprio método comunitário, já que a força de um depende do vigor do outro – é adiscussão em curso sobre a criação do Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE),previsto no Tratado Constitucional e cujos contornos deverão ficar clarificados até àentrada em vigor daquele. É assunto a que voltarei mais tarde, quando se tratar deabordar o que é essencial que façamos para melhor acompanhar as tendências queaqui se ilustram. No entanto, seja qual for o resultado das discussões em curso sobreo formato do SEAE, ou o conteúdo da sua acção – e decisões fundamentais sãoesperadas já em Junho –, a criação de um corpo diplomático europeu não deixará deter profundas implicações no que toca às actuais responsabilidades da Comissão no

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6 Agência Europeia para a Avaliação dos Produtos Medicinais, Office para a Harmonização do Mercado Único;

Office Comunitário para a Variedade das Plantas, ou o Centro de Traduções.

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domínio da acção externa, tudo indicando que, também aqui, esta se veja obrigada aceder parte dos seus poderes e competências7.

A revisão da Estratégia de Lisboa, aprovada pelo Conselho Europeu em Marçodeste ano, pretendeu resolver o problema do distanciamento entre as opiniõespúblicas, por via de um reforço do papel dos EM: é a estes que caberá a elaboração derelatórios nacionais, num processo que envolverá os Governos e Parlamentosnacionais. O relatório a elaborar pela Comissão Europeia resultará da avaliação quefizer, em conjunto com cada um dos EM, sobre os progressos que este realizou faceaos objectivos estabelecidos nos relatórios nacionais.

Trata-se de um mecanismo que contrasta claramente com procedimentos ante-riores, onde à Comissão era dado o poder de “name and shame”, os EM menos bem com-portados, com base num relatório de avaliação que abrangia todos os EM, baseado emindicadores comuns. Mesmo que não se conteste a nova fórmula, que se esperaconduza a uma maior sensibilidade das opiniões públicas nacionais relativamente aosobjectivos de Lisboa, não parece que o papel da Comissão tenha saído reforçado.

A diluição das regras do PEC e, com ela, a maior ambiguidade quanto aos critériosque constituem os factores relevantes a levar em conta pela Comissão na análise daultrapassagem pelos EM das metas para o défice e dívida pública, constitui umdesenvolvimento interessante a acompanhar de perto: por um lado, face ao espectrode interpretações que os factores permitem, poder-se-ia dizer que a Comissão ganhoupoderes, já que, em última instância, é a ela que caberá definir o que efectivamente sepretende (e.g. Portugal, país que todos os relatórios reconhecem ter sido o que maisperdeu com o alargamento, pode invocar este facto, ou quando se fala dos custos dareunificação europeia como circunstância atenuante só se pensa na reunificaçãoalemã?); outro ponto de vista argumentará que essa latitude de interpretação sóreforçará a Comissão se o quadro de sanções de que esta dispõe para a fazer valer forpercebido pelos Estados-Membros e pelo mercado como mais do que uma “vagapossibilidade”, algo que só com o tempo poderemos avaliar.

Some-se a este quadro a procura de espaço político que acompanhará, inevita-velmente, a afirmação de um Presidente permanente do Eurogrupo, ou de um Ministrodos Negócios Estrangeiros da UE e de um Presidente do Conselho Europeu, e ter-se-á ideiada dimensão dos desafios com que se confronta a afirmação institucional da Comissão.

Perante esta realidade, que traduz uma União cuja agenda e preocupações são hojemuito mais políticas, a Comissão ou era confinada às responsabilidades de um super-Secretariado, ou, para garantir o seu papel como um dos pilares institucionais da União,acompanhava a evolução geral e adoptava, como vem fazendo, uma postura também elamais política, única maneira de preservar a capacidade para “marcar a agenda”.

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7 Documento Barroso/Solana, de 17 de Fevereiro de 2005.

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Um dos sinais do reconhecimento do papel crescentemente político da Comissãoproveio curiosamente do próprio Conselho Europeu, logo, dos Estados-Membros. Defacto, ao aceitar como critério de base para a escolha do Presidente da Comissão, umafiliação partidária compatível com o resultado das eleições para o Parlamento Europeu,antecipando, de alguma forma, a entrada em vigor da Constituição, os Chefes deEstado e de Governo reconheceram, implicitamente, que um padrão essencialmenteburocrático e funcional não corresponde ao que é suposto ser a acção da ComissãoEuropeia.

Mas o aparente sacrifício de competências que o Conselho e o PE vêm impondoà Comissão tem sido contrabalançado, de alguma forma, pelo resultado de doisdesenvolvimentos que me parecem valer algumas linhas: a acção do Tribunal de Justiçae a “desnacionalização” do PE.

A necessidade de encontrar compromissos tem obrigado, muitas vezes – dema-siadas vezes, dirão alguns – à elaboração de textos legislativos cujo rigor e clarezaestão longe de corresponder ao que seria ideal, o que tem tido como consequênciao recurso frequente à decisão interpretativa do Tribunal. Ora, a jurisprudência doTribunal tem, na grande maioria dos casos, acentuado o pendor federalizante daUnião – não foram poucas as vezes em que excepções ao grande princípio dasquatro liberdades (de pessoas, bens, serviços e capitais), que se julgavam perfei-tamente salvaguardadas, vieram a ser postas em causa pelo Tribunal – e reconhecidoà Comunidade poderes e competências cuja clareza a linguagem arrevesada dasDirectivas e Regulamentos pretendia exactamente impedir. O recurso sistemático aexpressões de alcance ambíguo, que tantas negociações têm salvo e tantoscompromissos garantido, tendem a ter vida curta quando se trata de as interpretarjuridicamente.

Perante a dúvida quanto ao alcance do que se pretende, o Tribunal aplica oprincípio geral, o que, na maioria dos casos, resulta num reforço de competências daComissão (recorde-se o apelo do então Presidente Giscard D’Estaing, no ConselhoEuropeu de Dublin, em 1975, a que “se fizesse alguma coisa a propósito do Tribunale das suas decisões ilegais”)8. Se levarmos em conta que o alargamento tornará maisdifíceis os compromissos e que o acesso ao Tribunal se democratiza, é pouco provávelque esta tendência se atenue.

Ao Tribunal se deve a primeira referência à necessidade de ser respeitado oequilíbrio entre as instituições comunitárias (Acórdão Meroni de 1958), o claroenunciado do princípio do primado do Direito comunitário sobre o Direitoconstitucional dos EM, com tudo o que daí resulta para o reforço do papel da

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8 The Court of Justice of the European Communities, L. Neville Brown e Tom Kennedy, Ed. Brown and Jacobs.

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Comissão9, e o alargamento das competências comunitárias (leia-se, da Comissão) aodomínio das relações externas, por via das denominadas competências implícitas10.

Nesta linha, o que se encontra vertido no texto do projecto de Tratado Cons-titucional sobre estas matérias11 deve ser lido, antes do mais, como a consagração dajurisprudência do Tribunal.

Por outro lado, é patente a crescente politização do PE. Se ainda é difícil falar dePartidos europeus na disputa de eleições para o PE, não há como negar que as iniciaislinhas de fractura em função de nacionalidades vêm dando lugar, cada vez mais, adivisões de cariz ideológico, com a ALDE (Liberais) a funcionar como fiel da balança,tendendo a votar ora com o PSE em questões de “costumes”12, ora com o PPE no quediz respeito à agenda económica13.

Ora, um PE mais ideológico é, também, um PE onde é mais difícil aos Estadosassegurar que os pontos de vista que procuram fazer vingar no Conselho têm imediatoseguimento pelos deputados da sua nacionalidade. Nesse sentido, um PE menos“nacional” e mais ideológico, pode contribuir para reforçar o papel negocial daComissão, designadamente sempre que estiverem em causa textos legislativos em quePE e Conselho são co-legisladores.

Note-se, no entanto, que esta crescente ideologização do PE não significa que aslógicas nacionais tenham sido esquecidas. Exemplo particularmente interessante deuma situação de convivência entre uma e outros é a polémica em torno do projectode Directiva sobre os Serviços – veja-se a postura claramente negativa doseurodeputados franceses, independentemente da cor política, e, simultaneamente, aoposição entre as correntes mais e menos liberais.

O projecto de Directiva sobre os Serviços, pelo impacto que vem tendo junto daopinião pública europeia reflecte, aliás, um fenómeno curioso, cujas implicaçõesconvirá acompanhar de perto. O estado de adormecimento que vem caracterizando a

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9 Much Ado About Nothing, José Matos Correia, Relações Internacionais, Março de 2004; La Convention: plus de clarté,de transparence, d’efficacité et de démocratie pour l’Europe, Geneviève Tuts, Revue de la Faculté de Droit del’Université de Liège, 2004/3; Establishing the supremacy of European Law, Karen J. Alter, Ed. Oxford.

10 V. Acórdão AETR, de 1971, bem como, sobre o mesmo assunto, The General Law of EC External Relations, AlanDashwood e Christophe Hillion, Ed. Sweet and Maxwell; Le droit des relations extérieures dans la jurisprudence dela Cour de justice des Communautés européennes, Christine Kaddous, Ed. Helbing and Lichtenhahn.

11 O artigo 10.º, n.º 1, para o primado do direito comunitário; os títulos III, da Parte I – competências daUnião e dos EM – designadamente o artigo I-12.º, e o Título V, da Parte III – acção externa – emparticular capítulos VI e VII.

12 V. polémica em torno da nomeação do Prof. Rocco Butiglionne para a Comissão.13 V. votação do programa da Comissão; posição sobre os contornos da revisão da Estratégia de Lisboa;

rejeição do relatório da deputada portuguesa Ilda Figueiredo sobre “a situação social na Europa” – 288votos contra, sobretudo PPE, contra 262 a favor e 73 abstenções –; ou o apelo lançado pelo Presidentedo Grupo do PSE à união da esquerda e do centro-esquerda europeus.

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opinião pública europeia relativamente à legislação discutida e aprovada em Bruxelas –quebrada, aqui e ali, por assomos de nacionalismo, que relevam mais vezes dacaricatura e do desconhecimento, do que de preocupações reais – pode vir a estar emcausa, em linha, aliás, com outra das tendências que os últimos desenvolvimentos edecisões vêm consolidando: o aparecimento de novos actores comunitários, na figurada sociedade civil e dos parlamentos dos Estados-Membros.

Para lá das implicações a nível dos equilíbrios entre Conselho, Parlamento eComissão, a procura de democratização da União, que tantas vezes aparece associadaà valorização da sua vertente demográfica, vem promovendo a emergência de doisactores: os parlamentos nacionais e a sociedade civil.

Quanto ao aparente reforço do papel dos parlamentos nacionais, quem o vir peloprisma da “dinâmica do processo comunitário”, dirá que constitui o seguimentológico de uma evolução que resulta do alargamento das competências comunitárias aqual obrigou a uma melhor definição de responsabilidades, que, por seu lado,conduziu à subsidiariedade (uma noção que a Europa deve à doutrina social da Igreja,mais precisamente à Encíclica Quadragesimo Anno, de 1931, segundo a qual a Comu-nidade só age quando certo objectivo é melhor realizado ao seu nível do que ao dosEstados). Assim, ao reconhecer um papel de maior relevo aos parlamentos nacionais,o projecto de Tratado Constitucional (V. Protocolos relativos, respectivamente, ao papeldos Parlamentos nacionais na União Europeia e à aplicação dos princípios dasubsidiariedade e da proporcionalidade) e a própria revisão da Estratégia de Lisboa(parlamentos nacionais passam a ser co-responsabilizados relativamente aosprogramas nacionais a apresentar por dado EM), estariam, no fundo, a enfraquecer anatureza centralizada e federalizadora do processo de decisão comunitário.

Não partilho deste ponto de vista.Tenho para mim que o legislador, mais do quedevolver competências à esfera nacional, atraiu para o processo decisório comunitárioas instituições de que necessitava para responder à alegada falta de democraticidade doprocesso decisório comunitário – os Parlamentos nacionais – sem, no entanto, o pôrem causa: as regras que permitem que os Parlamentos nacionais alterem legislaçãoaprovada a nível comunitário tornam essas alterações altamente improváveis.Assim, osParlamentos nacionais podem emitir pareceres fundamentados sobre acompatibilidade de actos legislativos com o princípio da subsidiariedade e daproporcionalidade, mas estes só têm efeito prático obrigatório se os votos dosParlamentos nacionais que se pronunciaram – cada um tem dois votos – forem, regrageral, igual a pelo menos um terço do total. E esse efeito fica-se pela mera reanálisedo projecto, podendo este ser... mantido tal qual.

Veremos, no entanto, se a dinâmica do processo – imagine-se a crescentefrustração de Parlamentos nacionais cujos pareceres sejam continuamente ignorados,em nome das mesmas regras que são supostas garantir-lhes poderes acrescidos –obrigará a rever este estado de coisas e a consagrar estruturas que permitam a afirmação

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de uma real entidade federal – como uma Câmara Alta, onde se afirme o princípio daigualdade entre Estados, face a um Parlamento, a quem caiba traduzir, sem complexos,a realidade demográfica. O que temos agora, não tanto por excesso, como por ausênciade um verdadeiro sistema federal, permite todas as críticas: a de que a realidadedemográfica não é respeitada e a de que a igualdade entre Estados foi sacrificada noaltar de Directórios de geometria variável, mas de dimensão sempre reduzida.

A resposta a estas evoluções, por parte de países como Portugal, obriga, a meu ver,a uma particular atenção relativamente aos seguintes aspectos:

– papel da Comissão, enquanto estrutura que representa o interesse geraleuropeu. Tendo perdido poder no Conselho, em resultado do alargamento amais Estados-Membros e do reforço do peso relativo dos Estados de maiordimensão, e com uma presença reduzida no PE, fruto da sua realidade demo-gráfica, a Portugal não interessa que a Comissão perca poderes e influência;

– presença activa nas várias estruturas que resultam da crescente descentralizaçãoadministrativa da UE, sejam elas Agências, Institutos, Observatórios, ou – e esteponto é fundamental – o Serviço Europeu de Acção Externa. Tal passa pelapresença de portugueses nas estruturas administrativas destes órgãos, sempreque possível em lugares de destaque, mas também pelo acompanhamento daactividade dos nossos representantes nos Conselhos de Administração (não secompreenderá a ausência de relatórios sobre as reuniões de que participam, oua sua não divulgação adequada). Uma atenção particular merecerá a formacomo será tratada a instalação da Agência Europeia de Segurança Marítima,sendo de toda a vantagem que se tire partido da sua localização em Lisboa, parasedimentar uma posição de liderança em questões ligadas ao Mar, na linha dasconsiderações estratégicas que estiveram na base da candidatura portuguesa (V. Conclusões finais, mais abaixo);

– coordenação da presença nacional nos vários grupos e Comités. São múltiplosos grupos e comités onde se “faz a Europa”. Dada a multiplicidade de áreascobertas e de organismos de Estado envolvidos, só a coordenação das suasactividades e a circulação de informação sobre agendas e resultados das váriasreuniões poderá garantir a coerência das posições nacionais e a melhor defesados nossos interesses;

– concertação no grupo parlamentar português no PE, em torno dos grandesinteresses nacionais. Face ao peso crescente da ideologia, os grupos que aconseguirem superar em nome de interesses nacionais tenderão a ganhar pesorelativo. Isto implica uma cada vez mais íntima articulação entre as estruturasnacionais a quem cabe a definição da posição portuguesa no Conselho e osnossos deputados no PE;

– relações entre a Assembleia de República e o Governo, em matéria comunitária.Portugal não tem a tradição de vigilância parlamentar sobre a actividade

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negocial em domínios comunitários, que existe noutros Estados-Membros, oque torna mais urgente – e, mais complexa, provavelmente – a criação efuncionamento de novos canais de comunicação;

– papel da sociedade civil. Mais conscientes do peso que representa a legislaçãocomunitária e sabendo que o seu Parlamento foi dotado de poderes e com-petências novos em matéria comunitária, a opinião pública em geral, e osgrupos de interesse e organizações não-governamentais em particular, tenderãoa passar a exigir respostas e seguimento, não só por parte do Governo, ou doseurodeputados, mas também da Assembleia da República.

2. Novos temas, novas prioridades – o preço da competitividade Se o crescente peso dademografia vem influenciando o equilíbrio institucional no seio da UE, as ideiassubjacentes aos objectivos definidos na Estratégia de Lisboa – assumidos como aprincipal prioridade da actual Comissão – têm condicionado, em larga medida, adiscussão sobre as políticas a prosseguir, a nível comunitário, mas também a nívelnacional, no domínio económico14.

A Estratégia de Lisboa, aprovada em 2000, durante e por iniciativa da PresidênciaPortuguesa do Conselho da UE, visava compatibilizar o modelo social europeu e asexigências de competitividade internacional impostas pela globalização.A via propostaera a do conhecimento, da inovação tecnológica, que pressupunha uma valorizaçãocontínua do capital humano. Tudo isto se deveria fazer num quadro de respeito peloambiente, em nome de um desenvolvimento sustentável. O resultado final seria umaUnião mais competitiva, com mais e melhores empregos e respeitadora do ambiente.

Sem medo de virem a ser julgados por isso – atitude louvável – os Chefes deEstado e de Governo fixaram-se metas quantificadas, que se comprometeram a medir,em exercícios que, com o passar dos anos, se foram transformando em actos de auto-flagelação: sem prejuízo de casos de sucesso – embaraçosamente, muitos deles nos EMque mais se afastavam do estereótipo do modelo social europeu, ou que haviamescolhido manter-se fora do euro – a União, no seu conjunto, e, muito em particular,os seus supostos “motores”, foi perdendo competitividade e mostrando cada vezmaiores dificuldades em acompanhar o ritmo de crescimento e de criação de emprego(incluindo emprego qualificado) dos seus principais concorrentes.

O exercício de revisão da Estratégia previsto para 2005 começou, assim, por rodarem torno de uma questão: havia que esquecer Lisboa e inventar uma nova Estratégia,ou, ao contrário, trabalhar com base em Lisboa, mas revendo os seus objectivos efuncionamento?

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14 Faz-se aqui abstracção dos domínios que relevam da PESC, da Justiça e Administração Interna, ou da área

comercial.

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A opção escolhida, como é sabido, acabou por ser a segunda, não sem que tivessehavido quem alegasse que um dos problemas da Estratégia estava, afinal, no nome, quelembraria mais lazer, do que um programa sério15.

Mais do que analisar o conteúdo da Estratégia de Lisboa revista, que resultou doConselho Europeu de Março deste ano, importa aqui constatar a “lisbonização” a quevem obedecendo a listagem de prioridades na agenda comunitária, no que toca às suaspolíticas.

É significativo, por exemplo, que a revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento(PEC), aprovada no mesmo Conselho Europeu, tenha sido apresentada como algo quevisa “favorecer a aplicação da Agenda de Lisboa”, ao permitir, por exemplo, que asdespesas com a inovação ou com as reformas dos sistemas de protecção social façamparte dos factores relevantes a que Comissão deve atender, como circunstânciasatenuantes, na análise sobre situações de défice excessivo. Como não deixa de serindicativa a pressão a que se assiste para que as verbas a atribuir, no quadro daspróximas Perspectivas Financeiras, às rubricas 1a (políticas internas) e 1b (coesão)tenham por base a promoção dos objectivos de Lisboa. Ou que o combate, por partede alguns EM, aos montantes previstos para a rubrica 2 (Agricultura e Desenvol-vimento Rural) se faça, entre outros, com o argumento de que representam umdesperdício de meios face aos desafios que colocam os objectivos de Lisboa.

Se a “lisbonização” da agenda comunitária tem óbvias implicações para a defi-nição das grandes prioridades a que deverão obedecer as políticas comunitárias, oconteúdo destas últimas depende, obviamente, dos meios que lhes forem atribuídos.Nesta perspectiva, embora se não conheçam ainda os resultados das negociações emcurso sobre o quadro financeiro da UE para o período 2007-2013, não há dúvidas deque a “lisbonização”, com o seu acento na vertente “competitividade e emprego”,parece ir ao encontro da argumentação da maioria dos EM contribuintes líquidos, nosentido de uma “refocalização de objectivos comunitários”, que evite a “dispersão derecursos”, e poderá servir os Estados-Membros que beneficiam da política de coesãoe que querem fazer dela um instrumento de convergência com os restantes, desde quea política de coesão se não reduza à coesão social de que fala “Lisboa” e que poucomais será do que a qualificação do capital humano em prol de uma sociedade assenteno conhecimento.

Subjacente a esta “lisbonização” da agenda comunitária e nacional está a preo-cupação com a competitividade, não só face a países terceiros, mas entre EM da UE.Os factores que determinam a competitividade de um EM são matéria de extensa

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15 Comissário houve que garantiu que os seus concidadãos eram incapazes de perceber a Estratégia, porquea confundiam com o EURO 2004. Conhecida a nacionalidade do Comissário, compreende-se que aassociação de ideias não fosse particularmente motivadora.

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bibliografia e a polémica em torno do peso relativo de cada um deles não está paraacabar tão cedo. Aqui, referirei apenas cinco aspectos, dado serem aqueles que osúltimos desenvolvimentos me parecem condenar a um maior protagonismo futuronas discussões no quadro da UE: a fiscalidade, a coordenação de políticas económicas,a investigação e desenvolvimento (R&D), a energia/ambiente e as reformas dossistemas sociais, designadamente a flexibilização do mercado de trabalho e a revisãodos regimes de protecção social.

O debate sobre a fiscalidade deverá ser visto segundo dois prismas: o dos recursospróprios da União, na medida em que a questão de um imposto comunitário se possavir a colocar, e o da competitividade da UE face a terceiros e... entre os próprios EM.

As implicações da questão dos recursos próprios da UE não se limitam aosaspectos económicos e financeiros, até porque a reduzida dimensão do orçamentocomunitário, sem o apoio da actividade legislativa, seria incapaz de produzirresultados macroeconómicos significativos a nível europeu.

Como recordam Brigid Laffan e Michael Shackleton num estudo sobre o orçamentocomunitário16, o que está em causa vai muito para além disso: “the search for an autonomoussource of public finance for the original European Community was critical in building a Community that wentbeyond a traditional international organization”. Qualquer evolução neste domínio envolverá,assim, questões de identidade, em torno do tipo de União que desejamos.

Mais uma vez, também aqui a dinâmica do processo se fez sentir: o orçamentoque temos hoje, seguindo, ou ditando, o caminho político da União, é muito diferentedo que resultou dos discussões de 1970 e 1975, que deram origem ao sistema derecursos próprios, para já não falar do que existia nos primórdios da Comunidade.

Ora, o aprofundamento da integração, o aumento de domínios de competênciacomunitária e de políticas internas, e a diversidade dos interesses em causa, cada vezmenos se coadunam com as incertezas e caminhos que obriga a percorrer o actualmodelo orçamental. É de esperar, assim, que o debate sobre a criação de um impostoeuropeu, que tem uma história que antecede de muito as discussões em curso sobreas Perspectivas Financeiras para 2007 a 2013, mesmo que ainda desta vez não conduzaa alterações significativas (V., ainda assim, as pressões que possam provir do Parla-mento Europeu, como atestam o relatório do eurodeputado Reimer Böge, de Marçode 2005, e as posições da Comissão Orçamento), venha a renascer quando se se tratarde equacionar o orçamento comunitário subsequente.

Por outro lado, a política fiscal nacional, tanto pelos valores, como pela estruturaem que assenta (com base no consumo, ou no rendimento; numa taxa única, oudiferenciada), é vista cada vez mais, pelos EM, como um instrumento para afirmar asua competitividade face a terceiros, sejam eles parceiros comunitários ou não. A

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16 Policy-making in the European Union, 4.ª edição, Ed Oxford – The New European Union Series.

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forma como a União enfrentar as tensões que daí resultam ditará os rumos daintegração (V., numa primeira fase, admoestação aos novos EM, por parte da França eAlemanha, com a ameaça de pôr em causa os fundos estruturais, com o argumento deque “a UE não pode financiar dumping fiscal”, seguida, numa segunda fase, de umaredução significativa da carga fiscal na Alemanha, que parece indicar uma inflexãoestratégica de Berlim neste domínio). Não deixa de ser significativo que comecem asurgir ideias como as do PM da Bélgica, na linha do típico compromisso comunitário,propondo um tratamento diferenciado quanto à definição de uma percentagem aincidir sobre a base fiscal, consoante esta seja directa, ou indirecta, o que alegada-mente permitiria conciliar um certo nível de concorrência, com o “level playing field” quea actual “guerra fiscal” não asseguraria.

Com a criação do euro e com as regras previstas no PEC, tudo parecia indicar quea tendência para uma maior coordenação de políticas económicas deveria acentuar-se,em particular no âmbito do Eurogrupo, que reúne os Ministros das Finanças dos EMda União que participam no euro. A revisão do PEC, ao abrir espaço a uma aplicaçãomenos rígida das suas regras e mais ajustada à realidade específica de cada EM – emlinha com o mesmo tipo de perspectiva relativamente ao cumprimento dos objectivosde Lisboa – terá, na opinião de alguns, posto em causa esta evolução. O futuro o dirá.

Ou melhor, o mercado o dirá. Nenhum dos EM que partilham o euro se pode darao luxo de uma crise de credibilidade na moeda única. Se o mercado – que já“integrara” a descredibilização do PEC, como se viu quando a falta de sanções àsinfracções francesas e alemãs não tiveram qualquer repercussão significativa –continuar a acreditar na solidez do euro, é natural que o formato que revestirá a futuracoordenação de políticas económicas venha a preservar o grau significativo de subsi-diariedade que o PEC revisto prevê; no entanto, se a leitura for menos benevolente –e será sempre muito cedo para conclusões, antes de qualquer primeiro testeimportante – é natural, pelo contrário, que a coordenação se afirme de maneira bemmais centralizada, e que instrumentos como a cooperação reforçada, previstos noTratado de Nice e no capítulo III, Título V, do projecto de Tratado Constitucional,possam vir a ser invocados.

Quanto às políticas no domínio da investigação, para lá dos desafios jáamplamente identificados nos múltiplos estudos publicados sobre o assunto, a UE teráque encontrar respostas para uma nova fase que se anuncia na competiçãointernacional: a da deslocalização da investigação e desenvolvimento (R&D).

Perante a necessidade de competirem globalmente, as empresas vêm reduzindocustos onde lhes é possível. Deslocalizada a manufactura de bens e a prestação decertos serviços para onde estes factores de produção são mais baratos, parece chegadaa vez da pesquisa e desenvolvimento, que se acreditava reservada aos países mais quali-ficados. Era ignorar os exércitos de engenheiros e cientistas altamente qualificados queas Universidades asiáticas se foram e vão encarregando de produzir a cada ano.

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Os números dizem-nos que a relação entre os orçamentos com R&D e a percen-tagem de vendas de gigantes como a CISCO, a DELL, a HP, a Motorola, a Ericsson, oua Nortel, sofreu reduções muito significativas nos últimos tempos, designadamente apartir de 2003 (e isto quando a Estratégia de Lisboa apela ao aumento substancial deinvestimento privado em R&D). Esta evolução tem lugar a par de um peso crescentena percentagem de “criação” deslocalizada para países asiáticos, que atinge já valoresentre os 70%, no caso de PDA’s e 20%, no que toca a telefones móveis. Empresas coma Flextronics, de Singapura, a Quanta, de Taiwan, ou a WIPRO, da Índia possuemequipas dedicadas exclusivamente a R&D para grandes marcas, com 7.000 e 8.000funcionários17.

A última fronteira parece ser, assim, a da propriedade intelectual: deslocaliza-se oque garantir um custo mais baixo e uma mais rápida colocação em mercado, até aoponto em que se não ponha em causa a protecção da patente. Por enquanto.

Ponto importante, sobretudo para países como Portugal, a UE a quem estasquestões se colocam não é uniforme: a clivagem tecnológica entre os seus Membros éevidente. Haverá, assim, que saber até que ponto o modelo de promoção de R&D quese desenha permitirá uma resposta da UE que concilie quer a necessidade de umaacção concertada, quer os interesses nacionais que resultam de níveis de desenvol-vimento tecnológico muito diferentes.

Se há tendência que se vem acentuando com o tempo é a relação cada vez maisestreita entre energia e ambiente, bem como a percepção da sua importância enquantofactores de competitividade. Sinal emblemático dessa evolução, o Protocolo de Quioto,com as suas metas e objectivos, constitui hoje o pano de fundo de todos os debates.Como recordava recentemente, de forma lapidar, o Ministro dos Negócios Estrangeirosholandês, Bernard Bot, “face à une Asie toujours plus avide de pétrole et de gaz naturel, alors quediminuent les sources d’approvisoinnement et les réserves européennes, l’UE voit sa dépendance énergetiquegrandir.A cela s’ajoute que, partout dans le monde, les émissions de CO2 augmentent de façon exponentielle.Notre réponse, à nous, Européens, devra passer par une amélioration considérable de notre efficacité énergétiqueet l’élargissement de nos ressources”18.

Some-se a esta constatação o enorme peso financeiro que implicará o mecanismode comércio de emissões, que entrou em vigor em Janeiro deste ano, mas cujos custossó se sentirão verdadeiramente após 200819, e as questões suscitadas por Bernard Botassumirão a sua real dimensão.

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17 Business Week, European Edition, 21 de Março de 2005.18 “La politique énergétique, clé de la construction européenne”, Le Monde, 22 de Março.19 Para informações detalhadas sobre esta matéria, recomenda-se o acesso ao comunicado de imprensa

“Questions and Answers on Emissions Trading and National Allocation Plans”, no sítio da Comissão.

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O debate, que a todos envolverá, passará, assim, pela eficiência energética, mastambém pelas fontes de energia. Ora, quanto a este último aspecto, a agenda incluirá,fatalmente, questões tão relevantes como as implicações geoestratégicas e outras, quereveste o acesso a recursos fósseis cada vez mais disputados e mais caros (segundo asmais recentes previsões, o consumo mundial de energia deverá aumentar 60% daquiaté 2030), os investimentos necessários em energias alternativas existentes e porexplorar, bem como em eco-tecnologias, e, inevitavelmente, a energia nuclear. A estepropósito, valerá a pena notar que a China deverá aumentar seis vezes a sua produçãode energia nuclear até 2020; na Índia, o aumento será de dez vezes, até 2022; naEuropa e Estados Unidos – onde, como se recordava recentemente numa ConferênciaInternacional, em Paris, nenhuma central foi construída desde 1978 – assiste-se a umrenascer dos programas nucleares nacionais. Inclusivamente em países que haviam, emtempos, descartado liminarmente esta hipótese, como a Finlândia, onde o Ministroque excluiu o cenário, foi o mesmo que anunciou a retoma do programa.

Por outro lado, a UE está hoje consciente que os esforços que se impôs, em nomede Quioto, terão que ser repartidos com terceiros, sob risco de ficaremcomprometidas quaisquer políticas promotoras da competitividade. O debate que tevelugar no Conselho Ambiente e, posteriormente, no Conselho Europeu de Março desteano, sobre a fixação de novas metas para um horizonte mais alargado, foi fruto destaconstatação bem reflectida na prudência da fórmula escolhida pelos Chefes de Estadoe de Governo para se referirem a esta questão, quando poderiam ter optado pelatranscrição da linguagem, bem mais ambiciosa, proposta pelos seus Ministros doAmbiente (note-se, aliás, curiosamente, a diferença de posição que se verificou, emvários casos, entre Membros de um mesmo Governo).

É, assim, de esperar, que a fixação de quaisquer novos compromissos da UE commetas mais longínquas de controlo de emissão de dióxido de carbono tenha, destavez, contornos bem menos voluntariosos do que no passado e venha a depender degarantias firmes quanto à partilha de sacrifícios com os países mais desenvolvidos(incluindo-se, aqui, não só os EUA, a Rússia, ou a Austrália, mas também a China,Índia, Brasil, México e Indonésia).

Em síntese, a forma como cada um dos EM resolver a “sua” questão energéticaserá determinante para a definição das linhas de separação futura entre EM mais emenos desenvolvidos, com todas as implicações que daí podem advir. Por outro lado,a dimensão dos desafios (e.g. negociações com terceiros sobre acesso às fontes deabastecimento, ou participação em mecanismos de controlo de emissões, montantedos investimentos em energias renováveis e alternativas, como o hidrogénio, ou aenergia termonuclear) faz com que a eficácia das respostas dependa muito de umaacção concertada no quadro da UE, ou mais alargada ainda.

Finalmente, as reformas sociais. O tema é vasto, mas os tópicos a que se tenderáa dar mais peso serão provavelmente dois: a flexibilização do mercado de trabalho e a

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reforma dos sistemas de pensões. Diga-se, desde logo, que enquanto o primeiropermite uma intervenção comunitária a nível legislativo, o segundo tem relevado, atéao presente, das competências de cada EM.

A flexibilização do mercado de trabalho está já implícita na discussão sobrealgumas das propostas de Directivas e Regulamentos mais polémicos com que olegislador comunitário se tem confrontado recentemente: organização do tempo detrabalho, trabalho temporário, reconhecimento de qualificações, mobilidade dostrabalhadores. Em todos, o que está em causa são modelos de organização do trabalhoe a tentativa de conciliar dois objectivos: criar mais e simultaneamente melhoresempregos.

A manterem-se, ou a aumentarem os actuais níveis de desemprego, é inevitávelque esta discussão ganhe ainda maior relevância, designadamente se a visão sobre oque se entende por melhores empregos comprometer a criação pura e simples deemprego, e passar a representar um peso incomportável para os orçamentos dos EM.As reformas encetadas na Alemanha e na França, mesmo se consideradas insuficientespor alguns analistas, e o facto de, no caso da Alemanha, terem sido os sindicatos aaceitar soluções para conflitos laborais que nem as disposições mais liberais da Agenda2010 do Chanceler Schroeder ousaram prever, são sinais que parecem indiciar qual a“cor da estação”.

No que toca aos regimes de protecção social, lembrem-se os resultados de umestudo recente da Standard & Poor’s20: num cenário de manutenção do status quo, arelação entre a dívida pública e o produto nacional bruto na Alemanha e França, emmeados deste século, ultrapassará os 220%. Imaginemos se em vez do status quo aindativéssemos reduções mais acentuadas das taxas de natalidade – Portugal, de acordocom o Eurostat, será, em 2050, o quarto EM com maior percentagem de idosos e oterceiro com a mais baixa taxa de população activa – ou de crescimento económico.

Se a reforma dos sistemas de protecção social se orientará no sentido das soluçõesnórdicas que tão bons resultados parecem estar a assegurar (sublinhe-se que as “solu-ções nórdicas” de que falo são as que presidiram às profundas reformas introduzidasnaqueles países nos últimos anos e não o sistema que existia e que estas reformasradicalmente alteraram...), ou se serão outros os modelos, é certamente questãorelevante, mas mais importante talvez será o reconhecimento, sem o qual nenhumareforma é possível, de que a situação como se apresenta é, a prazo, insustentável. Aforma como cada EM ultrapassará as suas dificuldades neste domínio não deixará deter repercussões de enorme alcance em termos do seu posicionamento face aos seusparceiros comunitários (e terceiros), no que toca aos níveis de desenvolvimentoeconómico e social, e de competitividade.

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20 “In the long run, we are all debt – ageing societies and sovereign ratings in leading OECD countries”.

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Do Conselho Europeu de Março do corrente ano, resultaram dois sinaispoliticamente relevantes, no que toca ao tratamento da questão dos regimes deprotecção social.

O primeiro foi o mandato dado à Comissão para que analise – mais uma vez, noquadro dos trabalhos em curso relativos ao relançamento da Estratégia de Lisboa... –“as questões que se colocam no que diz respeito à forma de assegurar um financia-mento viável do modelo social europeu”, convidando-a a apresentar um relatório sobreo assunto no Conselho Europeu de Outono. Ver-se-á que seguimento terá o debatesobre este Relatório, mas não deixa de valer a pena assinalar dois aspectos: antes domais, este primeiro passo no sentido de uma visão comunitária de um problema, que,embora com níveis de gravidade muito diferentes, a todos diz respeito; depois, o factode mais uma vez, os Governos recorrerem a “Bruxelas” para pedir auxílio relati-vamente aos dossiers cuja gestão face à opinião pública apresenta maiores dificuldades...

O segundo sinal politicamente relevante que resultou do Conselho Europeu deMarço, em termos de regimes de protecção social, foi a já referida inclusão dasdespesas com a reforma destes sistemas entre os factores atenuantes a que a Comissãodeverá atender, na análise sobre a situação de défice excessivo de um EM. Trata-se dealgo que confere enormes responsabilidades à Comissão, na medida em que será a suaavaliação a determinar até que ponto as despesas efectuadas pelos EM neste domíniodevem ser vistas como reformas reais e não meras operações de cosmética.

Para Portugal, a “lisbonização” da agenda comunitária vem ao encontro do quesão prioridades nacionais consensuais: a competitividade da nossa economia, aqualificação dos recursos humanos, a promoção da investigação e da inovação. Umareflexão sobre a melhor forma de tirar proveito desta coincidência, obriga, no meuentender, a levar em conta os seguintes factores:

– o apoio público à promoção dos objectivos de Lisboa, em particular no domí-nio da investigação e da inovação, pode fazer-se por duas vias: os fundos estru-turais decorrentes da política de coesão (rubrica 1b do orçamento comunitárioem discussão) e/ou o acesso aos montantes atribuídos aos diferentes programascomunitários (e.g. Programa-Quadro de Investigação), no âmbito da políticasinternas (rubrica 1a). Sabendo-se que, seja qual for o resultado das negociaçõesem curso sobre as próximas Perspectivas Financeiras, o futuro dos fundosestruturais, no que a Portugal diz respeito, só poderá vir a ser menos favoráveldo que é agora, e isto já desde 2007, parece avisado que o nosso país se prepareinternamente para recorrer, com melhor taxa de sucesso do que vem ocorrendo,aos meios financeiros disponibilizados através das políticas internas;

– os dados relativos aos fluxos financeiros da UE para Portugal, relativos ao anode 2003, indicam que 18% se destinam à PAC (domínio onde Portugal é quasecontribuinte líquido, por via das verbas que transfere para Bruxelas), 78,72%às acções estruturais (de longe a mais alta percentagem de qualquer EM, o que

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torna dramática para o nosso país qualquer alteração no pacote da coesão) eapenas 3,27% para as políticas internas. Haveria, assim, que identificar as razõesdesta situação e procurar ultrapassá-las. A experiência de que tenho podidobeneficiar na REPER, diz-me que existem lacunas importantes de informação atodos os níveis e que quando a informação sobre as oportunidades existe, háfalta de conhecimento sobre a melhor forma de as aproveitar. Qualquerdesenvolvimento neste domínio implica uma actuação concertada em Lisboa eem Bruxelas, que envolva organismos de Estado, mas também Associaçõesempresariais, Sindicatos, ONG’s, e outros. O conceito de Loja do Cidadão, quetanto sucesso obteve, poderia ser ajustado à realidade comunitária, na figura deLojas UE do Cidadão e das Empresas, permitindo a quem a elas recorresse obterinformação sobre oportunidades existentes na área que mais lhe interessasse eapoio para apresentação de candidaturas;

– a participação de empresas e estabelecimentos de ensino portuguesas, emconcursos, consórcios, ou candidaturas, obriga a que estas se dêem a conhecer,o que implica a participação em redes transeuropeias, em particular aquelasque constam da “lista telefónica” da Comissão e a que esta recorre, quandonecessita de capacidades específicas em determinada área;

– o melhor aproveitamento de oportunidades implica que se saiba o que se passanos vários Comités de Acompanhamento dos Programas comunitários, algoque exige uma representação continuada nas reuniões e uma adequada cir-culação de informação relativamente às suas agendas e resultados;

– finalmente, Portugal tem um esforço gigantesco pela frente, no que diz respeitoao cumprimento das metas que nos foram definidas, no quadro do Protocolo deQuioto, as quais já ultrapassámos largamente. Um esforço que, para lá deimportantes decisões quanto às fontes de abastecimento energético, obriga aprogressos muito significativos no que diz respeito à eficiência na utilizaçãodessa energia (e.g. política de transportes, de habitação, de ordenamento doterritório). Um esforço que passa pela identificação e aproveitamento de todasas oportunidades de minoração de custos que decorrem dos denominados“mecanismos flexíveis” previstos em Quioto (os JI e os CDM), designadamenteo desenvolvimento de projectos em países do Leste europeu, ou países terceiros,algo que, necessitando acordos bilaterais, deverá mobilizar a nossa máquinadiplomática. Um esforço que pressupõe a participação, desde a primeira hora,no mercado de comércio de direitos de emissão, única pedagogia capaz deiniciar os agentes mais directamente interessados nos meandros do sistema. Umesforço, enfim, que não se compadece com atrasos, ou será o futuro das nossasempresas, da competitividade da nossa economia, o sucesso de qualquer políticade consolidação e equilíbrio orçamental que estarão em causa (os custos demultas e dos direitos de emissão que teríamos de adquirir é colossal).

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3. Nova forma de negociar, num clube alargado Esta UE, de novos equilíbrios e novos temas,é, também, muito em razão do alargamento, uma UE de novos modelos denegociação. O alargamento afectou a forma de negociar e decidir, por duas razões. Aprimeira, tem a ver com os constrangimentos decorrentes de qualquer negociação queabrange um número considerável de Estados: simplesmente, o diálogo a 25 não podevaler-se das mesmas regras de condução da negociação que regiam o diálogo a 6. Asegunda razão é de natureza intrinsecamente política e está ligada à preocupação dosgrandes Estados-Membros de preservarem uma posição de liderança, a despeito doalargamento. Os exemplos desta evolução reflectem, na maior parte dos casos, as duasrazões: no mundo da negociação, dificilmente se ditam divórcios entre razõeslogísticas e objectivos políticos.

A discussão nas reuniões formais das várias formações do Conselho, fruto damultiplicidade de intervenientes, tornou mais difícil uma real troca de opiniões,abrindo campo à multiplicação de reuniões ministeriais informais, onde parece maisfácil abordar os temas sem que isso signifique uma sucessão monótona de monólogos.Se nada há de novo em que este tipo de reuniões produza conclusões, sob respon-sabilidade da Presidência, já é dado novo que esta procure, cada vez com maiorfrequência, dar por adquirido que o documento em causa reflecte o sentir do Con-selho, atribuindo-lhe, implicitamente, o estatuto de Conclusões formais.

A mesma dificuldade quanto à organização de uma discussão a 25 tem servido deargumento para que surjam, aqui e ali, denominados grupos de trabalho virtuais. Oprocedimento é simples: face a um tema abrangente, distribuem-se competências porautênticos subgrupos de trabalho, de participação teoricamente aberta a todos os EM(teoricamente porque, se realmente assim fosse, o exercício não teria sentido), a quemcaberá pronunciar-se sobre capítulos do que está a ser discutido. As conclusões dossubgrupos são posteriormente apresentadas ao “plenário” do Grupo de Trabalho, queas aprova, ou rejeita. Sabendo-se como é difícil alterar consensos provenientes dessessubgrupos, é evidente que é toda a base da negociação que fica alterada.

De âmbito claramente mais político são as formações restritas, quase sempre emtorno, ou mesmo limitadas aos grandes Estados-Membros, prefigurando verdadeirascooperações reforçadas avant la lettre.

Temos, por exemplo, as reuniões do “G5”, que abrange Espanha, França, Ale-manha, Itália e Reino Unido, para discutir questões relacionadas com a Justiça eAdministração Interna. Ainda recentemente, no mês de Março, este grupo de países sereuniu, em Granada, para abordar a cooperação antiterrorista, tendo acordado que opróximo encontro terá lugar, em Paris e será dedicado ao controlo de fronteiras. Ou,caso semelhante, o grupo constituído pela Alemanha, Espanha, Suécia e Reino Unido,dedicado à identificação de princípios comuns sobre sistemas de saúde, que se reuniu,em Toledo, dia 14 de Março último, e cujas conclusões serão apresentadas ao ConselhoEmprego, Política Social, Consumidores e Saúde.

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De contornos mais inusitados, é, claramente, o G3, constituído por Alemanha,França e Reino Unido, o qual vem – com o beneplácito mais, ou menos conformado,dos restantes parceiros e do Alto Representante para a PESC – conduzindo, em nomeda UE, as negociações com o Irão, sobre o programa nuclear daquele país.

Paralelamente, proliferam as cimeiras bilaterais, trilaterais, ou ainda maisalargadas, de que resultam conclusões, que depois se procuram referendar a nívelcomunitário (veja-se, por exemplo, esse conjunto de generalidades denominado Pactoda Juventude, que os proponentes conseguiram ver consagrado como “um dos ins-trumentos que concorrem para a realização dos objectivos de Lisboa”!). São cimeirasque ultrapassam, muitas vezes, o âmbito meramente comunitário, convertendo-se – jásem escândalo aparente – em autênticos exercícios de diplomacia paralela face aosmecanismos de acção externa da UE. Se dúvidas houvesse de que assim é, bastaria paraas debelar o exemplo do recente encontro do Presidente de França e dos PM daAlemanha e Espanha, com o Presidente da Rússia... na véspera da Cimeira UE-Rússia.

Além destas formações, mais ou menos heterodoxas, o processo negocial comu-nitário ganhou, como já tive oportunidade de referir mais acima, um actor cujaimportância não cessa de aumentar: o Parlamento Europeu. Ignorá-lo, quando se tratade procurar garantir a defesa dos interesses nacionais, seria suicida. Hoje em dia, paralá dos contactos com os deputados nacionais, é fundamental que se acompanhem asactividades das várias Comissões e que se conheça, tão bem quanto possível, aidiossincrasia das principais personalidades envolvidas na negociação, desde logo osPresidentes e Vice-Presidentes dos Grupos Políticos e das Comissões, bem comorelatores e relatores-sombra.

Em torno do Conselho, da Comissão e do Conselho, movimentam-se hoje inú-meros grupos de pressão, desde Confederações patronais e sindicais, até merosescritórios de representação, ou de advocacia. Para lá de ser fundamental levá-los emconta, até para que melhor se possam identificar os interesses em causa, a argu-mentação que desenvolvem pode constituir um importante elemento de informaçãopara melhor fundamentar posições nacionais.

Perante esta panóplia de estruturas e actores negociais, não se alteram, contudo,os parâmetros que presidem à melhor defesa dos interesses de cada EM: a capacidadepara influenciar a definição da agenda, o conteúdo das propostas e o processo dedecisão. O que, reflectindo sobre o caso português, me suscita as seguintes observações:

– Portugal, mesmo não podendo estar presente em todas as acções sectoriais,deverá garantir a melhor informação sobre todas elas e não hesitar em tomarele próprio a iniciativa de promover a constituição de grupos de países emtorno de matérias que lhe possam interessar de forma mais imediata. Foi, aliás,o que aconteceu com a constituição do grupo dos “like-minded”, quando dadiscussão sobre o projecto de Tratado Constitucional, ou com a formação dogrupo dos “amigos da coesão”, no quadro das negociações em curso sobre as

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próximas Perspectivas Financeiras. A nossa capacidade de mobilização nãodeixará de ser ponderada quando outros decidirem tomar iniciativas seme-lhantes e tiverem que reflectir sobre quais os parceiros a contactar;

– definidas prioridades a nível nacional, deverão ser utilizados todos os meios dedivulgação e persuasão no sentido de procurar que estas sejam assumidas comoparte da agenda europeia. Atente-se, por exemplo, ao caso da França, que vê apolítica de promoção da Investigação contemplar a maior parte das áreas quelhe interessam (espaço, defesa, nanotecnologias, energia termonuclear), bemcomo iniciativas nacionais estratégicas (constituição de pólos de inovação);

– a capacidade para influenciar o conteúdo das propostas implica um acesso àinformação desde os estágios iniciais da reflexão nas instituições comunitárias,bem como um acompanhamento muito próximo dos seus resultados. Daídecorre a necessidade de contactos permanentes com a Comissão e o Parla-mento, bem como com os nossos parceiros, em Bruxelas e nas capitais;

– obtida a informação, há que assegurar uma análise exaustiva das suas impli-cações para o nosso país, em termos de dificuldades, mas também de opor-tunidades. Deve ser evitada, a todo o custo, uma postura permanentementedefensiva, de conservadorismo militante, avessa a qualquer coisa que possaimplicar a necessidade de nos adaptarmos a novas realidades, mesmo quando, aprazo, daí podem resultar importante benefícios para o nosso país.Tal implica ohábito regular de proceder a análises de impacto, tão rigorosas quanto possível(alguém sabe, por exemplo, qual o impacto real – económico e social – que teriaa aplicação do actual projecto de Directiva sobre os Serviços, em Portugal?);

– o carácter multinacional das estruturas administrativas das instituições comu-nitárias tem, entre outras vantagens, a de lhes fazer beneficiar de diferentessensibilidades nacionais, quando da elaboração e reflexão sobre propostas. Daíque seja fundamental a presença de funcionários portugueses nestas estruturas,designadamente em lugares onde as nossas prioridades são mais evidentes.Muito foi feito ultimamente, para isso tendo contribuído a existência de meiosde acompanhamento especialmente dedicados a essa área, na REPER.Trata-se deesforço cujos resultados plenos só se verão a prazo, mas ao qual terá que serdado seguimento;

– os actuais modelos de negociação, fruto do alargamento, conduzem a umacréscimo da importância do papel das Embaixadas bilaterais, desde os estágiosiniciais (muitas das iniciativas institucionais resultam, como vimos, de ideiasprovenientes das capitais), o que deverá ter implicações em qualquer reflexãosobre a extensão, funcionamento e informação da nossa máquina diplomática;

– em todas as fases do processo negocial, para lá da sensibilização da Comissão,do Parlamento Europeu e dos nossos parceiros, Portugal terá que ser capaz demobilizar terceiros em favor dos seus interesses.Trata-se de objectivo tanto mais

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fácil de alcançar quanto maior for a presença e o peso em Bruxelas, das nossasempresas, sindicatos e estruturas organizativas, seja por via de representaçãodirecta, através da participação em confederações europeias, ou integrandoredes de contacto a que as instituições comunitárias regularmente recorrem.

Conclusão Todas as tendências que procurei identificar estão sujeitas ao contraditório daopinião diferente, ou dos acontecimentos que as ponham em causa. Começando,desde logo, pelos que não soube antever.

Falo na importância crescente das considerações demográficas? E que implicaçõesterá (teria?) o alargamento à Turquia? Será que quem tanto se bateu pelo reconhe-cimento do peso particular dos grandes Estados, insistirá, então, na mesma tecla? E senão, que sinfonia nos espera?

Chamei a atenção para a “lisbonização” da agenda económica da União? Imagine-se,apenas, o horror de um ataque terrorista com utilização de armas de destruição maciçae ter-se-á a noção clara da relatividade das prioridades.

Avancei pistas sobre as linhas por que se coze hoje a negociação comunitária?Pense-se num “não” ao projecto de Tratado Constitucional e desafio alguém a acreditarque daí não advenham repercussões quer para a agenda da União, quer para a formacomo ela será negociada. Sobretudo no caso de certos “nãos”...

Enfim, como diriam os nossos amigos anglo-saxónicos, não há nada como oinesperado “to make the elephant dance”.

Em qualquer circunstância, no que nos diz respeito, acredito que as tendênciaspara que aponta a evolução da vida comunitária nos ensinam que o nosso peso naUnião de hoje e de amanhã dependerá, fundamentalmente, de quatro factores:

– o nosso desenvolvimento económico e social, algo particularmente importantequando se não é uma grande potência, mas se quer que os outros nos ouçam.Isto será sempre importante (lembro-me de como quase me doía esta cons-tatação quando estava no Consulado Geral em S. Paulo). No quadro da União,este factor, para um país com o nosso histórico de acesso aos fundos estru-turais, tem um peso acrescido, que é o de ser um exemplo do bem fundado daspolíticas comunitárias. Veja-se a Irlanda, a Espanha, ou, noutro registo, aFinlândia;

– a credibilidade das posições que assumirmos: não será necessário queganhemos sempre, mas é preciso que a argumentação que defendamos nãoponha em causa a seriedade das nossas preocupações. Ou seja, nem sempre nosacharão bem-fundados, mas não podemos permitir que nos acusem de mal--fundamentados;

– a nossa capacidade para influenciar a agenda comunitária, o conteúdo daspropostas e o resultado das negociações: quanto a isso, só poderia repetir o quedigo mais acima;

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– a nossa capacidade de fazer valer o valor acrescentado que constituímos para aUE. Um país que não tenha muito mais para oferecer à União do que uma mãoestendida, terá sempre que se esforçar muito mais para ser ouvido. Isto passapor identificar onde estão esses factores e sectores em que a extensão ao nossoespaço territorial e às nossas competências específicas pode representar umtrunfo adicional para a União (e.g. oceanos, biotecnologia, turismo, relaçõescom África e América Latina).

Não resisto a terminar com uma história, que sempre me marcou. Era uma tardecinzenta, de céu carregado, mas de horizonte limpo. A imponência da vista, o cansaçodas curvas e contra-curvas – estávamos em véspera de auto-estradas – acabaram porditar uma paragem numa berma pronunciada, com ares de miradouro. Saímos docarro, esticámos as pernas e mal haviam começado as loas ao país magnífico que temos –apesar disto, daquilo e daqueloutro – quando um de nós chamou a atenção para ooutro lado da estrada. Cercado por um muro, um pedaço de terra com um ar cuidado,guardava, ao fundo, uma igreja pequena. Como invariavelmente ocorre no nossomagnífico país, a cancela que lhe dava acesso estava trancada. Mas, antes que mais istose juntasse ao coro do que nos faz o mais autocrítico dos povos, demos pela frase quecoloria o branco imaculado do muro. Em letras despretensiosas, quase apressadas,esclarecia-se quem passasse, que a igreja tinha um nome: “Nossa Senhora da Dúvida”!

Convenhamos que um povo que dedica uma igreja a Nossa Senhora da Dúvida ésábio, merece o perdão de quaisquer pecados. E tem todo o direito de desconfiar dequem se arroga o direito de “identificar tendências”.NE

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A questão NUMA SENTENÇA DATADA de 15 de Dezembro de 20041, o Tribunal Internacional deJustiça considerou não ter jurisdição para julgar a acção intentada pela Sérvia e Montenegro contra Portugal e vários outros membros da NATO2, colocando assim um ponto final no processo judicial começado em Abril de 1999 e motivadopela intervenção militar durante a crise do Kosovo, iniciada em Março do mesmo ano.

Este processo ficou inevitavelmente marcado por uma extraordinária inflexãoestratégica no comportamento processual protagonizado pela Sérvia e Montenegroapós a queda do regime de Milosevic. Volte-face tão curioso do ponto de vista político,quão original do ponto de vista jurídico-processual, como daqui a pouco se relatará,mas que constituiu o verdadeiro case of the case do processo, tendo chegado a provocar,a espaços, a ira de uns e os sorrisos de outros dos participantes processuais. Vejamos,primeiro, alguns antecedentes.

Breve resenha histórica sobre a crise do Kosovo A crise do Kosovo constituiu, indubi-tavelmente, a última das «crises», a última ameaça à paz e à segurança internacionais,resultante do conturbado processo de dissolução da ex-Jugoslávia3 ocorrido na últimadécada do Século XX.

Luís Serradas Tavares e Patrícia Galvão Teles | Departamento de Assuntos Jurídicos do MNE*

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“Alice no País das Maravilhas” ou breve história de um

processo no Tribunal Internacional de Justiça: Sérvia

e Montenegro c. Portugal e outros membros da

NATO sobre a “Legalidade do Uso da Força”

* Luís Serradas Tavares é Director do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estran-geiros e Agente da República Portuguesa junto do Tribunal Internacional de Justiça. Patrícia Galvão Telesé consultora do mesmo Departamento e foi membro da delegação que representou Portugal neste caso.

1 O texto encontra-se disponível em www.icj-cij.org.2 Foram dez os Estados inicialmente demandados. Para além de Portugal, foram réus Holanda, Bélgica,

Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos da América e Espanha. Este grupo deEstados não inclui todos os que participaram efectivamente nas operações militares, nem na sua decisão,que foi tomada por unanimidade. Embora os casos tenham sido sempre tratados pelo TribunalInternacional de Justiça como instâncias judiciais separadas, houve coordenação de posições entre os réus.

3 Utilizou-se, propositadamente, a expressão coloquial, que não técnica, “dissolução”. Em termos jurídicos seráquestão de enorme interesse, mas também de elevado grau de dificuldade, classificar, na óptica da teoriageral da sucessão de Estados, se esta «dissolução» correspondeu a independência de partes de umterritório ou a uma separação total de Estados. A evolução dos factos ao longo dos anos legitimou todasas dúvidas e propostas. O Acórdão do TIJ, em nosso entender, apontará para a segunda das alternativas, aoter decidido que a actual Sérvia e Montenegro é um Estado totalmente novo, portanto, não sucessor dapersonalidade jurídica internacional da ex-Jugoslávia.

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A violência no Kosovo agravou-se e generalizou-se em 1997/1998, tendo a partirdessa data o Conselho de Segurança adoptado várias resoluções4 sobre a situaçãopolítica e jurídica nesse território, instando as partes – o Governo de Belgrado e aminoria albanesa do Kosovo – a resolver o conflito pacificamente e alertando para odeteriorar da situação humanitária.

Mesmo nas resoluções adoptadas ao abrigo do Capítulo VII da Carta das NaçõesUnidas, e tendo qualificado a situação como uma ameaça à paz e à segurança inter-nacionais, o Conselho de Segurança nunca chegou, no entanto, a autorizar explicita-mente o uso da força. O «fantasma» de um hipotético veto por parte da FederaçãoRussa ou da China assim o determinou.

Paralelamente, o processo de negociação, liderado por um grupo de contacto,também não apresentava progressos que permitissem, nem uma melhoria da situaçãono terreno, nem a resolução do conflito.Todas as tentativas, incluindo a elaboração deum acordo entre as partes em Rambouillet, falharam.

A situação na região deteriorava-se, resultante dos confrontos entre as forças sérviase o exército de libertação do Kosovo, provocando um elevado número de vítimas civis,deslocamentos populacionais internos e ondas de refugiados para os Estados vizinhos.

A intervenção da NATO Com a escalada da violência (especialmente com consequências paraa população civil, repete-se) e com a ausência de uma resposta eficaz por parte daOrganização das Nações Unidas, a partir de Setembro de 1998 os membros da Orga-nização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) mostraram-se disponíveis para levar acabo uma intervenção militar, mesmo que não expressamente autorizada peloConselho de Segurança.

Os dois principais argumentos invocados pela NATO foram, assim, a necessidadede implementar as resoluções do Conselho de Segurança e o conceito de intervençãohumanitária que permitiria o uso da força para parar graves violações de direitoshumanos e do direito internacional humanitário.

A operação militar iniciou-se em Março de 1999, após várias ameaças de que aforça armada iria ser utilizada. Portugal participou na Operação Allied Force da NATO comtrês aviões F-16 para missões de reconhecimento e com um total de 53 militares, entrepilotos e pessoal de apoio.

A acção intentada no Tribunal Internacional de Justiça Como reacção, em 29 de Abril de1999, o Governo da República Federal da Jugoslávia (que passou a denominar-seSérvia e Montenegro a partir de 4 de Fevereiro de 2003) depositou junto do TribunalInternacional de Justiça uma queixa contra Portugal (e contra os seus parceiros de

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4 Designadamente as resoluções 1160 (1998) , 1199 (1998) e 1203 (1998).

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coligação) pelos seguintes actos alegadamente praticados pelo nosso país ao participarna operação militar da NATO, que ainda se encontrava em curso: violação dasobrigações internacionais de não recorrer à força contra outro Estado, de não interferirnos assuntos internos de outro Estado e de não violar a sua soberania; violação daobrigação de proteger a população e os bens civis durante um conflito armado;violação da obrigação de proteger o ambiente e de respeitar a liberdade de navegaçãonos rios internacionais; violação da obrigação de respeitar os direitos humanos, denão utilizar armas proibidas de não infligir deliberadamente condições de vida com aintenção de causar a destruição física de um grupo nacional.

Como base da jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, a República Federalda Jugoslávia invocou o artigo 36º/2 do Estatuto do Tribunal, com fundamento nasdeclarações de aceitação de jurisdição emitidas tanto pelo autor5 como pelo réu6, etambém o artigo IX da Convenção sobre o Genocídio de 1948.

Estas bases de jurisdição foram também invocadas, em conjunto ou separada-mente, para fundamentar as acções intentadas contra outro membros da NATO,também envolvidos na intervenção militar. Apenas nos casos contra a Bélgica eHolanda foram também invocados tratados bilaterais.

A rejeição pelo Tribunal do pedido de aplicação de medidas provisórias Imediatamente apóster intentado a acção, a Jugoslávia fez também um pedido de aplicação de medidasprovisórias com o intuito de fazer cessar imediatamente os bombardeamentos daNATO contra o seu território, que ainda se encontravam em curso.

O Tribunal Internacional de Justiça rejeitou, por decisão de 2 de Junho de 1999,após ouvidas as partes, o pedido de medidas provisórias pois considerou que primafacie, não tinha competência para julgar o caso contra Portugal e os outros Estados, emvirtude uma reserva temporal incluída na declaração de aceitação da jurisdição daJugoslávia (que valia apenas para o futuro, ou seja para diferendos ocorridos após asua assinatura em 25 de Abril de 1999) e também por, à primeira vista, não estarmosperante um caso de genocídio.

Essa ausência de competência era ainda mais manifesta em dois dos casos, que nessamesma data o Tribunal ordenou que fossem retirados da lista dos assuntos pendentesperante esta jurisdição: os contra os Estados Unidos da América e contra Espanha.

Nos restantes oito casos, incluindo contra Portugal, o Tribunal permitiu que ainstância continuasse, tendo todos os réus elaborado a sua réplica centrada na falta dejurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, desenvolvendo as razões acimareferidas e invocadas pelos próprios juízes.

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5 A República Federal da Jugoslávia depositou a sua declaração de aceitação da jurisdição do Tribunal deJustiça em 25 de Abril de 1999, apenas dias antes de ter intentado a acção.

6 Portugal aceita a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça desde 1955.

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A resposta dos réus Em Julho de 2000, os oito réus depositaram junto do TribunalInternacional de Justiça a sua réplica, alegando essencialmente que o Tribunal nãotinha jurisdição para julgar o caso e que o caso era também inadmissível.

Este “incidente” processual faz normalmente suspender a análise do mérito dacausa, centrado-se o processo apenas nas questões de carácter processual até estasestarem cabalmente resolvidas. Deixou-se, por isso, de discutir a (i)legalidade do usoda força ou a comissão ou não de actos de genocídio, para se discutir apenas se oTribunal era ou não competente.

Portugal argumentou, juntamente com os outros membros da NATO, que aRepública Federal da Jugoslávia não tinha locus standi perante o Tribunal, este não tinhajurisdição e o pedido não era admissível.

A incompetência do Tribunal Internacional de Justiça devia-se a causas rationepersonae (a não qualidade de membro da ONU e de parte no Estatuto do Tribunal daJugoslávia)7, temporis (o limite temporal incluído na própria declaração de aceitação dejurisdição do autor) e materiae (as alegações não se poderiam subsumir à previsão daConvenção do Genocídio).

Um inesperado A queda do regime de Milosevic, que deu origem a uma mudançainterna de regime, mais democrático e pró-União Europeia e NATO, levou o novogoverno de Belgrado a solicitar a adesão da República Federal da Jugoslávia às NaçõesUnidas, o que veio a acontecer em Novembro de 2000.

Em 20 de Dezembro de 2002, a Jugoslávia depositou junto do Tribunal Internacionalde Justiça as suas observações escritas sobre as excepções preliminares dos oito réus.

Num notável documento de apenas duas páginas, em que foi omitida uma respostaa todas as outras excepções preliminares dos réus, a República Federal da Jugoslávialimitou-se a dizer que, em virtude de novos factos entretanto ocorridos, ou seja, aadmissão da República Federal da Jugoslávia como membro da Organização das NaçõesUnidas, em Novembro de 2000, este Estado não era, à data da instauração da acção, partedo Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça nem da Convenção sobre o Genocídio.

A Jugoslávia pediu então ao Tribunal que decidisse sobre a questão da jurisdiçãocom base nos elementos referidos nestas observações.

Esta mudança de atitude da Sérvia e Montenegro, que aproximou indiscutivelmenteas partes – preferindo ambas uma decisão negativa de competência do Tribunal –, levou auma tentativa de negociação quanto à possibilidade de uma desistência formal das acções.

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7 Pois a República Federal da Jugoslávia tinha sido convidada pela Assembleia Geral e pelo Conselho deSegurança a pedir a sua admissão à Organização das Nações Unidas e não tinha sido considerada pelamaioria da comunidade internacional como continuadora da personalidade jurídica internacional daRepública Socialista Federal da Jugoslávia.

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Contudo, a Sérvia e Montenegro nunca aceitou tal proposta, desejando manter aface perante a sua opinião pública (que veria com maus olhos o abandono que umacausa em que o povo sérvio tinha sido directamente alvo dos bombardeamentos daNATO) e tentando capitalizar num possível impacto que uma decisão negativa dejurisdição neste caso teria inevitavelmente nas duas acções intentadas no início dosanos 90 contra si pelos genocídios cometidos na Bósnia-Herzegovina e na Croácia,relativamente aos quais o Tribunal já se tinha considerado competente para procederpara a fase do mérito.

As alegações orais de Abril de 2004 Nas alegações orais sobre a jurisdição do Tribunal, aspartes encontravam-se desta forma numa situação pouco comum, senão mesmopeculiar, de concordância quanto à incompetência deste para se pronunciar sobre omérito da causa!

Recorde-se, a Sérvia e Montenegro (na altura República Federal da Jugoslávia)intentou a acção em 1999, afirmando a competência do Tribunal Internacional deJustiça e alegando que os países da NATO tinham violado o princípio da proibição douso da força e cometido genocídio, mas a partir do final de 2002 passou a sustentarque, tal como alegado pelos réus, o Tribunal não tinha jurisdição para julgar o caso. Oargumento principal – e que o Tribunal acabaria por aceitar – era o de que, com aadmissão da República Federal da Jugoslávia como membro das Nações Unidas em2000, a Sérvia de hoje já não é a Jugoslávia do passado.

Esta mudança de posição, que levou o autor da acção judicial a defender aincompetência do Tribunal e o aproximou das partes adversárias, foi de tal formainédita e pouco usual que levou o advogado do Reino Unido, o Professor ChristopherGreenwood, a comparar – numa bem humorada passagem das alegações orais – oadvogado da Sérvia e Montenegro a um personagem da Alice no País das Maravilhas:

“None of the long line of authorities cited yesterday by counsel for the Applicantcomes anywhere near suggesting a different conclusion. Indeed, he might have donebetter to have relied on the older authority of Humpty Dumpty, who told Alice, in AliceThrough the Looking Glass that ‘when I use a word it means just what I want it to mean;neither more nor less’ (Lewis Carroll, Alice through the Looking Glass, Chap. 6). Appropriatelyenough, Mr. President, Alice Through the Looking Glass is a fantasy story. Indeed, HumptyDumpty might have been rather impressed with the Applicant’s approach to themeaning of words, since Humpty Dumpty appears to have thought that, once used,his words retained the same meaning, while the Applicant’s words are clearly expectedto change with its changing intentions”8.

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8 Legality of Use of Force (Serbia and Montenegro v. United Kingdom), CR 2004/19, parág. 30.

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No final das alegações orais, Portugal pediu ao Tribunal Internacional de Justiçaque decidisse que ao Tribunal não era requerido decidir sobre as queixas apresentadaspela Sérvia e Montenegro ou, em alternativa, que o Tribunal não tinha jurisdição e deque o pedido não era admissível.

Pedidos semelhantes foram feitos também pelos restantes réus.Por seu turno, a Sérvia e Montenegro manteve o seu pedido que o Tribunal se

pronunciasse sobre a sua jurisdição ratione personae nos presentes casos, que rejeitasse asrestantes excepções preliminares dos réus e que, caso considerasse ter jurisdição rationepersonae, prosseguisse para a fase do mérito.

A decisão de 15 de Dezembro de 2004 Como já foi referido, o Tribunal Internacional deJustiça considerou-se incompetente para julgar o mérito da acção intentada pela Sérviae Montenegro contra Portugal e os outros réus.

No seu acórdão de 15 de Dezembro de 2004, comum aos oito casos (apenas compequenas variações que se prendem com as diferenças nas bases de jurisdiçãoexistentes em relação a cada réu), o Tribunal começou por lidar com a excepção “pré--preliminar” que tinha sido invocada por todos e que decorria das ilações quedeveriam ser tiradas da mudança de posição da Jugoslávia quando à jurisdição doTribunal que acima descrevemos.

Com algumas diferenças quanto à qualificação jurídica concreta9, os oito réusargumentaram que, por força da alteração da posição da Jugoslávia, o Tribunal deveriapôr um fim imediato ao caso, in limine litis.

Mas o Tribunal considerou que não podia atribuir qualquer efeito substantivo aessa mudança de posição do autor, tal como pretendido pelos réus, pois a Sérvia eMontenegro solicitava uma decisão sobre a jurisdição, não se podendo inferir da suaconduta qualquer renúncia a uma decisão judicial ou o desaparecimento do diferendoentre as partes.

Por esta razão, o Tribunal procedeu ao exame das outras excepções preliminares,tendo começado por examinar se a Sérvia e Montenegro tinha acesso ao Tribunal em1999, quanto intentou a acção, ao abrigo do artigo 35.º do Estatuto do TribunalInternacional de Justiça.

Na opinião do Tribunal, a questão de saber se a Sérvia e Montenegro era ou nãoparte do Estatuto do Tribunal – apenas no caso de uma resposta positiva haveria apossibilidade de intentar uma acção – era uma questão fundamental.

Portugal, juntamente com os restantes réus, tinha argumentado na peça escrita(nas alegações orais, a ênfase dada a este argumento foi muito diminuta, dado o

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9 Desistência unilateral, acordo tácito quanto à falta de jurisdição, ausência de disputa ou desaparecimentoda mesma, renúncia ao direito de acção, etc..

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caminho escolhido pelo próprio Tribunal Internacional de Justiça na fase das medidasprovisórias)10 que o autor não era membro das Nações Unidas e que, por isso, não eraparte do Estatuto do Tribunal, ao tempo do início do processo. Nos termos do artigo93.º da Carta das Nações Unidas, fora o procedimento especial previsto no artigo 93.º/2,só os membros da Organização são ipso facto partes do Estatuto e só a estes o Tribunalestá aberto.

O Tribunal recapitulou a sequência de eventos relevante para determinar o estatutojurídico da Jugoslávia perante as Nações Unidas entre 1992 e 2000, que era ambíguo econtrovertido. Contudo, o Tribunal chegou à conclusão que um novo desenvolvimentoocorrido em Novembro de 2000 veio pôr um fim a esta ambiguidade.

A Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 55/12, de 1 de Novembro,que admitiu a República Federal da Jugoslávia como membro da Organização a partirdessa data teve o efeito, para o Tribunal, de permitir a conclusão que antes dela aJugoslávia não era membro das Nações Unidas e, logo, não era parte do Estatuto doTribunal Internacional de Justiça no momento em que intentou a acção em questão.Não o sendo, o Tribunal não estava aberto a qualquer direito de acção da sua parte.

Vale a pena citar o parágrafo relevante da decisão do Tribunal Internacional deJustiça: “the Court concludes that, at the time of the filing of the Application toinstitute the present proceedings before the Court on 29 April 1999, the Applicant inthe present case, Serbia and Montenegro, was not a member of the United Nations,and consequently, was not, on that basis, a State party to the Statute of the InternationalCourt of Justice. It follows that the Court was not open to Serbia and Montenegrounder Article 35, paragraph 1, of the Statute”11.

Tendo encontrado um fundamento para a sua incompetência ratione personae – talcomo era pretendido pela Sérvia e Montenegro – o Tribunal absteve-se de se pronunciarsobre as restantes excepções preliminares invocadas pelos réus.

A decisão dos juízes foi tomada por unanimidade, havendo consenso quanto anão ser apropriado o Tribunal exercer a sua jurisdição neste caso.

Verificou-se, no entanto, uma profunda divisão entre os quinze juízes quanto àfundamentação da decisão, tendo sete anexado ao acórdão uma fortíssima declaraçãoconjunta de discordância quanto aos fundamentos da decisão.

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10 Para além disso o Tribunal havia afirmado em Fevereiro de 2003: “General Assembly Resolution 55/12 of1 November 2000 cannot have changed retroactively the sui generis position which the Federal Republicof Yugoslavia found itself vis-à-vis the United Nations over the period 1992 to 2000, or its positionin relation to the Statute of the Court and the Genocide Convention.” Application for Revision case (Serbiaand Montenegro v. Bosnia and Herzegovina), ICJ Reports 2003, parág. 71.

11 Legality of Use of Force (Serbia and Montenegro v. Portugal), ICJ Reports 2004, parág. 90. O Tribunal aferiu aindase a Sérvia e Montenegro poderiam ter acesso ao Tribunal Internacional de Justiça por força do Artigo35.º/2, tendo igualmente chegado a uma conclusão negativa.

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Esta divergência deveu-se à escolha do principal fundamento para a incom-petência do Tribunal segundo o qual a Sérvia e Montenegro não era membro dasNações Unidas à data da instauração do processo em 1999, uma vez que foiadmitida como membro apenas em 1 de Novembro de 2000, estando-lhe negadopor esse motivo o acesso ao Tribunal Internacional de Justiça de cujo Estatuto nãoeram partes. Sobretudo tendo em conta que, nas medidas provisórias, o Tribunaltinha baseado as suas conclusões quanto à sua incompetência prima facie emfundamentos ratione materiae e temporis e não personae. Na decisão final, foi este últimofundamento o único e decisivo.

Os juízes discordantes argumentaram que, embora o Tribunal tenha liberdade defundamentar as suas decisões e que não existe a regra do precedente, este órgãojudicial deve pautar-se por critérios de coerência e previsibilidade e que os argu-mentos acolhidos contrariam a jurisprudência anterior.

Possível impacto da decisão do TIJ A argumentação tecida contradiz jurisprudência anteriordo Tribunal em dois processos paralelos instaurados no início da década de noventapela Bósnia-Herzegovina e pela Croácia, em que a Sérvia e Montenegro se encontra naposição de ré e a ser julgada pela prática de genocídio.

O futuro destes dois processos, em que o Tribunal já se tinha declarado com-petente – considerando que não necessitava pronunciar-se sobre a situação jurídica daJugoslávia entre 1992 e 2000, que era sui generis – e se preparava para iniciar a fase dasalegações orais na questão do mérito da causa, encontra-se agora seriamente compro-metido pela decisão no caso em apreço que põe em causa a possibilidade de defesa datese da continuidade da personalidade jurídica da República Socialista Federal daJugoslávia pela República Federal da Jugoslávia (hoje Sérvia e Montenegro) e daqualidade de parte da Convenção sobre o Genocídio.

Este processo tem já a sua próxima audiência marcada para Fevereiro de 2006, ouseja, depois de tomarem posse novos juízes que serão eleitos no Outono de 2005.

Será, pois, imprevisível saber se o Tribunal irá ser coerente com a decisão tomadaem Dezembro de 2004, que nega a continuidade da personalidade jurídica daJugoslávia, considerando a Sérvia e Montenegro de hoje como uma nova entidade quenão pode ser, em coerência, responsabilizada pelas atrocidades do passado, ou se, maisuma vez, se irá verificar uma alteração na sua posição do principal órgão judicial dasNações Unidas.

De realçar, igualmente, que a evolução algo errática da jurisprudência doTribunal Internacional de Justiça, em matérias tão fundamentais e num momentoem que precisa de afirmar-se como o principal órgão judicial da comunidadeinternacional, não contribui certamente para o reforço do seu papel e do DireitoInternacional.

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Sequelas e conclusão – Uma responsabilidade de proteger? Neste artigo pretendemos fazer,para que fique documentado numa publicação lida pelos interessados na diplomacia enas relações internacionais como a Negócios Estrangeiros, um breve historial deste curiosoprocesso judicial em que, pela primeira vez, Portugal – embora sem ter chegado a sercondenado – se sentou no banco dos réus no Tribunal Internacional de Justiça.

Não é esta, assim, a ocasião apropriada para debater a legalidade da intervençãoda NATO.

No entanto, e sendo certo que Portugal ficou satisfeito com o resultado final dadecisão do Tribunal Internacional de Justiça, de um ponto de vista académico e doDireito Internacional teria sido certamente interessante se o Tribunal, caso fossecompetente para se pronunciar sobre o mérito, tivesse tido uma oportunidade para sepronunciar sobre esta tão debatida questão.

É de salientar que, embora subsistam dúvidas na doutrina sobre a legalidade daintervenção humanitária, existem também fortes indícios de que a consagração destaexcepção ao princípio da proibição do uso da força consagrado na Carta das NaçõesUnidas pode estar já consolidada ou em vias de consolidar.

Ao discutir a legalidade da intervenção da NATO no Kosovo em 1999, o ProfessorBruno Simma – hoje juiz do Tribunal Internacional de Justiça – referia que “only a thinred line separates NATO’s action from international legality”12. Ao mesmo tempo, oProfessor Antonio Cassese perguntava: “are we moving towards international legitimationof forcible humanitarian countermeasures in the world community?”13.

A Declaração do Milénio, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em2000, confirma sem margem para dúvidas, que a protecção dos direitos humanos setem desenvolvido no sentido de ser hoje também um dos princípios fundamentais dodireito internacional contemporâneo, a par da proibição do uso da força, da igualdadesoberana, da não interferência nos assuntos internos ou do direito à autodetermi-nação, gerando potencialmente situações de conflito de princípios, todos eles com umestatuto de normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens).

Foi também na Assembleia Geral do Milénio que o primeiro-ministro do Canadáanunciou a criação de uma comissão internacional independente sobre a questão daintervenção e da soberania dos Estados, para responder ao desafio que tinha sido lançadopelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, à comunidade internacional paratentar construir um novo consenso que permita responder às violações maciças e/ousistemáticas de direitos humanos e do direito internacional humanitário.

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12 B. Simma, “NATO, the UN and the Use of Force: Legal Aspects”, European Journal of International Law (1999),Vol. 10/1.

13 A. Cassese, “Ex inijuria ius oritur: Are we moving towards international legitimation of forciblehumanitarian countermeasures in the world community?” Idem.

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Esta Comissão tinha por mandato promover um debate aprofundado sobre estasquestões e propor um consenso global que permitisse lidar com a polémica ou, muitasvezes, apatia da Comunidade Internacional, designadamente das Nações Unidas, e quepermitisse conciliar as noções aparentemente irreconciliáveis de soberania do Estadoe intervenção.

Composta por doze peritos independentes oriundos dos vários cantos do globo(Canadá, Alemanha, Austrália, Índia, Filipinas, Suíça, Argélia, Estados Unidos, Rússia,África do Sul e Guatemala), esta Comissão apresentou o seu relatório em 2001, queteve o mérito de inverter o ónus neste debate, substituindo a ideia de um direito deintervenção, pela “responsabilidade de proteger” e de fornecer indicações importantessobre quando e como deverá ceder o princípio da igualdade soberana dos Estados e seseria legítima uma intervenção humanitária14.

Esta ideia de uma responsabilidade de proteger foi acolhida positivamente noimportante relatório, publicado nos finais de 2004, do Painel de Alto Nível intitulado“A more secure world: our shared responsibility”15, que tratou a questão como uma “emergingnorm that there is a collective international responsibility to protect”16.

Com base nesta abordagem, o Secretário-Geral das Nações Unidas propõe agorano seu recentíssimo relatório “In larger freedom: towards development, security and human rights forall”17 que os Estados: “Embrace the ‘responsibility to protect’ as a basis for collectiveaction against genocide, ethnic cleansing and crimes against humanity.”

Será dentro destes parâmetros e para responder a estes desafios que a ComunidadeInternacional, alicerçada sempre na ONU, terá de evoluir, provavelmente com sacri-fício de mais parcelas de soberania dos Estados. A tensão dialéctica entre soberaniae defesa dos direitos humanos será assim, a nosso ver, a grande temática internacionaldos novos tempos.

Não seriam já os dois primeiros preâmbulos da Carta das Nações Unidas, quecelebra este ano o seu 60.º Aniversário, premonitóriosa nesta matéria ao referir que:“We the peoples of the United Nations determined to save the succeeding generationsfrom the scourge of war, which twice in our lifetime has brought untold sorrow tomankind, and to reaffirm faith in fundamental human rights, in the dignity and worthof the human person ...”? «....».NE

24 de Março de 2005

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14 International Commission on Intervention and State Sovereignty, The Responsibility to Protect, 2001. Disponívelem www.dfait-maeci.gc.ga/iciss-ciise/report.asp.

15 Disponível em www.un.org/secureworld.16 Cf. parágrafo 203 e recomendação 55.17 A/59/2005 (21 de Março 2005).

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PROCURAREI FAZER UMA breve reflexão epistemológica e analítica sobre o tema.Julgo devermos começar por procurar precisar o conceito de “sistema”.Um sistema é um conjunto consistente de regras e entidades (teorias ou

organismos) que decorrem de alguns princípios (ou axiomas) e que podem serutilmente utilizados nas ciências ou na administração.

Os sistemas nas ciências são, regra geral, (com excepção de certos casos damatemática) linguagens que procuram descrever eventos. Sempre que os eventos semostram incompatíveis com as linguagens, procura-se nova linguagem ou novossistemas – novas teorias científicas.

Os sistemas no âmbito político-social lembram, por vezes, o indeterminismo deHeisenberg. A realidade que os sistemas procuram interpretar e enquadrar reage, porvezes, ao próprio sistema, transformando-se e, como tal, obrigando a modificar o sistema.

No âmbito sociopolítico, poderíamos distinguir, entre outros, sistemas políticos,propriamente ditos, sistemas de defesa, sistemas financeiros (Bretton Woods-ZonaEuro) etc...

Neste contexto, julgo pertinente perguntarmo-nos se se poderá legitimamentefalar de um Sistema Internacional?

A ONU será o único exemplo que pode considerar-se em certos aspectos comoum sistema ou uma ordem internacional com vocação mais universal. A UE podeconsiderar-se outro Sistema, que não sendo incompatível com a ONU, não é globalnem universal.

Podemos também considerar, como mero exemplos, equilíbrios regionais que seregem por normas não expressas, mas que podem ser assimilados a “quasi-sistemas” eque embora não sejam formalizados descrevem realidades regionais – os casos doSudeste Asiático ou do Nordeste Asiático, ambos com um grande actor comum, aChina.

Em suma, fora dos Sistema das Nações Unidas não vejo que haja ou que se possafalar de um Sistema Internacional. Sendo assim, a falar de crise do sistema interna-cional está-se a referir à crise das Nações Unidas, ou não se está a referir nenhumaentidade real, mas antes a uma quimera metafísica.

José Manuel Duarte de Jesus | Embaixador

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Sistema Internacional e ONU – em crise?*

* Conferência-debate na Faculdade de Letras de Lisboa, 2004.

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Por outras palavras: não há uma crise internacional. Há crises no domínio dasrelações internacionais e há problemas, mais regionais ou com implicações maisglobais, independentes das Nações Unidas, e haverá problemas ou – uma crise se sequiser uma linguagem mais dramática – no sistema da Organização das NaçõesUnidas.A – Façamos uma breve reflexão sobre as Nações Unidas e o que hoje se insiste em referir como Crise das

Nações Unidas;B – Façamos depois outra reflexão muito breve sobre algumas das grandes crises que abalaram o mundo

político, depois da segunda guerra mundial, e verifiquemos como elas não tiveram a sua origem nas NaçõesUnidas, mas em factores que são os que permanentemente estão nas origens das chamadas crises –interesses contraditórios de grandes potências.

As Nações Unidas Importante é ter em mente que a Conferência de São Francisco para acriação das NU não obedeceu minimamente a um critério democrático (a repre-sentação foi a de Estados soberanos e não de povos), mas sim à consolidação do poderdas potências vitoriosas da II Guerra Mundial EUA, URSS, RU e China (os entãochamados 4 grandes) com a entrada tardia da França!

Esteve presente na mente dos principais actores americanos da época que as NU –e quando se referia NU referia-se o Conselho de Segurança – constituiriam o melhorinstrumento para a defesa dos seus interesses no mundo –. Refira-se que depois dasegunda Guerra Mundial, estávamos um pouco como hoje, os EUA eram a maiorpotência estratégica mundial. A URSS era a segunda em quase igualdade.

Refira-se a este propósito um comentário de Salazar expresso em telegrama paraLondres sobre a constituição do novo CS ....«mas esta disposição parece repetir Munique comoutros beneficiários... parece deduzir-se que tudo se encaminha para o mundo ser ditatorialmente dirigido porpequeno conselho nações, coisa de si muito séria...».

É importante sublinhar que nos Estados Unidos esta posição era defendida pelaala democrática americana, na altura representada pelos seus principais Presidentes,mas igualmente por conhecidos senadores republicanos como Stassen, do Minnesota,ou Vandenberg, do Michigan.

Se reconstituíssemos todas as manobras dos serviços secretos americanos esoviéticos, durante as negociações de S. Francisco, tornar-se-ia bem mais claro o queas grandes potências anteviam no novo Conselho de Segurança.

É que, para os Estados Unidos, as NU pareciam um instrumento privilegiadopara pôr em prática o que veio a chamar-se a política externa de Trumann econsagrada no famoso NSC 68 (documento de 1950 e ainda hoje não totalmentedesclassificado).

Não obstante este facto, a ala mais conservadora dos Republicanos desencadeou,como se sabe, fortíssima campanha contra esta Organização nos anos 80, especial-mente através dos violentos artigos da Heritage Foundation, que viam nas NU a força

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43contra a “liberdade” das empresas e dos Governos. As NU apareciam, assim, comouma esquerda antiliberal encapotada e que se exteriorizava nas suas diversas tomadasde posição no domínio social e dos direitos humanos.

É de acrescentar ser tão vital hoje para os membros do CS o veto como o eradepois de 1945! Mas mais do que isso, julgo que não é realista pensar em termos desegurança mundial se os principais protagonistas geoestratégicos não tiverem a armado veto à sua disposição.

A AG sempre foi, de certo modo, “a boda aos pobres” ou seja a fachada demo-crática das NU, só que as suas resoluções e votações não constituíam DireitoInternacional. Muito útil, quando o seu voto majoritário coincidia com uma maioriado terceiro mundo, na altura em que os EUA pensaram em liderar esse grupo depaíses, numa perspectiva de defesa dos seus interesses; incómodo, quando esse votonão coincide com as estratégias prevalecentes no Conselho de Segurança.

Outro importante aspecto a não deixar de referir brevemente é como cada um dosEstados-Membros e como a população, em geral, olham para as Nações Unidas.

Uns vêem nas NU um órgão fundamentalmente político, importante no domínioda gestão dos problemas de segurança e defesa – o CS.

Para outros, as NU são o grande fórum mundial onde cada um, os mais pequenosou pobres, têm acesso à palavra e a liberdade de se aliar a outros, na defesa de certosaspectos difíceis de trazer à superfície do palco da cena internacional, dominada pelosgrandes temas de segurança e defesa. É o fórum do terceiro mundo, dos pequenospaíses e hoje da sociedade civil.

Outros ainda olham para o papel inestimável que muitos dos órgãos das NaçõesUnidas desenvolvem a nível técnico e global, no âmbito da saúde, das crianças, dasmulheres, da cultura, dos problemas do desenvolvimento, da protecção ambiental, emuitos outros.

Acresce ainda o papel mais recente das intervenções militares em missões de paz,que põem em prática políticas que tenham luz verde do Conselho de Segurança.

Podemos, obviamente, criticar muito este vetusto edifício das Nações Unidas, masa verdade é que ele, com todos os seus defeitos, resistiu e bem a muitas décadas dedesgaste e crises, a muitos Secretários-Gerais, a muitas pressões de grandes potênciasou de maiorias aritméticas esmagadoras.

Não podemos deixar de não referir aqui o problema da tão falada Reforma dasNU:

Desde 1996 que se tem assistido a um processo de reforma paulatina das NaçõesUnidas. Reforma que tem incidido mais nos aspectos de gestão e de gestão financeira,de isenção e transparência de processos. Não vou referir aqui os chamados track 1 e track2, mas julgo poder afirmar-se que, mesmo no domínio substancial, muito se temtransformado com a criação do departamento de desarmamento (98), a articulaçãocom Bretton Woods e OMC e com o papel, cada vez maior, dado à sociedade civil.

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Refira-se, porém, que a Comissão de reforma do CS foi a que menos avançou e asrazões parecem evidentes.

Certo que o mundo hoje não representa a totalidade dos aspectos que reflectia em45, mas muitos deles ainda são os mesmos.

Não vou, de resto, aqui tratar do problema da modernização do CS, do CS quemais nos serviria hoje; seria por si só tema doutro artigo.

Conclusão Em primeiro lugar, julgo de salientar que há problemas ou crises que decorrem danatureza das próprias Nações Unidas e das ambiguidades das intenções dos seusfundadores, assim como da leitura que cada participante faz dela.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que as NU estão em crise desde que foram criadas.Penso que há que entender objectivamente estes problemas e será grave procurar

escamoteá-los!Em suma, não vejo que a crise ou os problemas das NU sejam de hoje. São de

sempre, vêm desde 1945, assumindo formas diversas.Julgo, porém, que o mundo seria bem pior sem as NU, que, à semelhança da

consciência humana, não impede que a nossa acção seja muitas vezes eticamentecondenável, mas trava, em muitos casos, os excessos e minimiza, noutros, os prejuízos.

A sua eficiência dependerá sempre, em primeiro lugar, do pensamento e do agireticamente correcto dos protagonistas, neste caso dos Estados-Membros.

Vejamos alguns dos grandes acontecimentos ou crises do pós-II Guerra, paraavaliar a natureza das clivagens nos grandes equilíbrios mundiais e o papel ouausência de papel das NU:

Bretton Woods No âmbito da gestação da Carta das Nações Unidas e do UNRRA, surgem nadécada de 40 as instituições de Bretton Woods.

Ideia concebida em 1941, só em 1944 foram assinados os acordos que deramorigem ao FMI e depois o Banco Mundial.

Trata-se daquilo que se pode considerar a matriz financeira do novo mundo dopós-guerra e deve-se, em grande parte, a Dexter White dos EUA e a Maynard Keynesdo RU.

Foi no decurso de muitos jantares informais que as ideias foram debatidas e foramtomando forma.

Não podemos esquecer todas as outras figuras importantíssimas nesta construção,nomeadamente o papel dos países latino-americanos, mas a verdade é que se trata de umamatriz anglo-saxónica onde a Europa Continental – et pour cause – esteve muito ausente.

É interessante notar, de resto, que a URSS foi a primeira beneficiada com o novotratamento do crédito especial de 41, de 1 mil milhão de dólares pelos danos doataque alemão.

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Refiro Bretton Woods, pois trata-se de um pilar importantíssimo do novo mundodo pós-segunda guerra mundial e que não decorreu de nenhuma decisão das NaçõesUnidas.

A Nato Também as negociações conducentes à criação da NATO, as dificuldades decor-rentes da definição do critério dos membros fundadores, mormente os problemascom a Itália e a Noruega, ou com a Grécia e Turquia, ou mesmo com Portugal faceà marginalização da Espanha, não encontraram nas Nações Unidas o seu fórumnegocial.

Aluda-se à primeira reacção francesa, quando De Gaulle, então retirado da polí-tica, se manifestou contra, afirmando ser a NATO um produto dos EUA para servir osinteresses da sua defesa e não os da Europa como, de resto, já havia considerado oPacto de Bruxelas um instrumento para a segurança do Reino Unido.

Refiro este episódio por encerrar ingredientes que julgo serem constantes noutrasocasiões.

NSC 68 – e o General Marshall A pedido do Presidente Trumann, o State Department, emconjunto com o Pentágono, elaborou um documento, que se chamou NSC 68, e queconstituiu aquilo a que veio a ser conhecida como a filosofia da política externaamericana. Criticada hoje por alguns republicanos, como produto de um wilsonia-nismo democrata, a verdade é que ela é, em grande parte, apartidária e corresponde auma matriz nacional da política externa americana.

Nela se integram relacionamentos com as NU e com a Europa – ou algunsparceiros da Europa, que constituem motivos mais ou menos permanentes de futurascrises. O fundo do NSC 68 é ainda hoje, com variantes, base de muito da políticaexterna americana.

O acesso a este documento não tem sido possível, mas conhece-se muito do seuconteúdo por documentos de vários dos seus autores mormente por Dean Acheson.

A axiomática deste papel, resumia-se nos seguintes pressupostos:– A URSS procura a supremacia no domínio mundial através do estabelecimento

de Estados subservientes;– Os EUA procuram contrabalançar esta situação através da promoção de “Estados

livres”, isto é, democráticos que sejam seus aliados.Daqui resultou, face à URSS, uma política armamentista. Chegou a pôr-se, nos

EUA, nessa altura, a alternativa da chamada “guerra preventiva”, hoje tanto na moda.Foi descartada, porque se tratava, naquele tempo, de uma guerra nuclear preventiva eisto, 5 anos depois da segunda guerra mundial, era impensável 1.

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1 Veja-se um discurso de Dean Acheson, em Dallas, a 13.06. 50, em Dallas.

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Esta política definida no NSC 68 viria a ser conseguida através do que se chamouna altura “moral crusade for peace” e de 50 mil milhões de dólares do chamado planoMarshall para a Europa.

A concretização desta filosofia, que corresponde a uma reviravolta na políticaexterna americana e nos pressupostos das situações hoje prevalecentes, foi a decisãode ajuda maciça à Grécia e Turquia em 47, que, como se sabe, estavam numa situaçãode debacle e com uma enorme vulnerabilidade geográfica face à URSS. Refira-se que aentrada económica, militar e administrativa dos EUA nestes dois países teve a apro-vação de ambos os partidos no Congresso, conseguida por Trumann em 1947.

Já aqui os EUA evitam as NU e assumem sós a ajuda, para evitar uma discussão e umpossível veto no CS. Jornalistas como Walter Lippmann criticaram fortemente os EUA, quetiveram, de resto, que introduzir um “ammendment” à lei que referia o expresso pedido deajuda da Turquia e da Grécia aos EUA. Estamos perante o início do que poderíamoschamar a Pax Americana ou o Império Liberal de uma das grandes potências mundiais.

Assume-se, na época de Eisenhower, que só a liderança imediata americana nomundo podia prevenir uma nova guerra mundial 2.

Pareceu claro a Eisenhower que não haveria liberdade, isto é, aliados dos EUAcontra a URSS nalgumas zonas fundamentais do mundo – Europa e Ásia –, se aAlemanha e o Japão não retomassem vigor económico e político dentro da novaestrutura que se vai delineando e decorrente do NSC 68.

Em 1957, num discurso sobre o State of the Union, Eisenhower repete: «First, America´svital interests are worldwide embracing both hemispheres and every continent».

Para entendermos melhor toda a filosofia que prevalece a esta visão do mundo,permita-se-me citar o que se tem chamado o discurso pré-plano Marshall, depois daviagem do General Marshall à Europa:

«It is one of the principal aims of our foreign policy today to use our economic and financialresources to widen these margins. It is necessary if we are to preserve our own freedoms and our owndemocratic institutions. It is necessary for our national security. It is our privilege and our duty as humanbeings».

Em Harvard, o General Marshall revela o Plano Marshall que virá não só beneficiara Europa, dar-lhe a configuração actual, mas que permitirá o arranque do embrião daprópria Comunidade Europeia.

Para melhor caracterizar estes pressupostos citarei uma frase do então Secretáriode Estado americano a este propósito:

«Surely the plan should be a European Plan and come – or, at any rate, appear to come – from Europe.But the Unites States must run the show.And it must run it now».

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2 Veja-se Will Clayton.

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Nessa mesma época, Dean Acheson comentava «The communist threat to Western Europeseemed to me singularly like that which Islam had posed centuries before, with its combination of ideologicalzeal and fighting power». Seria interessante saber como ele hoje descreveria a situação actual.

Plano secreto Schumann/Monet face aos EUA e ao RU no início da Nato Um dos maisimportantes acontecimentos históricos na matriz das relações internacionais tem lugarno mês de Maio de 1950, entre Paris e Londres.

O famoso plano Schumann Monnet, mantido durante algum tempo em segredo,mesmo face ao Gabinete francês, foi inesperadamente revelado, em primeira mão, aosEstados Unidos da América antes de ao Reino Unido. Episódio curioso narrado porDean Acheson, quando da sua viagem para Londres via Paris para uma reunião naLancaster House.

Ficou, de resto, conhecida a famosa reacção colérica de Bevan a este aconte-cimento e que só veio agravar a já difícil relação deste com os Estados Unidos.

Também há que salientar que as NU estiveram totalmente ausentes do episódio eface aos interesses diversos daquele momento, pois estamos perante uma mudançatotal de alianças. Estamos perante uns Estados Unidos entusiasmados com o planofuturo da Europa face a uma Inglaterra marginalizada.

Aconteceu, assim, que a Grã-Bretanha não aceitou o convite que a França dirigiuaos cinco primeiros países para se juntarem numa negociação da futura Comunidadedo Carvão e do Aço – Benelux, Alemanha e Itália.

A resposta inglesa foi «Does not feel able to accept nor reject in advance the invitation…».

Guerra da Coreia Neste caso, estávamos perante uma agressão declarada, quando as tropasnorte-coreanas passaram o paralelo 38 e uma coluna de tanques se dirigiu em direcçãoa Seul.

Houve, então, uma primeira resolução do CS a pedido dos EUA, que exigia acessação de hostilidades e considerava o acto como uma “breach of peace” e não como“um acto de agressão não provocada,” como rezava o texto americano.

A resolução passou sem veto e com uma abstenção (a Yoguslavia).Dois dias mais tarde, face às opiniões de Foster Dulls, então em Tóquio, os

americanos entenderam que seria necessária nova resolução que permitisse a acçãomilitar contra o Norte.

É, de resto, curioso, pois também esta resolução passou sem veto da URSS (julgoque com a abstenção da Índia). A explicação simplista é que o Embaixador Malik, orepresentante permanente soviético, não se encontrava em Nova Iorque e convenien-temente não se fez representar.

No entanto, os EUA, prevendo a possibilidade do veto soviético e julgando queisso poderia trazer a China para o teatro de guerra e desencadear uma III guerramundial, dão ordens para iniciarem as hostilidades militares antes da resolução do CS

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Julgo que é importante referir esta guerra, pois foi certamente das mais san-grentas desta nossa época, cerca de 600.000 mortos, fora os desaparecidos e feridos.Só com a deposição de Mac Arthur e a sua substituição pelo General Ridgway (MacArthur entrara em conflito aberto com Trumann) o State Department anuncia os prin-cípios do Armistício, que vão buscar inspiração aos princípios das NU. Reter aagressão, mas não tentar a reunificação de uma Coreia democrática pelas armas!

Também aqui, por várias razões, foi considerado que as NU não eram o quadroideal para negociar o armistício, que se processou à sua margem. Pode argumentar-seque havia na altura razões importantes, a Coreia do Norte não estava na ONU, aChina também não, mas a verdade é que há sempre uma ou outra razão de peso paraafastar ou recorrer às Nações Unidas.

Já naquela altura as NU não representavam o mundo real da época.

A Crise do Suez Interessante referir a crise do Suez, porque ela não só assumiu granderelevo à escala mundial, como revela que o posicionamento das potências, face àsNU e aos conflitos, depende sempre em primeiro lugar dos interesses tidos comobásicos para cada uma.

Neste caso, vamos verificar enorme clivagem, quase confrontacional, entre EUA e Europa (Reino Unido e França), incomparavelmente maior do que à queassistimos recentemente com o Iraque: os EUA apoiando-se nas NU e a Europaprivilegiando a defesa dos seus interesses e a acção militar unilateral contra aposição das NU.

«There is no peace without law» proclamava Eisenhower num discurso a 31 deOutubro de 56.Também, aqui, convém não esquecer que pouco tempo antes os EUAintervieram sem mandato das NU na Guatemala. O auge da crise assume-se com afamosa carta de Eisenhower a Eden, de 1956, em que os EUA chegam a pôr emcausa a defesa europeia se a Grã-Bretanha intervier militarmente no Egipto.

Foi finalmente necessário recorrer a um infeliz expediente, solicitando a Israelque invadisse o Sinai, para proporcionar uma causa beli, que seria o pedidosimultâneo a Israel e Egipto para retirarem as tropas para 10 milhas do canal. Naconvicção de que Israel não recuaria, a intervenção estava justificada. Foi, como sesabe, um desaire total.

Por fim, é interessante sublinhar que com a Guerra do Suez termina aintervenção geoestratégica da Europa, isoladamente, no mundo, como grandepotência.

«França e Inglaterra nunca serão mais potências comparáveis aos EUA ou àURSS. Nem a Alemanha [...] Não temos tempo a perder: a Europa será a vossavingança», teria afirmado Adenauer a Pineau, MNE francês na altura do fim daguerra do Suez.

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As circunstâncias são totalmente diversas das actuais, certo, mas esse facto éirrelevante para o que procuro demonstrar:

Primeiro, a França estava em plena guerra da Argélia, e a Indochina constituíaainda um problema grande. O Reino Unido nutria ilusões sobre a sua vocação colonialno Médio Oriente (tinha 80.000 homens no Egipto!!) e, por outro lado, os EUAprivilegiavam um diálogo com Nasser, defendendo o que, na altura, consideravam sero principal interesse da sua política externa, tornar-se o líder do terceiro mundo.Tratava-se, de ambos os lados, de duas grandes ilusões – a defesa dos restos decolonialismo e um objectivo nunca atingido.

Em suma, interesses antagónicos num determinado momento e procura desoluções para uma crise internacional de grandes dimensões fora do âmbito dasNações Unidas.

Não obstante ter havido uma última tentativa da França e RU para conseguiremuma cobertura das NU conducente a uma resolução do CS, no sentido de ter aprovadoos chamados 6 princípios, as formas das votações nunca permitiram uma solução aonível do CS.

Refira-se que tanto o RU como a França usaram duas vezes do direito de vetorelativamente a propostas americanas.

Também é interessante referir que, através de Eden, pela primeira vez foi invocadaa possível ajuda no âmbito da NATO, num chamado “out of area scenario” que os EUA, deresto, rejeitaram.

Mais tarde passar-se-ia o contrário entre a Europa e os EUA com o caso do VietNam, ou com a recusa europeia de autorização da utilização de Aeroportos para aponte aérea americana, em 73, no conflito do Médio Oriente.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.Julgo interessante aludir a um comentário de Kissinger «Great Britain, drawing many

of the same analytical conclusions as France had about its own relative weakness, put them in the service ofquite a different policy. Turning away from European unity, Great Britain opted for permanent subordinationto American policy».

A Guerra do Viet Nam Vejamos, rapidamente, como na Guerra do Viet Nam, a maior parte dosaliados dos EUA se dissociaram da guerra, invocando argumentos semelhantes aos queos EUA haviam invocado, por ocasião do Suez.

Mais uma vez, os interesses eram diversos em cada um dos campos.Refiro o Viet Nam, porque estamos perante uma crise e uma guerra que matou

cerca de 1.500.000 pessoas, das quais cerca de 500.000 civis (curioso notar que sóteriam morrido cerca de 58 a 60.000 americanos)

«A história não confia mais a defesa da liberdade aos fracos ou tímidos», não estou a citarnenhum Presidente dos EUA actual, mas, mais uma vez Eisenhower, no seu discursode posse como Presidente, em 53.

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No âmbito desta doutrina, aliada ao princípio de que o interesse dos EUA estárepartido pelo mundo inteiro, e considerando que o Viet Nam do Norte é um “man-datário” da URSS – ameaça do mundo livre – encontrava-se formalizada a justificaçãoda intervenção militar.

Se substituirmos o inimigo, noutro contexto, a URSS ou o comunismo inter-nacional pelo terrorismo internacional, e reconhecermos em A ou B um mandatáriodo mesmo, reconstruímos o que ficou conhecido pela “doutrina do dominó” naavaliação das circunstâncias da política externa americana. Neste quadro entendemosa justificação de outras intervenções militares americanas. Grandes são os paralelismoscom o approach sobre o “eixo do mal”, agora definido pela administração republicanaamericana, que parece ir beber muito da sua inspiração em doutrina dos democratasda década de 50. Há que entender que estamos perante exteriorizações de interessesnacionais e não de princípios partidários americanos.

Dulles, em 1954, ainda durante a guerra da Indochina, pensou numa coligaçãoUnites Action com o RU, a França, a Nova Zelândia e a Austrália para defender DienBien Phu. Eisenhower tentou também convencer Churchill, em 1954, mas em vão.

Como se sabe, os EUA não assinaram os acordos de Genebra (assinados por 9 países) que criaram, de resto, a situação que iria provocar o quadro da futura guerraque só se terminaria com os novos Acordos de Paris de 73.

Com a intervenção na guerra do Viet Nam, os EUA vão, de certo modo, substituira luta da França na Indochina, uma vez despida do manto aparente do colonialismo.

Nestas décadas assistimos à substituição sucessiva dos inimigos dos EUA, queirão condicionar a sua política externa – o colonialismo, o comunismo, oterrorismo.

Com o colonialismo e o comunismo na versão asiática, os EUA prefiguram aguerrilha como a forma de luta do futuro e os EUA deverão preparar-se para ela nopalco do Viet Nam, como hoje se prefigura o terrorismo como a guerrilha dofuturo.

Um ataque do Viet Nam do Norte – presumível ataque, como refere Kissinger –determina um ataque em massa ao Norte, que constituía, no ver dos dirigentes deentão, um objectivo que servia os interesses da política externa americana. Umadecisão unilateral, à margem de uma cobertura das NU, legitima o envio de 500.000homens armados para a guerra do Viet Nam.

Refira-se como o PM do Viet Nam do Norte, numa entrevista ao New York Times, em66, foi clarividente ao afirmar que militarmente os EUA vencerão, mas a longo prazo,mais vietnamitas estarão dispostos a morrer pelo Viet Nam do que americanos... ebasta confrontar o número de vítimas.

Em 1966, o senador Fulbright criticava então os EUA pela arrogância do poder epor confundir «power with virtue and major responsabilities with a universal mission».

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Desta feita, são os EUA que numa intervenção isolada, embora com mais potênciabélica, vão terminá-la, um pouco como a Europa, no Suez, agindo isoladamente. Maisuma vez, se repetem cenários com outros actores, outros protagonismos, outrosinteresses em jogo. Mais uma vez as NU não foram actores neste drama, com excepçãoda sua intervenção no fim para ajudar a pôr termo ao conflito no terreno.

Conclusão Julgo que estes exemplos tomados dentro de um critério perfeitamente aleatório –outros poderiam ter sido referidos – mostram com algum realismo as conclusõesreferidas no início.

Não há uma crise actual e particular do edifício das Nações Unidas hoje em dia.A crise faz parte da sua própria natureza para tratar de problemas de índole desegurança e defesa.

Este edifício integra, de resto, muitos outros aspectos que são essenciais para agestão do mundo e da sociedade de hoje.

Ele não esgota o quadro em que se desenrolam as relações internacionais.No quadro das relações internacionais têm prevalecido como motores e factores

determinantes os interesses permanentes ou ocasionais dos estados intervenientes emcada contexto de crise, apenas mitigados pelo chamado direito.NE

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s Introdução ESTAMOS OU NÃO a acordar para uma nova manhã de nevoeiro, propensa aacidentes, nomeadamente nucleares?

As perspectivas da Conferência de Revisão do NPT (Non Proliferation Treaty) quedecorreu em Nova Iorque, entre 2 e 27 de Maio de 2005, não são animadoras masnão há outro caminho senão o que se faz, caminhando. De novo se verá paísesdetentores de armas nucleares a acusarem os que a elas, dissimuladamente,procuram aceder, de violação do Tratado e estes a acusarem os que persistentementeadiam o desarmamento nuclear, de incumprimento. Será a primeira conferência deRevisão depois do 11 de Setembro e fará 30 anos que, em Genebra, em 1975, serealizou a primeira do género. Mas porque todos deverão reconhecer que, sem oNPT, o número de países detentores de armas nucleares passaria, hoje, a meiacentena, o NPT é tão precioso como a ONU.

Certamente que a perspectiva da “pre-emption”, opção estratégica contempladaabertamente no capítulo V da Estratégia Nacional de Segurança dos EUA, de 2002,paira sobre todos os países representados, bem como a conclusão a que chegaramas sucessivas comissões de Investigação sobre a existência de Armas de DestruiçãoMaciça no Iraque e que não abateram a base eleitoral dos Governos dos principaisparceiros da coligação. Acima de tudo, ficarão as alegações de países como o Irão,os quais, à semelhança dos casos precedentes da Índia, do Paquistão ou da Coreia doNorte, sempre desembocaram em assumidos programas nucleares de defesa.

E, bem entendido, a pre-emption diz respeito ao não-compromisso dos principaispaíses detentores de armas nucleares em deixarem de lado o recurso a estas paraprevenirem ou desarmarem, por exemplo, eventuais ataques químicos ou biológicos.Pre-empt significa portanto – que fique claro – recorrer ao uso antecipado de umadiscutível prerrogativa de legítima defesa com armas cujos efeitos dificilmente seintegram no conceito de guerra justa. O efeito dissuasório, mas também proliferadorda ameaça do “Quê”, vem agora reforçado com a ameaça do “quando”.

Enquanto o maior arsenal de material nuclear susceptível de alimentar aproliferação permanece obscuramente vigiado na Federação Russa, os EUA ins-crevem no Orçamento para 2005, pela primeira vez desde o abandono do TratadoABM (Anti-Ballistic Missile) e da declaração de não-vinculação aos “thirteen steps” para ototal desarmamento atómico, uma lista de cenários para a retoma de testesnucleares.

André Bandeira | Diplomata

A Proliferação das Ameaças

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Há um critério de zonas em que avulta o Médio Oriente (onde, além do Irão,se destacam a Arábia Saudita, o Egipto ou a Síria), mas uma série de áreas em situaçãogeoestratégica complexa, como o Japão, Taiwan, a Coreia do Sul ou outras, onde asincertezas do futuro reabilitam capacidades tecnológicas e financeiras adormecidas,como o Brasil ou o México, que certamente complicarão as discussões de umregime internacional já de si pouco habituado à boa fé.

Estamos assim à beira de um risco de catástrofe nuclear? A resposta correcta dirácertamente que não estamos à beira de uma proliferação de catástrofes, porque hámais interlocutores e, portanto, há mais possibilidade de verificação no regime.

Mas o regime já não é suficiente. É preciso que a dissuasão nuclear deixe de serum jogo lógico de previsões racionais e se torne uma experiência analítica dascondições reais. Portanto, o que se pede é menos “jogos de guerra” e mais “guerrade ideias”. Aceita-se mais idealismo para legitimar o unipolarismo restante, masexige-se também mais realismo para reconhecer o multipolarismo crescente.

1 – Proliferação e Armas de Destruição Maciça “Proliferação” e “Armas de DestruiçãoMaciça” não são a mesma coisa. Se bem que o termo “proliferation” tenha vindo a serusado quase como uma metonímia da difusão e disseminação por mãosindeterminadas, deste tipo de armas – ao mesmo tempo que o respectivo conceitose alarga aos subprodutos da tradicional tríade NBQ (nuclear, biológica e química) –as duas exprimem realidades diversas.

A proliferação é um fenómeno que acompanha certos aspectos da economia demercado, em particular, e da economia privada, em geral, mesmo quando esta nãopode ser ainda entendida como “mercado” (por exemplo, certos aspectos tribais dointerconhecimento pessoal na nossa civilização designados como de “economiaparalela”, ou no mundo árabe-muçulmano – a asabyya – ou confucionista – o guanxi),ou o simples desenvolvimento científico e tecnológico.

Não posso deixar de recordar que a revista brasileira Veja, então difundida emPortugal, há já trinta anos, publicava uma entrevista com um estudante norte--americano, empregado numa pizzeria e que tinha, exclusivamente com base nosconhecimentos adquiridos na Universidade, chegado à “fórmula” da bomba atómica.

A proliferação, além de ser um fenómeno social, é também um fenómenobiológico que mereceu mesmo, nos anos sessenta, estudos biomatemáticos comdirecta relevância estratégica, como foi o caso daqueles efectuados pela dupla norte--americana Thomas Schelling/Anatol Rapoport. Por outro lado, a estrutura de reali-dades “contínuas”, em que os factos se referem indefinidamente uns aos outros,ocupou igualmente matemáticos e lógicos como o moderno austríaco Kurt Goedelou o clássico helénico Zenão de Eleia.

Fiquemos por dar como significado à “proliferação” o do problema que osregimes internacionais, compostos por Tratados, normas internas e práticas diplo-

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máticas, sejam eles de não-proliferação ou contra-proliferação, tentam resolver.Proliferação consiste, então, no fenómeno da competição e da concorrência entrearmas de superioridade estratégica.

Quanto à definição de ADM (Armas de Destruição Maciça) diremos que issoconstitui um outro problema, tornado bem evidente quando equipas de terroristasaltamente motivados e aparentemente armados apenas de “consumos de secretaria”conseguiram provocar, em 11 de Setembro de 2001, o maior ataque terrorista deefeitos massivos alguma vez sucedido em território dos EUA.

A tragédia da escola de Baslan, na Rússia, levanta igualmente questões pertinentes.Um pelotão de terroristas dispostos a morrerem, nas fase inicial, intermédia e final dasua “operação” (e, eventualmente, também durante a fase preparatória) comporta emsi um efeito massivo que pode ser utilizado tacticamente por um comandante, emteatro de guerra e, portanto, valer como ADM. Este ataque, depois das revelações feitaspor algumas das vítimas sobreviventes, permite-nos imaginar uma guerra assimétricajá de contornos convencionais, onde unidades militares mais extensas travam batalhascom métodos suicidas. De facto, o ataque suicida deixou de ser operado porindivíduos ou pequenos “comandos”, mas por unidades organizadas das quais não fazparte do plano a eventualidade sequer da sobrevivência física.

A já contínua onda de ataques perpetrados pelo Hamas em Israel, tomando emconsideração a indiferenciação quer das vítimas, quer do local, comporta em si,desde logo, um efeito massivo. Recentes definições de um ditador ou da disse-minação de armas de pequeno porte (nas quais se incluem as minas antipessoais),ou ainda a reapreciação do uso de armas convencionais em contextos histori-camente recentes, fazem pensar no alcance do conceito de ADM.

Por outro lado, ninguém diria à partida que os fertilizantes agrícolas, acumu-lados e dispostos como foram por Timothy McVeigh e o seu bando, num camiãojunto ao edifício Alfred Murrah em Oaklahoma, poderiam ter o efeito que tiveram,enquanto o pequeno número de vítimas e alguma simulação dos ataques perpetradoscom “Anthrax”, a seguir ao 11 de Setembro reduziu, à partida, o efeito “massivo” deum importante e comprovado “dispositivo” de guerra biológica de massa.

Certos ecocídios, como Tchernobyl ou aquele que a Union Carbide provocou emBhopal, Índia, em 2 de Dezembro de 1984, lançando uma nuvem de gás altamentetóxico e que teria provocado de imediato cerca de 16 mil mortos, ou ainda umaexplosão num paiol em Lagos, Nigéria, em 27 de Janeiro de 2002, que vitimou deimediato um milhar de pessoas (sem contar com as vítimas provocadas pelo pânicoque se seguiu), contribuem igualmente para um eventual alargamento do conceitodo que constitui uma ADM. O mesmo se diga de uma cuidadosamente orquestradacampanha de incitamento ao ódio, no Ruanda.

Dir-se-ia que é sobretudo a intenção do autor dos ataques que acaba por definiro seu efeito massivo, mais do que as próprias capacidades tecnológicas. Afinal, numa

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sociedade em que vários subsistemas assentam uns nos outros, é difícil definir oefeito massivo de um dispositivo tecnológico. A cadeia das causalidades pode não terfim (sobretudo em Biologia, onde se tende mais a falar de direccionalidade que deEvolução), mas é sobretudo o contexto polemológico do seu uso que define oslimites, bem como o acto e o momento de “armamento” (weaponization) conferido auma certa tecnologia.

2 – À entrada: o Iraque Ao fim destas considerações, e passado tempo suficiente, estamosprontos a ver que a questão do Iraque não é tão evidente, do ponto de vista dosinteresses do Ocidente, como certos dos seus dirigentes a quiseram fazer ver, nemtampouco como os respectivos detractores a quiseram rever ou caricaturar. SaddamHussein e os seus colaboradores tinham usado ADM contra inimigos internos eexternos, haviam tentado um programa nuclear que foi cortado cerce pelo ataqueisraelita a Osirak, em 1981.

Ora, quanto mais a conjuntura interna evoluísse, do ponto de vista de umregime totalitário para uma situação desesperada, mais depressa aqueles tentariamrecuperar uma capacidade perdida ou seriamente afectada.

O que é certo, é que a gravidade da situação não podia nem repousar nasnecessidades de cobrir uma série de incompetências ou negligências em matéria deSegurança interna nos EUA e que facilitaram o 11 de Setembro, nem no exagero quealguns fazem do Direito Internacional e dos seus limitados mecanismos.

O que sucede no Iraque e já tinha sucedido na região, entre as duas Guerras noséculo XX, é mexer com uma das forças mais poderosas da História, o nacionalismo,neste caso amplificado com a moderna “fuga para diante” fundamentalista de umnacionalismo árabe, frustrado nas suas imitações do Ocidente, experimentadas nopós-Guerra. Por mais que nos convençamos, a situação só tenderá a piorar, mesmomantendo-se como está, pelo elemento desestabilizador que tende a reforçar-se como tempo.

Afinal, se há legitimidade e conformidade ao Direito, em apoiar a coligação e atarefa hercúlea a que se propôs, isso não tem tanto a ver nem com argumentospuramente idealistas nem com argumentos de um pragmatismo materialista a que aespiritualidade dos povos continuará a opôr uma resistência sem fim.

Tem tudo a ver com o envolvimento profundo do regime de Saddam Husseinmuito mais na correlação das forças à escala global do que à escala regional. Numasociedade iraquiana profundamente dividida como era a que resultou de 25 anos deguerra interna, regional e de amplitude mundial, o que aconteceria mais tarde oumais cedo seria o que está a acontecer agora, mas sem o claro empenho do Ocidenteem pôr em prática um plano para a região. Se a justificação de Ashcroft para aoperação “Iraqi Freedom” não convence quase nenhum jurista, convence um cientistapolítico, mesmo que não seja realista.

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3 – Em torno: os quatro pilares da não-proliferação São quatro os principais regimesinternacionais de não-proliferação: o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (NPT) aConvenção de Proibição das Armas Tóxicas e Biológicas (BTWC) a Convenção dasArmas Químicas (CWC) e a Iniciativa de Segurança contra a Proliferação (PSI).

O NPT é geralmente considerado a pedra angular dos regimes de não-proli-feração. Foi assinado em 1968, entrou em vigor em 1970, e foi indefinidamenteestendido quanto à sua duração em 1995. É um regime quase universal, agrupando189 países. Cuba e Timor-Leste aderiram, a Líbia declarou a sua vontade (jásecundada por alguns actos) em divulgar o seu programa de ADM e a Coreia doNorte balança entre poder ou não poder ser considerada excluída. Só restam de foraa Índia, o Paquistão e Israel.

Sem o NPT, o mundo de hoje teria atingido uma dimensão nuclear aterradora.Tomando em conta as tendências dos anos setenta, seriam hoje entre 25 ou 30países a deterem a bomba atómica. Segundo fontes russas esse número orçaria osquarenta.

O NPT tem um objecto específico “armas nucleares ou outros engenhosexplosivos nucleares bem como os sistemas de controlo sobre estes...” – Art. I, mastambém uma finalidade “cada Parte Contratante compromete-se a prosseguir nocurto-prazo negociações num espírito de boa fé sobre medidas efectivas relativas àcessação da corrida ao armamento nuclear e sobre um Tratado relativo ao desar-mamento geral e completo, sob efectivo e estrito controlo internacional” – Art. VI.

O NPT foi reforçado com uma lista de “13 passos”, acordado em 2000, mas daqual os EUA se consideram desvinculados e que estabelece uma série de medidasconcretas para a consumação efectiva do desarmamento nuclear. Além disso, umprotocolo adicional foi assinado em Viena, no fim do ano transacto, que reforça osistema de salvaguardas, sob o qual todas as instalações nucleares dos países-membrostêm de se colocar com respeito à Agência Internacional da Energia Atómica.

O NPT tem agora a sua Conferência de Revisão em Nova Iorque. Para esseefeito, reuniram-se três Comités Preparatórios de há três anos a esta parte. O últimoPREPCOM que deveria desbravar o caminho para que a Conferência de Revisão seconcentrasse em questões de não-cumprimento e implementação das normas nemconseguiu que o Sumário do presidente fosse anexado, como tal, ao Comunicadofinal. Para além da divisão habitual entre países desenvolvidos, acusados de enca-rarem o clube da energia atómica como um clube exclusivo, e os países em vias dedesenvolvimento que a ele se sentem com direito de aceder, esta Sessão perfiloupaíses como os EUA contra o Irão, ou a África do Sul contra os EUA.

A BTWC, que deve ser considerada como um seguimento da Convenção deGenebra de 1925, foi assinada em 1972 e conta agora com 151 membros (dos quais15 apenas signatários, como é o caso do Egipto e da Síria), restando 27 como não--membros (é o caso de Israel).

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A BTWC realizou a sua 5.ª Conferência em Novembro de 2002, depois da sessãode 2001 ter sido suspensa, o que se traduziu, segundo os especialistas, no desperdíciode um ano inteiro, e isto quando o desenvolvimento tecnológico, nomeadamente emGenética, se acelera. Não se conseguiram definir medidas de implementação da Con-venção, tendo sido então acordado convocar três encontros anuais em interinidade,antes da Conferência de Revisão em 2006. Desta série, o que decorreu em 10-14 deNovembro de 2003 mostrou claramente a falta de vontade das Partes em conseguiremassinar um protocolo de conformidade e medidas executivas. Estes encontros sãodedicados ao relato das medidas nacionais de transposição da Convenção para aLegislação interna, pelo que não se espera que dêem grandes frutos.

A BTWC ressente-se enormemente do segredo da Indústria farmacêutica, dosdesenvolvimentos acelerados da Genética e da Microbiologia molecular e, narealidade, o que diferencia uma preparação biológica militar de uma preparaçãoterapêutica reside sobretudo na intenção do preparador.

A CWC entrou em vigor em 29 de Abril de 1997 e conta agora com 160 países--membros. Destes, há 21 signatários que ainda não ratificaram e, de momento,12 países não fazem parte do regime.

A CWC instituiu uma Organização, a OPAQ, que tem como principais órgãosum Conselho Executivo (composto por 41 membros originais representando 5 gruposregionais) e a Conferência propriamente dita, que é o órgão político por excelênciada OPAQ. O Conselho Executivo supervisiona o Secretariado Técnico, coopera comas autoridades nacionais e actua como facilitador entre as várias Partes se estas assimo requererem.

A CWC é geralmente criticada por utilizar uma má técnica normativa: tanto osseu artigo I (obrigações gerais) como o artigo II (Definições e Critérios) recorrema conceituações extensivas e enumerações que tendem a ser ultrapassadas pelo ritmode inovação, quer do mercado, quer da Ciência, quer das intenções bélicas dosinvestigadores.

A mais importante diferença entre os regimes BTWC e CWC reside no facto deque a Convenção das Armas Químicas, apesar de mal financiada, conta com umsistema de verificação, ou de challenge inspections que qualquer Parte pode solicitar aoutra Parte, em qualquer momento, e sobre qualquer parte do território desta ousobre locais e instalações sob a sua jurisdição (Art. IX, p. 8). Este tipo de inspecçãoserá levado a cabo excepto se uma maioria de três-quartos do Conselho Executivovotar, num prazo de 12 horas, o fim da medida.

A CWC é criticada alegadamente pela sua ineficácia, tendo os EUA acusado o Irãode continuar a produzir armas químicas. Do mesmo modo, a Rússia é acusada de tercontinuado a desenvolver, por exemplo, agentes binários de gás nervoso (o programaNovichok), os quais, apesar de caírem sob a proibição geral do artigo I, não fariam partedas listas de materiais submetidos ao último calendário de verificação aprovado.

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A Iniciativa de Segurança contra a Proliferação (Proliferation Security Initiative ouPSI) tomada pelo Presidente dos EUA, George Bush Jr., em Cracóvia, em Maio de 2003,é mais uma actividade de intensificação de mecanismos pré-existentes, como o SeniorProliferation Group da NATO, o Wassenaar Arrangement, ou o Australia Group, em matéria deinterdição marítima, aérea e terrestre, do que uma inovação legal de espíritounilateralista.

O facto de o grupo de 16 países da PSI ter conseguido negociar acordos com oPanamá e a Libéria, responsáveis aproximadamente por 70% dos pavilhões deconveniência e 50% do tráfico marítimo mundial, tem entusiasmado outros paísesa aderirem. Cerca de 60 países estiveram em Maio de 2004 na Polónia para celebraro lançamento da iniciativa ocorrida um ano antes.

O PSI já procedeu a vários exercícios conjuntos e a operações discretas masaguarda ainda um resolução do Conselho de Segurança da ONU que lhe confira totallegitimidade. Países como a República Popular da China e a Federação Russa, queconfinam uma com a outra numa fronteira terrestre de cerca de 4300 Km, puseramem causa a compatibilidade do regime instituído pela PSI com a Convenção da ONUsobre o Direito do Mar. Ora, sem o acordo destes países, sobretudo tendo em contaa postura especial de ambos relativa à Coreia do Norte, um dos presumivelmentemais eficientes proliferadores mundiais, a iniciativa terá um sucesso muito limitado.

É também de referir a Parceria Global contra a Disseminação de Armas eMateriais de Destruição Maciça lançada pelo G-8 durante a respectiva cimeira deJunho de 2002. O G-8, mais 13 parceiros adicionais, ter-se-iam já comprometido areunir até 20 biliões de USD, (16.6 biliões de Euros) para prevenir que armasperigosas e materiais relativos venham a cair em mãos erradas.

4 – À saída: a NATO Ao cabo da Cimeira de Istambul, a Aliança Atlântica fez evoluir o seuconceito de que a Proliferação e a tecnologia de aplicação míssil eram apenas umassunto de “séria preocupação” (ponto 22 do Conceito Estratégico da Aliança,aprovado em Washington, em 1999) para o conceito de que o “Terrorismo e aproliferação de ADM” são as “ameaças que enfrentamos hoje em dia” (p. 18 doComunicado final de Istambul).

Escusados estamos, à partida, de referir a importância da definição de umaameaça, na sequência dos documentos que servem de elementos interpretativos daevolução do conceito estratégico da Aliança, como é o Comunicado Final deIstambul. A definição de ameaça está pressuposta, por exemplo, numa consideraçãosemântica do artigo 51 da Carta das Nações Unidas, o qual reconhece o direitonatural de qualquer membro ou não-membro da ONU à legítima defesa.

Este artigo, que restringe muito o direito à legítima defesa nas relaçõesinternacionais, tem sido objecto de grande controvérsia, sobretudo depois de aEstratégia Nacional de Segurança dos EUA, de Setembro de 2002, no seu capítulo V,

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parágrafos 10 a 14, estabelecer um direito preventivo de intervenção (pre-emption)que não encontrou ainda cabimento legal (ou mais: por ora, está fora da Lei e doscompromissos positivos internacionais).

Por outro lado, a enunciação de uma ameaça tem, naturalmente, um efeito deescalada, pois a enorme maioria das intervenções armadas posteriores à entrada emvigor da Carta da ONU basearam-se numa interpretação lata, se não mesmo abusiva,do artigo 51 da Carta, tomando a existência de ameaças como iminência de ataquearmado.

O alto grau de secretismo e informalidade da proliferação, que se encontraentrelaçada intimamente com os mecanismos das diversas globalizações culturais(ocidental, islâmica, confucionista), tornam a simples posse organizada de ADM, oumateriais com elas correlacionados, como uma ameaça. A proposta de que aConferência de Revisão do NPT venha a proibir o enriquecimento de urânio, mesmopara fins pacíficos, por parte daqueles que não possuam armas nucleares, poderánão ser aprovada, deixando o critério de ameaça num certo “Estado de Natureza”prévio aos regimes instituídos. Mas terá de ser retomada mais tarde.

O debate tem de continuar quanto ao modo como lidar com essas ameaças,nomeadamente, tendo em conta como evitar que elas proliferem. Sendo a ameaçaum conceito muitas vezes difícil de precisar, a imprecisão das instâncias que odeterminam, é, por si só, um elemento ameaçador e factor de instabilidade.

E não poderá haver entendimento, numa dessas instâncias, a do Atlântico, semfazer uma opção estratégica comum a nível de contra-proliferação. Sem pedir que sereveja o conceito estratégico da Aliança, é contudo legítimo pedir que seja aplicadoestrategicamente em tempos de (ainda) fragmentação de um sistema bipolar. E éjusto protestar que se recorra à irrevisibilidade do conceito estratégico para o aplicarapenas tacticamente, não já como uma “Apólice de Seguro” na Defesa europeia, mascomo um “fundo de maneio” político norte-americano.NE

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Introdução Passado mais de meio século sobre a assinatura do Armistício que suspendeu ashostilidades da guerra da Coreia, a estrutura estabelecida naquele instrumentojurídico mantém-se inalterada e as duas metades da Nação1 permanecem separadaspela Zona Desmilitarizada, ao nível do paralelo 38. Pretendendo ultrapassar asituação de divisão e confronto na Península Coreana e não privilegiando o modelode integração “à alemã”, o Presidente Kim Dae-jung (Presidente sul-coreano de1998 a 2003) avançou a política designada de sunshine. De forma suscinta, estapolítica defende a intensificação das relações inter-coreanas baseadas em medidas eprogramas de pacificação, reconciliação e cooperação, com o objectivo de atingir areunificação nacional. Integra ainda a política sunshine o apelo dirigido aos váriospaíses do Mundo para que igualmente favoreçam o engagement da República Demo-crática e Popular da Coreia (RPDC) em vez do isolamento.

No contexto da realização da política sunshine é de destacar a Cimeira de Junhode 2000 pelo simbolismo, dramatismo e visibilidade que assumiu. Numa atitudesem precedente, o Presidente Kim Dae-jung viajou directamente de Seul aPyongyang para se encontrar durante três dias com o Sr. Kim Jong-il, Presidente daComissão Nacional de Defesa da RPDC, na prática dirigente máximo do país. NestaCimeira, os dois líderes, para além de manifestarem a sua concordância relativa-

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1 Os coreanos afirmam frequentemente que têm 5000 anos de história.Também o mito de Tangun sustenta a ideia de que a história da Coreia tem mais de 4000 anos.Tangun,figura lendária, era filho de Hwanung e de uma mulher terrena. Hwanung era filho de uma figuracelestial (Hwanin) e desceu à Coreia onde viveu como Rei entre seres humanos.Tangun nasceu no ano2333 a. C., durante 1500 anos governou o seu Reino, com a capital situada perto de Pyongyang e oseu território designava-se “Joseon”, o que significa “Terra da manhã calma”.Arqueólogos admitem que os coreanos são descendentes de grupos que se instalaram na Penínsuladurante o Neolítico (em três movimentos migratórios sucessivos, entre 5500 a.C. e 2000 a.C.) e declãs provenientes da Ásia Central (de língua altaica) que chegaram à Coreia na Idade do Bronze, porvolta dos séculos IX e VIII a. C.. Assim se formou um povo homogéneo e distinto dos vizinhos do pontode vista étnico, cultural e linguístico.Historiadores consideram que os primeiros reinos surgiram na Península no período entre os anos3000 a.C. e 1000 a.C.. A unificação da Coreia é situada no ano 668, data em que dois terços daPenínsula (a parte sul) foram colocados sob o controlo do Rei de Shilla (na sequência da anexação dosReinos de Koguryo e Paekche). Desde o ano 936, um único Estado passou a ocupar quase todo oterritório que actualmente corresponde às duas Coreias (embora a actual fronteira da Coreia do Nortecom a China date do século XV).

As famílias separadas pela zona desmilitarizada da Coreia

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mente à ideia da reunificação nacional e de decidirem estabelecer cooperaçãobilateral em vários sectores, acordaram realizar encontros entre norte-coreanos esul-coreanos pertencentes às mesmas famílias. Na sequência desta decisão, numcontexto de algum desanuviamento político e num ambiente de grande esperançarelativamente ao futuro das relações inter-coreanas, foi possível o trabalho decolaboração da Cruz Vermelha dos dois países para aliviar um dos grandes dramasdo povo coreano, o das famílias separadas.

Lançamento de acções humanitárias dirigidas a famílias separadas Segundo a Cruz Ver-melha, mais de 10 milhões de coreanos são membros de famílias separadas pelaguerra. Calcula-se que o número de sul-coreanos com familiares no Norte seaproxime de 7,67 milhões e, destes, 1,23 milhões estão separados de parentes deprimeiro grau. Estes números são bem elucidativos da dimensão desta tragédiahumana e da inevitabilidade das suas graves consequências psicossociológicas.Micael Breen refere a este respeito “the Koreans are truly a broken hearted people”2.

Evidentemente que a temática das famílias separadas pela guerra se colocatambém dentro de cada um dos países3 e em países terceiros4, mas optei por limitareste artigo às famílias que se encontram separadas pela barreira física e ideológicaestabelecida ao nível do paralelo 38. Estes casos são especialmente dramáticosporque a Zona Desmilitarizada que separou irremediavelmente os coreanos dos doislados, por motivos ideológicos, colocou-os na posição de inimigos mortais. É desublinhar que esta separação em vida abrange frequentemente os familiares maispróximos, tais como pais e filhos ou cônjuges. A trágica ambivalência destas famíliasfoi ainda agravada porque a seguir à guerra ambos os países passaram a exercergrande controlo sobre os respectivos nacionais.

Apesar do ambiente de confronto e de controlo e repressão que se viveu nasduas Coreias5, a partir de Agosto de 1971, realizaram-se algumas tentativas para

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2 Ver Micael Breen, “The Koreans”, pág. 38.3 Na República da Coreia, em 1983, portanto trinta anos após o final da guerra, a televisão KBS organizou

um programa destinado a reunir membros de famílias separadas pela guerra. No estúdio as pessoasinteressadas apresentavam-se pelo nome e terra natal e indicavam quem procuravam. Os telespectadoresque reconheciam os seus familiares precipitavam-se para o estúdio da televisão criando situações degrande emoção. O programa durou um pouco menos de cinco meses, participaram mais de 100 milpessoas e, por este processo, conseguiram reunir 10180 membros de famílias separadas.

4 Particularmente após 1988 (na sequência da “Declaração de 7 de Julho”) o Governo sul-coreano, emcolaboração com a Cruz Vermelha, adoptou medidas importantes no sentido de apoiarem, inclusiva-mente com assistência financeira, a localização e intercâmbio de membros de famílias separadas empaíses terceiros.

5 “In the decades following the war, with both sides ruled by soldiers in civilian clothes, the Cold War was never colder than it was inKorea”. Michael Breen, “Kim Jong-il: North Korea’s Dear Leader”, pág. 26.

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avançar com acções humanitárias visando as famílias separadas pela Zona Desmi-litarizada. As iniciativas que surgiram neste período – décadas de setenta e de oitentae primeira metade da década de noventa – foram encorajadas pelo ambiente dealgum degelo político proporcionado pela publicação do “Comunicado Conjunto”(1972) e pela adopção do Tratado sobre Reconciliação, Não-Agressão, Intercâmbioe Cooperação entre o Sul e o Norte (“Acordo Básico”) (1992) e da Declaração sobreDesnuclearização da Península (1992). Todavia, das várias iniciativas e do intensotrabalho da Cruz Vermelha apenas resultou um encontro de famílias separadas, de20 a 23 de Setembro de 1985. Nesta ocasião, 35 sul-coreanos deslocaram-se aoNorte para se encontrarem com 41 pessoas das suas famílias e 30 norte-coreanosfizeram o percurso inverso para igualmente se reunirem com 51 parentes.

Desde o início do mandato do Presidente Kim Dae-jung, a Coreia do Sul tentoudiscutir com a RPDC a questão das famílias separadas (designadamente nasnegociações de Vice-Ministros que tiveram lugar em Pequim, de 11 a 17 de Abril de1998, e na segunda ronda das mesmas negociações, em Pequim, de 22 de Junho a3 de Julho de 1999), mas não obteve qualquer resultado substancial. Apenas naCimeira histórica de Junho de 2000 esta problemática veio a receber uma atençãoespecial, tendo sido discutida nos encontros bilaterais dos dois dirigentes e consa-grada na Declaração de 15 de Junho. Nos encontros bilaterais, o Sr. Kim Dae-jung eo Sr. Kim Jong-il (que nesta Cimeira surgiu com uma imagem positiva6) afirmaramque a situação dos membros de famílias separadas, enquanto questão humanitária,deveria ser resolvida com a maior urgência. Também referiram que esta temáticadeveria ser considerada e trabalhada gradualmente, num processo que tomasse emconta a posição das duas partes. Defenderam ainda que o processo deveria incluir a

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6 Kim Jong-il com uma imagem de déspota e sobre quem recaíam sérias suspeitas de envolvimento em actosterroristas apareceu na Cimeira de 2000 com uma imagem muito diferente. Surgiu como um homeminteligente, bem versado em assuntos internacionais, detentor de uma firme visão, um estadistaracional e até humanista e, acima de tudo, apresentou-se como um parceiro que poderia trazer umanova era às relações inter-coreanas.Esta mudança da imagem do líder norte-coreano foi fundamental para o ambiente de esperança que aCimeira provocou.Em 2002, a imagem de Kim Jong-il, particularmente no que respeita à sua credibilidade comonegociador, veio a sofrer uma acentuada inflexão. Em Janeiro, o Presidente Bush, no discurso sobre oestado da União, incluía a Coreia do Norte no “eixo do mal”. Em Outubro, a RPDC, alegadamente,admitia vir a desenvolver um programa nuclear secreto de enriquecimento de urânio (não obstante ternegociado/congelado o programa nuclear à base de plutónio).Nesta linha, acrescente-se ainda que, em Fevereiro de 2003, foi conhecida a transferência secreta e ilegalde 200 milhões de dólares para a RPDC efectuada pela Hyundai Merchant Marine, quatro dias antes da Cimeirade 2000. A Comissão Independente constituída para averiguar o assunto concluiu que tinham sido trans-feridos 450 milhões de dólares e, deste montante, 100 milhões destinaram-se à realização da Cimeira.

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63confirmação das pessoas que estão vivas, a realização de reuniões de membros defamílias separadas e finalmente a liberdade de viajar e visitar os respectivos fami-liares, decidida livremente pelos interessados. Como primeiro passo deste processo,concordaram autorizar membros de famílias separadas a encontrarem-se por ocasiãodo 55.º aniversário da Libertação Nacional. Na mesma perspectiva, o artigo 3.º daDeclaração de 15 de Junho estabeleceu o seguinte: “O Sul e o Norte decidem resolverprontamente questões humanitárias, tais como a troca de visitas entre membros defamílias separadas por ocasião do Dia Nacional da Libertação, 15 de Agosto, e asituação de comunistas sentenciados com longas penas de prisão no Sul.”

Efectivamente, a Cimeira de 2000, relativamente à temática das famílias sepa-radas, surgiu com uma visão inovadora para aliviar a problemática, delineou umprojecto ambicioso, contribuiu com um impulso significativo para o arranque deacções humanitárias e, desta forma, estabeleceu a ruptura com o período anteriormarcado por tentativas incipientes de abordar a questão. Pelos motivos invocados é ummarco fundamental neste processo e, consequentemente, os encontros de famílias e asreuniões inter-coreanas da Cruz Vermelha são contados a partir desta Cimeira.

A 17 de Junho de 2000, portanto imediatamente após a Cimeira, funcionáriosda RPDC contactaram telefonicamente o Presidente da Cruz Vermelha da Coreia doSul, através do escritório de ligação de Panmunjom, propondo a realização denegociações sobre famílias separadas e sobre prisioneiros. Entretanto, efectuaram-sevários outros telefonemas, através do escritório de ligação, e foi acordado realizarnegociações no Monte Geumgang (Coreia do Norte), de 27 a 30 de Junho de 2000.Nesta reunião as duas partes reafirmaram a intenção de realizar o “primeiroencontro” de famílias separadas, por ocasião do Dia Nacional da Libertação (15 deAgosto). Efectivamente, este encontro veio a realizar-se, de 15 a 18 de Agosto de2000, e integrou reuniões simultâneas em Pyongyang e em Seul. Nesta ocasião, afim de se reunirem temporariamente com alguns parentes, 100 norte-coreanosdeslocaram-se a Seul e 100 sul-coreanos viajaram a Pyongyang. Encontraram-se nototal 1170 pessoas. Foi um evento com grande cobertura mediática e a comunicaçãosocial norte-coreana também se referiu pormenorizadamente ao assunto. O Nortediminuiu a propaganda durante o período do encontro, numa atitude contrastantecom a que tinha adoptado em 1985. Parece, por conseguinte, ser de concluir que aRPDC manifestou interesse no sucesso do encontro.

Na sequência de decisões da segunda reunião inter-coreana da Cruz Vermelha(Monte Geumgang, 20 a 23 de Setembro de 2000) e da terceira reunião inter--coreana de nível ministerial (Jeju, 27 a 30 de Setembro de 2000), realizou-se o“segundo encontro” de famílias separadas, de 30 de Novembro a 2 de Dezembro de2000. Este evento seguiu o formato do primeiro encontro e reuniu 1220 pessoas.Num gesto particularmente significativo, as autoridades da RPDC autorizaram umpescador que havia sido raptado a encontrar-se com a delegação do Sul.

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Também na sequência de acordo obtido na quarta reunião inter-coreana denível ministerial (Pyongyang, 12 a 16 de Dezembro de 2000) e na terceira reuniãointer-coreana da Cruz Vermelha (Monte Geumgang, 29 a 31 de Janeiro de 2001),realizou-se o “terceiro encontro” de famílias separadas que, adoptando a estruturados encontros anteriores, incluiu reuniões simultâneas em Pyongyang e em Seul, de26 a 28 de Fevereiro de 2001. Reuniram-se 1240 parentes.

Assim chegou ao fim uma fase do processo de reunião de membros de famíliasseparadas pensada inicialmente como experiência piloto a levar a cabo até ao finaldo ano 2000 mas que, no entanto, acabou por deslizar para o primeiro quarto de2001. Neste período realizaram-se três encontros e reuniram-se 3630 parentes.Todos os encontros seguiram o mesmo formato: incluiram reuniões simultâneas emSeul e em Pyongyang e integraram grupos de cem pessoas de cada lado que sereuniram temporariamente com um número variado de parentes. É de realçar aindaa iniciativa de, no mês de Março de 2001, se proceder à troca de cartas e fotografiasentre 300 membros de famílias separadas de cada lado. Durante este período tambémforam iniciadas negociações para o estabelecimento de um centro permanente dereunião de famílias separadas.

Admitiu-se que após o período inicial considerado como experimental esteprocesso viesse a expandir significativamente quer em termos qualitativos quer emtermos quantitativos. Dado que, até ao presente, tal não aconteceu e o processoevoluiu de forma relativamente contínua, a divisão do tema em duas fases poderáser considerada um pouco artificial e, consequentemente, devo referir que a divisãodo artigo em duas partes corresponde especialmente a uma opção metodológica.

Continuação do processo Em 2001, após o atentado terrorista de 11 de Setembro, a Coreiado Sul colocou as forças armadas em estado de alerta e, devido a este facto, asrelações inter-coreanas passaram a evoluir de forma mais lenta. A decisão de realizaro quarto encontro de famílias separadas, tomada na quinta e na sexta reuniões inter--coreanas de nível ministerial (Seul, 15-18 de Setembro e Monte Geumgang, 9-14de Novembro), ficou sem efeito. Apenas em Abril de 2002, o Conselheiro doPresidente da República para os Negócios Estrangeiros e Segurança Lim Dong-wonque, na qualidade de Enviado Especial do Presidente, visitou Pyongyang, com oobjectivo de relançar as relações inter-coreanas, conseguiu desbloquear a situação eavançar com a realização do “quarto encontro”. Este evento teve lugar, pela primeiravez, no Monte Geumgang e decorreu em duas rondas (de 28 de Abril a 1 de Maioe de 1 a 3 de Maio). Primeiramente, 99 sul-coreanos encontraram-se com 183 parentes do Norte e, na segunda ronda, 100 norte-coreanos reuniram-se com466 parentes do Sul.

Na 7.ª reunião inter-coreana de nível ministerial (Seul, 12 a 14 de Agosto de2002) foi decidido realizar o “quinto encontro”, por ocasião do Chuseok. De facto,

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este evento veio a ter lugar no Monte Geumgang, de 13 a 18 de Setembro de 2002,e seguiu o formato do encontro anterior. Na primeira ronda, 99 sul-coreanosencontraram-se com 221 parentes e, na segunda ronda, 100 norte-coreanos encon-traram-se com 458.

O “sexto encontro” realizou-se no Monte Geumgang, de 20 a 25 de Fevereirode 2003, e foi organizado nos mesmos moldes dos anteriores. Neste encontro,ambas as delegações foram constituídas por 99 pessoas; a do Norte encontrou-secom 461 parentes e a do Sul com 191. Relativamente a este evento é de referir queos sul-coreanos viajaram para a Coreia do Norte por uma via rodoviária queatravessa a Zona Desmilitarizada e nas reuniões anteriores tinham viajado por mar.

A realização do “sétimo encontro” foi decidida na 10.ª reunião inter-coreana denível ministerial (Pyongyang, 27 a 29 de Abril de 2003). O encontro decorreuigualmente no Monte Geumgang, de 27 de Junho a 2 de Julho de 2003. 110 sul--coreanos encontraram-se com 217 familiares e, na segunda ronda, 100 norte-coreanosencontraram-se com 472. É de referir também que neste encontro uma sul-coreanase encontrou com o filho que fora raptado.

O “oitavo encontro” teve lugar no Monte Geumgang, de 20 a 25 de Setembrode 2003, e decorreu nos mesmos moldes dos encontros anteriores. Reuniram-se 942 parentes (143 do Sul com 246 e 100 do Norte com 453).

Na sequência do acordo obtido na 13.ª reunião inter-coreana de nível minis-terial (Seul, 3-6 de Fevereiro de 2004), o “nono encontro” veio a realizar-se noMonte Geumgang, a 29 de Março de 2004. Tinha sido combinado que o eventodecorreria até 3 de Abril, todavia, no dia 2, as autoridades norte-coreanas abrup-tamente terminaram o encontro, na sequência de referências que consideraram“insultuosas”, por parte de um funcionário sul-coreano, dirigidas ao Sr. Kim Jong-il.O motivo do “insulto” foi um comentário relativo a uma frase inscrita numa rochaque refere Kim Jong-il como “um grande comandante vindo do céu”. Este encontroreuniu 969 pessoas.

O “décimo encontro” teve lugar no Monte Geumgang, de 11 a 16 de Julho de2004, e seguiu o formato dos encontros anteriores. Iniciou-se um dia após a Coreiado Sul recusar autorização a uma delegação do sector privado para visitar a RPDC,por ocasião do 10.º aniversário da morte de Kim Il-sung. A RPDC criticou o Sul ecancelou uma reunião de cooperação marítima programada para essa semana masmanteve o encontro de famílias separadas. Não obstante a retórica norte-coreananão corresponder necessariamente às posições que o país adopta, noto que auto-ridades de Pyongyang consideraram que este encontro renovou a esperança do fimda tragédia das famílias separadas. As mesmas autoridades acrescentaram que atragédia poderá terminar através de assistência mútua entre o povo do Norte e o doSul e pela dedicação à causa de missões patrióticas de unidade do povo e unificaçãodo país.

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66 Entretanto, a RPDC congelou as relações inter-coreanas de nível governamentalna sequência do acolhimento de 468 refugiados norte-coreanos em Seul, em Julhode 2004.

Assim, em síntese, desde a Cimeira de 2000 até esta data, realizaram-se dezencontros de famílias separadas. Afigura-se-me que o traço mais constante desteseventos é o ambiente de dramatismo e de grande emoção das reuniões de familiaresseparados, na maior parte dos casos há mais de cinquenta anos (excepção para assituações decorrentes de raptos), conscientes de que passada aquela ocasião éinevitável a separação definitiva7.

Durante este período, o funcionamento dos encontros conseguiu alguma siste-matização. Cada encontro passou a compreender duas rondas e é estruturado deforma a que os parentes se encontrem privadamente e em reuniões colectivas.Todasas reuniões passaram a realizar-se no Monte Geumgang onde será construído umcentro permanente de reunião de famílias separadas. Relativamente a este centro, emnegociações de sucessivas reuniões8, acordou-se que a sua construção será efectuadana área do Monte Geumgang e terá capacidade para receber mil pessoas. Para oestabelecimento do centro, o Sul fornecerá o material e o equipamento e o Nortedisponibilizará o terreno e o pessoal. Perspectiva-se que a cerimónia de lançamentodo centro possa ter lugar em 2005.

Os procedimentos relacionados com a organização dos encontros também evo-luíram no sentido de maior sistematização. Da lista de espera do Sul, com mais decem mil pessoas, são seleccionados os candidatos considerados como prioritáriosem função da idade e da possibilidade de terem parentes próximos no Norte. Desteconjunto de candidatos seleccionados são sorteados duzentos. Posteriormente, aA

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7 Passo a referir três casos que ilustram o ambiente que envolve estes encontros. Embora se trate de casos queefectivamente ocorreram no quarto encontro, são idênticos a muitos outros que tiveram lugar nasrestantes reuniões pelo que podem ser considerados “exemplos genéricos”.A Sra. Kim Bun-dal de 87 anos de idade caiu no chão quando se encontrou com o seu filho mais velho(70 anos) que lhe perguntava se ainda o conseguia reconhecer. Mais tarde ela dizia que estava muitocontente por ver o seu filho e que o julgara já morto.A Sra. An Jong-sun de 74 anos, acompanhada pelo filho de 55 anos, encontrou-se com o marido. Elanunca mais casou e afirmou que sempre rezara para voltar a ver o marido, pelo menos uma vez.A Sra. An Jong-yong de 93 anos ficou sem palavras quando se encontrou com o filho Cho Kyong-ju que,com dezanove anos, foi obrigado a integrar o exército norte-coreano durante a guerra de 1950-1953.Desde que o filho partira a Sra. An, todos os dias, às 10 horas, se recolhia e acendia uma vela emmemória de Cho.

8 O projecto relativo ao estabelecimento de um centro permanente de reunião de famílias separadas evoluiuparticularmente na 4.ª reunião inter-coreana da Cruz Vermelha (Monte Geumgang, 6-8 de Setembro de2002), na 8.ª reunião inter-coreana de nível ministerial (Pyongyang, 19-22 de Outubro de 2002), na 2.ª reunião de trabalho inter-coreana da Cruz Vermelha (Monte Geumgang, 15-17 de Dezembro de 2002)e na 3.ª reunião de trabalho inter-coreana da Cruz Vermelha (Monte Geumgang, 20-22 de Janeiro de 2003).

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Cruz Vermelha do Sul e a congénere do Norte trocam as listas de duzentos candi-datos. Entretanto, cada uma das partes procura o paradeiro dos parentes das pessoasconstantes da lista e confirma se se encontram vivos. Uma vez ultimado estetrabalho, cada lista de duzentos candidatos deve ser reduzida para cem participantesque se encontrarão com um número variado de parentes (contudo, no 7.º e no 8.ºencontros houve alguma assimetria das delegações). Por vezes o número de pessoasde cada delegação acaba por ser inferior a cem, devido a problemas de saúde deúltima hora e a falecimentos9.

Este processo das famílias separadas, não obstante vir a evoluir no sentido demaior sistematização e a avançar de forma relativamente regular, não se encontratodavia definitivamente consolidado. Da abordagem, necessariamente rápida, decada um dos encontros transparece que, apesar de se ter pretendido conduzir esteassunto desligado de interferências de carácter político, na prática ele foi repetidasvezes influenciado por circunstâncias políticas internas e externas. Assim, emborano contexto de inúmeras dificuldades, o processo segue, passo a passo, devido aopersistente e intenso trabalho da Cruz Vermelha e ao apoio governamental dadodesignadamente em reuniões inter-coreanas de nível ministerial onde avançamtambém outros dossiers relacionados com a política sunshine, nomeadamenteprogramas de cooperação económica.

Considerações finais Desde que tive conhecimento que o meu segundo posto no estran-geiro seria na Embaixada em Seul passei a seguir com interesse particular toda ainformação disponível sobre o Nordeste Asiático. Os acontecimentos que no Verãode 2000 se precipitavam na Península Coreana correspondiam à minha curiosidadee aumentavam o meu interesse em partir rapidamente para o local onde me pareciaque tudo ia finalmente acontecer. Eu estava segura que havia chegado o tempo dena Coreia o racional prevalecer sobre o irracional, o bem prevalecer sobre o mal. Jáno meu último mês de estadia em Abidjan tinha conhecimento do primeiroencontro de famílias separadas que entretanto se realizava. O meu pensamentopartilhava então da euforia geral e eu assumia que era evidente que aquele eventotão mediático, tão dramático e tão carregado de emoção influenciaria de formadeterminante os responsáveis e num curto prazo todos os coreanos teriam liberdadede se encontrarem com os seus familiares. Por esta via mais humanitária se realizariatambém a reconciliação nacional e este processo iria contribuir, mesmo quemodestamente, para esbater a barreira existente ao nível do paralelo 38. Hoje, já na

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9 Em todos os encontros, a idade das pessoas era, na maior parte dos casos, muito avançada. Por exemplo, no5.º encontro a delegação do Sul integrou 6 pessoas nonagenárias, 33 octogenárias, 41 septuagenárias e19 sexagenárias. A delegação do Norte tinha 3 pessoas octogenárias, 56 septuagenárias e 41 sexagenárias.

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parte final da minha estadia em Seul, devo reconhecer que esta ideia sobre aevolução das relações inter-coreanas, em geral, e sobre o processo das famíliasseparadas, em particular, teve muito de ilusório.

Efectivamente, do desanuviamento político e da execução da política sunshinenão resultou diminuição da ameaça militar por parte da RPDC. Pelo contrário, aodegelo político a RPDC associou aumento de pressão militar10. E a tensão naPenínsula aumentou significativamente desde Outubro de 2002 na sequência daRPDC, alegadamente, ter admitido vir a desenvolver o programa nuclear de enrique-cimento de urânio. O processo de reconciliação inter-coreano, de momento aindaensombrado por sérias ameaças, depende acima de tudo da evolução das nego-ciações a seis sobre a questão nuclear cuja complexidade e incerteza são inques-tionáveis. De facto, continuam a configurar-se como possíveis os quatro cenáriosteóricos para a evolução da situação na Península, desde os mais promissores aosmais trágicos, embora com diferente grau de probabilidade – manutenção do statusquo, engagement, guerra ou absorção na sequência de implosão da RPDC. Estes cenáriosimplicam incertezas não apenas para a Península Coreana mas também para oequilíbrio do poder da Ásia do Nordeste e desta situação decorrem importantesdesafios estratégicos para o sistema de segurança regional do futuro. Até ao momento,relativamente a esta temática a política sunshine não pode ser avaliada muitopositivamente, tendo-se revelado como algo incipiente. Idêntica avaliação terá de serfeita relativamente à política de “Paz e Prosperidade” do Presidente Roh Moo-hyun.

Mas, por outro lado, é justo reconhecer que a Cimeira de 2000 produziu umnovo momentum para a cooperação, o intercâmbio e o estabelecimento de medidaspara a criação de confiança na Península. A política sunshine provocou um degelopolítico considerável e favoreceu o reconhecimento de Seul pela RPDC. É de realçarainda que foi neste novo contexto que o processo das famílias separadas recebeu o

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10 O Comandante das Forças Americanas colocadas na Coreia (também Comandante das Forças das NaçõesUnidas e Comandante do Comando Conjunto das Forças Americanas e Coreanas) General Schwartz, em27 de Março de 2001, perante o Comité de Defesa do Senado americano considerou haver umaimportante brecha entre a redução de tensão política e a capacidade e aptidão militar das forças norte--coreanas. Declarou que as forças da RPDC se encontravam “maiores, melhores e mais próximas”. Nosúltimos tempos tinham sido colocadas unidades ofensivas em posições avançadas. 70% das forçasterrestres no activo haviam sido posicionadas numa área desde a Zona Desmilitarizada até 100 milhasa norte. Nesta área em 1980 estavam cerca de 40% das forças mencionadas e, em 1998, 60%.Por outro lado, a CIA num relatório submetido ao Congresso, em Novembro de 2002, estimou que aRPDC começou a produzir centrifugadoras em grande quantidade em 2001. Evidentemente que estadeclaração respeita a um importante avanço do alegado programa nuclear de enriquecimento de urânioque desencadeou a actual crise nuclear. Acrescente-se ainda que a Coreia do Sul, desde 1999, vinha adisponibilizar informações aos Estados Unidos sobre vários passos da RPDC tendentes a implementaro programa de enriquecimento de urânio.

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impulso decisivo ao seu lançamento e o apoio fundamental aos desenvolvimentosque tem vindo a conhecer. Efectivamente, desde 2000, os encontros das famíliasseparadas, apesar de várias dificuldades, têm-se realizado de forma relativamenteregular. Todavia, este processo tem vindo a seguir sem conhecer expansãosignificativa nem no ritmo dos encontros, nem no formato, nem no número decoreanos que se reúnem. Alguma ambição dos sul-coreanos tem esbarrado comnegociadores norte-coreanos sempre muito cautelosos. Embora não pretenda in-dicar explicações sobre esta atitude (é evidente que haverá muitas), permito-metodavia avançar que este dossier, essencialmente humanitário, se assumisse umadimensão significativa proporcionaria visibilidade na RPDC ao contraste dos doissistemas existentes na Península e seria então inevitável que os norte-coreanosverificassem que a História favoreceu a evolução política e económica do Sul e foidesfavorável ao regime “estalinista-confucionista” do Norte. Este processo se expan-disse poderia ser mais uma fenda por onde entraria alguma luz num país dominadopor um regime que defende a sua sobrevivência mantendo os cidadãos comple-tamente isolados do exterior.

Numa avaliação final objectiva, é de considerar que o resultado deste processo –dez encontros de escassos dias reunindo, no total, cerca de dez mil pessoas, oprojecto de construção de um centro de reunião permanente, troca de algumascartas e de algumas fotografias, sistematização de procedimentos – é muito pouco.Mas, contraditoriamente, é justo reconhecer que estas reuniões de entes queridos,separados em vida, que ao longo de décadas assumiram essa circunstância comoirremediável, têm, do ponto de vista humano, um valor incalculável e eraminimagináveis, ainda há poucos anos. Pelo que a avaliação terá de ser positiva enegativa e o sentimento transmitido por este tema terá de ser acompanhado damesma dualidade, terá de oscilar entre a decepção e a esperança. Entretanto, oprocesso segue assim de forma ambígua, circunscrito a uma dimensão que nãoconstitui qualquer ameaça ao controlo da sociedade na RPDC nem coloca qualquerdilema em questões de segurança mas que não é satisfatório do ponto de vista dosmilhões de familiares separados.NE

Bibliografia

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rna1 – Introdução A língua e a cultura constituem elementos patrimoniais da matriz identitária

das nações. A sua defesa e promoção representam, por isso, uma expressãooperatória inequívoca do conceito de interesse nacional permanente acentuando, aomesmo tempo, a relevância decisiva da dimensão cultural da Política Externa.

Considerando a imperatividade da defesa e da promoção da identidade culturalportuguesa, através de uma política externa centrada na concretização de objectivosconsensualizados em termos de interesse nacional, torna-se pertinente e oportuno,reflectirmos sobre a dimensão cultural da política externa portuguesa, como vectorestratégico específico, da afirmação de Portugal no mundo.

Estas reflexões revestem-se, aqui e agora, de um significado especial. Emprimeiro lugar porque, dentro de um ano, celebraremos o primeiro centenário dafundação do nosso Instituto, cujos antecedentes remontam à criação da EscolaColonial, fundada a 18 de Janeiro de 1906, na Sociedade de Geografia de Lisboa,pelo Senhor Dom Carlos I, Rei de Portugal.

Em segundo lugar, porque a nossa Escola é também a expressão concreta dosesforços desenvolvidos pelo Professor Adriano Moreira, que ao longo de mais decinco décadas, tem procurado acentuar a importância e o significado da dimensãocultural e linguística dos relacionamentos entre as comunidades lusófonas. A atri-buição do seu nome ao auditório em que nos encontramos constitui, para além dahomenagem, o reconhecimento da simbiose operada entre uma figura dereferência incontornável da vida pública, académica e científica portuguesa, e ainstituição universitária secular, à qual se dedicou desde 1950, e que projecta, hoje,a sua dinâmica na sociedade portuguesa, ao serviço da Ciência, da Comunidade edo País.

Finalmente, porque entrámos num novo século, num novo milénio, e ostempos que atravessamos, e ainda mais os que se adivinham, adquirem contornosinesperados, difusos e preocupantes. Perante a inevitabilidade de os enfrentarmos,

Victor Marques dos Santos | Professor Associado ISCSP – UTL

Portugal, a CPLP e a Lusofonia

Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política

Externa*

* Texto da Oração de Sapiência da Sessão Solene de Abertura do Ano Lectivo de 2004/2005 do InstitutoSuperior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, proferida no AuditórioAdriano Moreira, do ISCSP – UTL, em 12 de Janeiro de 2005.

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torna-se imperativo e urgente um exercício de reflexão individual e colectiva sobreo que significa ser português, e sobre o que queremos que Portugal seja hoje e nofuturo, enquanto estado soberano integrado na comunidade internacional.

Para vencermos os desafios que se perfilam no horizonte imediato será neces-sária a mobilização de todos os recursos disponíveis e de todos os esforços. Nestecontexto, a língua e a cultura portuguesas constituem áreas de potencialidadesestratégicas inexploradas, aguardando apenas que as vontades políticas seconciliem com a imaginação criativa e a ousadia inovadora dos portugueses e dosluso-falantes espalhados pelo mundo, no sentido de as transformarem emrealizações concretas, através de projectos de acção, que visem a presença activa ea participação consequente dos povos de expressão lusófona, no seio de umacomunidade humana, em processo de mudança acelerada. Pensamos que aUniversidade, em geral, e o ISCSP, em particular, deverão assumir um desempenhofundamental nesse processo.

Iniciaremos estas breves reflexões descrevendo a génese da ideia que esteve naorigem da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Referiremos, opapel da organização na defesa da lusofonia, bem como a problemática da suaidentidade cultural e política. Desenvolveremos uma perspectiva sobre a CPLP e alusofonia, enquanto factores da dimensão cultural da política externa portuguesa,e enquanto vectores potenciais de projecção estratégica, num plano alargado derealização do interesse nacional.

2 – A génese de uma ideia O relacionamento informal estabelecido, ao longo de váriosséculos, entre os povos que utilizam a língua portuguesa como vector comu-nicacional, constitui o embrião da CPLP. No entanto, o “espírito de comunidade”que inspirou a sua génese precedeu, de mais de um século, a fase constitutiva actual.

Talvez possamos considerar como uma das primeiras manifestações concretasdesse “espírito de comunidade”, o interesse demonstrado pela Sociedade de Geografiade Lisboa sobre o acompanhamento da diáspora lusíada, através da recolha e dotratamento de dados sobre as comunidades portuguesas residentes no estrangeiro,processo cuja origem remonta à proposta de criação de um “curso colonial”, avançadaem 1878, e ao inquérito lançado, no ano seguinte, por Luciano Cordeiro1.

Em 1956, o Professor Agostinho da Silva recomendava que Portugal e o Brasilpromovessem a criação de uma associação “com base linguística e de afecto cultural

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1 Cfr. Óscar Soares Barata, “Adriano Moreira: Quarenta Anos de Docência e Acção Pública”, in Estudos emHomenagem ao Professor Adriano Moreira, 2 vols., Lisboa, ISCSP-UTL, 1995, vol. I, pp. 67-68.

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comum”2. O “contexto de afinidades” transatlânticas deveria projectar-se através daformalização, conferindo expressão institucional à realidade que o Professor JoséAdelino Maltez identificou como uma “comunidade de significações partilhadas”3,consensualmente reconhecida. Durante a década de 1960, o Professor AdrianoMoreira, na Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa, empenhou-se nessesentido, promovendo o desenvolvimento de acções junto das comunidades deemigrantes portugueses.

Em 1964, na Sessão de Encerramento da Semana do Ultramar, o Professor AdrianoMoreira proferia uma conferência sobre o tema “Congregação Geral das ComunidadesPortuguesas”. E a 8 de Dezembro desse ano, na Sessão Inaugural do I Congresso dasComunidades Portuguesas, resumia a sua proposta na seguinte passagem: “devemostentar unir-nos para, mais fortes, defendermos os valores que até aqui temossustentado isoladamente. Nada se pede ou deseja de novo que não seja trabalhar emcomum: sejamos exactamente os mesmos, mas sejamos companheiros”4. O Congressoaprovaria, entre outras resoluções, a criação de uma União das Comunidades deCultura Portuguesa e de uma Academia Internacional da Cultura Portugesa.

O II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa realizou-se emMoçambique, em Julho de 1967. Nas respectivas conclusões, recomendava-se acriação, do Instituto Camões, vocacionado para os estudos sobre a línguaportuguesa5, e sugeria-se ainda a criação de um Instituto Nacional do Livro, paraalém de gabinetes de estudos económicos, centros de documentação e publicaçõesperiódicas.

Ao longo deste processo, são particularmente significativas as propostas doProfessor Adriano Moreira sobre a criação da Universidade Internacional Luís deCamões e, sobretudo, a sua proposta de organização de um Instituto Internacionalda Língua Portuguesa6, ideia esta que seria, posteriormente, “rebuscada” e “reinven-tada” por “outros arquitectos do edíficio lusófono”7. Com efeito, a proposta seria

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2 Cfr. João Domingues, “CPLP. Génese de um Novo Bloco Económico-Cultual”, resumo de dissertação demestrado, in www.terravista.pt /portosanto/ 1646/politica_cultural_vs politic_ec.htm

3 Cfr. José Adelino Maltez, “Sobre a Estratégia Cultural Portuguesa”, separata do Boletim da AICP, n.º 18, Lisboa,1991, p.129 e notas 14 e 15.

4 Cfr. Adriano Moreira, apud Óscar Soares Barata, ob. cit., p. 69 e nota 62.5 Cfr, Óscar Soares Barata, ob. cit., p. 71.6 Ver, Adriano Moreira, “Instituto Internacional da Língua Portuguesa” in, idem, Comentários, Lisboa

Instituto de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa,1992, pp. 61-68.

7 Cfr. Maria Regina Marchueta, A CPLP e seu Enquadramento, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros,Janeiro de 2003, p. 116 e nota, 108.

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retomada e reformulada pelo Embaixador José Aparecido de Oliveira, e concretizadapelo Presidente do Brasil, José Sarney, antes mesmo, do próprio governo portuguêster lançado as bases do Instituto Camões, o que viria a acontecer em 19928.

Como escreveu Dário de Castro Alves, “[a] ideia da Comunidade dos Países deLíngua Portuguesa surgiu de considerações de natureza linguística e histórico--cultural. Por considerações de natureza linguística entendem-se as referentes àimportância e à valorização da língua portuguesa, isto é, da lusofonia. Para delimitaro espaço em que se fala o português, devemos percorrer os quatro continentes nacompanhia de populações as mais variadas, por vezes imensas, por vezes diminutas(...)A ideia de uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nasce, assim, dapercepção desses elementos de união, entre os quais avulta, naturalmente, o suportedo idioma comum”9.

A CPLP afirma-se, actualmente, como uma comunidade plural, enriquecida peladiversidade, unida em torno do factor linguístico comum, funcionando comofórum de encontro e de cruzamento das culturas da lusofonia. Ao mesmo tempo, aCPLP constitui a expressão institucionalizada do mundo lusófono, convencio-nalmente formalizada pelos respectivos estados membros, através dos quais searticula, também, com as numerosas comunidades de luso-falantes espalhadas pelomundo.

Todas estas realidades sócio-culturais espacialmente dispersas, se desenvolvemindiferentes às fronteiras territoriais que a cartografia reproduz, inequivocamenteligadas pelo idioma comum, irmanadas por tradições, usos e costumes integradosem expressões culturais próprias e diferenciadas, aproximadas por afectos, lealdadese sentimentos de pertença, que a geografia ignora, mas que se inscrevem na almados povos e na “gramática das civilizações”.

Esta dimensão social e humana da realidade geocultural lusófona, adquireexpressão em termos de uma projecção extensa e diversificada, que o ProfessorÓscar Soares Barata reconhece e identifica “[na] área onde se aceita o portuguêscomo língua de referência, quer por ser a língua de todos, quer por ser a línguaoficial, quer por ser a língua da localidade de origem da linhagem, a da escola ou ado culto ou a que a família usa em casa, ou ainda por ser aquela que se sente ser abase da comunhão num longo percurso histórico com Portugal, espalha-se pelomundo, abrange muitas terras que em tempos antigos ou recentes estiveram sob o

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8 Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., pp. 129-130.9 Cfr. Dário de Castro Alves, “A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, in Nação e Defesa, n.º 74, Lisboa,

Instituto da Defesa Nacional, Abril-Junho de 1995, pp. 77-91, p. 81.

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controlo político português, outras em que o cristianismo ou o conhecimento daEuropa e da sua civilização chegaram por intermédio dos portugueses, outras aindaem que o português entrou como língua de imigrantes”10.

Neste sentido, deveremos reconhecer que “Portugal, enquanto nação cultural,ultrapassou a pátria portugesa, dos limites portucalenses e, neste momento, paraalém da nação portuguesa, gerida pelo Estado da República Portuguesa, existe umasuper-nação, mais cultural do que política”11.

3 – A CPLP e a Defesa da Lusofonia A Declaração Constitutiva da CPLP, assinada em Lisboa,a 17 de Julho de 1996, reconhece explicitamente a importância matricial da línguaportuguesa, referindo o “relacionamento especial” e “a experiência acumulada emanos de profícua concertação e cooperação”, como realidades legitimadoras davontade política comum. Os estados signatários propõem-se conjugar iniciativaspara a “promoção do desenvolvimento económico e social dos seus Povos e para aafirmação e divulgação cada vez maior da língua portuguesa”.

Relativamente à defesa da língua portuguesa, considerada como “vínculohistórico” e “património comum”, como “instrumento de comunicação e detrabalho”, como “meio privilegiado de difusão da criação cultural entre os povosque falam português e de projecção internacional dos seus valores culturais”, bemcomo “fundamento de uma actução conjunta”, os países membros declaram, entreoutros objectivos, “incentivar a difusão e o enriquecimento da Língua Portuguesapotenciando as instituições já criadas ou a criar com esse propósito, nomea-damente o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)”, para além de“envidar esforços no sentido do estabelecimento (...) de formas de cooperaçãoentre a Língua Portuguesa e outras línguas nacionais nos domínios da investigaçãoe da sua valorização”.

A defesa da lusofonia transcende, no entanto, a sua área de concretizaçãoespecífica, devendo ser perspectivada numa dimensão de transversalidade relati-vamente às áreas da cooperação multilateral e da concertação político-diplomáticainternacional dos estados membros. O multilateralismo caracteriza o métodofuncional de actuação da CPLP no plano da concertação internacional. Neste âmbito,as acções mais directamente relacionadas com a defesa da lusofonia, são asactividades institucionais de articulação e da celebração de acordos com organizações

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10 Cfr. Óscar Soares Barata, “As Bases Demográficas da Lusofonia”, in O Mundo Lusófono, Sociedade de Geografiade Lisboa, 1994, p. 9.

11 Cfr. Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 220.

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congéneres, fundadas com base na representação e na defesa de outras comunidadeslinguísticas. Neste contexto, tem sido significativa a participação da CPLP na UniãoLatina e, designadamente, na iniciativa dos “Três Espaços Linguísticos”.

Ainda no plano da concertação internacional, e com o objectivo específico dadefesa da lusofonia, deveremos assinalar o reconhecimento da língua portuguesacomo idioma de trabalho de várias organizações internacionais, prosseguindoactualmente os esforços no mesmo sentido, em relação aos Acordos de Cotonou e aalgumas agências especializadas da ONU, prevendo-se também a instalação de umCentro de Língua Portuguesa e Cultura Lusófona na sede da União Africana, em AdisAbeba. Esta iniciativa, proposta pelo Instituto Camões, reveste-se também de um ele-vado significado estratégico, perante as ofensivas anglófona e francófona, em África.

Mas é no plano fundamental da sociedade civil que se regista a transnacio-nalização das comunidades luso-falantes e, entre estas, das comunidades deemigrantes lusófonos espalhadas pelo mundo, articuladas numa rede desolidariedades informais, ao longo de uma fronteira de expressão territorial difusa,mas de contornos humanos concretos e bem definidos nas suas componentes social,linguística e cultural.

Esta dimensão sócio-cultural da lusofonia constitui um potencial estratégicopraticamente inexplorado, mas cuja realidade, transcende a expressão espacial egeopolítica de cada estado signatário da CPLP, superando as percepções nacionaissobre a respectiva inserção geoeconómica e de relacionamento político--diplomático, conferindo um significado próprio e um peso específico à orga-nização dos estados lusófonos no contexto internacional, traduzindo-se num“espaço de influência cultural bem mais vasto do que a dimensão territorial doconjunto dos seus Membros”12.

Com efeito, os objectivos de defesa da lusofonia alargam-se para além doespaço territorial da CPLP, reconhecendo-se que a “difusão e a valorização inter-nacional” da língua portuguesa deverão constituir interesses nacionais permanentesdos seus estados membros, numa perspectiva de projecção estratégica e deinfluência geocultural globalizante.

Inserindo-se num movimento de formação tendencial de “grandes espaços”, aCPLP “institucionaliza e alarga” o conteúdo operacional do conceito de lusofonia. Porum lado, a organização baseia-se nos factores linguístico e histórico-cultural comuns,enquanto elementos fundamentais potenciadores da coesão da matriz aglutinadora,dos princípios de coerência da acção e das dinâmicas internas da organização.

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12 Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p.143.

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Mas, ao mesmo tempo, a CPLP institui-se como um fórum de defesa da lusofonia,não só pelo reconhecimento unânime dos argumentos referidos, mas porque severifica um processo de consciencialização entre os vários sectores da sociedade civil,designadamente, dos representantes do tecido económico-empresarial, dosresponsáveis da educação, da formação universitária e politécnica especializada, e dasONGD’s, sobre o facto de que a lusofonia constitui um instrumento de projecçãoestratégica, de afirmação e defesa de interesses incomparavelmente mais vastos ediversificados, do que aqueles que adquirem conteúdo nos conceitos operatóriosestritos de política cultural externa ou de defesa nacional.

Porém, sobre esta perspectiva alargada das potencialidades da lusofonia,considerada como vector cultural no plano destas políticas, não existe conceitoestratégico de convergência, operacionalmente definido. Talvez pela noção tácita deque a dimensão política da defesa nacional que transcende a componente militar,atenua o significado dos seus efeitos de longo prazo, por entre tantas outras políticassectoriais inerentes às actividades diversificadas da vida política do quotidiano dosestados, pressionados pela exigência imperativa da gestão das circunstâncias e dosplanos de contingência.

Na ausência de uma perspectiva integradora das coerências políticas e dasacções, as componentes não militares da defesa nacional, apesar de reconhecidas nasingularidade de cada política sectorial, apresentam-se desarticuladas, quer peladiversidade dos objectivos, quer pelo primado dos interesses particulares dasentidades intervenientes nos processos decisionais.

À descoordenação subjacente, corresponde a falta de um planeamento estra-tégico integrador das políticas, polarizador e orientador das linhas de acção, nosentido da promoção permanente de uma estratégia coerente e consistente da defesada lusofonia. Esta deveria, por sua vez, adquirir expressão através de uma políticaexterna estruturada em torno de desígnios nacionais convertidos em objectivosconcretos e, neste contexto, numa política cultural exogenamente dirigida, depromoção activa e consequente, da língua e da cultura portuguesas, perspectivadascomo instrumentos decisivos no processo de concretização desses objectivos, logo,de realização do interesse nacional.

O Professor Vamireh Chacon reconhecia, recentemente, que ”[a] lusofonia temcomo primeira lição a firmeza da vontade nacional portuguesa, maior que a galega oua catalã, incorporadas por Castela, mesmo numa Espanha de regiões autónomas esemifederalista. Vontade nacional de independência e de projecção transoceânica...”13

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13 Cfr. Vamireh Chacon, O Futuro Político da Lusofonia, Lisboa, Verbo, Dezembro de 2002, p. 25.

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Subsiste, desde então, um facto incontornável: a defesa da lusofonia confunde-secom a defesa da própria identidade cultural portuguesa, inserindo-se, porconsequência, num conceito extenso de defesa nacional.

Mas a defesa da lusofonia transcende o contexto referido, constituindo tambémparte integrante da defesa nacional de todos os estados signatários da CPLP, porquefaz parte do seu património cultural e linguístico, definindo-se como factoridentitário e de coesão interna e, ao mesmo tempo, como vector de projecçãoestratégica, no plano das respectivas políticas externas, facto este, que é reconhecidono próprio acto fundador da organização dos estados lusófonos.

Neste contexto, a lusofonia deve constituir, também, a primeira linha de defesanuma frente de acção alargada, amplamente reconhecida pelas várias entidades dasociedade civil portuguesa, ligadas às mais diversas actividades do sectoreconómico, como o I Fórum Empresarial da CPLP claramente afirmou.

Também outros estados já entenderam a importância de lusofonia como vectorde projecção estratégica. Neste plano, o caso de China torna-se paradigmático aorealizar, em Macau, em Outubro de 2003, o Fórum para a Cooperação Económicaentre a China e os Países de Língua Portuguesa, elgendo assim, aquela RegiãoAdministrativa Especial, como “a placa giratória” a partir da qual, se promovem asrelações privilegiadas com os países africanos lusófonos e com Portugal, através doelemento cultural comum que é a língua portuguesa.

Com efeito, a convergência sinérgica entre as vertentes económica e cultural, per-mite rectificar a perspectiva dicotómica e falsamente dilemática, das escolhas políticasentre economia e cultura. A este propósito, o Professor Adriano Moreira referia, aindano início da década de 80, que “[é] o poder cultural, e não outro, que devidamenteajudado deve presidir aos esforços e acompanhar a evolução”14. E nas vésperas deformalização institucional da CPLP, o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardosoreconhecia na futura organização, “a primeira comunidade onde a produção cultural”induziria toda a dinâmica do desenvolvimento económico e político15.

Neste sentido, as estratégias de afirmação identitária e de projecção potenciada dalusofonia na comunidade internacional, através da CPLP, e das políticas externas dosestados que a compõem, e que adquirem expressão, tanto no plano da cooperaçãomultilateral, como no plano da concertação internacional, exigem também um

14 Cfr. Adriano Moreira, “O Poder Cultural”, in Nação e Defesa, n.º 18, Lisboa, Instituto da Defesa Nacional,Abril-Junho de 1981, p. 51.

15 Cfr. Fernando Henriques Cardoso, em entrevista ao semanário Expresso, conduzida por Iza Sales de Freaza,13 de Julho de 1996.

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projecto comum. As acções sectoriais desse projecto, devem incluir a definição e aconcretização de objectivos, designadamente, de articulação comunicacional e partilhade informação, de programas educacionais, de sistemas de ensino, de formação derecursos humanos, de intercâmbio cultural, universitário, científico e tecnológico.

Por outro lado, e tal como referido, a diáspora cultural e linguística da lusofoniaestende-se a comunidades espacialmente dispersas, que se situam fora das áreasterritoriais dos países lusófonos. Mas também neste plano, deverá ser a CPLP apromover uma política de cooperação sustentada com os países onde essascomunidades se encontram radicadas, tal como considera João Domingues, porforma a “fomentar novos incentivos na área cultural e a desenvolver as poten-cialidades aí existentes. A CPLP deverá ter uma visão de enquadramento e de futurono que respeita a essa política..(...) [Cabe-lhe] a liderança desse processo deinvestimento, sob pena de outras comunidades congéneres o fazerem em seupróprio proveito”16. De facto, a participação da CPLP na referida iniciativa dos “TrêsEspaços Linguísticos”, tem facultado uma experiência institucional inequívoca,sobre a assertividade das estratégias de penetração cultural do espaço lusófono, porparte da francofonia e da hispanofonia.

Esta preocupação acentua o significado, a importância e as dimensões diver-sificadas que a defesa da lusofonia envolve. O aumento da capacidade de exercíciode influência por parte dos estados membros da CPLP no plano internacional passa,imperativamente, pela afirmação e pela consolidação de uma imagem caracterizada,não apenas pela credibilidade e coerência da acção política mas, sobretudo, pelaconsistência de uma identidade cultural e linguística.

Neste sentido, torna-se admissível considerar que “[a] conjugação de umadiplomacia tradicional oficial com fórmulas de diálogo multilateral, sectorial eespecializado, permite tornar a (...) intervenção [da CPLP] mais abrangente”17. Aomesmo tempo, esta dimensão da lusofonia torna-se decisiva na defesa daindividualidade identitária, independentemente do estatuto político-jurídico dasáreas territoriais nas quais se inserem, e dos contextos nacionais, étnicos ou reli-giosos em que essas identidades específicas adquirem expressão social, e a partir dosquais desenvolvem interacções com outros povos.

É nesta perspectiva que João Domingues afirma que “as novas comunidadeslinguísticas (...) têm, no seio da globalização, o papel de moderadoras, dereconciliação entre o nacional e o mundial, (...) de espaço de identificação e de

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16 Cfr. João Domingues, ob. cit.17 Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 144.

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convergência de ideais...”18. Neste contexto, as acções de Portugal e da CPLP, deverãodesenvolver-se também no sentido da construção de um espaço cultural de expressãogeograficamente diversificada, mas de coerência linguística concreta e sustentada.

4 – A Identidade Cultural e Política da CPLP A noção de comunidade refere-se, geral-mente, a uma realidade grupal, da qual se faz parte por natureza, à qual se pertencemais por inevitabilidade, do que por escolha ou decisão própria. Rege-se mais peloafecto e pelo sentimento de pertença, pela informalidade das normas, das práticas edos costumes, pelos laços que interligam os indivíduos de uma geração e assucessivas gerações entre si. Mas a noção implica também a realização de umconjunto de interesses próprios e comuns que, em última análise, a definem19.

No caso da CPLP, a língua portuguesa e a vivência histórico-cultural, multi--secular, de experiências partilhadas, de contactos e interacções, de relaçõescomplexas, de transacções assimétricas, que os tempos e as circunstâncias, as von-tades e as capacidades dos homens determinaram, constituem esse denominadorcultural comum, cuja expressão transcende o idioma e se afirma no entrosamentode elementos culturais lusófonos, com os traços específicos de cada uma das outrasculturas, estabelecendo um vínculo de pertença comum, entre as expressõesdiversificadas que caracterizam o mundo da lusofonia.

Apesar disso, a existência da CPLP tem evoluido através de uma circunstancia-lidade política altamente condicionante, sendo considerada por alguns, como merarealidade virtual ou pura ficção, sendo perspectivada por outros, como a expressãoinstitucional de um mundo lusófono que urge desenvolver e potenciar. Ao longo docurto período da sua existência, tem-se verificado um processo de aquisição pro-gressiva de maturidade organizacional e política, própria de uma instituição queadquire experiência através da prática de uma multilateralidade baseada no idiomacomum.

Por outro lado, dadas as características muito diferenciadas entre as realidadesgeoeconómicas, geopolíticas e sócio-culturais dos estados membros, e dos inerentesprocessos específicos de aproximação de cada um desses estados à realidade política einstitucional da organização, verifica-se que o equilíbrio instável dos contextos domés-ticos, frequentemente determinado pela indução exógena da mudança, tem originadoprioritizações diferenciadas quanto à CPLP, no âmbito das agendas de política externa

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18 Cfr. João Domingues, ob. cit..19 Ver, Carlos Lopes, “Entre o Regional e o Global”, in “CPLP. Entre Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em

Português, n.º 45 / 47, Lisboa, Princípia / Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Junho-Setembrode 2003.

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dos estados membros, atenuando e desvalorizando a percepção sobre as sinergiasque se desenvolvem entre a defesa da lusofonia, e os outros interesses nacionais.

Daqui resultam, por sua vez, processos de participação assimétrica, de inten-sidade, consistência e geometria variáveis, segundo ritmos diferenciados, ao níveldas vertentes sectoriais que transcendem o plano linguístico-cultural. Essaparticipação parece resultar mais dos interesses unilaterais considerados priori-tários, do que de uma coordenação efectiva e motivada pelos interesses multilateraisreconhecidos, e de objectivos comuns, no plano dos sectores envolvidos. Regista-se,de facto, a ausência de uma percepção generalizada sobre os interesses partilhadosque transcendem o plano do denominador cultural comum, no sentido da mate-rialização de benefícios concretos, para os estados e para os povos da CPLP.

Com efeito, o funcionamento normal da organização através das actividadesinerentes às suas três áreas de actuação fundamentais, deveria processar-se no sen-tido de conferir um peso específico crescente à CPLP, em termos de reconhecimentointernacional e de projecção de influência dos seus estados membros, nosrespectivos contextos geopolíticos, geoeconómicos e institucionais.

Considerava-se, ainda em 1994, que a falta de vontade política e a lógica doprimado absoluto dos interesses nacionais, contribuíam para esta disfunção.VicentePinto de Andrade afirmava, então: “[c]reio que tudo isto acontece porque não háum projecto de grande folgo que consubstancie os interesses de curto e longo prazodos sete países de língua portuguesa. A criação e funcionamento de uma Comu-nidade dos Países de Língua Portuguesa, para vingar e frutificar, terá de envolver nãosó os políticos dos nossos países, mas também – e principalmente – as nossassociedades civis. Temos que, antes de tudo, compreender essa necessidade e inte-riorizá-la, a fim de servir de motor propulsor das nossas respectivas políticasnacionais em todos os domínios”20.

Neste contexto, o peso económico e demográfico do Brasil no seio dos oito,torna-se decisivo. Carlos Lopes reconhecia, recentemente, que “[q]ualquer políticade expansão da língua portuguesa tem de ter uma razão e um substracto económicoque só o Brasil está em condições de proporcionar (...). As exigências da globa-lização requerem uma utilização dinâmica das línguas. O investimento nas novastecnologias de comunicação é indispensável para não relegar o legado linguístico ecultural para um localismo curioso. A força do Brasil é mais uma vez indispensávelpara tal investimento”21.

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20 Cfr. Vicente Pinto de Andrade, “Uma Perspectiva Africana”, in O Mundo Lusófono, Sociedade de Geografia deLisboa, 1994, pp. 39-40.

21 Cfr. Carlos Lopes, ob. cit.

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No plano dos interesses nacionais brasileiros, a realidade dos factos aponta, noentanto, para outras prioridades, relativamente ao Atlântico Sul e à África22. EmFevereiro de 2003, o ministro da Cultura do Brasil abordava esta questão, conside-rando que “a língua portuguesa é (...) o elemento fundamental para a transmissão epara a permuta”, o “meio de comunicação” e o “mais importante” “ente do espíritode todos os entes espirituais que nos dizem respeito, que constituem e ligam os nossospovos a todos esses povos”. E concordava com a necessidade de um “desígnio políticonovo”, definindo o relacionamento do Brasil com África, como um objectivoestratégico, e reconhecendo que “[m]uito pouca coisa tem sido feita”23. É significativoque o ministro da Cultura do Brasil não se tenha referido à CPLP, nem enquantoorganização dos estados lusófonos que o seu país integra, nem em termos deprioridade da política externa brasileira, enquadrada no contexto dos respectivosinteresses estratégicos.

Apesar de tudo, a CPLP afirma-se, no plano internacional, como uma “realidadepolítica” concreta. Por um lado, a organização promove a convergência dos indiví-duos e dos povos, atenuando o efeito separador das fronteiras convencionais,estabelecendo um novo quadro de referências sócio-culturais, definindo-se comoelemento politicamente estabilizador dos contextos regionais de relacionamento, inte-grando espaços e territórios identificados segundo uma lógica de coerência própria,construindo um grande espaço desterritorializado, definido por uma fronteira culturale linguística comum, transversal e solidária, de expressão afectiva, social e humana.

Por outro lado, a CPLP regista um processo evolutivo de influência crescente emultifacetada, como factor de ponderação e espaço de alternativas, nas políticasinternas e externas dos estados membros. O seu peso político constitui um elementopotencialmente determinante das alterações de atitude e de comportamento dosoutros estados, nos seus relacionamentos intra-regionais com os países signatários,tornando-se, por isso, um factor estrutural e estruturante do sistema internacional24.

No entanto, como reconhece Maria Regina Marchueta, “[e]m quase todos os sec-tores de intervenção, mesmo no sector estratégico da língua portuguesa, a dinâmicainterna da CPLP pode considerar-se ainda incipiente e dispersa, verificando-se algumdesajustamento entre os objectivos enunciados e a realidade dos factos”25. E, tal comoafirma Carlos Lopes, as agendas políticas dos estados membros da CPLP “estão longe

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22 Cfr. Luís Fontoura, “CPLP. A Importância do Brasil no Espaço Lusófono”, separata do Boletim da AcademiaInternacional da Cultura Portuguesa, n.º 28, 2001, p. 237.

23 Gilberto Gil em entrevista ao jornal Público, Lisboa, 2 de Março de 2003.24 Ver, Cláudio Alves Furtado, “Cabo Verde e a CPLP. A Busca de uma Integração (Im)possível?” in “CPLP.

Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em Português, ob. cit.; Abdul Magide Osman, “CPLP. Que futuro”,in idem, ibidem.

25 Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 159.

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de se compatibilizar (...) A falta de um conteúdo económico determina a fragilidadeinstitucional da CPLP.As agendas políticas, sobretudo em política externa, também têmditado as opções diferenciadas”26. Neste sentido, a CPLP parece representar,essencialmente, uma instância instrumental de recurso dos estados signatários, deprioridade estratégica variável, dependente das conjunturas e das contingências.

A concertação político-diplomática sistematizada, a consolidação institucional ea consistência política das decisões, tardam em evidenciar as vantagens do multila-teralismo e em fortalecer a vontade política dos estados membros, sem a qual a CPLPcontinuará a carecer de “um projecto que supere e subordine os interesses parti-culares dos Estados que a compõem”27. Com efeito, “[t]em-lhe faltado, até agora,(...) a coerência política, diplomática, económica e cultural, susceptível de delinearum projecto comum”28, como forma de afirmação construtiva, perante as exigên-cias do ambiente internacional, e como forma de intervenção participativa econsequente, perante os desafios da globalização, que transcendem o plano intergo-vernamental dos relacionamentos, adquirindo em ambos os casos, expressõesdiversificadas aos níveis local, nacional, regional e global29.

Neste contexto, talvez se torne admissível perspectivar actualmente a CPLP, nãotanto como uma comunidade de sociedades civis e de povos lusófonos projectadana acção, mas como “uma comunidade imaginada, assente numa noção que tem deessencial a ‘alma do povo português’, que se identifica com a diversidade cultural,étnica e geográfica dos povos que a integram”30, mas que se encontra limitada, emtermos de realização de interesses objectivos, pela variável dos regimes políticos,pelas contingências e pelos interesses circunstanciais dos estados que os enquadram,expressos nas motivações, nas vontades e nas decisões, dos indivíduos e dasinstâncias políticas que os governam.

5 – A CPLP e a Lusofonia na Política Externa Portuguesa A consolidação institucional e apotenciação estratégica da CPLP, devem constituir objectivos de prioridade elevadano contexto da política externa portuguesa, inserindo-se num projecto de realizaçãonacional, permanente e bem mais vasto. “Cumprir Portugal” implicará, necessa-riamente, definir e situar o Estado Português na comunidade internacional, e pers-pectivar o futuro de Portugal no Mundo.

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26 Cfr. Carlos Lopes, ob. cit.27 Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 141.28 Cfr. idem, ibidem, p. 148.29 Ver, para além dos vários autores citados, Fernando A. A, Mourão, “O Défice Político da CPLP” in “CPLP.

Perspectivas e Realidades”, in O Mundo em Português, ob. cit.; Mário Pizarro, “Mais Mito que Realidade”,in idem, ibidem.

30 Cfr. Maria Regina Marchueta, ob. cit., p. 148.

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Subjacente a estes objectivos, estará sempre, e em primeiro lugar, a imagem quetemos de nós próprios como nação, e a percepção que tivermos de Portugal nesseMundo que transcende a comunidade internacional, na afirmação da comunidadehumana. Trata-se, com efeito, de construir uma perspectiva sobre o lugar e a missãode Portugal e dos portugueses, num contexto mundial globalizado. E é neste sentidoque “cumprir Portugal” significa imaginar, planear e realizar os “sonhos partilhados”do seu povo, dessa “comunidade de sonhos”, em que Malraux reconheceu a nação.

Em termos de política externa, trata-se da gestão de um encontro de culturas e deum contexto político-diplomático e negocial, caracterizado pela dinâmica entre com-petição e cooperação, pela dialéctica entre constrangimentos e oportunidades, nas maisdiversas instâncias e circunstâncias relacionais, num ambiente onde actores muitodiversificados se debatem pela aquisição ou pelo aumento das capacidades de exercíciode influência no plano internacional, através de uma afirmação identitária sustentada.

Perante as ameaças difusas a essa identidade, os factores fragmentários e asmúltiplas lealdades alternativas, aleatórias e efémeras, variando ao sabor de critériosevolutivos e transitórios, de moda ou de conveniência, a defesa da identidade culturalportuguesa reveste-se de uma importância crucial e de uma exigência de afirmaçãoactiva e empenhada, metódica e estrategicamente planeada.A defesa intransigente dessaidentidade cultural, através do seu inerente vector linguístico, deverá, permanecercomo princípio orientador da coordenação das políticas sectoriais, adquirindoexpressão em termos de política de defesa nacional e de política externa.

É nesta “frente” que se registam os processos de erosão identitária, e que sedefrontam as dinâmicas determinantes das formas e das condições da existênciafutura da nação que somos, na terra que é Portugal. É, de facto, no plano linguístico,cultural e sócio-histórico, que os países de língua portuguesa, os seus cidadãos e alusofonia registam diariamente as mais frequentes agressões31.

Trata-se de um processo permanente, do nosso quotidiano, através do qual, oscidadãos são tendencialmente convertidos em veículos de promoção de estratégiasmediatizantes fragmentadoras, tacticamente integradas em contextos de competiçãoagressiva, desenvolvidas ao serviço de desígnios políticos alheios, mas inequivocamenteidentificados. Esse processo traduz-se num fenómeno de erosão gradual do patrimónioidentitário nas suas dimensões linguística e cultural, frequentemente induzido pelospróprios agentes processuais, na ausência de uma percepção correcta sobre a importânciada missão que desempenham e sobre a extensão e o significado dos interesses colectivosenvolvidos, em consequência de uma formação cívica, escolar e profissional deficiente.

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31 Ver,Victor Marques dos Santos, Conhecimento e Mudança. Para uma Epistemologia da Globalização, ob. cit., pp. 130-131,e o Capítulo VI, “Globalização e ‘Sociedade de Informação’ ”, notas e referências bibliográficas. Ver,também, a obra de George Modelsky, principalmente, Long Cycles in World Politics, London, Macmillan, 1987.

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Neste contexto, torna-se admissível considerar que a defesa e a promoção dalíngua e da cultura deverão constituir objectivos políticos prioritários do EstadoPortuguês implicando, nesta perspectiva, acções a desenvolver, tanto no plano interno,como no plano internacional. No primeiro caso, serão necessárias intervençõescoordenadas em três áreas de actuação. Desde logo, ao nível do ensino básico doportuguês nas escolas. Em segundo lugar no plano da formação específica dosrecursos humanos, dirigida a todo o tipo de funções desempenhadas pelos cidadãosportugueses envolvidos em contactos internacionais. Neste plano, os professores deportuguês no estrangeiro adquirem, naturalmente, uma relevância específica.Finalmente, ao nível da monitoração e da responsabilização efectiva de todas asentidades públicas e privadas, no sentido da exigência de uma correcta utilização dalíngua portuguesa falada e escrita, na comunicação e na divulgação pública de todoo tipo de informação. O sucesso destas acções dependerá, no entanto, de umaevolução das mentalidades, no sentido da procura da excelência sustentada dodesempenho, e da aquisição de uma cultura de avaliação sistemática dos resultadosconcretos e dos efeitos prospectivos.

No plano dos relacionamentos internacionais, o ensino extensivo, sistemático esustentado da língua portuguesa às comunidades luso-falantes, e a preparação deprofessores estrangeiros para o ensino do português, deverão constituir imperativospolíticos nacionais. Neste plano, verifica-se o reconhecimento inequívoco danecessidade de uma atitude pró-activa que deverá materializar-se através de umapolítica cultural exogenamente dirigida, que coordene a convergência das acçõespotenciadoras da língua e da cultura portuguesas, como instrumentos da projecçãoestratégica de Portugal. Só desta forma conseguiremos desenvolver uma participaçãoconsequente nos processos de mudança transformacional em curso, e potenciar acapacidade de realização dos interesses portugueses numa ordem mundialglobalizada.

Esta evolução de mentalidades e alteração de atitudes, serão cruciais para aviabilização de Portugal como estado soberano. É neste sentido que “[o] nossopresente e o nosso futuro, como entidade politicamente autónoma, com vontade deser independente, dotada de uma identidade cultural e de uma ordem concreta, onosso futuro como cultura, nação e Estado, está cada vez mais dependente dacapacidade que demonstrarmos para gerirmos as interdependências no plano dasRelações Internacionais”32.

32 Cfr. José Adelino Maltez, “As Relações Internacionais, a Escola e a Vida”, in Óscar Soares Barata, coord.,Primeira Avaliação do ISCSP, 1997/1998 – 1998/2000, 2 vols., vol. I, Lisboa, Instituto Superior de CiênciasSociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa, 2002, pp. 243-251, pp. 248-249.

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Sofreremos, talvez, da “disfunção nacional”, que o Professor António José Teloidentificou33 e que tem condicionado, através dos séculos, as formas e as capaci-dades de articulação de Portugal com o sistema internacional, determinando umainfluência exógena significativa, por vezes decisiva, do sistema internacional, sobreas mudanças internas do País. Se é certo que a prospectiva nos habituou a umelevado grau de incerteza quanto à indagação do futuro, afigura-se, no entanto,como extremamente improvável que consigamos obter, do exterior, os meios e osrecursos que permitam a Portugal continuar a manter essa “disfunção nacional” e,ao mesmo tempo, desempenhar um papel activo e consequente, ou mesmo subsistirenquanto estado, no contexto sistémico e geopolítico em que nos inserimos34.

Numa reflexão recente, o General Garcia Leandro considerava que “[o] desafioque se nos impõe é a autocorrecção ou o definhamento e futuro desapareci-mento”35 e que, no sentido de vencer esse desafio, “[é] preciso reconstruir as razõesque permitam reforçar o orgulho de ser português (...). [ Torna-se, pois,]“indispensável a construção de uma rede de interesses e oportunidades baseada nacultura portuguesa, mas que ultrapasse as questões que por vezes limitam oshomens de cultura. Há que saber utilizar todos os meios disponíveis para organizarum sistema que permita reforçar a capacidade de projecção da Cultura Portuguesa.Esta é uma questão essencial...”36.

É a partir deste contexto, e numa perspectiva de futuro, que se justifica pensarPortugal e a sua política externa. Mas, ao pensarmos Portugal numa dimensão defuturo, torna-se evidente que é também no plano da língua e da cultura que aprojecção da lusofonia e da identidade cultural da nação portuguesa servirá a defesados interesses estratégicos nacionais37, porque é também no “poder cultural quereside o nosso poder funcional”38.

Assim, perante as vicissitudes e as contingências, apesar das circunstâncias e dasevoluções do ambiente internacional, “cumprir Portugal” significa assegurar, em

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33 Cfr. António José Telo, “Treze Teses sobre a Disfunção Nacional – Portugal no Sistema Internacional”, inAnálise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, n.º 142, 4.ª Série, vol. XXXII, Lisboa,1997 – 3.º, pp. 649-683.

34 Cfr. António José Telo, “Treze Teses sobre a Disfunção Nacional – Portugal no Sistema Internacional”, inAnálise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, n.º 142, 4.ª Série, vol. XXXII, Lisboa,1997 – 3.º, pp. 649-683, pp. 682-3.

35 Cfr. Garcia Leandro, “Portugal a Cultura Portuguesa e o Futuro”, comunicação apresentada à AcademiaInternacional da Cultura Portuguesa, Sociedade de Geografia, Lisboa, 14 de Dezembro de 2003, p. 13.Texto policopiado.

36 Cfr. idem ibidem, p. 13.37 Ver, Adriano Moreira, “O Poder Cultural”, in Nação e Defesa, n.º 18, ob. cit..38 Cfr. José Adlelino Maltez, ob. cit., p. 221.

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permanência, as condições da existência e do pleno desenvolvimento de umarealidade identitária sócio-histórica e geocultural, que transcende a lógica terri-torial das fronteiras políticas convencionadas pelas sucessivas ordens internacionais.

Será neste sentido, que parece admissível pautar as relações da nação com omundo, e de conceber a integração construtiva de Portugal numa comunidade inter-nacional em processo de mudança acelerada. É também neste sentido, que enten-demos o significado fundamental da defesa dos interesses estratégicos de Portugal.

6 – Considerações Finais Assistimos, actualmente, a um processo inovador de redefinição delógicas e de critérios de coerência espacial, baseado em elementos valorativos ima-teriais, intangíveis, virtuais e tecnologicamente potenciados. Esses valores afirmam-sepelo sentido de pertença e pelo afecto partilhado mas, ao mesmo tempo, definem-sepela identificação de interesses materiais e do desenvolvimento de acções no sentidoda sua consequente concretização, baseadas nos factores cultural e linguístico.

A análise dos desenvolvimentos políticos internacionais contemporâneos, per-mite verificar que os realinhamentos políticos, diplomáticos, económicos e estraté-gicos, determinados pelas exigências inevitáveis das interdependências crescentes epela presença de novos actores e factores condicionantes, pressupõem a potenciaçãodas capacidades relacionais baseadas em coerências específicas e em lógicas prefe-renciais, de expressão cultural, bem como a criação de novas formas de intervenção,modalidades e instrumentos de acção.

A globalização inclui uma dimensão processual de reformulação epistemológicainduzida pelas novas percepções inerentes, e derivadas do acesso generalizado àinformação e ao conhecimento, revelando novas formas de acção coordenada e decooperação, entre os actores que partilham interesses comuns, expressos na formaçãoconvencionada de comunidades baseadas em identidades culturais e linguísticas.

Poderemos considerar que se, por um lado, a globalização implica comunicaçãopotenciada, por outro lado, a lusofonia tem estado presente desde o início dosprocessos de mundialização, promovendo a comunicação entre indivíduos, povos eculturas ao longo de mais de oito séculos. Como refere Carlos Lopes, “[n]enhumoutro povo ou país terá deixado tantos traços da sua presença no mundo quanto osportugueses (...) [mas,] aos poucos tem-se registado uma evaporação da esfera deprojecção de Portugal e, por consequência, da língua e da cultura portuguesa”39.

Portugal, enquanto estado soberano, insere-se hoje numa realidade mundialglobalizante, tanto através de pertenças histórico-culturais múltiplas e indeclináveis,

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39 Cfr. Carlos Lopes, ob. cit..

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como através de compromissos políticos internacionalmente assumidos. Noentanto, parece tornar-se evidente que as suas capacidades intrínsecas, perspecti-vadas em termos de exercício de influência sobre um ambiente relacional evolutivo,se encontram em processo de degradação contínua.

Reconhecem-se os seus efeitos no funcionamento questionado das instituiçõese das estruturas, na consistência precária da sociedade civil e da capacidade do exer-cício da cidadania; nas formas incipientes de organização colectiva dos indivíduos edos grupos; no carácter aleatório e facultativo da responsabilização individual nodever e na acção, afectando, necessariamente, os graus de participação cívica e decoesão nacional. Os efeitos desse processo reflectem-se ainda em termos da imagemexterna do País, afectando a credibilidade e a capacidade de participação conse-quente de Portugal nos processos decisórios relevantes para a gestão da mudançasistémica.

Numa apreciação concreta e objectiva, a reversão do processo, dependerá,acima de tudo, e tal como referido, da evolução das mentalidades, da revisão dasatitudes e de um aferimento das perspectivas. Em última análise, dependará daformação de uma vontade política baseada, e expressa, numa concepção activa, enão reactiva, de participação nos processos transformacionais.

O reconhecimento do fenómeno regressivo das capacidades, implica a exi-gência de uma reflexão profunda e de uma percepção esclarecida sobre a articulaçãoentre o processo de “evaporação da esfera de projecção de Portugal”, e o processode erosão progressiva registado em relação à língua e à cultura portuguesas.

Apesar da correlação ser questionável na sua linearidade, trata-se de definir a“esfera de projecção de Portugal”, de saber qual o interesse estratégico actual desseespaço geocultural e, por outro lado, de determinar a valoração que atribuímos àlíngua e à cultura portuguesas.

Esta valoração pressupõe uma dualidade de perspectivas convergentes nocritério único da excelência imperativa. Por um lado, trata-se de considerar a línguae a cultura como vectores de projecção estratégica actuantes, no sentido dapotenciação dinâmica, sinérgica e evolutiva daquele espaço, logo, de desenvolvi-mento potencial dos interesses nacionais. Por outro lado, trata-se de perspectivar alíngua e a cultura como elementos matriciais do património genético identitário danação portuguesa, como factores fundamentais de coesão nacional e de coerência daacção de Portugal no mundo.

Por todas estas razões, a língua e a cultura portuguesas, constituem factoresidentitários cruciais, que deverão ser preservados e enriquecidos. O seu desenvol-vimento sustentado deverá constituir um objectivo central, irrecusável e incontor-nável de qualquer conceito a que ousemos chamar estratégico, de defesa nacional.

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E porque, neste sentido, a defesa nacional significa, antes de tudo, a defesa da iden-tidade cultural portuguesa, torna-se urgente inverter o processo de erosão susten-tada do património linguístico e cultural, comum e plural da lusofonia, no sentidoda superação activa dos desafios multidimensionais globalizantes.

Neste contexto, a CPLP define-se como o fórum internacional onde deverão serprivilegiadas as acções no sentido da convergência e da articulação entre as políticasexternas e a políticas de defesa nacional. A potenciação estratégica da organizaçãodos países lusófonos, deverá ser reconhecida como um interesse nacionalinequívoco, e situar-se entre os objectivos de prioridade mais elevada, que aquelaspolíticas necessariamente incluem e representam.

A sua base valorativa matricial, os princípios orientadores e o núcleo duro dadefesa dessas prioridades, interesses e objectivos, serão necessariamente consubstan-ciados na projecção das identidades culturais integrantes da lusofonia, através dosseus elementos comuns sobre os quais se afirma no Mundo a diversidade culturaldos povos de língua portuguesa.NE

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História Diplomática

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A HISTÓRIA DAS relações sino-lusas revela características bastante singulares, se a compararmoscom as relações chinesas com outros países da Europa, designadamente pela suaantiguidade. Efectivamente, os primeiros contactos entre portugueses e chinesestiveram lugar numa época bastante remota, em que os mares do Oriente praticamentesó eram percorridos por barcos e navegação não-europeia (ou, pelo menos, europeia--ocidental), onde os portugueses seriam praticamente uma excepção. De salientar,ainda, que, mau grado os contactos anteriores chineses com povos do Ocidente, averdade é que o relacionamento da China com Portugal e os portugueses, uma veziniciado, praticamente não mais se interrompeu, até aos dias de hoje, naturalmenteficando todo esse extenso período marcado – e sendo marcado – pelo carácter dosseus primórdios; e permitindo, por outro lado, esta visão diacrónica que se nosoferece, estabelecer relações e fazer paralelos entre o presente e o passado – e nopresente e passado “ler” (se porventura possível) o que possa ser o futuro.

Do mesmo modo, o relacionamento com a China surgiu, para Portugal, de umconjunto de oportunidades e interesses, que se enquadravam nas linhas de umpolítica previamente definida. A sua concretização terá, sem dúvida, sofrido agita-ções, interrupções e sobressaltos, que, contudo, puderam ser ultrapassados pelavontade de ambas as partes em deixar para trás obstáculos, e prosseguir no sentidoda prossecução do fortalecimento das relações entre as duas nações.

Nesses primórdios do relacionamento bilateral, alguns nomes, factos e acçõesficaram gravados na memória histórica, que eventualmente não se encontra aindacompletamente estudada, que não nas suas linhas gerais. Deste modo, o presentetrabalho não pretende apresentar-se como um estudo de ciência histórica, menos aindade investigação inédita. Parece-nos, contudo, que face ao presente interesse – público eprivado – no relacionamento entre Portugal e a China, que tem vindo a revelar-se dediversos modos – diplomático, cultural e através de iniciativas económicas –, não seria,igualmente, desprovida de interesse a divulgação de um episódio fulcral das relaçõessino-lusas, ocorrido no século XVI, para o qual terão contribuído, cada um na sua devidaproporção, os interesses privados económicos dos mercadores da época, os interessespúblicos portugueses (inclusive da própria Corte portuguesa, bastante afastada do localgeográfico do sítio da sua efectivação) e a acção oportuna e eficaz de alguns portugueses,que souberam aproveitar e não desperdiçar a conjuntura singularmente propícia que selhes oferecia, e de cuja acção se pode considerar ter resultado, posteriormente, umavanço e desenvolvimento considerável do relacionamento entre Portugal e a China.

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João Sabido Costa | Diplomata

Leonel de Sousa e o sucesso da diplomacia económica

no século XVI

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Naturalmente, a acção de Leonel de Sousa e dos seus acompanhantes, que aquise pretende referir e analisar, não poderá, ou deverá, desinserir-se, justamente naeficácia que depois veio a revelar ter possuído, do trabalho posterior de contactoscom a China por parte daqueles que se lhe seguiram nesse processo, nem, inclusi-vamente, dos que o antecederam – apesar de todos os pesares –, os quais, pelomenos, mesmo com eventuais erros que tenham praticado, terão contribuído paraum mais completo e coerente conhecimento da China pelos portugueses dessa época.

Resultados da missão de Leonel de Sousa Em 1554, o Capitão-Mor Leonel de Sousaalcançou, em Cantão, o feito de negociar com as autoridades locais cantonenses, umacordo de natureza político-comercial, permitindo, “(...) desde então, fazer-se otráfico com sanção oficial (chinesa)”1. Este episódio, que sobremaneira marcará asrelações entre Portugal e a China ao longo dos séculos, e até à presente data, seguia-se,contudo, a um período que, após um começo bonançoso, nomeadamente com avisita a Cantão de Fernão Peres de Andrade e o desembarque da Embaixada de ToméPires, em 1517, foi pejado de dificuldades, de incompreensão e mesmo confrontosentre navegadores e comerciantes portugueses e as autoridades chinesas.

I – Fracasso dos contactos sino-lusos anteriores Seguidamente à expedição de Fernão deAndrade, foi Simão de Andrade, irmão do primeiro, nomeado pelo rei D. Manuelcomo Capitão da viagem a terras chinesas. Porém, como refere o Embaixador João deDeus Ramos2: “Ao chegar à China, Simão de Andrade cometeu uma série de actos quedesfizeram a boa imagem que conseguíramos, ao violar frontalmente as suas leis ecostumes. A construção de um forte, a criação de uma forca, a compra e rapto decrianças, génese da triste suspeita de antropofagia infantil que aparece nas fonteschinesas e vem reflectida nas portuguesas”. De todas as formas, a situação menosfavorável aos portugueses criada por Simão de Andrade foi agravada pelos incidentesocorridos no litoral de Cantão com navios portugueses, em 1521, após estes se teremrecusado a abandonar na China, como ordenado pelas autoridades chinesas, nasequência da morte do Imperador. Estes combates no litoral chinês terão, também,contribuído – em parte – para o malogro dramático da Embaixada de Tomé Pires.

Após o posterior fecho dos portos chineses ao comércio com o exterior, e aexpulsão dos portugueses, estes “(...) continuaram a tentar os contactos, agorailegais, para levar a cabo o riquíssimo trato”3.

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1 “ O Primeiro Acordo Luso-chinês, realizado por Leonel de Sousa em 1554”, reproduzido e anotado por J. M. Braga, in”Macau, Revista de Cultura”, edição do Instituto Cultural de Macau, 2.ª edição, n.º 1,Abril, Maio, Junho de 1987, pág. 116.

2 In “Estudos Luso-Orientais (Séculos XIII-XIX)”, Academia Portuguesa de História, Lisboa 1996, pág. 35.3 João de Deus Ramos, obra e ed. cit., pág. 36.

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Situação subsequente Naturalmente, o período do início dos anos vinte do século XVI, atémeados desse século, na qual tem lugar a viagem de Leonel de Sousa, é preenchidopor inúmeros factos e ocorrências – mesmo apenas aqueles já historicamenteconfirmados – que aqui nos absteremos de comentar o referir. Eles abrangeriam,para além da prática do tráfego comercial com a China, as posições e reacções dasvárias autoridades portuguesas que nesse período se sucederam, não só no Governodo “Estado da Índia”, mas também na Capitania de Malaca. De todas as formas,poder-se-á dizer, e já do ponto de vista do poder central, de Lisboa, que oreatamento do tráfico não deixou de corresponder, inclusive, ao desejo de D. JoãoIII. Naturalmente que, todo esse processo, nomeadamente do ponto de vista oficial,terá de ser necessariamente enquadrado nas necessidades e oportunidades criadaspela evolução do Império Português do Oriente na primeira metade do século XVI,bem como nas próprias contingências da História de Portugal neste período.

Já do lado da China e, naturalmente, também de um modo abreviado, a políticachinesa da época ficou nitidamente marcada por uma dissensão entre as directivascentralistas de Pequim, que pretendiam o encerramento da costa chinesa (como setal fosse de facto possível, atendendo à sua extensão) ao tráfico comercial externo eaos interesses comerciais das províncias costeiras nesse mesmo tráfico. O resultadofoi, durante anos, uma situação confusa e mista, de aparentes contradições entreforças “centralistas” e “localistas” (ou entre os que defendiam – e praticavam – aabertura comercial marítima e “proibicionistas”). Embora, na prática, e segundoanálises e estudos de especialistas em política chinesa4 essa (porventura aparente)contradição não se desenquadrasse da prática “colegial” e flexível que terá efecti-vamente sempre caracterizado o exercício da soberania num dos mais antigos paísesdo mundo, a verdade é que o efeito causado resultou, no que diz respeito às fronteirasmarítimas da China em: comércio ilícito, corrupção, conivência e discricionariedadede autoridades e elites locais, pirataria, esbulho de mercadores pelas populaçõescosteiras e situações de conflito e extrema violência5.

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4 Ver, por exemplo, o estudo de Weggel publicado na Revista alemã “China aktuell” (“Institut für Asienkunde,Monatszeitschrift – Hamburg”, Março, Abril, Maio e Junho de 2000), curiosamente intitulado “Methodik derChina-Forshung,Teil 4 – Wie lässt sich ein Reich von kontinentalen Ausmassen zusammenhalten?”

5 Como refere João de Deus Ramos (obra e ed. cit, pág. 36): “A armada de Martim Afonso de Melo envolveu--se em duro combate com forças chinesas, em 1522, durante o qual muitos portugueses perderam avida e outros ficaram presos. A sentença de morte foi confirmada pelo Imperador, e executados 23 por-tugueses a 23 de Setembro de 1523.Tal é descrito num documento da época, em que a frieza do estilonão esconde a dureza dos castigos”. Também Roderich Ptak (“Sino-Portuguese relations, Circa1513/14-1550s” in “Portugal e a China, Conferências no II Curso Livre de História das Relações entrePortugal e a China (Séculos XVI-XIX), coordenação de Jorge M. dos Santos Alves, Fundação Oriente,1999, pág. 27) recorda os incidentes de Shuangxugang,Yuegang e Wuxu e Zhaoan, todos implicandoa morte ou prisão de portugueses e destruição de carga e navios pelas forças militares chinesas.

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Interesses comerciais e económicos em jogo Contudo, como refere Roderich Ptak6, apesarde todas as barreiras institucionais impostas (levantadas, por fim, em 1567), aChina continuava a absorver largas quantidades de pimenta, madeiras preciosas,carapaças de tartaruga, marfim, substâncias medicinais, etc., trazidos do Japão, doSudeste Asiático e das ilhas Ryukyu. O tráfico com o Japão – “descoberto” pelosportugueses nos 40 do século XVI7 – mostrou-se, também, particularmenteproveitoso, importando aquele país, principalmente, seda chinesa, e exportandograndes quantidades de prata8. Por outro lado, nesse período, a prata foi ganhandocada vez maior significado monetário e económico. O grande controlo oficial dasminas de prata chinesas (como referem os padres Sande e Valignano: “(...) emborahaja grande segredo na extração da prata pois o rei teme muito que isto provoqueo despertar da ambição e da ganância em muitos”9) daria especial relevo àimportação de prata do Japão (tanto mais podendo o país só a partir da segundametade do século XVI começar a contar com a importação de prata mexicana). Paraalém disso, como diz Gernet: “(...) the generalization of the monetary economy with silver ingots(...) caused general mobility in the society. It was at the root of more and more radical changes whichoccurred from the beginning of the sixteenth century and gathered speed as a result of various differentfactors. (…) everywhere in fact where the monetary economy based on ingots and imported silver coinswas in ascendant (…) the agrarian economy declined in proportion to the upsurge of mercantile and craftactivities”10. Todos esses factores11, económicos e sociais, que se conjugaram na Chinanessa altura, propiciaram, naturalmente, o prosseguimento do tráfico comercialcosteiro.

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6 Ob. e ed. cit, págs. 21 e 22.7 Refere Rui Manuel Loureiro (in “Fidalgos, Missionários e Mandarins, Portugal e a China no Século XVI,

Fundação Oriente 2000, pág. 372): “(...) depois de 1542 ou 1543, o Japão passou também a estarincluído nos circuitos mercantis portugueses”.

8 O comércio entre a China e o Japão (...) consistia sobretudo no intercâmbio entre a seda e o ouro chineses,muito apreciados no Japão, e a prata japonesa, altamente cotada na China”8 in “Um tratado sobre oReino da China, dos Padres Duarte Sande e Alessandro Valignano (Macau, 1590)”, introdução, versãoportuguesa e notas de Rui Manuel Loureiro, Instituto Cultural de Macau, 1992, nota 56, pág. 71.Naturalmente, referimo-nos ao texto e indicação de autoria conforme apresentada no título escolhidopara a edição citada, abstendo-nos, pela sua irrelevância no presente contexto, de explicitar as suasorigens e o contributo de cada um dos Padres, bem as condições aventurosas em que o texto surgiunesta dimensão, em edição inglesa, a partir de uma obra inicialmente maior, tudo isso podendo serconsultado na Introdução contida na referida edição.

9 “Um tratado sobre o Reino da China, dos Padres Duarte Sande e Alessandro Valignano (Macau, 1590)”,ed. cit., pág. 43.

10 Jacques Gernet, “A History of Chinese Civilization”, Cambridge University Press, 1990, Pág. 425.11 Naturalmente, aqui apresentados de forma sintética – e porventura incompleta – mas dando uma ideia

dos principais interesses então em jogo na China e suas regiões costeiras.

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Diz Rui Manuel Loureiro12: “A chegada dos nossos navegadores ao Japão, em1542 ou 1543, teve enormes repercussões no desenvolvimento das relações luso--chinesas. Nos anos que se seguiram, os contactos portugueses com a China cres-ceram ininterruptamente, multiplicando-se as viagens entre Malaca e o Japão, compassagem obrigatória pelos portos sínicos. A enorme distância que separava a praçaportuguesa do arquipélago nipónico, assim como os constrangimentos climáticosimpostos pela regularidade das monções, tornavam obrigatória a realização de umaescala técnica em território chinês. Esta paragem era aproveitada para a aquisição deseda chinesa, mercadoria indispensável ao sucesso da viagem do Japão”. Nesse sen-tido, e principalmente após a sua chegada ao Japão, e o início do comércio marítimocom aquela nação, os portugueses foram encontrando uma série de ancoradouros(destinados ao comércio e abastecimento) ao longo da costa chinesa (recorde-se afamosa Liampó, mencionada – e possivelmente exagerada nas suas dimensões – porFernão Mendes Pinto), principalmente, como se referiu, no litoral das províncias deFujian e Zhejiang (beneficiando do facto de a maioria das ilhas próximas do conti-nente se encontrarem praticamente abandonadas).

Por outro lado, a situação de restrição às práticas comerciais deu tambémorigem a uma intensa concorrência comercial entre as províncias chinesas costeiras,nomeadamente entre Cantão, Zhejiang e Fujian, tendo as últimas saído, a princípio,beneficiadas nessa competição. Devido a isso, foram tomadas medidas, como a dareabertura, pelas autoridades de Cantão, em 1529/30, das suas costas a “regular tributevessels”13 (mas não a portugueses que, de resto, não se encontrariam nessascondições14). Isso não impediu, contudo, que Cantão fosse obrigada a manter a suadependência dos comerciantes e navegadores de Fujian (que, durante séculos, foramos melhores marinheiros da China), que nada teriam a temer de possíveis con-correntes ibéricos. Para além de tudo, verificou-se uma permanência do comércioilegal nas costas chinesas, envolvendo siameses, japoneses e também portugueses.

O “regresso” luso ao litoral de Cantão A situação acabou, no entanto, por vir gradualmentea mudar, no que respeita a Cantão, tanto na perspectiva portuguesa (mercadores ealgumas autoridades) como chinesa (principalmente das autoridades de Cantão).

Do lado português, segundo Ptak15 o “interesse” num “regresso” aos portos deCantão relacionar-se-ia com a busca de condições mais estáveis e seguras de comércio

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12 “Fidalgos, Missionários e Mandarins”, ed. cit. pág. 37313 Navios mercantes pertencentes a “nações tributárias” da China. Ver, Ptak, ob. e ed. cit., pág. 25.14 Ver sobre a questão da concepção chinesa das suas relações externas: Konrad Seitz, “China – Eine Weltmacht

kehrt zurück”, Siedler Verlag, 2000, págs. 57 e 58.15 Obr. e ed. cit., pág. 28

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marítimo do que as que se verificavam em Fujian e Zhejiang (e Jiangsu), e umamenor competição (e fricção) com os comerciantes do Fujian (e mesmo, even-tualmente, com os espanhóis que se instalavam nas Filipinas). Isso implicaria o usoda ilha de São João (Shangzhuan), situada a setenta quilómetros da actual Macau(que se tornaria, principalmente, famosa por nela ter morrido S. Francisco Xavier),e ainda aquela conhecida nas fontes portuguesas por Lampacau (que hoje se crê ter-sedepois juntado, através de um processo de sedimentação, com a vizinha ilha deLianwan, assim se situando a cerca de trinta quilómetros de Macau16).

Igualmente, com a regularização do tráfico comercial português entre Malaca,a China e o Japão, que a seguir a 1550 terá sido colocado sob a supervisão de umCapitão-Geral, ter-se-á originado, como referido por Ptak17, “(...) a decrease in the kindof fidalgo-adventurism we had encountered in the 1530s and 1540s. (...) With the Malacca-Japan tradebecoming more regular, the Portuguese, in the eyes of the Chinese, certainly also gained more respect andbecame more predictable” (para além da vantagem – tradicionalmente referida – dapossível acção eficaz dos portugueses contra actividades piratas no estuário do Riodas Pérolas).

Evolução da perspectiva e visão portuguesas da nação chinesa Entretanto, será de cons-tatar, nos meios cultos e políticos portugueses, uma mudança na visão e apreciaçãoda China, que passará a ser altamente “benigna” para aquele país. Numa perspectivaque nos parece aceitável, essa “mudança” ter-se-á ficado a dever, em grande parte, ànoção do “fracasso” da estratégia manuelina relativamente à China, e à percepção danecessidade de reatar o processo relacional através da “justificação” das posições eatitudes chinesas, mesmo quando tendo posto em causa, por vezes de forma cruel,a integridade física, a vida e a propriedade de súbditos portugueses.

Deste modo, e embora a História dos primeiros anos de contactos entre portuguesese a China se possa afigurar bastante complexa, se tivermos em conta ignorânciasculturais recíprocas, “fracassos” diplomáticos, a morte de um Imperador (com asconsequências e agitação política que normalmente um facto dessa natureza acarretarianum Império daquela dimensão), e ainda as tentativas dos mandarins de Cantão emocultar e justificar face à Justiça Imperial o locupletamento – muitas vezes indevido,mesmo face às leis chinesas – à custa da fazenda e bens portuguesas, afigura-se que aChina terá sabido levar os portugueses a adoptar face à ela uma atitude de elogio e atéde reverência perante a sua cultura e civilização. Por outro lado, o lado oficial portuguêsterá “aprendido – duramente – a lição”, passando a mostrar-se prudente em evitaratitudes de “menor respeito”, ou mesmo de “confronto” com o poder chinês.

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16 Ver Ptak, pág. 29.17 Idem, pág. 30.

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101Neste sentido, será justo dizer, a comparação tradicional, na historiografiaportuguesa, dos inicialmente mencionados “bom” e “mau” irmãos Andrade (Fernãoe Simão – a quem J. M. Braga chamará, muitos séculos depois, “o furioso irmão dopacífico, meigo, e aprazível Fernão”), ambos ligados, embora aparentemente comefeitos tão diversos, aos contactos iniciais com a China, dever-se-á, porventura, maisa um constatar do fracasso de uma política (eventualmente baseada na ignorância edesconhecimento das coisas chinesas), do que propriamente à convicção da totalresponsabilidade de Simão pelo fracasso das negociações com o Império do Meio.Deste modo, no que respeita ao conceito político português face à China, pode-seconcluir, com Rui Manuel Loureiro, que: “(…) o projecto manuelino, baseadonuma deficiente recolha de informações, viera a revelar-se totalmente inadequado àscondições políticas chinesas (…) Assim, el-rei D. João III herdou do seu antecessoruma situação aparentemente irremediável (…) Os portos chineses estavam, a partirde 1522, hermeticamente cerrados à navegação lusa”18.

Terminara, porventura, a crença na viabilidade de uma política abrangendo actos“agressivos”, ou mesmo efémeras propostas de conquista da China, como as expostasnas cartas dos célebres “Cativos de Cantão”19 (e até por Tomé Pires), referindo a falta deamor pelo povo chinês ao “Rei” e aos mandarins, predispondo-se à revolta e ansiandopela vinda dos portugueses, cuja chegada seria apoiada pela esmagadora maioria dapopulação, passando a vingar, tendencial e gradualmente, uma “crença” nas virtudespolíticas chinesas como base para se proceder ao desenvolvimento de uma relação.

E mais do que referir todos os textos que nessa época elogiam a China (embora,por exemplo, os tão famosos escritos de Frei Gaspar da Cruz não deixem, elestambém, de incluir críticas aos costumes e práticas chineses da época), valerá a penaenunciar, como argumento a contrario que melhor ajudará a compreender a ideia quese pretende transmitir, dois casos em que estudiosos da História se espantam comdescrições já menos “elogiosas” daquele país, a primeira das quais contida na famosaCarta de Leonel de Sousa ao Infante D. Luís, em 1556, e a segunda no já citado“Tratado sobre o Reino da China”, de Sande e Valignano. Deste modo, comenta, porexemplo, Charles Boxer que Leonel de Sousa, numa atitude “incongruente” para o seutempo, “destaca a crueldade de muitas das torturas e penas que faziam parte das leischinesas”20. Também Rui Manuel Loureiro, perante a afirmação feita no “Tratado”21

sobre a grande abundância na China da guerra, fome e peste, comenta22 ser o referidoLe

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18 “Fidalgos, Missionários e Mandarins”, ed. cit., pág. 295.19 Ver “Cartas dos Cativos de Cantão: Cristovão Vieira e Vasco Calvo (1524?)”, introdução, leitura e notas de

Rui Manuel Loureiro, Instituto Cultural de Macau, 1992.20 “Fidalgos no Extremo Oriente”, Fundação Oriente e Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau,

1990, pág. 47.21 Ed. cit., pág. 39.22 “Um tratado sobre o Reino da China”, Nota 44, pág. 71.

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texto um dos primeiros “a tentar relativizar a imagem incrivelmente positiva que seformara das coisas da China na Europa do Renascimento”. Como se vê, o Império doMeio gozava então de uma visão tão perfeita, na sua constituição, costumes e práticas,que a menor sombra de “crítica” poderá parecer anómala.

Por outro lado, e já numa perspectiva mais pragmática, a verdade é que, tam-bém, terá começado a ser compreendido pelos portugueses que só uma “cooperação”com a Justiça chinesa permitiria (e beneficiaria) uma estabilização do relacio-namento com a China. Essa visão “justa” da Justiça chinesa (severa, mas podendotambém reverter em benefício dos interesses portugueses) decorre, por exemplo, do“episódio dos dois juncos”, verificado no final dos anos 40 do século, como bem ointerpreta João de Deus Ramos23, o qual levaria ao suicídio do Vice-Rei de Fujian eZhejiang, Zhu Huan e à execução, pelas justiças chinesas, de outros funcionários porilegalidades cometidas face aos portugueses.

Influência da visão “jesuítica” A mudança de perspectiva portuguesa, política e cultural faceà China dever-se-á, porventura, também, ao forte impulso dado pela chegada dosjesuítas à Ásia, em 1542, e aos seus desejos de missionação, inclusive à convicçãodo Padre Francisco Xavier, o qual, nomeadamente “(...) depois de conhecer mini-mamente o Japão (onde permaneceu entre 1549 e 1551), chegou à conclusão deque seria extremamente mais fácil converter os Japoneses à religião cristã depois deesta estar firmemente implantada na China. Daí a sua aspiração, no final frustrada,de conseguir entrada na China (1552)”24. Como refere Augusto Casimiro: “(...) oPadre-Mestre (S. Francisco) dá largas ao seu sonho. Conquistará para a Lei de Cristoaquela terra maravilhosa, e a China-madre espiritual do Japão”.25

Quanto ao modo de penetrar na China, o Padre Francisco chegou a conceber o plano, nunca concretizado, de acompanhar um “Embaixador” do “Estado da Índia”.26

Isso – para além do facto de os relatos jesuíticos e religiosos, desde logo pelospropósitos que se propunham, terem uma perspectiva muito mais abrangente, nas suasnarrações sobre a China, do que os relatos provindos de outras fontes – terá ajudado auma visão positiva da China nos relatos vindos do Oriente, salientando a superioridadecultural (e mesmo moral) de um país “ao qual parecia só faltar ser cristão”.

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23 Obra e ed. cit., págs. 37 e segs.24 Idem, nota 106, pág. 73.25 In “S. Francisco de Xavier e os Portugueses”, Agência Geral do Ultramar, Lisboa 1954, pág. 402.26 Ver Augusto Casimiro, obra e ed. cit., principalmente a partir da pág. 447. Afinal, a ideia da “Embaixada”

permitiria “regularizar” o comércio português na China, abrindo as “portas” cerradas pelo rigorosoVice-Rei de Fujian e Zhejiang, Zhu Huan , e eventualmente libertar os diversos portugueses presos naChina, para além de se conseguir a licença imperial para pregar a Fé cristã. Quanto à preocupação deS. Francisco pelos presos portugueses na China, demonstra-o o facto de ter recomendado, a poucos diasda morte, os “cativos que estão na China”.

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Por exemplo, já em finais do século XVI, dizem sobre a China os Padres DuarteSande e Alessandro Valignano: “Pois todos os seus livros estão cheios de preceitos defilosofia moral, e são muito manuseados pelos ditos estudantes, para sua própriainstrução, neles se encontrando proposições tão graves e piedosas, que mais não sepode exigir de homens que são destituídos da luz do Evangelho”27. Do mesmomodo, referem os Padres28 que (...) a autoridade é confiada, não a pessoas rudes emal preparadas, mas aos que se têm dedicado ao uso e ao exercício das letras. E aoserem entregues as magistraturas a homens sábios, está-se a demonstrar grandeconsideração pelo seu saber, pela sua justiça e por outras virtudes apreciadas peloschineses”. O próprio S. Francisco Xavier escreveria ao Padre Inácio de Loyola: “LaChyna es una tyerra muy grandissyma, pacyfica, y governada com grandesleyes...”.29

II – Missão de Leonel de Sousa Eram essas condições que se reuniam quando, por fim, tevelugar a já mencionada viagem de Leonel de Sousa aos portos chineses.

Leonel de Sousa era um fidalgo algarvio que esteve no Oriente mais de trintaanos, e que viajou, entre 1552 e 1555, pela costa chinesa. Embora o fidalgo portu-guês não se possa considerar um “enviado” do Rei de Portugal, a verdade é que aconcessão real de duas viagens à China – que a Coroa não tinha por hábito concederem anos recentes – poderia ter sido acompanhada de uma certa orientação einstrução dada pela Coroa. Neste contexto, podemos concordar com Rui ManuelLoureiro30, ao dizer que, ao conceder, em 1546, a Leonel de Sousa, duas viagens àChina31, D. João III teria, porventura, (…) o intuito explícito de tentar reatar asligações pacíficas com os portos chineses”. O mesmo Leonel de Sousa parece, deresto, confirmar, tal encargo, numa das suas posteriores cartas para o Reino(segundo a qual, tanto D. João III como o Infante D. Luís, desejavam esse reatamento,tendo-lhe recomendado que se esforçasse na “paz e asamtamento32” do CelesteImpério)33. Do mesmo modo, J. M. Braga34 cita a Chancelaria de D. João III, querefere que, em 1547, foi concedido a Leonel de Sousa o direito de fazer duas viagensà China, tendo-se este servido “certamente desta oportunidade para servir o seupaís” (Liv. 15, fl 23 v).

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I27 “Um tratado sobre o Reino da China, ed. cit., pág. 52.28 Idem, pág. 58.29 Augusto Casimiro, obra e ed. cit., pág. 435.30 “Fidalgos, Missionários e Mandarins”, ed. cit., pág. 493.31 Que o Vice-Rei na altura lhe não concedeu, tendo Leonel de Sousa de viajar para a China numa embarcação

de mercadores.32 Assentamento – Acordo.33 “Fidalgos, Missionários e Mandarins”, pág 493.34 Artigo e ed. cit. Pág. 118, Nota 12.

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A missão de Leonel de Sousa é hoje principalmente conhecida através de umaCarta escrita pelo próprio, em 1556, e que veio a ser divulgada pelo Dr. Jordão deFreitas, já no século XX. Segundo conta nessa carta escrita ao Infante D. Luís35 (semconhecimento do seu falecimento em 27 de Novembro de 1555), Leonel de Sousateria achado inicialmente todos os portos da China fechados e guardados, “pêra nosnão deyxarem fazer fazenda, nem nola consentirem dar”36. Os argumentos da partechinesa, colhidos por Leonel de Sousa prendiam-se com a vontade imperial,sabendo o Imperador do comércio ilícito dos portugueses, e assim nos excluindodo tráfico comercial (por serem homens de coração sujo, ladrões “e alevantados queamdavam fora da obediência de seu Rey”).

Neste sentido, Leonel de Sousa usou de toda a prudência para não exaltar aindamais os ânimos adversos, impedindo os que com ele estavam de quaisquer atitudesde provocação37. Em Shangzhuan, ao largo de Cantão, Leonel de Sousa soube, assim,impor o seu comando a cerca de “dezassete velas” portuguesas presentes no local,fazendo uso do costume de38, quando não existissem disposições nesse sentido, osportugueses aceitarem a liderança do “fidalgo mais honrado” (ou, como refereainda Rui Manuel Loureiro39, pela exibição da respectiva patente régia). Tambémface aos chineses, Leonel de Sousa soube fazer reconhecer a sua autoridade, queestes sempre respeitaram durante a sua estadia.

Enquanto ali se encontrava, fez-lhe saber o “Aytao” da cidade (Comandante daDefesa da Costa, funcionário que tinha a seu cargo os assuntos marítimos da Pro-víncia) a intenção de “cometer paz e que assantase direitos como estavam custume”40

(permitindo aos portugueses voltar a negociar em Cantão). Aconselhando-se com osque estavam com ele, Leonel de Sousa aceitou “o recado” “que o ouveram por muytoserviço de Deus, e de Sua Alteza”41. Como não era costume os Capitães-Moresabandonarem, nestas circunstâncias, o seu navio, as negociações foram realizadasatravés de um companheiro de Leonel de Sousa, a quem (pensa-se que por lapso) oCapitão se referirá mais tarde como Simão de Almeida.

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35 Irmão de D. João III, príncipe extremamente culto e popular, colega de D. João de Castro enquanto discípulodo matemático Pedro Nunes, e que terá acalentado, inclusive, o desejo de ir ao Oriente.

36 Revista de Cultura, n.º e ed. cit., pág. 118.37 Portanto aplicando-se-lhe aquilo que refere também Roderich Ptak, obr. e ed. cit., pág. 26: “(...) there were others as

well – those Portuguese who,with an eye for possible long term developments, tried their best to act in ways that would suit China’s needs andlead China’s local bureaucrats to distinguish them from ‘true’ pirates”.

38 Diz Ptak (ob. e ed. cit., pág. 30): “(...) Leonel de Sousa (…) probably had a ‘firm grip’ on his countrymen”.39 “Fidalgos, Missionários e Mandarins”, ed. cit., pág. 494.40 Idem, pág. 11941 Idem. Segundo a obra “Fidalgos, Missionários e Mandarins” ed. cit. pág. 496), fontes chinesas confirmam

que, “no ano de 1554, os navios dos folangji, nome tradicionalmente atribuído aos portugueses,comandados por um tal Zhou Luan, tentaram chegar a um entendimento com o aitão de Cantão para arealização de trocas comerciais”.

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Por não estar para tal trato devidamente credenciado (“pelo não levar Regi-mento”), Leonel de Sousa não passou o acordo a escrito, ficando-se este pela formaoral. Quanto aos direitos a pagar pelas mercadorias doravante traficadas (aspectoimportante das negociações e do acordo alcançado), a proposta chinesa elevava-as avinte por cento (que eram aqueles pagos pelos comerciantes do Sião), tendo Leonelde Sousa contra-proposto a sua descida para dez por cento. Como resultado, e poras autoridades locais referirem que qualquer alteração dessa percentagem dever sersancionada e decidida pelo Imperador, as partes vieram a acordar em que osportugueses pagassem 20% de direitos sobre “metade” das mercadorias negociadas.

Bem de acordo com a mentalidade chinesa, foi decidido mudar o nome de“Franges” (derivado de “Francos”, nome que até aí davam aos portugueses), assimmarcando tratar-se de “outra geração” (diferente da que fora responsável por tantas“atrocidades” e desrespeitos pelas leis e costumes chineses nas anteriores décadas doséculo). Já segundo Frei Gaspar da Cruz, que esteve na China em 1556, os chineseschamariam antes aos portugueses “Fancui” (homens do diabo), passando a designá-lospor “Fangim” (gente de outra costa).

O Aytão terá ainda referido aos portugueses que, se queriam poder navegar naChina, fosse enviada uma Embaixada ao Imperador, cuja autorização era necessáriapara se proceder a essa navegação.

A parte chinesa solicitou ainda que fosse dado um tratamento respeitoso aosmandarins locais, nomeadamente àqueles que fossem a bordo dos barcos portugueses,recordando ter sido devido aos enxovalhos feitos a um mandarim que os portuguesesnão teriam sido admitidos mais na China42. Perante este pedido, Leonel de Sousa terásido exímio e extremamente cuidadoso no tratamento dado aos mandarins eautoridades que vieram a bordo, sabendo “conservar-lhes os costumes e cortesias”,“agasalhando-os” e banqueteando-os do modo narrado na sua Carta a D. Luís.

Por outro lado, por não se fiarem ainda tanto nos chineses, os portugueses nãofizeram logo uso de Lampacau, como as autoridades de Cantão teriam sugerido.

Como refere J. M. Braga43, “(...) foi a Leonel de Sousa (...) que os portuguesesdeveram a oportunidade de retomar o comércio aberto com os cantonenses,tornando-o distinto das negociações clandestinas”. O facto terá, também, como seviu, agradado aos religiosos e missionários (por exemplo, os jesuítas terão apro-veitado para divulgar o ocorrido como um milagre de S. Francisco Xavier). Poroutro lado, a abertura do porto de Cantão tornava viável o resgate dos cativos

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42 Aqui, sim, poderia estar a ser feita referência a um episódio ocorrido durante a expedição de Simão deAndrade, que não teria ainda sido esquecido.

43 J. M. Braga, Revista de Cultura, ed. cit., pág. 116.

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portugueses em poder daquelas autoridades.Neste sentido, a acção do navegadorportuguês terá sido notável, tendo revelado (segundo J. M. Braga, com base no relatofeito pelo próprio Leonel de Sousa ao Infante D. Luís) “(...) um conhecimento danatureza humana e de tacto e uma compreensão da psicologia chinesa”.44

Do mesmo modo, e ainda segundo a Carta de Leonel de Sousa a D. Luís, o iníciodo tráfico aberto em Cantão teria já podido ser benéfico para os proventos da“Alfândega de Malaca”.

Condições políticas chinesas que terão permitido realização do trato com Leonel de SousaMau grado a opinião de diversos e respeitados estudiosos da História chinesa, quereferem a “aceitação” dos portugueses em Cantão (e mais tarde a sua instalação emMacau) como derivada de um singular enfraquecimento do poder central chinês,permito-me – oferecendo os méritos, entre outros, do estudo já citado (ver Nota 4) –alertar para a prudência com que deverá ser vista a anormalidade dessa situação nocômputo da permanência ao longo da História da soberania central chinesa. Defacto, apesar das referidas “singularidades” do equilíbrio (aparentemente desequi-librado) entre as directivas do poder central e a defesa dos interesses locais, não seafigura que – pelo menos formalmente (enquanto símbolo de soberania e poder) –a autoridade imperial seja – pelos diversos intervenientes, chineses e estrangeiros –documentalmente questionada de um modo parecendo pôr em causa a unidadepolítica chinesa (nas suas diversas especificidades e regionalismos).

Em fontes portuguesas da época transparece esta perspectiva unitária dasoberania chinesa como, por exemplo, nos comentários dos Padres Duarte Sande eAlessandro Valignano, em finais do século XVI: “Este povo é muito leal e obedienteao rei e seus mandarins, sendo esta a principal causa da sua tranquilidade e paz”45.E ainda: “Enquanto que no reino da China, um só rei governa tantas províncias, ésurpreendente o número de mandarins que ele nomeia para administrarem osnegócios públicos”46 – frase que bem transmite a percepção da coexistência(possível e viável) de uma soberania central única com a administração “man-darínica”.Também o próprio Leonel de Sousa reconhece essa centralização imperial,ao referir sobre a China que “a terra” (chinesa) pertence toda ao Imperador.

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44 Idem, pág. 117.45 “Um tratado sobre o Reino da China”, ed. cit., pág. 48.46 Idem, pág. 52. Na página 58 do mesmo livro, é ainda feito o seguinte comentário relativo ao Imperador:

“(...) dedica-se muito diligentemente ao estudo de tudo o que respeita ao seu estado e encontra-se

diariamente com os seus principais mandarins, com os quais debate as questões relacionadas com o

bem-estar público do seu reino”.

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Conclusão Pensamos poder, assim, terminar citando de novo o Embaixador João de DeusRamos: «Com o Assentamento de Leonel de Sousa, Portugal e a China subscreviamo primeiro acordo no plano jurídico convencional, criavam as condições mutua-mente benéficas para o incremento do comércio, cuja expressão mais concreta foiMacau. Concluía-se assim, auspiciosamente, depois de tantas dificuldades, oprimeiro período das relações de Portugal com a China.»47.

Da forma de concretização desse acordo, talvez não se saiba ainda muito –nomeadamente pela escassez de fontes descobertas. Desde logo, seria interessanteaprofundar as intenções e propósitos da Coroa Portuguesa face à viagem de Sousa àChina. De todas as formas, o que já se sabe, ou o que se foi sabendo, não permitirádesmerecer a relevância do acto e a sua contribuição para o prosseguimento dasrelações sino-lusas. E sem dúvida que essa primeira fase de contactos terá marcado,doravante, o modo específico de interacção entre os dois países que, mau grado asdistâncias geográficas e culturais, se viram, quase desde aí, singularmente aproxi-mados e preparados para conviver, tanto nos aspectos comerciais e culturais, comona perspectiva dos próximos contactos oficiais.NE

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47 Obra e ed. cit., pág. 40.

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Coluna Livre

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WASHINGTON ESTÁ PARA os think-tanks como o

queijo está para os ratos: mesmo arma-

dilhado, não são muitos os que resistem a

comê-lo. Na alma do visitante ocasional não

preenchem a cor e o aroma das cerejeiras

em Abril, nem tão pouco suplantam a

atracção e deslumbre dos museus da

Smithsonian; mas para os que se dedicam a

fazer girar o pião no tabuleiro do poder – e

não são em pequeno número! – é vê-los

emergir em matizes distintas, mul-

tiplicando-se pelos quatro cantos do

downtown, lá para os lados da avenida da

Pensilvânia ou do quarteirão das Embai-

xadas, vizinho a Dupont Circle.

Não é especialmente apelativa ou

inspiradora a designação genérica com que

a si próprios se crismaram: “depósito de

pensamentos”, “reserva de saberes”, “con-

centrado de intelectos”, a liberdade poética

é para agitar e usar quanto baste. Mas quem

pensar que tal chega para dispensar a

emoção, ou frustrar a tragédia e o drama

que neles dia-a-dia se encena, bem poderá

estar equivocado. É que completo o parto

e iniciado o ritual, há muito de aditivo

que permanece, negando que o poder seja

mais do que a ilusão de o ter e a fama um

estado de alma que dura mais do que os

quinze minutos vaticinados por Andy

Wahrol.

O novelista americano Don deLillo

observou uma vez que a História tinha por

base a história de homens fechados em

gabinetes e, Steve Waters, jornalista do

Guardian, à pergunta de como seria possível

mudar o mundo e as sociedades, não

hesitou em inscrever entre os caminhos

mais curtos e as fórmulas mais eficazes, a

par dos actos de terrorismo, os da fundação

de think-tanks.

Ubíquos, reservados e discretos como

mandam os estatutos, preferindo actuar

fora dos olhares e da vigilância públicas, os

think-tanks são uma força considerável das

modernas sociedades, um sinal visível

ainda que problemático do envolvimento e

participação não-democráticas na vida

cívica e política. Guardiões em teoria dos

valores morais e da transparência de pro-

cessos e intenções, artífices legítimos da

reinvenção das sociedades e da ética com-

portamental, converteram-se em pólos de

influência e irradiação de benesses, dispu-

tando com os lobbies e grupos de interesse,

os analistas de imprensa e os prolixos spin

doctors, a proximidade de um poder para

que não foram eleitos e de cujo desem-

penho não terão afinal de prestar contas.

Ainda Steve Waters: a utopia que eles anunciam, a

de uma sociedade livre de baias, é ilusória. Se alguém

duvida de quão devastadora pode ser a sua influência,

bastará deitar os olhos para lá do Atlântico e constatar

como os neoconservadores ganharam raízes em torno de

Bush. Por aí se comprova como o pensamento e as

ideias podem por vezes ser mortais.

Manuel Silva Pereira | Conselheiro de Imprensa na Embaixada de Portugal em Washington

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Voz(es) da América

O «novo século americano»ou de como os tempos nem sempre mudam as vontades

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112 PNAC. Em Janeiro de 1998, no auge

da disputa entre Saddam Hussein e os

inspectores das Nações Unidas, um

conjunto de notáveis convidava a Casa

Branca a usar todos os meios diplomáticos,

políticos e militares ao seu alcance para

remover o ditador iraquiano do poder. Em

carta endereçada ao então Presidente Bill

Clinton, personalidades como Donald

Rumsfeld, Paul Wolfowitz, John Bolton,

Richard Perle, Francis Fukuyama, Paula

Dobriansky, Bill Kristol, Robert Zoellick e

outros mais, postulavam que a política de

contenção deixara de funcionar no Iraque e

que um Saddam Hussein munido de armas

de destruição maciça (ADM) corporizava,

para os EUA, os seus aliados no Médio

Oriente e para os recursos petrolíferos na

região, a mais séria de todas as ameaças

desde o final da Guerra Fria.

“A política externa americana não pode ser refém

de uma unanimidade a alcançar pelo Conselho de

Segurança das Nações Unidas”, argumentava a

carta, para a seguir legitimar uma possível

intervenção militar com base nos sucessivos

desafios de Saddam à autoridade das Nações

Unidas e na sistemática “violação” dos

interesses americanos na região.

Críticos da II Guerra do Golfo viram na

missiva uma nova “crónica da morte anunciada”,

o rabo de fora do gato escondido, incon-

tornável como se revelava a similitude dos

argumentos que cinco anos mais tarde

foram invocados por George Bush e pela

sua Administração para desencadear a

ocupação militar do Iraque. Rory Bremner,

conhecido entertainer no reino de Blair,

comentaria, desta vez sem mordacidade,

que “o que eles visavam – a mudança de regime –

nada nem ninguém, nem as NU, nem Hans Blix, nem a

França, a Alemanha, a Rússia, a China, nem a ameaça

do terrorismo, nem as reservas levantadas pelos Países

árabes moderados, nem a ausência de provas ou

evidências credíveis, nem a Marcha da Paz, nem mesmo

o nosso corajoso Jack Straw, conseguiriam fazê-los

mudar de ideias”. Mas que ideias eram estas e

onde enraizavam os seus fundamentos?

Na Primavera de 1977, na suite 510

de um discreto prédio da Rua 17, em

Washington DC, o editor do “Weekly

Standard”, William Kristol, para muitos o

chefe de fila dos neoconservadores, dava

corpo e cara à fundação de um think-tank,

vocacionado nos estatutos para promover a

“liderança global da América”. Nascido por obra e

graça do «Projecto para uma Nova Cidadania»,

organização não lucrativa financiada pela

Fundação Bradley, o «Project for the New

American Century», ou PNAC (www.new

americancentury.org), inscrevia entre os

seus membros figuras gratas do Partido

Republicano, desde o ano de 2000 colo-

cados em lugares estratégicos na Admi-

nistração americana.

“A política externa e de defesa estão à deriva. É

certo que os conservadores puseram a descoberto a

incoerência das políticas da Administração Clinton e

resistiram aos impulsos isolacionistas vindos do seu

próprio seio. Mas não foram capazes de avançar com uma

visão estratégica do papel global da América, nem

identificar os princípios enformadores de uma política

externa consentânea. Permitiram-se divergir no plano

táctico e obscurecer a potencial convergência de desígnios

estratégicos. E não lutaram por um orçamento adequado

para a Defesa, necessário para garantir a segurança da

América e a defesa dos seus interesses no novo século. Nós

queremos mudar este estado de coisas”.

A promessa abre a eloquente decla-

ração de princípios do PNAC que, partindo

da proeminência alcançada pelos EUA na

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113última metade do século XX, aparece agora

a reclamar um “novo século” de indisputada

liderança global.

“A América tem um papel determinante na

manutenção da paz e da segurança na Europa, na Ásia e

no Médio Oriente. Se não assumirmos tal responsa-

bilidade estaremos a pôr em causa os nossos interesses

vitais. O século que termina ensinou-nos quão impor-

tante é moldar as circunstâncias antes que as crises

venham à superfície e enfrentar as ameaças antes que se

materializem”, postula a mesma declaração.

E das lições aprendidas da História,

retiram os fundadores do PNAC quatro

consequências principais, a saber:

❏ a necessidade de aumentar de modo

significativo as despesas com a defesa

nacional, “se queremos levar a cabo as nossas

responsabilidades no plano global e preparar as

forças armadas para os desafios do futuro”;

❏ o reforço da cooperação dos EUA com

os aliados democráticos no confronto

com os regimes políticos hostis aos

nossos interesses e valores;

❏ a promoção além-fronteiras da liber-

dade política e económica;

❏ enfim, a preservação e expansão de uma

ordem internacional favorável à segu-

rança, prosperidade e bem-estar, prin-

cípios e valores dos Estados Unidos da

América.

Ainda mais enfática do que a decla-

ração de princípios é o documento publi-

cado em Setembro de 2000 com o título

«Rebuilding America’s Defenses: Strategies, Forces, and

Resources for a New Century» (http:// newamerican

century.org/ RebuildingAmericasDefenses.pdf).

O ponto de partida é idêntico – a liderança

do mundo servida na bandeja do poder

militar – mas tem agora em consideração as

alterações introduzidas no pós-Guerra Fria.

As forças armadas são chamadas a desem-

penhar novos tipos de missões, da manu-

tenção da paz ao controlo e fiscalização de

“no fly zones”, pelo que devem ser equipadas

e treinadas adequadamente e bem assim

desdobradas ou distribuídas por bases

permanentes, situadas em locais estrategi-

camente escolhidos. E o Iraque serve de

exemplo eloquente, não apenas pela presença

militar americana ser aí indispensável para

fazer respeitar as resoluções do Conselho de

Segurança das Nações Unidas, mas ainda

porque, no longo prazo, “o Irão poderá repre-

sentar para os interesses americanos no Golfo uma

ameaça muito maior que a do próprio Iraque. E mesmo

que as relações americano-iranianas evoluam de modo

positivo, contar com bases avançadas na região será

sempre um elemento essencial para a segurança

estratégica dos EUA”.

IRAQUE. É discutível que, dois anos

após a decisão unilateral de intervir mili-

tarmente no Iraque, o contributo doutri-

nário do PNAC para a liderança global do

planeta seja de validade comprovada. Apesar

das eleições democráticas de Janeiro de

2005 e, três meses depois, da formação de

um suposto Governo de unidade nacional,

o País encontra-se transformado num cal-

deirão enorme de insegurança e desgraças,

com as tensões étnicas elevadas ao rubro à

mistura com as acções de vingança dos

saudosistas do passado camuflados sob as

vestes, e as bombas, de uma rebelião

sofisticada e que poucos ou nenhuns sinais

dá de poder abrandar.

Sem armas de destruição maciça para

mostrar ao mundo, sem a evidência de

conexões claras entre o regime deposto e os

operacionais da Al-Qaeda, a América de

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114 Bush está confrontada com um Iraque ingo-

vernável, um dia-a-dia recheado de bombas

e atentados suicidas, mortos e feridos aos

milhares, roubos e raptos de cidadãos

estrangeiros, chantagem e corrupção, lei

marcial e infindáveis postos de controlo,

desemprego e escassez de alimentos, hos-

pitais e populações carentes de assistência e

medicamentos, inflação e preços a galope,

falta de combustíveis em país exportador,

deslocados e refugiados às centenas, tortura

inumana de prisioneiros em Abu Ghraib e o

risco latente de uma guerra civil que alguns

defendem ser inevitável.

A violência que percorre as ruas de

Bagdad, Falluja, Tikrit ou Erbil gera ondas

de choque nas vilas e cidades de uma

América que, reelegendo Bush em 2004,

exige agora a retirada tão breve quanto

possível das tropas americanas.

Os números alinhavados pelo “Center for

American Progress” sintetizam a história e dão

da situação um retrato nítido: 200 milhares

de milhões de dólares de dinheiro dos

contribuintes (sete mm por mês!) gastos

até ao momento; 152 mil militares desco-

locados para o teatro de operações; 1.511

soldados mortos e 11.285 feridos desde a

invasão; entre 21 a 29 mil iraquianos

vítimas da guerra, e do crime e da violência

que se lhe seguiram; uma média diária de

70 ataques contra as forças da coligação e o

incipiente aparelho de segurança iraquiano

(em Fevereiro de 2005); 18 mil membros

integrantes da rebelião, contra talvez cinco

mil em Junho de 2003; 271 mil homens,

entre formados e em formação, nas novas

forças de segurança iraquiana; entre 28 a 40

por cento de desempregados; uma média

de apenas oito horas por dia com energia

eléctrica; 108 milhões de dólares inde-

vidamente facturados pela Halliburton; e

nove milhares de milhões de dólares gastos

sem que a Coalition Provisional Authority saiba

como ou onde.

É verdade que na paleta de cores

sombrias com que o Iraque hoje se

apresenta algo parece poder ainda jogar em

favor da esperança. As eleições de Janeiro,

para lá do boicote sunita e das irre-

gularidades cometidas e internacionalmente

verificadas, representam uma clara afir-

mação da vontade soberana do povo e da

sua determinação em fazer-se governar de

modo democrático, com respeito das

opções expressas nas urnas.

Mas já o longo e complexo processo

de formação do Governo transitório, tra-

zendo à boca de cena a missão (quase)

impossível de conciliar e reintegrar politi-

camente a minoria sunita desprovida do

poder hegemónico de outrora, bem como

as nunca desmentidas aspirações autono-

mistas curdas, viria a tornar clara a ciclópica

tarefa que o futuro reserva a uma Nação

milenar.

Noutros termos, que Lei Fundamental

e que Governo democrático poderão mate-

rializar-se num País de inalterada matriz

islâmica e enraizados sentimentos nacio-

nalistas, militarmente ocupado pela única

superpotência mundial, reconhecidamente

apostada em preservar influência e inte-

resses económicos numa região estratégica

do Globo, agora rebaptizada de Grande

Médio Oriente?

O desejo de um “País democrático, repre-

sentativo de todo o povo, em paz com os vizinhos e capaz

de se auto-defender”, vaticinado por Bush no

último discurso sobre o estado da União,

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115vai demorar certamente mais do que o

previsto e forçar os EUA a uma perma-

nência cada vez mais difícil de justificar no

plano internacional.

BOLTON, John. O nome tornou-se

conhecido e não pelas melhores razões.

Formado em Direito por Yale, com

extensa carreira de serviço público nas

Administrações Reagan, Bush I e II, repu-

blicano de alma e (pro)vocação, espírito

próximo dos neoconservadores tanto no

primarismo anticomunista e no medo

incontido de uma super-China emergente,

como na defesa à outrance do Estado de Israel

e na glorificação da superioridade moral

americana, John Bolton saiu agora da

relativa obscuridade em que as questões do

controlo de armamentos e segurança

internacional o sepultavam, para se tornar

na escolha favorita de Bush para o presti-

giado e difícil cargo de Embaixador junto

das Nações Unidas.

Tudo não passaria de uma discreta e

mais ou menos mediática performance no

Congresso, onde o eleito está ainda por

confirmar, não fora o caso de no curriculum

vitae de Bolton abundarem referências à

inutilidade das Nações Unidas (“uma

organização que pode ser manipulada, explorada e

controlada”) e à displicência que evidencia

pelo multilateralismo e respeito pela ordem

jurídica internacional que a organização

personifica.

Militarista assumido, ainda que nunca

tenha ido à guerra, crente como Barry

Goldwater de que “nenhum pecado pode existir na

defesa radical da liberdade”, herdeiro do pensa-

mento e da actuação de conservadores

como Jesse Helms, James Baker, Edwin

Meese e tutti quanti são ainda membros da

“Sociedade Federalista”, Bolton é um falcão

assumido, um “tough-minded diplomat” como

Condoleeza Rice o apelidou, mas longe das

(ofensivas!) credencias de multilateralismo

com que a Secretária de Estado em simul-

tâneo o quis brindar.

É que desde a Administração Bush I

que John Bolton se empenha em desfazer

ou eliminar as barreiras erguidas pelo

ordenamento jurídico internacional à

supremacia dos EUA, a começar pelas

convenções e tratados que, das minas

terrestres às crianças-soldados, das armas

químicas e biológicas aos ensaios nucleares,

do comércio de armas ligeiras ao sistema de

defesa antimíssil, se revelaram na sua óptica

constrangedores do livre arbítrio das

Administrações americanas.

Coveiro do Tratado ABM com a Rússia,

sobre mísseis antibalísticos, opositor fer-

renho das cláusulas de inspecção e verifi-

cação da convenção internacional sobre

armas biológicas, Bolton notabilizar-se-ia

em tempos mais recentes pela ferocidade

com que contra-argumentou a opção de

Clinton de aderir ao TPI – Tribunal Penal

Internacional, invocando o facto do “presi-

dente, ministros, membros do Conselho Nacional de

Segurança, altos quadros civis e militares responsáveis

pela política externa e pela defesa... se tornarem alvo

potencial (e presa fácil!) de um inamovível Procurador

em Roma, politicamente irresponsável”.

Para John Bolton, o TPI não é mais do

que o produto de “um romantismo confuso,

ingénuo mas perigoso”, razão porque, quando

em nome dos EUA foi mandatado para

assinar o documento de renúncia, con-

fessou ter vivido “o momento mais feliz da sua

vida pública”.

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116 NOVA EUROPA. Ainda antes de

Rumsfeld ter reeditado o tratado de Tor-

desilhas, redesenhando uma linha ima-

ginária entre a velha e a nova Europa, já

Bolton proclamava a inadequação da aliança

transatlântica à modernidade dos tempos.

Pretendia o candidato a Embaixador

nas Nações Unidas esclarecer que os dias

em que a América servia de “guarda-chuva”

da (in)segurança europeia haviam chegado

ao fim e que era altura de firmar com os

Países do Centro e Leste da Europa, já

libertos do jugo soviético, as coligações

políticas e militares do futuro.

O projecto não era novo, fora herdado

do “Congresso de Praga” que em 1996

discutira e elaborara “a nova agenda para as

relações transatlânticas” e corporizava-se em

Washington na “New Atlantic Iniciative”, insti-

tuída pelo “American Enterprise Institute”,

think-tank de que Bolton foi membro e mais

tarde vice-presidente.

O reforço da cooperação no Atlântico

Norte, a expansão da NATO às novas

democracias de Leste e a sua posterior

entrada na União Europeia, bem como a

criação de uma vasta zona de comércio livre

entre a UE alargada e os Países NAFTA eram

objectivos a prosseguir pelo NAI, tal como

pelo “Project on Transitional Democracies” e pelo já

extinto comité americano para a NATO,

ambos fundados por ilustres membros do

PNAC.

Mas onde a fusão com o ideário neo-

conservador encontra um dos seus plenos é

na aversão dispensada às NU e à legi-

timidade que lhe é outorgada para a

prossecução da paz e da segurança colec-

tivas. Com efeito, já em 1994 Bolton

proclamava “there is no such thing as the United

Nations”, sentença depois refinada com uma segunda

pérola, a de que «se o edifício das NU em Nova Iorque

perdesse dez andares ninguém notaria a diferença”.

Bolton voltaria à liça em 1999, aquando

do bombardeamento da ex-Jugoslávia pela

NATO, que obrigou Kofi Annan a fazer a

defesa intransigente do Conselho de Segu-

rança enquanto “fonte exclusiva de legitimidade

para o uso da força”. Lembrava o Secretário-

-Geral que “a ausência de uma resolução

favorável do Conselho de Segurança feria de

morte o próprio sistema internacional de

segurança” e que só a Carta da Nações

Unidas poderia dar base universal e legí-

tima ao emprego da força militar na

resolução dos conflitos.

Ora, para Bolton, não só a Carta da

ONU se encontrava há muito a precisar de

urgente revisão, como a doutrina de Annan –

“o direito internacional é tudo, o poder militar é

nada” – e que Bill Clinton endossara no seu

discurso perante a Assembleia Geral, a não

ser contestada “acabaria por limitar a capacidade

dos EUA de actuarem de forma independente na defesa e

protecção dos interesses nacionais”, além de que com

toda a certeza “iremos esperar em vão que os nossos

adversários cumpram as tais normas internacionais”.

A invasão militar americana do Iraque

voltou a ser para John Bolton a prova

provada da ineficácia das Nações Unidas.

Durante a conferência que realiza na

“Sociedade Federalista”, detecta um sério

conflito democrático naqueles que de

forma “directa ou indirecta defendem que os órgãos

de um governo eleito não estão aptos a conferir

legitimidade ao uso da força”. “Make no mistakes”,

alerta Bolton: a ser verdade a asserção,

ficará diminuída no longo prazo a capa-

cidade de exercer o poder de forma

independente.

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117CAPITAL. Os milhões de votos que o

distanciaram de John Kerry nas eleições

presidenciais de Novembro de 2004 são

para George Bush a fonte do capital político

que pretende investir, e rentabilizar, nos

próximos quatro anos. E ainda que, como

prescrevia o conselho dado pela mulher

Laura durante o jantar anual de imprensa da

Casa Branca, “se quiseres acabar com a tirania no

mundo tens que ir para cama mais tarde”, Bush não

parece apostado ou convencido em alterar o

seu biorritmo, confiante como está de que

a missão será cumprida pelos que o servem,

ou em breve o servirão, nos mais elevados

postos da Administração americana.

Um olhar rápido pelos subscritores da

carta de 1997 a Clinton, mais tarde mem-

bros fundadores do PNAC, permite dissipar

ilusões ou mal-entendidos: Dick Cheney é

de novo o Vice-Presidente, Rumsfeld segue

reforçado na Defesa, Wolfowitz está a

caminho da presidência do Banco Mundial

e Robert Zoellick, depois de representante

para o comércio, é agora o número dois no

State Department de Condoleezza Rice.

Elliot Abrams, do Conselho Nacional

de Segurança, serve de enviado para os

assuntos do Médio Oriente, Zalmay

Khalilzad é Embaixador no Iraque, depois

de o ter sido no Afeganistão, Paula

Dobriansky subsecretária dos Global Affairs

é figura de proa da “Comunidade das

Democracias” e o académico Francis

Fukuyama, o do “fim da História”, ocupa

assento no Conselho de Bioética do

Presidente.

Jeb Bush governa a Florida, Donald

Kagan ensina em Yale, Elliot Cohen lecciona

estudos estratégicos na Johns Hopkins,

Gafney é fundador-presidente do “Center for

Security Policy” e Gary Bauer, que já foi

candidato a Presidente, lidera a direcção da

“American Values”.

O ex-Vice-Presidente Dan Quayle, o

“príncipe das trevas” Richard Perle, Norman

Podhoretz do “Hudson Institute”, o bilio-

nário Steve Forbes, a ex-Embaixadora Jane

Kirkpatrick, o colunista do Washington Post

Charles Krauthammer, e Richard Armitage,

que foi braço direito de Colin Powell no

Departamento de Estado, são outros dos

nomes a ter sempre em conta no interior do

beltway.

O ideário proposto pelo “New American

Century” e pelo “American Enterprise Institute”,

em especial no plano das relações externas

da superpotência com o mundo global,

está vivo e recomenda-se. Os tempos

poderão ter sofrido alterações, mas as

vontades não, permanecem imutáveis, mais

reforçadas por um “11 de Setembro” de

terror, planeado contra o coração da

América capitalista. A liderança moral e a

supremacia militar são para perpetuar no

século XXI, o “segundo século americano”,

e a quem não se mostrar de acordo resta a

opção de ficar à margem da vontade e do

querer “made in America”.NE

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