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Negro e educação: presença do negro no sistema educacional brasileiro Marcus Vinicius da Fonseca Patrícia Maria de Souza Santana Cristiana Vianna Veras e Eliane Botelho Junqueira Júlio Costa da Silva Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto (Organizadoras) São Paulo, 2001 anped Apoio:

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Negro e educação:presença do negro no sistema

educacional brasileiro

Marcus Vinicius da FonsecaPatrícia Maria de Souza Santana

Cristiana Vianna Veras e Eliane Botelho JunqueiraJúlio Costa da Silva

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva eRegina Pahim Pinto (Organizadoras)

São Paulo, 2001

anped

Apoio:

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Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação

Rua General Jardim, 660 - Vila Buarque01223-010 - São Paulo - SP - BrasilFone/Fax:(11) 3151-2333E-mail: [email protected]: www.acaoeducativa.org

Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação — ANPEd

R. São Francisco Xavier, 524 — 10º andar — sala 10 014/2 – Bloco C – Pavilhão João Lyra Filho20 550.013 — Rio de Janeiro — RJ — BrasilFone: (21) 234-5700 — Fax: (21) 284-4350E-mail: [email protected]: www.anped.org.br

I Concurso Negro e Educação

OrganizaçãoANPEdAção Educativa

ApoioFundação Ford

Comissão OrganizadoraMaria M. Malta CamposPetronilha Beatriz Gonçalves e SilvaRegina Pahim PintoSérgio Haddad

Comitê científicoFúlvia RosembergLuiz Alberto Oliveira GonçalvesLuiz Claudio BarcellosMaria Malta CamposMarília Pinto de CarvalhoMarilia Pontes SpositoNilton Bueno FischerRegina Pahim PintoSérgio Haddad

Projeto gráfico e diagramaçãoCapa: Samuel Ribeiro JrMiolo: Miro NallesRevisão: Orlando Joia

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Sumário

Apresentação......................................................................................... 5

Formação de pesquisadores no contexto do I Concurso Negro e EducaçãoPetronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto.................. 7

As primeiras práticas educacionais com características modernas em relaçãoaos negros no Brasil

Marcus Vinicius da Fonseca.............................................................. 11

Rompendo as barreiras do silêncio: projetos pedagógicos discutem relaçõesraciais em escolas municipais de Belo Horizonte

Patrícia Maria de Souza Santana....................................................... 37

Raça e gênero na trajetória educacional de graduandas negras da UnicampJúlio Costa da Silva......................................................................... 53

Estudantes negros e a transformação das faculdades de direito em escolas dejustiça: a busca por uma maior igualdade

Cristiana Vianna Veras e Eliane Botelho Junqueira.............................. 73

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Apresentação

É com grande satisfação que a Comissão Organizadora do I Concurso Negro eEducação traz a público resultados de pesquisas realizadas no contexto desta iniciati-va (1999-2000), promovida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa emEducação - ANPEd e pela Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, com oapoio da Fundação Ford.

O Concurso buscou, entre outros objetivos, incentivar linhas de pesquisa na áreae, sobretudo, propiciar condições para formar pesquisadores. Nesse sentido, foi dadaprioridade a projetos de candidatos com pouca ou nenhuma experiência em pesquisa,dando-se ênfase a questões pouco exploradas na área. Os selecionados tiveram umano para desenvolver suas investigações.

Os quatro trabalhos selecionados para esta coletânea são uma contribuição impor-tante para a cada vez mais atual discussão sobre as desigualdades sociais, particular-mente quanto à escolarização do segmento negro. Essa discussão vem colocando paraa sociedade brasileira questões que há muito tempo são debatidas no âmbito do movi-mento negro, e que começam a ser cogitadas pelos formuladores de políticas públicas.

Cada um dos autores apresenta o resultado de seu estudo (com a precisão possí-vel para um iniciante) de forma simples, às vezes em tom coloquial, sem entretantosimplificar a complexidade das questões abordadas. Os leitores poderão verificar arelevância dos resultados encontrados e a contribuição inegável de cada um dos traba-lhos aqui apresentados para o conhecimento na área.

O primeiro trabalho, As primeiras práticas educacionais com características mo-dernas em relação aos negros no Brasil, de Marcus Vinicius Fonseca, é um estudo decaráter histórico sobre a educação de crianças negras, no contexto da promulgação daLei do Ventre Livre, de 1871. Desvenda os embates travados entre os que defendiam osinteresses dos proprietários de escravos e aqueles que lutavam para que as crianças,filhas de escravas nascidas livres, tivessem uma educação que as preparasse para a vidalivre.

O segundo, intitulado Rompendo as barreiras do silêncio: projetos pedagógicosdiscutem relações raciais em escolas da rede municipal de ensino de Belo Horizonte, dePatrícia Maria de Souza Santana, analisa projetos pedagógicos e outras iniciativas, emescolas públicas daquela cidade, visando à discussão das relações raciais no Brasil, bemcomo o conhecimento e a valorização da cultura e da história dos negros. O estudomostra que tais iniciativas são mais numerosas do que se costuma pensar; revela tam-bém a influência direta, muitas vezes solitária, de professores negros.

O terceiro estudo, Estudantes negros e a transformação das faculdades de direitoem escolas de justiça: a busca por uma maior igualdade, foi elaborado por CristianaVianna Veras1 . Analisa a transformação do perfil dos estudantes de direito, em termosraciais e sociais, num universo tradicionalmente conservador e homogêneo, levantan-

1 Em colaboração com Eliane Botelho Junqueira, sua orientadora nesta pesquisa.

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do a hipótese de que tal transformação poderá contribuir para formar futuros operado-res de direito mais conscientes da desigualdade social e mais próximos da realidadebrasileira.

O quarto trabalho, Raça e gênero na trajetória educacional de graduandas negrasda Unicamp, de Júlio Costa da Silva, analisa depoimentos de alunas negras da Unicampsobre sua trajetória educacional desde o ensino fundamental, discutindo especifica-mente as discriminações e preconceitos que as atingiram e a maneira como reagirama tais situações. Seu estudo, em que se destaca a riqueza dos depoimentos, articularaça e gênero, e indica que as mulheres, pela posição que ocupam, são mais sensíveisao preconceito e à discriminação.

O volume é aberto com um texto introdutório (Formação de pesquisadores nocontexto do I Concurso Negro e Educação), onde as professoras Petronilha BeatrizGonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto, a quem coube coordenar o processo de desen-volvimento do Concurso e as atividades dele decorrentes e que organizaram esta cole-tânea, tecem considerações sobre a formação de pesquisadores e, de modo geral,sobre os limites e possibilidades que se apresentaram no contexto desta iniciativa.

A Comissão Organizadora

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Formação de Pesquisadores no Contexto doI Concurso Negro e Educação

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto2

A iniciativa de organizar o Concurso Negro e Educação visava a suprir lacunas depesquisa sobre o tema, bem como incentivar a formação de pesquisadores. Mais dofinanciar projetos, buscava-se estimular a criação de linhas de pesquisa e, sobretudo,apoiar pesquisadores iniciantes.

Para dar formato ao Concurso, colher sugestões e debater a pertinência de suasproposições iniciais, a Comissão Organizadora realizou, em 1998, um seminário para oqual foram convidados pesquisadores da área, negros e não negros, muitos deles mi-litantes do movimento negro. Entre as várias sugestões, foi destacada a necessidadede o Concurso se constituir em um processo formativo, prevendo-se, para tanto, váriasatividades, bem como a presença de um orientador para acompanhar o desenvolvi-mento de cada um dos projetos de pesquisa a serem apoiados.

A primeira edição do Concurso teve significativa acolhida, o que mostrou a valida-de da iniciativa. Ao todo, foram recebidos 171 projetos abordando os mais diferentesaspectos do tema. Destes, 135 foram submetidos à seleção, tendo sido escolhidosdez, conforme previam as normas3 .

O processo seletivo contou com a participação de pareceristas ad hoc, pesquisa-dores experientes na área das relações raciais, relacionada ou não à educação. Aseleção final foi feita pelo Comitê Científico, o qual procurou seguir critérios rigorososdo ponto de vista científico e, ao mesmo tempo, considerar os limites de projetos depesquisadores iniciantes, muitos deles, até então, autodidatas em pesquisa.

Dentro ainda do espírito formativo do Concurso, o Comitê julgou conveniente quetanto os proponentes selecionados como os não selecionados tomassem conhecimentodas sugestões e críticas constantes dos pareceres sobre os projetos, pois se entendiaque essa medida poderia colaborar para a formação dos candidatos.

Tal providência pareceu bastante acertada, a julgar pelos depoimentos de algunscom quem tivemos contato, sobre a importância de conhecerem os pontos a reformularou a aprofundar nos projetos. Houve inclusive quem, com base nas sugestões, refezseu projeto, tendo este sido selecionado para curso de mestrado. Nesse sentido, oempenho do Comitê em dialogar e encorajar os candidatos ofereceu elementos paraque os candidatos dessem continuidade a seus esforços.

Os dez contemplados, além de contarem com a orientação de um pesquisadorexperiente durante o desenvolvimento de sua investigação, tiveram a oportunidade de2 Respectivamente, professora da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da FundaçãoCarlos Chagas.3 Os demais, 36 projetos, não foram a julgamento por não preencherem as normas do Concurso.

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debatê-la com os colegas e com o Comitê Científico, em dois seminários de formação.Durante o período de duração da pesquisa, elaboraram um relatório parcial e um final,os quais foram avaliados pelo Comitê Científico e, quando necessário, reformulados.

Nesse processo de acompanhamento e avaliação, instaurou-se um diálogo bas-tante fecundo entre o Comitê Científico e os bolsistas, no que diz respeito ao encami-nhamento do projeto, à metodologia escolhida, à maneira de abordar o tema e detratar os dados. A possibilidade de ouvir e de conversar com os membros do ComitêCientífico, muitos deles autores citados pelos bolsistas em seus trabalhos, encorajou-os na complexa tarefa que tinham pela frente. Foi também estimulante ouvir os cole-gas sobre seus próprios trabalhos bem como ter a oportunidade de opinar sobre apesquisa dos outros.

Confrontando-se as observações sobre os projetos feitas pelo Comitê Científicodurante o primeiro seminário de formação com o resultado expresso nos relatóriosfinais, observaram-se progressos significativos por parte da maioria dos bolsistas. Issoficou evidente na preocupação e no empenho em precisar conceitos, delimitar o temaestudado e encaminhar a pesquisa de modo mais pertinente, articulando as questõesenfrentadas com as referências teóricas. Em resumo, a maioria conseguiu aperfeiçoaro trabalho do ponto de vista teórico e metodológico. Observaram-se ainda esforços decontextualização do objeto de análise, apoiando-se em bibliografia de caráter teóricoou histórico.

Os relatórios finais elaborados pelos participantes certamente demonstraram avan-ço na experiência de pesquisar. No entanto, a despeito dos progressos e dos resultadospromissores, as ponderações e recomendações dos responsáveis pelo acompanhamen-to e avaliação dos projetos demonstram que não só há aspectos a serem aperfeiçoadosem trabalhos futuros bem como dificuldades a serem superadas pelos pesquisadoresiniciantes e enfrentadas por seus formadores.

A primeira delas diz respeito à construção do corpo teórico. Nem sempre ficaclaro, em todas as suas dimensões, para um pesquisador iniciante e que tem o prazode um ano para realizar seu trabalho, o que seja o corpo teórico de uma pesquisa.Muitas vezes ele o confunde com revisão da literatura na área, não chegando a formu-lar os conceitos com precisão; falta-lhe indicar a sua sustentação teórica. Na maiorparte dos casos, embora os bolsistas tenham entendido o corpo teórico como umareferência para organização de sua pesquisa, não conseguiram fazê-lo dialogar sufici-entemente com os dados coletados. Da mesma forma, em alguns casos, na construçãodo corpo teórico e da metodologia, diferentes linhas teóricas e abordagens metodológicasforam utilizados de modo indiscriminado.

Merece também destaque a dificuldade de os bolsistas organizarem os dadoscoletados na perspectiva dos objetivos e do corpo teórico construído, para que fossemanalisados. Com isto se quer dizer que, embora os relatórios finais aprovados nãotenham apresentado falhas sérias de consistência, alguns dos dados deixaram de serexplorados em dimensões significativas ou interessantes.

Ainda quanto à análise dos dados, um problema freqüente, nem sempre superadototalmente, foi a não distinção entre as opiniões próprias do pesquisador e as dos

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sujeitos da pesquisa. Da mesma forma, na discussão dos resultados em face da litera-tura, confundiram-se, em certos momentos, julgamentos formulados com base emvivências ou opiniões do pesquisador com aqueles que poderiam ser elaborados, comofruto de reflexão a partir do corpo teórico da pesquisa.

Quanto à metodologia, cabe lembrar que, em alguns casos, apesar de ter sidoescolhida a metodologia adequada ao problema e à questão de pesquisa, houve algu-ma inabilidade ou falta de compreensão de suas exigências, a fim de bem aplicá-la.

Uma outra dificuldade foi superada na primeira fase da pesquisa, mas, dada afreqüência com que se manifestou no conjunto de projetos submetidos ao Concurso,convém destacar: a não distinção entre projeto de pesquisa e projeto de intervenção.Grande parte dos proponentes é composta de negros, preocupados em solucionar pro-blemas que seu povo enfrenta e, nesse sentido, tentaram, com seus projetos, buscaruma forma de combater o racismo, as discriminações, buscar reconhecimento e res-peito e criar melhores condições de vida. Para tanto, propuseram intervenções semarticulá-la com a pesquisa. Haveria uma investigação no seio da intervenção? A partirde uma pesquisa, previa-se a realização de uma intervenção? A pesquisa se destinariaa avaliar e ou acompanhar uma intervenção?

Cabe ressaltar que o Concurso se constituiu numa oportunidade de aprendizagemtambém para o Comitê Científico. Além de tomarem ciência das inquietações dos candi-datos e de facetas da problemática racial que merecem ser investigadas, os seus mem-bros tiveram que definir critérios de avaliação e acompanhamento que, sem comprome-ter a excelência científica e acadêmica do processo de pesquisa, levassem em contadiferentes experiências e áreas de formação.

Finalmente, tudo indica que o Concurso contribuiu para a visibilidade do tema, ten-do mobilizado um grande número de interessados, provenientes de várias partes do paíse que, quiçá, em outras circunstâncias, não teriam a oportunidade de externar suasidéias e, tampouco, vê-las desenvolvidas e avaliadas. Com certeza muitos dos limites edificuldades anteriormente mencionados poderão ser superados no decorrer das ativida-des do II Concurso Negro e Educação, já em andamento.

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Resumo

Pesquisa de caráter histórico. Focali-za os anos em que vigiu a Lei do VentreLivre (1871-1888). Recorre a documen-tos oficiais, principalmente do poderlegislativo do Império e do Ministério daAgricultura, assim como a manifestaçõesde intelectuais do período. Examina aspráticas educacionais dirigidas aosafrodescendentes nascidos livres de mãesescravas. Indica que havia uma consci-ência sobre o valor da educação como ele-mento de inclusão social no processo desuperação do escravismo, não obstante terpredominado a tendência a não incluir osfilhos livres de escravas nos benefícios dainstrução.

Introdução

Este artigo resulta de pesquisa decaráter histórico1 (Fonseca, 2000), cujomarco temporal encontra-se circunscritonas últimas décadas da escravidão (1871a 1888). Seu objetivo é analisar a rela-ção entre abolição da escravidão e edu-cação dos negros, tal como foi concebidadurante o processo de superação doescravismo no Brasil.

O ponto de partida é a Lei do VentreLivre, de 1871, segundo a qual as crian-

ças nascidas de mulheres escravas pas-savam a ser consideradas de condiçãolivre. É em torno dessas crianças que en-contraremos um conjunto de experiên-cias no que tange à educação dos ne-gros no Brasil. Trata-se do reconheci-mento da necessidade de se estender aosnegros a educação escolar, ou moderna,pois, como salienta Justino Magalhães(1996), a escolarização é um dos princi-pais aspectos do processo de moderni-zação da educação.

Para avaliar essas experiências edu-cacionais utilizamos como fonte de pes-quisa os debates relativos à elaboraçãoda Lei do Ventre Livre, a documentaçãodo Ministério da Agricultura no que dizrespeito à sua execução e, finalmente,algumas obras que consideramos impor-tantes no cenário das discussões sobre aabolição da escravidão no Brasil.

Dessa forma, o presente texto divi-de-se em duas partes: a primeira, discu-te o surgimento da questão educacionalno contexto do processo de construção eexecução da Lei do Ventre Livre; a se-gunda, analisa o caráter inovador desseprocesso, demonstrando a diferença en-tre as concepções educacionais que sur-giram em meio à abolição e a forma comoa questão era tratada anteriormente.

As Primeiras Práticas Educacionais com Características Modernas em Relação aos

Negros no Brasil

Marcus Vinícius Fonseca*

*Mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.1 Orientadora: Cynthia Greive Veiga.

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A Lei do Ventre Livre e a educação

Os anos de 1850 a 1888 foram mar-cados por um intenso debate sobre a abo-lição da escravidão, sendo o ano de 1871um dos momentos capitais, dado que sediscutia a libertação das crianças nasci-das de escravas — a libertação do ventre,como se costumava dizer na época.

A característica mais importante des-sa discussão diz respeito ao fato de ata-car a única fonte legal de entrada de no-vos escravos no país. Desde a proibiçãodo tráfico de africanos, em 1850, somen-te o ventre das mulheres escravas conti-nuava a introduzir trabalhadores cativosem terras brasileiras. Libertar o ventresignificava acabar com a única fonte derenovação da escravidão e, assim, essainstituição estaria com seus dias conta-dos. Não havendo novos escravos, o tra-balho servil passava a ser um problemageracional e seria eliminado à medida queas gerações nascidas no cativeiro desa-parecessem completamente2.

Essa proposta de cunho geracionalfoi uma manifestação clara da intençãode se eliminar o trabalho escravo de for-ma lenta e gradual, concepção que podeser percebida claramente na argumenta-ção do jurisconsulto e historiador Perdi-gão Malheiros, um dos principais defen-sores da libertação do ventre como formamais conveniente de se acabar com a es-cravidão no Brasil:

Para se obter a extinção completa daescravidão, é preciso atacá-la no seu re-duto, que entre nós não é hoje senão onascimento. Cumpre, portanto, declarar

que são livres todos que nascerem decerta data em diante ... esta emancipa-ção do ventre, esta liberdade dos filhos,importa a grande justiça da revogaçãodo odioso e injustificável bárbaro prin-cípio mantenedor da perpetuidade da es-cravidão, o celebre partus sequiturventrem deve ser a pedra angular dareforma. (Malheiros, 1976 [1867], p.156, grifos do autor).

Portanto, a pedra angular da refor-ma proposta por Perdigão Malheiros de-veria ser a quebra do princípio herdadodo direito romano segundo o qual o par-to deveria seguir a sorte do ventre. Im-pedir o nascimento de novos escravoscolocaria a escravidão em xeque e ga-rantiria o seu fim em algumas gerações,permitindo aos senhores de escravosuma transição gradativa para o traba-lho assalariado.

Foi também Perdigão Malheiros o pri-meiro a perceber as implicações da rela-ção entre a abolição da escravidão e aeducação. Já em 1867, formulava a se-guinte pergunta: “que educação devemreceber essas crianças que se tornarãoos futuros cidadãos do Império?”:

O essencial é que além da educaçãomoral e religiosa, tomem uma profissão,ainda que seja lavradores ou trabalha-dor agrícola; ele continuará a servir aíse lhe convier, ou irá servir a outrem, ouse estabelecerá sobre si; em todo caso,aprenda um ofício mecânico, uma pro-fissão, de que possa tirar recursos parase manter e a família, se tiver. Algunspoderão mesmo ser aproveitados nasletras ou em outras profissões, as es-

2 Nos debates sobre a libertação do ventre encontramos uma interessante correlação entre o nasci-mento e a morte como elementos considerados responsáveis pelo fim da escravidão no Brasil. Nessesentido, determinar que as crianças nascidas de escravas seriam de condição livre encontrava umcomplemento na morte das gerações de trabalhadores cativos. Isso porque, depois de 1871, ninguémmais nasceria escravo no Brasil e, à medida que as gerações anteriores fossem morrendo, a escravidãoterminaria quase que naturalmente.

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colas lhes são francas, como livres queserão por nascimento. Obrigar os senho-res a mandá-los a elas é ainda proble-ma a resolver; a instrução obrigatóriaou forçada não está admitida entre nós,nem mesmo para os demais cidadãoslivres. Os senhores devem ter para istoum prudente arbítrio, como aos pais édado em relação aos filhos. (idem,ibidem, p. 162)

Na perspectiva apresentada porMalheiros, a libertação do ventre e a edu-cação são articuladas de forma clara, sen-do que a educação chega até mesmo aser tratada como uma dimensão comple-mentar do processo de abolição do traba-lho escravo. Portanto, em meio às dis-cussões que começavam a difundir a idéiae a necessidade de estabelecer a liberta-ção das crianças nascidas de escravas,educação e emancipação eram vincula-das como parte do processo geral de pre-paração dessas crianças para o exercícioda liberdade.

No entanto, a articulação entre abo-lição e educação - tal como se deu nosdebates relativos à libertação do ventre -não foi colocada em destaque para prote-ger as crianças que nasceriam livres. Nofundo, o que ela verdadeiramente expres-sa é a tentativa de minimizar o impactoque o fim do trabalho escravo poderiagerar no perfil da sociedade brasileira, quereceberia um número significativo indi-víduos originários do cativeiro na condi-ção de cidadãos livres.

Ao recuperarmos os debates que ocor-reram no parlamento em torno do projetode lei que pretendia acabar com a escravi-dão das novas gerações nascidas de escra-vas, esse posicionamento fica explícito.Percebe-se a intenção de se atribuir umaobrigação aos senhores quanto à educaçãodessas crianças, embora acompanhada de

algumas restrições. No parecer da comis-são responsável pela leitura do projeto delei apresentado à Assembléia GeralLegislativa, em 1870, isso fica evidente namedida em que a intenção de se atribuiraos senhores das mães a responsabilidadepor uma educação, incluía, sempre quepossível, a instrução elementar:

Art. 7º — Os filhos das escravas nas-cidos depois da publicação desta lei se-rão considerados livres. Os libertos emvirtude desta disposição ficarão em po-der e sob a autoridade dos senhoresde suas mães, que exercerão sobreeles o direito de patronos, e terão aobrigação de criá-los e tratá-los, pro-porcionando-lhes sempre que for pos-sível a instrução elementar (Câmarados Deputados, 1874, p. 27).

Afirmar que os senhores das mãessempre que possível deveriam proporcio-nar às crianças a instrução elementar eraalgo extremamente vago e não represen-tava nenhuma garantia de que eles assu-miriam a função de ampliar o conteúdoda educação dessas crianças. Legislarsobre o sempre que possível é muito maisuma intenção do que necessariamenteuma determinação; a possibilidade, ou osempre que possível, é algo muito subje-tivo para ser abarcado pelos nexos cau-sais que motivam uma lei.

A despeito disso, pode-se conside-rar que alguns setores que atuavam noparlamento tentaram criar na lei uma bre-cha para forçar uma mudança de atitudedos senhores em relação às novas gera-ções provenientes da prole das escravas.Trata-se do reconhecimento da necessi-dade de submetê-las a uma educaçãomais ampla como forma de preparaçãopara a vida livre.

Mesmo os opositores do projeto delibertação do ventre reconheciam e atri-

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buíam uma importância fundamental àeducação. Porém, a responsabilidade deeducar era vista como um problema, poisé evidente que os senhores não estavamdispostos a assumir tal compromisso emrelação aos filhos de escravas. Os seto-res mais afinados com os interesses dosproprietários de escravos estavam aten-tos para que essa obrigação não viesse arecair sobre os senhores das mães.

Essa posição manifesta-se no pró-prio Parecer enviado à Câmara dos De-putados em 1870. Ela exprime a cons-ciência dos representantes dos interes-ses dos senhores de escravos de que alibertação do ventre não poderia vir as-sociada a uma mudança efetiva do statusdas crianças que nasceriam livres.

Um dos pareceristas, deputadoRodrigo A. Silva, manifesta-se contra oartigo que deixava margem à interpreta-ção da obrigatoriedade por parte dos se-nhores de providenciar instrução elemen-tar para as crianças que nasceriam livres.Além da defesa explícita do direito dosproprietários agrícolas o deputado argu-menta que a atribuição educacional (ainstrução elementar) estabeleceria duasformas de conduta dos proprietários noexercício do seu poder: uma, para os es-cravos, que poderiam ser tratados comode costume; outra, para as crianças nas-cidas de escravas que, além de serem con-sideradas livres, deveriam ser objeto denovas práticas educacionais:

Se o patrono tem obrigação não só decriar e tratar dos filhos de suas escra-vas, como pessoas livres, mas tambémde dar-lhes a educação que devem teros cidadãos em tais circunstâncias oprojeto nesta parte além de vexatório,

é inexeqüível ... Introduzido nestes es-tabelecimentos dois sistemas, um severoe disciplinar para os escravos e outrode harmonia teremos constituído paraos proprietários uma posição rodeadade embaraços, tão cheia de obrigaçõese de ameaças, que eles jamais aceita-rão por vontade própria (Câmara dosDeputados, 1874, p. 99 3).

A educação tornava-se, assim, umponto de discordia, pois dividiria as prá-ticas que regiam o mundo do trabalho, àmedida que conferia um novo status àscrianças nascidas livres de escravas. Sig-nificaria também, de acordo com RodrigoA. Silva, que essas crianças poderiam serretiradas do trabalho produtivo para re-ceberem instrução, o que não só afetariaos lucros dos senhores, como despertariao descontentamento entre os escravos quenão possuíssem esse benefício.

As posições em relação à educaçãomanifestas nos debates parlamentaresexpressam um antagonismo: de umlado, era ressaltada a necessidade deeducar as novas gerações que nasceri-am livres no cativeiro; de outro, educá-las significava contrariar os interessesimediatos dos proprietários de escravos,que não estavam dispostos a aceitar umamudança efetiva na condição desses in-divíduos, tidos como os futuros traba-lhadores do país.

O ponto de chegada da disputa en-volvendo a educação foi a forma como aquestão se materializou no texto da Lei2040 — popularizada com o nome de Leido Ventre Livre — que estabeleceu umasutil distinção entre criar e educar.

Segundo essa lei, todas as criançasnascidas após 28 de setembro de 1871

3 A publicação referente ao Projeto de Lei apresentado à Assembléia Geral Legislativa em 1870, utiliza-da nesta pesquisa, data de 1874.

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passavam a ser consideradas de condi-ção livre, porém, deveriam permaneceraté os oito anos sob a posse dos senho-res de suas mães. Quando atingissemessa idade, o senhor faria uma escolha:ficaria com o menor até a idade de 21anos — podendo inclusive durante todoesse período utilizá-lo como trabalhador—, ou o entregaria ao Estado, medianteuma indenização de 600$000 (seiscen-tos mil réis)4.

Quanto às crianças que permaneces-sem sob a posse dos senhores, a Lei pre-conizava que deveriam ser somente cria-das. As que fossem entregues ao Estadodeveriam ser encaminhadas a instituiçõesque se tornariam responsáveis por suacriação e educação. Portanto, a distinçãoentre criação e educação isentava os se-nhores de escravos de qualquer respon-sabilidade quanto a uma alteração no con-teúdo das práticas educativas dirigidas aessas crianças. Por outro lado, definiaque aquelas que fossem entregues aoEstado não poderiam ser tratadas comoera comum no regime de escravidão, de-vendo ser, portanto, educadas5.

Enfim, de acordo com a Lei do Ven-tre Livre, as que nascessem de escravaspoderiam ser criadas ou educadas, oumelhor, poderiam ser submetidas aosmesmos padrões de educação que vigo-ravam durante a escravidão, caso ficas-sem sob a posse dos senhores de suasmães, ou poderiam ser expostas a umaoutra forma de educação, mediante a qualseriam preparadas para a vida como se-res livres, caso fossem entregues ao Es-

tado. Qual foi o destino das crianças nas-cidas de escravas após 1871? Foram elascriadas, ou educadas? Permaneceramsob a posse dos senhores, ou foram en-tregues ao Estado? Essas questões sãofundamentais para sabermos como foiencaminhada a questão educacional emmeio ao processo de abolição do traba-lho escravo.

A educação na vigência da Leido Ventre Livre - A análise do proces-so de execução da Lei do Ventre Livrerevela que a educação passou a ser umdos aspectos importantes do discurso eda ação do poder público em relação àscrianças que nasciam livres e, aos ne-gros, de um modo geral.

Nesse sentido, percebe-se até 1879um esforço para se construir uma estru-tura educacional que possibilitasse a edu-cação das crianças entregues ao Estado.Esse ano — em que as primeiras criançasnascidas livres completariam oito anos epoderiam ser entregues ao Estado ouretidas nas mãos dos senhores — consti-tui-se um marco para se avaliar a açãodo governo e para o próprio entendimen-to da educação dos negros no contextodo processo de abolição do trabalho es-cravo no Brasil.

No relatório do Ministério da Agri-cultura de 1872, já aparecem referênciasa iniciativas que buscavam articular aeducação e o processo de abolição da es-cravidão:

... pendem de decisão do governo duaspropostas para criação de companhias

4 Nesse sentido, essas crianças se tornariam livres somente após os 21 anos, o que, como ressaltaMattoso (1988), consiste em uma escravidão disfarçada.5 De acordo com a concepção que estamos utilizando, tanto as crianças que permaneceram sob aposse dos senhores como as que foram entregues ao Estado foram educadas. O que diferia era aforma como eram educadas. Podemos considerar como principal elemento dessa distinção o fato deque não se exigia aos senhores de suas mães submetê-las a instrução elementar.

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destinadas à alforria de escravos e edu-cação dos menores livres, filhos de mu-lher escrava, que senhores das mães ti-verem abandonado, e ao aproveitamen-to de seus serviços por meio de contra-tos e parcerias. (Ministério da Agricul-tura, 1872).

No ano 1873 persistia a mesma in-tenção:

O movimento emancipador continua amanifestar-se espontaneamente, já pelagenerosidade individual, já pelos esfor-ços coletivos de associações organiza-das para esse fim em diversas cidadesdo Império, manifestando-se tanto poralforrias, como pela instrução que pro-curam difundir entre os escravos. (Mi-nistério da Agricultura, 1873).

Esses relatórios indicam que ime-diatamente após a aprovação da Lei doVentre Livre as propostas para consti-tuição de associações para a educaçãodas crianças nascidas livres de escra-vas começavam a ser apresentadas eeram bem acolhidas pelo Ministério daAgricultura. Esse órgão do governo doImpério via nessas associações a pos-sibilidade de recolher as crianças, poiso governo não possuía uma estruturacapaz de recebê-las e, muito menos,estava disposto a criá-la sob sua inteiradireção e responsabilidade O caminhopara realização de parcerias com parti-culares revelava-se, assim, como o maisconveniente a ser tomado.

Foi esse o encaminhamento que vi-gorou até 1879, sendo que o Ministérioda Agricultura passou a tomar iniciativascom o objetivo de incentivar o surgimentode associações que pudessem arcar coma educação das crianças, filhas de escra-vas, nascidas livres. No relatório do Mi-

nistério da Agricultura de 1876 esse pro-pósito está explícito:

Os dois anos e poucos meses que nosseparam do prazo fixado no Art. 1º daLei de 28 de setembro (Lei do VentreLivre) bastam, seguramente, para a ex-pedição das providencias necessárias aocumprimento das obrigações incumbi-das ao Estado pelo Art. 2º parágrafo 4º.... Um dos alvitres que se afigurarammais aptos para a consecução do fimda Lei é o estabelecimento dos asilosagrícolas, adotados com bom êxito, emoutras nações para a educação dosmenores. Num país, como o Brasil, emque a agricultura definha pela falta debraços e de ensino profissional esse al-vitre traria o excelente resultado de au-mentar o número dos bons lavradores(Ministério da Agricultura, 1876)

Na documentação do Ministério daAgricultura há referências a várias des-sas associações. A partir de 1872 há in-formações anuais sobre o Imperial Insti-tuto Fluminense de Agricultura que, se-gundo o relatório do próprio instituto, ti-nha sob sua responsabilidade o primeiroasilo agrícola da América do Sul, fundadoem 1869, ou seja, em meio ao debate paraa aprovação da Lei do Ventre Livre.

No ano de 1873, o governo, por in-termédio do Ministério da Agricultura, fir-mou contrato com o agrônomo FranciscoParentes, para que fosse fundado no Piauíum estabelecimento agrícola destinado àeducação de ingênuos6 e libertos: o Esta-belecimento Rural de São Pedro deAlcântara. Essa parceria estáestabelecida em um contrato pelo qualo governo entregava a Francisco Paren-tes quatro fazendas para que a educa-ção dos ingênuos e libertos fosse reali-

6 Terminologia herdada do direito romano; é a denominação atribuída às crianças nascidas livres deescravas. Para uma análise da aplicação desta terminologia neste caso, ver: Fonseca (2000)

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zada. São os seguintes os seus termos:“educará física, moral e religiosamenteos libertos das ditas fazendas, que fo-rem menores, e os filhos das libertasnascidos depois da promulgação da Leide 28 de setembro de 1871 ... proverá,outrossim, a educação moral e religiosados adultos.” (Contrato, 1874).

Data do mesmo período a criação daColônia Orphanologica Izabel, localizadaem Pernambuco, e destinada a educarórfãos e “filhos livres de mulher escrava”.Encontramos, ainda, no relatório do Mi-nistro da Agricultura de 1876, referênci-as a duas instituições na província doPará, o Colégio de Nossa Senhora do Am-paro e o Instituto dos Educandos Artífi-ces. Essas duas instituições paraenses,segundo o relatório, seriam avaliadasquanto à possibilidade de virem a rece-ber as crianças nascidas livres de escra-vas. Mas tudo indica que não lhes foialocada verba do governo do Império, poisnão encontramos qualquer referência arespeito nos anos seguintes. Caso rece-bessem algum recurso público, deveriamenviar, anualmente, informações ao Mi-nistério da Agricultura.

No período posterior a 1879, entre-tanto, observa-se um refluxo na políti-ca do Ministério da Agricultura no sen-tido de fomentar o surgimento de asso-ciações que se voltariam para a execu-ção do que foi definido pela Lei do Ven-tre Livre em relação à educação das cri-anças nascidas de escravas.

Esse recuo pode ser explicado pelamaneira como a questão começou a sertratada no âmbito do Ministério da Agri-cultura a partir de 1876. Os anos maispróximos ao momento em que a primei-ra geração de beneficiados pela Lei doVentre Livre completaria oito anos sãoacompanhados por uma certa apreensão,

pois os gastos ficariam a cargo do Estadoe poderiam comprometer o orçamento:

Aproxima-se o termo do prazo marca-do no art. 1º da Lei de 28 de Setem-bro para opção dos senhores das mãesentre os serviços dos menores e a in-denização pecuniária, em títulos derenda. Posto seja de presumir que amaioria dos senhores preferir concluira educação começada, a troco dos ser-viços do menor até 21 anos de idade,cabe ao governo imperial cuidar, des-de já, dos meios necessários ao de-sempenho daquela obrigação. (Minis-tério da Agricultura, 1876).

Essa declaração do Ministro da Agri-cultura é ambígua, pois demonstra umacerta confiança em relação ao fato deque os senhores das mães iriam optarpela manutenção das crianças comomão-de-obra ou completar a educaçãoiniciada em meio ao cotidiano da escra-vidão; no entanto, também manifestauma certa apreensão quanto à reaçãodesses senhores no que diz respeito àpossibilidade de acionarem o Estadopara receber a indenização de 600$000,mediante a entrega das crianças paraque este completasse a sua educação.

O receio que perpassa essa posi-ção cercada de ambigüidades era justo,pois se os senhores abrissem mão dosmenores, o governo do Império poderiase ver em meio a um problema de gran-des proporções. De um lado, o Estadoteria de mobi l izar recursos paraindenizá-los; de outro, teria que se ocu-par da educação das crianças que esti-vessem sob sua responsabilidade, o queexigiria não só recursos, mas também afiscalização das instituições responsá-veis pela educação dos menores.

O número de crianças que se en-contravam em condições de serem liber-

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tadas conforme a definição da Lei 2040justificava essa preocupação. Segundoestimativa contida no relatório de 1878,em 1879 o país teria 192.000 criançasnascidas livres de escravas.

Se todas essas crianças fossem en-tregues ao Estado, haveria um colapsona organização financeira e burocráticado governo do Império, pois não só acar-retaria a mobilização de enormes recur-sos para a indenização dos senhores,como não haveria associações em nú-mero suficiente para recebê-las.

A mobilização no sentido de con-sultar as províncias quanto à existênciade associações e recursos - como aliásocorreu, segundo o relatório de 1876 -,era uma necessidade para efetivar a pre-paração de uma infra-estrutura mínimade enfrentamento da situação que pas-saria a vigorar após 1879:

Por estimativa que fundo nos dados co-ligidos em começo de 1877, julgo po-derem ser avaliados em 192.000 os in-gênuos existentes ao completar a leioito anos de duração, o que dá a mé-dia de 24.000 para cada ano. Aindaquando, pois, só a sexta parte venhaser entregue ao Estado terá este dereceber anualmente 4.000, duranteoito anos que começarão a correr de28 de setembro próximo.

Naquela hipótese, minimamente, de tero Estado de receber 4.000 ingênuos anu-almente durante o período de 8 anos,seria por este lado de 5.184:000$000[5,184 milhões de contos de réis] o sa-crifício pecuniário, si a renda dos títuloshouvesse de ser contada desde o co-meço de cada ano, e não do dia em quese efetuar a entrega do menor chegadoá idade marcada pela lei (Ministério daAgricultura, 1878).

O quadro apresentado pelo Minis-

tro da Agricultura vem cercado de preo-cupações e de incertezas quanto ao im-pacto que o elevado número de crian-ças poderia gerar na estrutura do go-verno imperial, tanto no nível financei-ro — estimado em 5,184 milhões de con-tos de réis para um período de oito anos— quanto em termos de responsabilida-de pelo encaminhamento e educaçãodas crianças:

Mais a educação daqueles do que o res-gate destes deve, quanto a mim, pre-ocupar os poderes públicos. Bastaatender a que, dentro de oito anos, teráo estado recebido 32.000 educandos,de sexo idade e aptidões diversas, nasua quase totalidade analfabetos emuitos trazendo os germens dos víci-os e das más inclinações para que seadvirta como este novo ramo do pu-blico serviço requer especiais cuidadose avultadas despesas. (Idem).

Nesse sentido, não deveriam serpoupadas despesas para a constituiçãodesse novo ramo dos serviços públicos,pois tratava-se de algo fundamental pre-parar os futuros trabalhadores e com-bater os vícios e más inclinações queessa clientela traria das senzalas, ou dasua condição de negros “escravizados”.A partir desse quadro, o ministro suge-re o seu plano:

Convém, a meu ver, estimular por meiode auxilio pecuniário, proporcional aonúmero de ingênuos que lhes hajamde ser entregues, a organização de so-ciedades que se constituam com de-terminados requisitos, fixados em es-pecial regulamento, sejam elas mera-mente filantrópicas, sejam industriais.Mediante contrato de locação de ser-viços, celebrados perante os juizes deórfãos e sob sua inspeção executado,podem alguns menores ser confiadosa empresa ou a particulares, de reco-

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nhecida idoneidade, obrigando-seaquelas e estes a dar-lhes educação.

Por fim, cumpre fundar, sobre planomodesto, asilos agrícolas e industriais,onde recebam os ingênuos, ao par cominstrução elementar e religiosa, a li-ção pratica do trabalho.

Combinando este e vários meios quepodem ser desenvolvidos, à medidaque a experiência trouxer o seu con-selho, não é para mim duvidoso que adespesa com a educação dos ingênu-os será compensada pelos seus resul-tados. (Idem).

No entanto, no relatório do ano se-guinte o ministro7 muda radicalmente deopinião, alegando que não havia necessi-dade de o Estado se antecipar, mas demoldar a sua ação a partir da prática dossenhores de escravos. Isso porque muitoprovavelmente, no ano 1879, nenhumacriança foi entregue ao Estado:

A este respeito já tive ocasião de mani-festar o meu parecer, quer quanto aomodo de colocar os mesmos menores,quer quanto à escrupulosa fidelidadecom que o governo entende dever cum-prir para com os proprietários o precei-to legal. Penso agora como então, queimpraticável seria estabelecer desde jáum plano único e definitivo, antes que aprática vá demonstrando qual a médiados menores entregues ao Estado, equais por tanto os meios devam ser pre-feridos para assegurar-lhes convenien-temente colocação. (Ministério da Agri-cultura, 1879).

Essa mudança de posição que o Mi-nistro Cansansão de Sinimbu demonstrouentre o relatório de 1878 e o de 1879,

pode ser explicada pelos dados que en-contramos no relatório de 1885. Seis anosapós a primeira geração de crianças com-pletar a idade que possibilitaria ao senhorfazer a escolha entre ficar com o menorou entregá-lo ao Estado, o número totalde crianças nascidas livres de escravasexistentes em todo o Brasil era de403.827. Dessas, apenas 113 haviamsido entregues ao Estado em troca da in-denização de 600$000 (seiscentos milréis). Uma quantia insignificante, 0,028%do número total de crianças nessa situa-ção, o que indica que a quase totalidadedas crianças nascidas livres forameducadas nos mesmos moldes que os tra-balhadores escravos. Ou seja, uma edu-cação que transcorria no espaço privado,onde a atribuição dos senhores era de criaros menores, sem nenhuma obrigação deprestar contas a respeito dessa criação.

A relação entre crianças nascidaslivres de escravas e a infância desva-lida – 1879 a 1888 - O número de cri-anças entregues ao Estado ficou abaixode qualquer expectativa, o que levou auma mudança de perspectiva quanto àação do governo em relação às associa-ções que receberiam as crianças nasci-das livres de escravas. No período poste-rior a 1879 ainda encontramos registrosde novas associações dessa natureza. Noentanto, elas não são apresentadas coma mesma preocupação que as anteriorese tampouco receberam os mesmos incen-tivos financeiros, sendo que algumas, pro-vavelmente, sequer foram contempladascom algum auxílio, pois seus nomes sãoapenas citados nos relatórios.

Entre as instituições que surgiram

7 No período que tomamos para análise, havia uma rotatividade muito grande entre os titulares dapasta que competia ao Ministério da Agricultura. Os ministros mudavam praticamente de um ano paraoutro. Porém nos anos de 1878 e 1879 o titular permaneceu o mesmo, foi ele o Sr. José Lins VieiraCansanção de Sinimbu.

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nesse período de refluxo da questão daeducação dos ingênuos podemos citar aColônia Orphanologica Blasiana, fundadano ano de 1881, no Município de SantaLuzia, Província de Goiás, que recebia doscofres públicos apenas a quantia de500$000 (quinhentos mil réis) anuais.Nada que se possa comparar ao que foidestinado às instituições surgidas antesde 1879, como, por exemplo, a ColôniaOrphanologica Izabel, situada emPernambuco que, em 1877, firmou con-trato com o governo no valor de36:000$000 (trinta e seis contos de réis)por um período de três anos, ou seja,uma média de 12:000$000 (doze contosde réis) anuais.

As demais instituições do períodoposterior a 1879 localizavam-se no Cea-rá, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Sãoelas, respectivamente: a ColôniaOrphanologica Cristina, sobre a qual hánotícias da fundação, em 1880, e das suasatribuições, a educação de crianças po-bres, vítimas da seca; a ColôniaOrphanologica de Nossa Senhora doCarmo do Itabira, sobre a qual tambémencontramos pouquíssimas informações.Registra-se apenas que foi fundada em12 de outubro de 1884, por João Baptistada Cachoeira na sua fazenda, sendo des-tinada a órfãos e menores; e, por último,o Asylo Agrícola Isabel. Esse asilo, fun-dado no Rio de Janeiro, oferece algumaspistas quanto ao destino da educação dosingênuos no período posterior a 1879.

Ao contrário da ColôniaOrphanologica Blasiana, da ColôniaOrphanologica Nossa Senhora do Carmoe da Colônia Orphanologica Cristina que,de acordo com os relatórios, receberamum pequeno auxílio do governo, ao AsyloAgrícola Isabel, criado em outubro de1886, foram destinados 10:000$000 (dez

contos de réis), quantia muito superior àdas demais instituições fundadas no mes-mo período. Em parte, esse fato se expli-ca pela sua localização no Rio de Janeiro,o que lhe dava um certo grau de influên-cia junto ao governo e, também, por es-tar vinculada a uma instituição que tinhaum amplo projeto para o tratamento daquestão da infância desamparada. O AsyloAgrícola Isabel era apenas o primeiro deuma série de cinco que seriam criadospela Associação Protetora da Criança De-samparada para o atendimento à infân-cia desvalida. Mas esse é só um aspectodesse favorecimento que a instituição re-cebeu. Consultando documentação a seurespeito podemos deduzir como foi enca-minhada a questão das crianças nascidaslivres de escravas durante esse período.

Não há qualquer informação nos re-latórios dos ministros da Agricultura so-bre a educação dos ingênuos como umafunção prioritária do Asylo Agrícola Isa-bel. Entretanto, recorrendo a outras fon-tes, percebe-se que essa era, pelo menosteoricamente, uma das suas finalidades.A circular de 1886, que informa sobre suacriação, refere-se claramente às criançasnascidas livres de escravas:

Velar pela educação da geração quecresce e sobretudo a das crianças pri-vadas do sustento de seus protetoresnaturais, como foi produzido pela lei de28 de setembro de 1871, é um objetode importância incontestável... O núme-ro destes infelizes não é pequeno; asmedidas tomadas a este respeito pelogoverno o provam, assim como o fatode ver as diferentes autoridades recor-rerem à generosidade dos particularespara que elas os acolham. Mas estasmedidas não são suficientes porque,entre outras razões, não há um planoregular seguido com perseverança. Dar-lhes hábitos de trabalho e gosto pela

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agricultura, fonte primeira da riqueza dopaís, inculcando-lhes ao mesmo tempoos sólidos princípios da primeira educa-ção, parece ser a tradução fiel do senti-mento nacional. (Apud: Almeida, [1889]1989, p. 247).

Como se observa no documento, aeducação das crianças nascidas livres deescravas estava no centro das preocupa-ções e era apresentada como um proble-ma que precisava ser enfrentado com umacerta urgência. A circular questionava ofato de se recorrer à “generosidade” departiculares, alegando a necessidade deum plano regular seguido com perseve-rança. Ou seja, questionava ações tidascomo “filantrópicas” e lembrava a respon-sabilidade do Estado no sentido de finan-ciar e tratar do problema da infância, daqual a questão dos ingênuos era apresen-tada como elemento integrante. O Esta-do deveria não só financiar como apoiara execução de um plano educacional des-tinado a criar nessas crianças o hábito eo gosto pelo trabalho na agricultura, “fonteprimeira da riqueza do país”.

No entanto, pelo menos em rela-ção às crianças nascidas livres de es-cravas, não é o que se vê se levarmosem conta os relatórios dos ministros daAgricultura. De 1871 a 1884, apenas 113crianças foram entregues ao Estado e,destas, apenas 21 encontravam-se naprovíncia do Rio de Janeiro, onde haviaum total de 82.566 crianças nascidaslivres de escravas.

Tendo sido o Rio de Janeiro um dosúltimos redutos do escravismo no Brasil(Costa, 1982), é possível imaginar queos senhores que ficaram de posse das82.545 crianças as utilizavam nos maisvariados serviços e que dificilmente as

enviariam a instituições como o Asyloagrícola Isabel para serem educadas.

O mais provável é que a questão dascrianças nascidas livres de escravas foiequacionada concomitantemente ao pro-blema das crianças desamparadas e uti-lizada como retórica para a ação da As-sociação Protetora da Criança Desampa-rada. Isso porque o verdadeiro desampa-ro dessas crianças encontrava-se na pró-pria Lei do Ventre Livre, que as mantevena condição de “escravas” ao permitir queos senhores se servissem dos seus tra-balhos até os 21 anos, como de fato acon-teceu com a maioria absoluta delas emtodas as regiões do Império, inclusive naprovíncia do Rio de Janeiro. A criação doAsylo Agrícola Isabel não encontrava jus-tificativa nas estatísticas relativas às cri-anças nascidas livres de escravas no Riode Janeiro. Como vimos, elas se encon-travam de posse dos senhores de suasmães sendo, portanto, “amparadas” pelaescravidão. O que justificava a criaçãodessa instituição era o problema das cri-anças desamparadas oriundas de váriosestratos sociais da população livre do Riode Janeiro. Esse sim, um problema de pro-porções consideráveis e que passava afazer parte dos debates da época8.

Nesse sentido, o posicionamento as-sumido pelos dirigentes da AssociaçãoProtetora da Criança Desamparada, an-gariando fundos junto ao Ministério daAgricultura, oferece alguns indícios paraque se possa compreender como a edu-cação dos ingênuos, progressivamenteapresentada durante todo período dosanos de 1870 como uma dimensão im-portante do processo de superação do tra-balho escravo, tornou-se, a partir da op-ção generalizada dos senhores de retê-

8 Ver Marcílio (1998)

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las sob sua posse, um problema da infân-cia desamparada. Ao contrapormos a for-ma como a questão aparece na circularde criação do Asylo Agrícola Isabel e nasestatísticas do Ministério da Agriculturasobre a Província do Rio de Janeiro, per-cebe-se que ela tornou-se uma retóricaque objetivava chamar a atenção para osproblemas da infância e para a responsa-bilidade do Estado, pois este foi um dosprincipais gestores da Lei do Ventre Livree era o responsável legal pelas criançasque não ficassem retidas nas mãos dossenhores.

A forma pela qual foi criado o AsyloAgrícola Isabel no Rio de Janeiro, onde aquestão da educação dos ingênuos nãotem uma especificidade, mas é utilizadacomo um elemento retórico para caracte-rização dos problemas relativos à infân-cia, é, de certo modo, o ponto de chegadadas instituições que surgiram antes de1879. Se, por um lado, o Asylo AgrícolaIsabel nasce em 1886 equacionando oproblema das crianças nascidas livres deescravas com a questão da infância de-samparada, por outro, as instituições quesurgiram durante os anos de 1870, tra-tando a questão dos ingênuos como umproblema específico e relativo à escravi-dão, tiveram também na questão da in-fância desamparada seu ponto de chega-da nos anos de 1880.

De fato, após essa data, as institui-ções que surgiram antes de 1879 come-çaram a ser tratadas de forma bastanteespecífica nos relatórios do Ministério daAgricultura. A apologia em relação àsmesmas cede lugar a um discurso querecorrentemente apontava a crise pelaqual elas passavam.

A opção generalizada dos senhoresde reter as crianças e, consequentemente,a perda ou a diminuição em proporções

significativas dos auxílios financeiros con-cedidos pelos cofres públicos, fizeram comque essas instituições entrassem em cri-se, passando a viver tempos difíceis quecontrariavam as expectativas positivasque acompanharam o seu surgimento, noinício dos anos de 1870. Elas não recebe-ram as crianças nascidas livres e passa-ram a ter na infância desamparada seupúblico alvo.

Após 1879, a tendência era a deigualar o problema dos ingênuos e dainfância desamparada. É o que sugereuma artigo com o título “Escravos Li-vres”, publicado em um periódico cario-ca, O Echo Social:

... Sabemos que a lei de 28/09/71 man-da que se prepare casas de educaçãopara os ingênuos,... se os nossos fazen-deiros tornaram-se suspeitos para edu-car os ingênuos.... decerto em piores ca-sos estão para educar aqueles que sãoentregues pelo Juízo de Órfãos, compena de serem agarrados pela polícia,caso fujam desta escravidão forçada.Convença-se o público que a medidatomada sobre estes meninos é para su-prir as fazendas dos ‘senhores potenta-dos’ dos braços da lavoura, sendo osmenores obrigados a trabalhar juntocom a turma de escravos sujeitos aovergalho dos feitores (Apud: Martinez,1997, p. 81).

O fato apontado pelo jornal do Riode Janeiro, segundo o qual os senhoresde escravos ambicionavam mais do quecriar as crianças nascidas livres de es-cravas, buscando crianças órfãs para se-rem “educadas” em suas fazendas, de-monstra que esses senhores descobriramna infância uma forma promissora de re-solver os problemas de escassez de mão-de-obra. Mostra também que nesse con-texto a questão dos ingênuos foi iguala-da ao problema da infância desampara-

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da, e que esta, devido a procedimentoscomo a tutela, ficou sujeita a um tipo dedominação muito próximo ao que eravivenciado pelos ingênuos.

Outro aspecto que confirma a fusãoda questão dos ingênuos com a das cri-anças desamparadas é o próprio destinodas crianças que se encontravam na con-dição de ingênuos em 1888, quando aca-bou a escravidão. A maneira como essascrianças. O parecer emitido nesse ano porum juiz de órfãos da Comarca de Itu mos-tra a maneira como se encaminhou essaquestão:

Tendo sido extinta a escravidão no Bra-sil pelo Decr. N.º 3353 de 13 de MaioUltimo, é manifesto que a obrigação queestavam sujeitos os ingênuos, de pres-tar serviços aos senhores dos respecti-vos pais, segundo o disposto no art. 4ºda Lei n.º 3270 de 28 de 7bro. de 1885,e como por semelhante circunstância osditos ingênuos tenham caído no domí-nio do direito comum, recomendo aotutor nomeado, que crie e eduque osseus pupilos, como pessoas livres, ob-servando os preceitos da Ord. L.º 1º Tit.88 e mais legislação em vigor, isto é,pondo-o a aprender a ler e escrever,sendo possível, mandando ensinar-lheoficio mecânico, ou prendas domésticas,conforme o sexo, por cuja habilidadepossam futuramente adquirir os meiosde subsistência, fazendo casar as dosexo feminino e contratando-os a ga-nhar salário com pessoas suficientes,mediante aprovação destes Juízo, sobcondição de recolher trimensalmente naColetoria o produto do que perceberem,sob titulo d’emprestimo dado ao Gover-no, conforme as leis em vigor, á fim deformar seu pecúlio, que lhes possa pres-tar utilidade, quando se emancipem, tra-

tando-os, em suma, como um bom paitrataria os seus filhos.

Esta regra deverá prevalecer na tutoriae curadoria dos ingênuos menores, ór-fãos, e por isso aqui consigno, mandan-do que seja intimado ao tutor para seufiel cumprimento. Ytú 11 de junho de1888. (Apud Alaniz: 1997, p. 51).

Ao caírem no campo do direito co-mum, os ingênuos passaram a ser trata-dos como crianças pobres que deveriampermanecer sob a tutela de alguém quepoderia explorá-las como trabalhadores9.Esse procedimento, no âmbito do direitocomum, em relação à infância pobre, evi-dencia o fato de que se permitia tambéma exploração do trabalho das crianças quenão vinham do cativeiro. Na perspectivada exploração do trabalho, os dois tiposde condição da infância foram igualados,uma vez que as crianças de ambas as ca-tegorias foram utilizadas para suprir afalta de mão-de-obra que imperava nosmomentos finais da escravidão.

A crítica à educação do escravodurante o processo de abolição

O fato de a educação não ter atingi-do de forma significativa os ingênuos nãoretira a importância da questão educaci-onal, tal como foi formulada na época.Trata-se de um período em que se mani-festa uma consciência acerca da impor-tância de se modificar as práticaseducativas que durante séculos caracte-rizaram o escravismo. Em outras palavras,o reconhecimento da necessidade de ge-neralizar as práticas educacionais comcaracterísticas modernas para os negros,isto é, submetê-los a uma educação comcaracterísticas escolares: “Os processosde educação anteriores à escola assen-

9 Tudo indica que o parecer emitido pelo juiz da comarca de Itu referia-se aos ingênuos que não foramreclamados por seus familiares.

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tam essencialmente numa transmissão di-reta ... estes processos decorrem em es-paços familiares, nas oficinas e locais detrabalho, nas praças e lugares públicos,nas festas, nos jogos, nos atos de culto esob uma ação pedagógica, ora mais, oramenos organizada e formal. Deste modoos pais, ou quem os substitui, os eclesi-ásticos, os órgãos de poder, não deixamde desempenhar importantes funçõeseducativas ... sucedâneo da família, al-ternativa à oficina e a corporação, o mo-vimento de escolarização desenvolve-seno período moderno, sob uma constantetensão entre a clericalização e aestatização da sociedade.” (Magalhães,1996, p. 11-12).

Poderíamos dizer que essa perspec-tiva apontada por Justino Magalhães opõeduas concepções de educação, uma, tra-dicional e, outra, moderna. A educaçãotradicional se dá no âmbito do mundo pri-vado e pela ação quase que exclusiva dogrupo familiar; a educação moderna po-deria ser caracterizada pela escolarizaçãoe ligação com o espaço público, pois édesenvolvida a partir da influência cres-cente do Estado no espaço social.

Durante o processo de abolição dotrabalho escravo no Brasil, passa-se areconhecer que não se poderia deixar osnegros escravizados e seus descenden-tes serem educados exclusivamente apartir do mundo privado. Nesse sentido éque a escolarização é recorrentementecolocada em destaque.

Para captar esse movimento de tran-

sição, ou antes, o reconhecimento de umaeducação típica do escravismo e uma ou-tra imprescindível à constituição de umasociedade livre, podemos empreender -como ponto de partida - uma análise dolivro As Vítimas-algozes: quadros da es-cravidão, publicado em 1869 pelo escri-tor Joaquim Manoel de Macedo. Nessaobra, educação e escravidão são relacio-nados, com a intenção de compor umacrítica visando demonstrar a necessida-de se colocar fim ao trabalho escravo10 .

Para Joaquim Manoel de Macedo, osescravos eram vítimas de uma institui-ção injusta e cruel mas, à medida quesuas vidas transcorriam em meio à es-cravidão, tornavam-se mais cruéis e in-justos que a instituição que os formara,tornando-se assim algozes. Frente a essedilema — do qual deduz o contraditóriotítulo da obra: As vítimas-algozes — aeducação é tomada como aspecto centralda argumentação pois, uma vez educa-dos no regime da escravidão, os negrosnão só se tornavam criaturas extrema-mente perigosas como corrompiamgradativamente toda a sociedade.

Ao se referir ao processo por meiodo qual o personagem de uma de suashistórias foi educado, vai progressivamen-te construindo o perfil do escravo comouma ameaça à sociedade. Trata-se de umacriança escrava cujo nome é o título daprópria história: Simeão – o crioulo11 . Aeducação desse escravo é descritadetalhadamente e nessa descrição eviden-cia-se uma crítica aos procedimentos edu-

10 Joaquim Manoel de Macedo, além de escritor, foi professor de história do Colégio Pedro II eautor de livros didáticos sobre a história do Brasil. Escreveu o livro As Vítimas-algozes: quadrosda escravidão com o propósito claro de defender a libertação do ventre.11 O livro é composto por três histórias: Simeão – o crioulo; Pai-Raiol – o feiticeiro; e Lucinda – amucama. Dessas três histórias, somente a de Pai-Raiol não tomamos para a análise acerca daquestão educacional, pois seu personagem principal é um africano que chegou ao Brasil já emidade adulta, enquanto que as outras histórias se referem a crianças que nasceram no Brasil nacondição de escravos.

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cacionais realizados a partir do mundoprivado. O primeiro local colocado emdestaque é a cozinha:

A cozinha foi sempre adiantando a suaobra: quando conseguiram convencer,compenetrar o crioulinho da baixeza,da miséria da sua condição, as escra-vas passaram a preparar nele o inimi-go dos seus amantes protetores: [en-sinaram-no] a espiar a senhora, amentir-lhe, atraiçoá-la, ouvindo asconversas para contar na cozinha; des-moralizaram-o com as torpezas da lin-guagem mais indecente, com os qua-dros vivos de gozos esquálidos, com oexemplo freqüente do furto e da em-briaguez, e com a lição (grifos meus)insistente do ódio concentrado aos se-nhores (Macedo, 1988 [1869], p. 18).

Na cozinha o pequeno Simeão tor-nou-se um escravo desmoralizado. Emcontato com as escravas, aprendeu aagir contra os seus senhores. Mas, acozinha contou com a sala na conclusãodessa desmoralização plena do peque-no escravo:

...e a sala ajudou sem pensar, sem que-rer, a obra da cozinha. Domingos Cae-tano e Angélica [os senhores] não des-tinavam Simeão para trabalhador de en-xada, e não o fizeram aprender ofícioalgum ... auxiliaram as depravações dacozinha que perverteram o vadio da fa-zenda (Idem, p. 19).

Se a educação de Simeão transcorreno espaço da sala e da cozinha durante ainfância, na adolescência, um outro es-paço consolidou plenamente o seu pro-cesso de formação:

A venda rematou a obra começada pelacozinha e auxiliada pela sala. E convi-vendo ali com escravos mais brutais ecorruptos, e com vadios, turbulentos eviciosos das vizinhanças entregou-se a

todos os deboches, e se fez sócio ativodo jogo aladroado, da embriaguezignóbil e da luxúria mais torpe. Simeãofoi desde então perfeito escravo. (Idem,p. 20).

Simeão atingiu a perfeita condiçãode escravo a partir de um conjunto devivências e ritos que transcorriam nomundo privado, onde convivia com escra-vos e senhores, ambos tomando parte nasua formação. A partir disso transformou-se naquilo que, para Joaquim Manoel deMacedo, caracterizava o escravo: vítimasque se tornavam tão desmoralizadas ecorruptas que acabavam sendo os algozesde seus senhores.

Foi exatamente esse o destino deSimeão ao final da trama. Seus senhoreslhe dariam a liberdade como presente nodia em que completaria 21 anos, mas, poródio e rancor, o jovem escravo não espe-rou pelo presente de aniversário e, de for-ma atroz, assassinou todos os membrosda família.

O fato de Joaquim Manoel de Macedoter escolhido os 21 anos de idade parafazer o escravo assassinar a família deseus senhores é uma referência explícitaaos debates relativos à libertação do ven-tre. O autor julgava com isso estar cha-mando a atenção para o fato de que se ascrianças que nascessem livres de escra-vas não fossem submetidas a novos pro-cedimentos educacionais, entrariam paraa vida adulta como uma ameaça à socie-dade. Nessa história, portanto, o autornão se limita a criticar a educação doescravo por ela transcorrer no domínioexclusivo do espaço privado, mas ace-na para a necessidade de se instituiruma nova concepção educacional, quedeveria ser complementar ao processode abolição do trabalho escravo. A li-bertação do ventre teria que ser associ-

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ada a mecanismos de preparação para aentrada desses novos sujeitos na esfe-ra social, como seres livres.

Liberdade e educação são colocadasem destaque pela crítica de JoaquimManoel de Macedo. Essa educação, po-rém, deveria transcorrer fora do espaçoprivado, onde imperava um mundo mar-cado pelas influências da escravidão.

Essa idéia é reafirmada em outrahistória do livro citado: trata-se da his-tória de Lucinda – a mucama. Ela foiconstruída nos mesmos moldes da deSimeão – o crioulo, porém, a protago-nista é uma menina escravizada e é aeducação das escravas que passa a sercolocada em questão.

Na história de Lucinda a crítica àeducação no espaço privado é ainda maiscontundente. Utilizando-se da persona-gem, uma mucama, o autor critica a edu-cação recebida pelas escravas e tambémas influências que essas criaturas irradi-avam, a partir do lar, para toda socieda-de. A história de Joaquim Manoel deMacedo dá conteúdo à afirmação que, em1889 (trinta anos depois), fez o educadorJosé Veríssimo sobre as mucamas e suainfluência na formação do caráter do povobrasileiro:

As meninas, as moças, as senhoras ti-nham para os mesmos misteres asmucamas, em geral, crioulas e mulatas.Nunca se notou bastante a depravadainfluência deste peculiar tipo brasileiro,a mulata, no amolecimento de nosso ca-ráter ... na família é a confidente dasinhá-moça e a amante do nhonhô. Gra-ças principalmente a ela, aos quatorzeanos o amor físico não tem segredospara o brasileiro, iniciado desde a idademais tenra na atmosfera excitante quelhe fazem em torno, dando-lhe banho,vestindo-o, deitando-o. (Veríssimo,

1985 [1889], p. 69, grifos do autor).

Essas palavras foram escritas sob ocalor das expectativas trazidas pela pro-clamação da República e, nesse sentido,esse teórico da educação nacional tinhaesperanças de que o novo governo pro-movesse um amplo processo de interven-ção na educação. Para ele, a educaçãodeveria se tornar pública e combater osvícios oriundos de um mundo marcadopela escravidão, aliás, como defendiaJoaquim Manoel de Macedo na históriade Lucinda.

A pequena escrava foi desde cedoeducada para o ofício de mucama e, aosdoze anos, foi dada à filha de um rico fa-zendeiro, como presente de aniversário.

Sua educação é descrita em deta-lhes, evidenciando-se a crítica à formacomo essas criaturas eram preparadaspara entrarem no tipo de convívio socialque caracterizava sua função de mucama:

Lucinda fôra aos sete anos mandadapara a cidade do Rio de Janeiro, e alientregue a uma senhora viúva que eraprofessora particular de instrução pri-mária, e mestra ou preparadora demucamas.

A pobre, mas laboriosa viúva, ensinavasem paga a ler e escrever mal as meni-nas pobres, e a barato preço o misterde mucama a escravas; tirava porém deumas e outras grande vantagem, por-que sendo modista, as meninas e as es-cravas eram costureiras gratuitas(Macedo, 1988 [1869], p. 166).

A mestra responsável pela prepara-ção de Lucinda dedicava-se também aoensino da leitura e da escrita, porém es-sas habilidades eram transmitidas somen-te às meninas pobres. Joaquim Manoel deMacedo não deixa de desqualificar a ma-neira como esse ensino era realizado pela“laboriosa viúva”, pois ela, não sendo qua-

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lificada para o exercício dessa função, nãoestava apta a substituir a escola comoespaço adequado para o efetivo ensinode tais habilidades. Ele indica que a lei-tura e a escrita, ensinados sem “paga”,eram na verdade mais um dos atrativospara que a “mestra” obtivesse mão-de-obra gratuita no seu ofício de modista.

O historiador Jean Hébrard (1990, p.168) descreve o processo de estabeleci-mento da leitura e da escrita como con-teúdos centrais da educação moderna eafirma que: “Aprender a ler-escrever-con-tar supõe ao menos um tempo e um es-paço específico com freqüência uma pes-soa em que se reconhece a capacidadede instruir e a quem se remunera, em fimos instrumentos sem os quais a transmis-são não poderia ter lugar. Se a escola nãoé sempre o local dessa mediação, é por-que certos grupos sociais, introduzidosdesde muitas gerações na cultura da es-crita mantêm estas primeiras aprendiza-gens no domínio familiar.” (grifos meus).

A abordagem de Joaquim Manoel deMacedo corrobora a posição de Hébrardao registrar que os ensinamentos da lei-tura e da escrita não estavam a cargo deum profissional capacitado para a reali-zação de tais tarefas (professores) e,tampouco, eram transmitidos em um es-paço específico (escola).

Mas voltemos a Lucinda. Em relaçãoaos aspectos morais, fica claro que a edu-cação da escrava que se tornaria mucamaé, nessa dimensão, ainda mais deficientee perigosa:

Exigente, rígida, principalmente com asescravas, quando se tratava de ensinoe de trabalho, zelava apenas amoralidade das meninas, limitando-sea impedir àquelas (escravas) de sair àrua ... No fim de cinco anos Lucinda, queera inteligente e habilidosa, deixou a

mestra e tornou-se à casa de seu se-nhor para passar logo ao poder de Cân-dida [sua senhora], trazendo as pren-das que presunçosa ostentava, edissimuladamente escondidos os conhe-cimentos e o noviciado dos vícios e dasperversões da escravidão: suas irmãs, asescravas com quem convivera, algumasdas quais mais velhas que ela tinham-lhedado lições (grifo meu) de sua corrupção,de seus costumes licenciosos, e ainoculação da imoralidade, que a fizeraindigna de se aproximar de uma senhorahonesta, quanto mais de uma inocentemenina (Macedo, 1988 [1869], p. 166).

Depois de cinco anos de aprendiza-do, Lucinda, com apenas doze anos, doisa mais que sua senhora, estava prontapara cumprir sua sina de vítima-algoz.Antes que completasse vinte e um anos,a família que passou a contar com seusserviços foi completamente destruída,sendo sua jovem senhora a principal víti-ma. Lucinda, gozando do contato íntimoproporcionado pela condição de mucama,corrompeu totalmente sua senhora, trans-formando-a de “anjo cândido” em moçadissimulada e namoradeira. Os namora-dos de Cândida (a senhora) eram, porsua vez, seduzidos por Lucinda que,como diria José Veríssimo, contamina-va a todos tendo em vista a sua condi-ção de mulata licenciosa.

Nessa história, a trama atinge o pon-to central da argumentação quando Joa-quim Manoel de Macedo estabelece umvinculo direto entre escravidão e educa-ção. Em determinado momento em quedois personagens discutem as influênci-as que os escravos levavam para dentroda casa dos senhores, um deles, favorá-vel à emancipação, aborda a questão daseguinte forma:

Escravos? Quem os educa? ... São to-dos abandonados à perversão dos cos-

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tumes: julga-se pai o que lhes dá pão,pano, e paciência de sobra; mas a almae o coração desses desgraçados? Se lhesiluminassem as almas, adeus escravi-dão (Idem, p. 264).

De acordo com a fala desse perso-nagem, na sociedade dividida entre se-nhores e escravos havia um abismo cheiode ódio e esse ódio era proveniente doscostumes gerados pelo próprioescravismo. Combater tal situação den-tro da escravidão era impossível, pois nãopodiam os escravos receberem uma edu-cação que lhes iluminasse o coração e aalma, caso contrário, “adeus escravidão”.Era no abandono dos costumes que seeducava os escravos, o que os tornavavolúveis e perversos.

Na perspectiva de Joaquim Manoelde Macedo, portanto, a escravidão deve-ria ser superada e as práticas educacio-nais que caracterizavam esse sistemadeveriam ser combatidas. Para tal, fazia-se necessária a constituição de um espa-ço adequado onde as crianças pudessemser educadas para a liberdade, enfim,onde aprendessem uma profissão e re-cebessem uma preparação moral para setornarem úteis a si e à nação.

De forma muito semelhante pensa-va Perdigão Malheiros:

Por outro lado, a educação é coisa deque pouco ou nada se cuida em rela-ção ao escravo, sobretudo a educaçãomoral e religiosa ... o abatimento, aignorância, o embrutecimento, su-põem-se e reputam-se dessa arte mei-os úteis e eficazes para conter os es-cravos: outro grave e fatal coroláriodessa pernic iosa inst ituição.(Malheiros, 1988 [1867], p. 198).

Essa educação para o embruteci-mento era tida como um pressuposto bá-sico para o bom andamento da escravi-

dão. Mas, à medida que se começava avislumbrar o seu fim, essa ignorância eesse embrutecimento não mais seriam ad-mitidos para aqueles que se tornariam osfuturos cidadãos do Império. Os escravose seus descendentes não poderiam tra-zer para o espaço social atributos somentecompatíveis com uma sociedadeescravista.

Não bastava acabar com o trabalhoservil, fazia-se necessário constituir umanova forma de educar esses novos sujei-tos, que adentrariam o espaço social nacondição de seres livres. O que PerdigãoMalheiros e Joaquim Manoel de Macedocolocam em destaque era que a educa-ção não estivesse exclusivamente a car-go do mundo privado e não formasse pes-soas ignorantes e embrutecidas.Enfatizam a necessidade de uma edu-cação dirigida pelo Estado, com vistas apreparar os novos cidadãos que, com ofim do trabalho escravo, passariam aexistir no Império. Portanto, desenha-se uma nova concepção de educação,compreendida como um instrumentoparalelo ao próprio processo de liberta-ção da escravidão.

Abolição: de uma educação tradi-cional a uma educação moderna

Durante o processo de abolição dotrabalho escravo começa a ser desenha-da uma nova concepção educacional, re-putada como indispensável no proces-so de transição para a sociedade livre.Importa, pois, investigar essa novidade.

O primeiro fato que chama a aten-ção é a importância que a instrução ad-quiriu, pois apenas algumas décadas an-tes dos debates relativos à libertação doventre esse tipo de prática educativa foracategoricamente negada aos escravos econsiderada uma ameaça à estabilidade

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da sociedade escravista. Isso, aliás, nãoera uma característica da escravidão noBrasil, mas da escravidão tal como se or-ganizou no mundo moderno, pois o mes-mo fato ocorreu em outros países comomostra a análise de Genovese (1988, p.293) sobre os Estados Unidos: “A com-plexidade das atitudes dos senhores éperceptível em relatos como o de EligeDavison, um ex-escravo da Virgínia. A sin-ceridade do sentimento religioso de seupatrão revelava-se no fato de ele ter ig-norado a lei e ensinado seus escravos alerem a Bíblia; não o impediu, contudo,de vender negros e separar famílias.”

Nos Estados Unidos, portanto, con-teúdos como a leitura e a escrita, típicosda educação escolar, também eram ne-gados aos escravos. No caso acima cita-do, o senhor, por motivos religiosos, ig-norou a proibição e ensinou o escravo aler. Muito provavelmente, a sua intençãoera de que ele tivesse acesso à Bíblia eparticipasse efetivamente dos cultos re-ligiosos para, assim, se inteirar do mun-do da cristandade.

No Brasil, vigorava a mesma deter-minação legal e, mesmo quando a leiturae escrita começaram a ser reconhecidascomo elementos que deveriam ser difun-didos na sociedade como um todo, foramnegadas aos escravos. É o que mostra re-latório de 1836 do presidente da pro-víncia do Rio de Janeiro, onde constamcritérios para a criação de uma escolavoltada para o atendimento de criançasórfãs, transcrito por Moacir (1939, p.194): “A administração seria cometida aum pedagogo encarregado ao mesmo tem-po de ensinar a ler, escrever e contar asquatro operações, os escravos não pode-rão ser admitidos ainda que seus senho-res se queiram obrigar pela despesa.”

Portanto, em 1836, mesmo que os

senhores se propusessem a arcar com oscustos, a educação com característicasescolares era negada aos escravos. Issofica ainda mais evidente se observarmoso estabelecido na reforma do ensino de1837 nesta mesma província: “Eram proi-bidos de freqüentar a escola: os que so-fressem de moléstias contagiosas e osescravos e os pretos africanos, ainda quelivres e libertos.” (Idem, p. 195)

A exclusão dos escravos, pretos afri-canos e portadores de doenças contagio-sas do espaço escolar pode ser entendidasob dois prismas: primeiro, pelo perigoque uma educação voltada para o desen-volvimento das faculdades intelectuaispoderia representar para a estabilidadeda sociedade escravista; e, segundo, pelainfluência negativa que os escravos po-deriam exercer nos estabelecimentos deensino.

A primeira delas baseia-se em umaconcepção de dominação que entendiaque os escravos não poderiam ter acessoa práticas como a leitura e a escrita e,muito menos, desenvolver suas faculda-des intelectuais. Tais atividades facilita-riam sua resistência e favoreceriam a or-ganização de rebeliões que colocariam emperigo uma sociedade onde grande parteda população era composta por escravos.

Essa posição pode ser evidenciadana crítica de Malheiros (1988 [1869], p.198):

... ele [o escravo] é, por via de regra,reputado ainda mero trabalhador ... emdiversos tempos, e mesmo em outrospaíses assim tem sido, por que receiamque a instrução, a ilustração promovanessa classe o desejo (aliás natural) deemancipar-se e conseguintemente dêocasião a desordens, ponha em perigoa sociedade.

A prática da leitura e da escrita, como

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se observa, era considerada perigosa eameaçadora, não sendo permitida sua di-fusão entre os escravos.

É uma perspectiva em que a educa-ção é vista como fator de perturbação eameaça à ordem. Por esse motivo, man-tinham-se as práticas educacionais vol-tadas para a formação dos escravos noslimites estritos daquilo que a função ser-vil exigia para a produtividade e a segu-rança da sociedade escravista.

A segunda dimensão da exclusão dosescravos dos estabelecimentos educaci-onais, tal como foi concebida na reformado ensino de 1837, na província do Riode Janeiro, baseia-se na noção de contá-gio. Como vimos, os escravos e africanoslivres não poderiam freqüentar escolas,assim como também os portadores dedoenças contagiosas.

O que está implícito nessa forma deexclusão é a idéia de que ambos conta-minariam o corpo social: a admissão deportadores de doenças contagiosas porparte dos estabelecimentos de ensino fa-ria dessas instituições centros de prolife-ração de moléstias que, a partir daí, seirradiariam para o espaço social com maisfacilidade. O contato com escravos e afri-canos também poderia contaminar, sobre-tudo as crianças, com aspectos de umacultura primitiva que, de acordo com amentalidade da época, remontava à Áfri-ca. Nesse sentido, a interação entre es-cravos e pessoas livres nos estabeleci-mentos de ensino, reafirmaria, ou “lega-lizaria”, esse contato, visto como preju-dicial à formação da boa sociedade.

Uma tentativa de evitar essa influ-ência pode ser percebida na atitude doImperador para com a educação de suasfilhas. D. Pedro II compartilhava do pen-samento que via os negros como

corruptores do povo brasileiro e procurouminimizar sua influência na educação dasfuturas princesas do Império.

O Imperador assumiu com extremozelo suas funções paternas, chegandomesmo a elaborar um regulamento com-posto de 36 artigos, cujo objetivo era cer-car suas filhas da educação que convinhaà nobreza nos trópicos. Entre esses, cons-ta no de número 14 a seguinte recomen-dação às criadas: “...não consentirão queas Meninas conversem com pretos, oupretas, nem que brinquem commolequinhos e cuidarão muito especial-mente que as Meninas não os vejam nus.”(Apud: Muad, 1999, p. 164)

Essa determinação revela que o re-gulamento não só estava atento a ques-tões relativas à sexualidade, ao estabe-lecer que as princesas não deveriam semisturar aos “molequinhos”, especialmen-te nus, como também, as proibia de con-versarem com “pretos” e “pretas”. O quejustifica essa determinação é a mesmanoção de contágio que proibia a inserçãodos escravos e africanos livres no espaçoescolar. Ou seja, evitar que as influênci-as maléficas atribuídas à raça negra fos-sem assimiladas pela convivência cotidi-ana entre negros e brancos.

A não difusão de habilidades como aleitura e escrita, o combate às influênci-as da raça negra na sociedade e a proibi-ção aos escravos de terem acesso a esta-belecimentos de ensino, constituíram-seimportantes mecanismos de controle parauma sociedade que contava com grandenúmero de trabalhadores escravizados.

Em apenas três décadas, porém,houve uma súbita mudança de perspecti-va. Já nos anos mais próximos a 1871, aeducação com características escolaresdeixou de ser uma ameaça e passou a

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ser considerada uma necessidade indis-pensável para o bom andamento da soci-edade, o que representa uma inversão deposições em um curto período de tempo.

O processo de abolição do trabalhoescravo, mais especificamente as discus-sões relativas à libertação do ventre, mar-cam o surgimento de uma percepção acer-ca do fato de que a educação com carac-terísticas modernas deveria ser estendi-da aos negros. Essa inversão e esse re-conhecimento da educação escolar comoum elemento útil na transição para o tra-balho livre tinham como referência o novomodelo de sociedade que se pretendiaconstruir.

É uma percepção que está intima-mente associada à idéia de se prepararesses indivíduos para a liberdade que seaproximava. Essa preparação deveria es-tar associada a um conjunto de mudan-ças na educação que, nesse contexto, as-sumiria as características necessárias àformação de pessoas que viveriam emuma sociedade livre.

Quando utilizamos o conceito de edu-cação tradicional para abordar o proces-so de formação dos escravos, fizemos re-ferência à educação moderna e apresen-tamos como sua principal característicaa escolarização. Mas esse tipo de educa-ção, que foi gradativamente sendoconstruída e privilegiada pelo mundomoderno, comporta ainda alguns outrosaspectos que evidenciam sua diferençaem relação à educação tradicional.

A primeira diferença é que, ao con-trário da educação centrada no espaçoprivado, a educação moderna ocorre noespaço público. Trata-se de um conjuntode procedimentos selecionados, ou san-cionados pelo Estado, que passam a serimpostos na educação das novas gerações

como uma forma de construção da pró-pria modernidade.

Esse processo de intervenção do Es-tado no espaço social é denominado porJustino Magalhães (1996, p.12) como umaestatização da sociedade: “É com a trans-formação histórica que põe fim ao AntigoRegime que a escola tende a converter-se não apenas num fator de estatizaçãoda sociedade, como seu principal meio.Tornando-se único e verticalizante, o pro-cesso de escolarização envolve, por ou-tro lado, uma redução do processoeducativo à dimensão instrucional.”

Na perspectiva apontada por Maga-lhães, a escolarização não é apenas umadas instâncias do mundo moderno, masum dos elementos implícitos à sua pró-pria construção. Parte desta, ocorre pelainterferência do poder público na educa-ção proveniente do mundo privado. Nes-sa perspectiva, a escola é um dos locaisonde uma nova forma de sociabilidadecomeça ser veiculada e difundida por todoo espaço social. Essa sociabilidade impõedeterminados conteúdos e disciplinas quenão podem ser dissociados da moder-nidade, como por exemplo, a racionaliza-ção do social, o combate a uma tradiçãooral, tendo em vista a generalização daescrita e da leitura.

No que se refere à educação dos es-cravos no mundo privado, tivemos a opor-tunidade de ver, nas obras de PerdigãoMalheiros e Joaquim Manoel de Macedo,uma crítica à concepção de que esse tipode prática educativa constituiria umaameaça. A estratégia desses autores re-presentou uma tentativa de convocar oEstado a intervir na educação dos escra-vos que, com a libertação do ventre, ine-vitavelmente entrariam para o espaçosocial na condição de seres livres. Essa

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posição está expressa nas palavras de umdos participante do Congresso Agrícola,realizado em 1878 no Rio de Janeiro:

Para que tão momentosa necessidadeseja satisfeita, será preciso que o Esta-do se encarregue da instrução primariae secundaria, ... o Estado deve abrirescolas primarias em todas as fregue-sias, capelas, pequenos povoados,onde ainda não existam, especialmen-te escolas praticas especiais de agri-cultura, entre estas algumas industri-ais auxiliares da agricultura, para ór-fãos e para os ingênuos entregues aogoverno, onde estes desvalidos, a parde um bom ensino elementar, teóricoe pratico, recebam a educação santado trabalho, e que devem ser distribu-ídas pelas províncias com relativaigualdade, ao alcance da grande lavou-ra, para lhe fornecerem braços, e emlugares d’onde seja fácil a exportação,para servirem de núcleo á colonizaçãoestrangeira. (Congresso Agrícola,[1878] 1988, p. 55; grifos do autor).

A partir desse ponto de vista o espa-ço privado perde a sua supremacia comoelemento responsável pela educação e oEstado é chamado a educar o povo de for-ma universal, ou seja, abrangendo todasas províncias e todos os grupos sociais,inclusive os ingênuos, com vistas a pro-duzir os trabalhadores necessários à so-ciedade livre.

No contexto do século XIX, admitir aeducação como uma necessidade a serassumida pelo Estado era colocar em des-taque uma concepção moderna de edu-cação que, desde o século XVII já vigora-va para as camadas populares no conti-nente europeu. Para Justino Magalhães(1996, p. 12) esse tipo de educação pos-sui algumas características que a distan-ciam muito da educação tradicional: “En-quanto as estruturas tradicionais de edu-

cação aprendizagem e formação fazemparte do processo de socialização que sedesenvolve nos mesmos espaços e no seioda mesma comunidade em que se decor-rerá a vida adulta, o modelo escolar in-troduz uma terceira instância no proces-so educativo. O modelo escolar não ape-nas rompe com a relação direta entre oprocesso de informação/aprendizagem(instrução) e o processo de formação, pro-porcionando uma autonomização do pri-meiro deles, como envolve uma diversi-ficação dos espaços, uma diferenciação euma especialização de agenteseducativos, uma profunda alteração narelação pedagógica, pois, que na oficinae no trabalho os aprendizes se sociali-zam de forma hierárquica, enquanto naescola se implementam estratégias de so-cialização horizontal.”

Portanto, à medida que a educaçãonão ocorre exclusivamente no espaço pri-vado, a aprendizagem deixa de acontecerpor meio da convivência ou, como diriaJustino Magalhães (1996), “pela impreg-nação proporcionada pelo cotidiano”. Sur-ge um espaço específico para essa ativi-dade, a escola, onde são desenvolvidosalguns aportes que passam a ser vitaisno processo educativo: uma especializa-ção de agentes voltados exclusivamentepara a educação e alterações na relaçãopedagógica.

Esses elementos apontam parauma mudança significativa no processoeducativo e é exatamente esse tipo deeducação que passou a ser preconizadano processo de abolição do trabalho es-cravo. Isso tanto no que se refere àspropostas relativas à libertação do ven-tre, como também no que se refere àspráticas desenvolvidas pelo Ministério daAgricultura que, em última instância, de-marcam uma intenção do Estado para

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com a educação dos escravos e seus des-cendentes.

No que diz respeito às propostas,até mesmo os adversários do projetopara a libertação do ventre estavamconscientes da importância de se intro-duzir mudanças na educação dos escra-vos. O deputado e escritor José deAlencar pode ser tomado como um re-presentante dessa postura pois, apesarde ser um adversário do projeto para li-bertação do ventre, reconhecia as im-plicações da educação no processo delibertação dos escravos:

... e como libertar o cativo antes deeducá-lo? Não senhores; é preciso es-clarecer a inteligência embotada elevara consciência humilhada para que umdia, no momento de conceder-lhes a li-berdade, possamos dizer: - vós soishomens, sois cidadãos. Nós vos remi-mos não só do cativeiro, como da igno-rância, do vício, da miséria, daanimalidade, em que jazeis!. (Câmarados Deputados, 1874, p. 27).

Esse posicionamento, a despeito deestabelecer uma relação entre educaçãoe cidadania, tem uma dimensão retóricainegável: a educação é tratada como oprincipal instrumento de emancipação dosescravos. Torna-se, assim, o motivo peloqual não se poderia libertá-los, pois es-ses deveriam ser educados de forma con-veniente antes de se tornarem livres. Naverdade, trata-se de uma posição alta-mente questionável, pois se a educaçãodeve operar a transição da escravidão àcidadania, como poderia transcorrer essaeducação em meio à própria escravidão?

A Lei do Ventre Livre deve ser consi-derada como uma tentativa deenfrentamento da difícil questão levan-tada acima. Por meio da libertação do ven-tre tentou-se uma conciliação entre liber-

dade, escravidão e educação, tentativaque se expressa no que chamamos liber-dade geracional, onde as novas geraçõesnascidas de escravas tornavam-se livrese deveriam ser gradativamenteintroduzidas no espaço social. A partirdessa determinação tentou-se a concilia-ção de uma série de interesses, desta-cando-se o fato de que as crianças pode-riam ser exploradas como trabalhadores.Mas, ao mesmo tempo, foi admitida a ne-cessidade de se estabelecer uma novaforma de educação, que as preparassepara uma sociedade organizada com baseno trabalho livre.

Já tivemos a oportunidade de cons-tatar que a maioria absoluta das criançasbeneficiadas pela Lei do Ventre Livre fo-ram educadas nos mesmo padrões doescravismo, pois um número insignifican-te foi entregue ao Estado. Mas, vimos tam-bém que surgiram algumas instituiçõesque pretendiam educá-las e é exatamen-te nessas instituições que encontramosas primeiras práticas educacionais comcaracterísticas modernas aplicadas aosnegros no Brasil.

Essas instituições colocaram emdestaque os principais elementos quecaracterizam a educação moderna, tan-to no que se refere à intervenção doEstado, pois foi ele que financiou e fo-mentou o seu surgimento, como tambémno que se refere às outras característi-cas, como o uso de agentes educativos ede estratégias pedagógicas que conferi-am uma certa especificidade a estas prá-ticas educacionais.

Considerações finais

A educação foi um dos elementoslevados em conta durante o processo deabolição do trabalho escravo, gerandodebates e até mesmo a constituição do

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que poderíamos chamar uma política pú-blica voltada para a educação dos negros.Porém, devido aos interesses escravistaspredominantes no Império, essa políticanão teve impacto estrutural no modelo deabolição que terminou por se consolidarem 1888.

Nesse sentido, a análise que reali-zamos confirma o que é sabido acerca daabolição da escravidão no Brasil, ou seja,seu caráter excludente, sobretudo no quediz respeito ao tratamento dispensado aosnegros escravizados. Mas, por outro lado,a análise desse processo na perspectivada questão educacional revela que haviauma consciência acerca da importânciada educação como elemento de inclusãosocial. O que nos leva a crer que, entreessa consciência e a atitude de não tor-nar a educação um bem acessível ao in-divíduos oriundos do cativeiro, o que ver-dadeiramente se construiu foi a determi-nação de incluir os ex-escravos e seusdescendentes de forma absolutamentemarginal na sociedade organizada a par-tir do trabalho livre.

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Resumo

O presente artigo pretende apresen-tar de forma sucinta alguns elementos dapesquisa sobre os projetos pedagógicosque discutem as relações raciais em es-colas municipais de Belo Horizonte. Pro-curaremos demonstrar que as ambigüida-des das relações raciais no Brasil refle-tem na forma como estes projetos sãodesenvolvidos no espaço escolar. A pes-quisa foi realizada no período de 1999/2000.

Introdução

A temática das relações raciais nocampo da educação vem sendo alvo deestudos e pesquisas em diversos pontosdo Brasil. Longe se está de esgotar o tema,entretanto, algumas pesquisas já demons-traram o caráter discriminador do siste-ma escolar brasileiro. A discriminação semanifesta em todos os setores da escola,seja nos livros didáticos, nos conteúdostrabalhados ou omitidos, no silenciamentodos professores diante de situações depreconceito e discriminação no cotidia-no escolar etc. (Hasenbalg, 1990, 1999;Rosemberg, 1998; Barcelos, 1992; Go-mes, 1995; Gonçalves, 1985; Figueira,1992; Pinto, 1997, 1992, 1993, 1999 en-tre outros).

Até o momento, os impactos dessaspesquisas na prática pedagógica forampouco estudados, analisados ou avaliados.Até que ponto os profissionais da educa-ção percebem a temática das relaçõesraciais como algo de suma importâncianos currículos escolares? Em que medidaas informações trazidas pelos estudosacadêmicos e pelo movimento social ne-gro têm influenciado as ações dos educa-dores? Quais e quantas são as ações pe-dagógicas na perspectiva de compreen-der essa dimensão tão complexa da soci-edade brasileira que são relações raciais?Quem são os atores que desencadeiamessas discussões no cotidiano escolar?Essas e outras perguntas ainda não estãorespondidas.

As relações raciais no Brasil sãomarcadas por profundas contradições. Aomesmo tempo em que parcelas significa-tivas da população negra se encontramem situação de desvantagem, no quadrode perversa desigualdade social, fruto dehistórico processo de discriminação, oracismo é negado tanto oficialmente comono senso comum. Em muitos casos, evo-ca-se a mestiçagem do povo brasileiro comofator de unidade e ausência de conflito.

Este quadro refletirá também no sis-tema educativo. Mesmo em escolas que

* Professora da rede municipal de ensino de Belo Horizonte.

Rompendo as Barreiras do Silêncio: ProjetosPedagógicos Discutem Relações Raciais em Escolas

da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte

Patrícia Maria de Souza Santana*

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se propõem a discutir a questão racial,em prol da valorização da cultura negra econtra a discriminação racial, a tarefa édifícil, se não árdua. Muitas vezes sãoações isoladas do restante da instituiçãoe levadas a efeito, geralmente, por edu-cadores negros. Esses educadores, ape-sar de todas as dificuldades, até mesmoem definir sua própria identidade, sãoagentes significativos no processo de re-sistência e luta contra o racismo.

O presente artigo pretende apresen-tar resultados da pesquisa1 realizada emescolas municipais de Belo Horizonte, so-bre os projetos pedagógicos que discutemas relações raciais (ver Santana, 2000).Dá-se ênfase aos aspectos relativos à di-nâmica dos projetos estudados, chegan-do-se à conclusão de que o caráter con-traditório das relações raciais no Brasilreflete-se em larga medida na forma comoesses projetos são encaminhados e de-senvolvidos nas escolas.

O levantamento dos projetos

A rede municipal de ensino de BeloHorizonte compõe-se de 178 escolas, en-globando a educação infantil, ensino fun-damental e médio e educação de jovens eadultos. São nove regiões administrati-vas, sendo que em cada uma existe umdepartamento de educação, responsávelpelas questões pedagógicas e administra-tivas das escolas sob sua jurisdição.

Em 1995 foi implantado o projetoEscola Plural. Ele trouxe profundas ino-vações em todos os aspectos da vida es-colar, propondo basicamente:

• o fim do sistema de seriação, coma criação de ciclos de formação baseados

nos pares de idade (em princípio três ci-clos no ensino fundamental);

• transformações radicais na forma deavaliar os alunos, dando-se mais ênfase àavaliação qualitativa e considerandoparâmetros novos como a socialização, pro-cesso de construção do conhecimento etc.,extinguindo-se o sistema de reprovação egarantindo-se a continuidade de estudos;

• flexibilização dos conteúdos ensi-nados, com ênfase para aqueles conside-rados mais significativos para os alunos;

• ampliação da possibilidade de tra-balho coletivo entre os professores;

• valorização da cultura como eixofundamental do currículo.

Neste contexto, realizamos inicial-mente o levantamento dos projetos que,nas escolas, enfocavam as relações raci-ais, com o objetivo de identificar o con-junto dessas ações presentes na rede mu-nicipal de ensino de Belo Horizonte.

Para realizar o levantamento, uma dasmaiores dificuldades foi a inexistência deum banco oficial de dados com registro dosprojetos pedagógicos da rede. Diante dis-to, adotamos os seguintes procedimentos:

• contato telefônico direto com dire-tores, coordenadores ou professores iden-tificados como referência desses proje-tos nas escolas, o que demandou tempoconsiderável;

• consulta a banco de dados da Se-cretaria Municipal para Assuntos da Co-munidade Negra (Smacon), este bastan-te limitado devido ao pouco tempo de exis-tência da secretaria.

Foram contactadas 168 escolas das1782 existentes na rede municipal de en-

1 Orientadora: Ana Maria Rabelo Gomes.2 Dado atualizado junto à Secretaria Municipal de Educação em julho de 2000. É comum a falta deregistros, na Secretaria, de eventos ocorridos nas escolas.

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sino. Nelas foram identificados 70 proje-tos ou iniciativas que trabalharam de al-guma forma a problemática das relaçõesraciais. O levantamento ocorreu nos anosde 1999 e 2000.

Para cada uma das escolas, foi pre-enchida uma ficha de identificação dosprojetos, registrando, entre outros, dadoscomo nome da escola, título do projeto,conteúdo, objetivos. Dependendo da con-sistência das atividades, as informaçõescolhidas foram mais ou menos detalha-das, tendo-se conseguido informaçõessuficientes de 45 projetos.

O levantamento feito permitiu clas-sificar os projetos em quatro grupos:

Primeiro grupo — Totaliza 27 pro-jetos, desenvolvidos em determinadosperíodos do ano como Maio (Abolição),Agosto (Folclore), Novembro (Dia Nacio-nal da Consciência Negra). Esses proje-tos têm prazo estipulado para início e fime em geral foram motivados por um temaapresentado no livro didático, por um con-teúdo específico de determinada discipli-na ou por um tema mais abrangente, comoos 500 anos do descobrimento.

Por exemplo, numa das escolas des-te grupo, o trabalho foi realizado no anode 1998, no segundo ciclo de formação,motivado pelo conteúdo apresentado nolivro didático de Estudos Sociais. As pro-fessoras abordaram o tema do racismo,quando o tema tratado no referido livrofoi o da escravidão negra no Brasil.

Segundo grupo — Reúne sete pro-jetos encerrados, realizados em anos an-teriores, uma ou mais vezes. Não tive-ram continuidade, seja porque o profes-sor motivador transferiu-se de escola, sejapor dificuldades apresentadas para man-ter o projeto.

Numa das escolas deste grupo, o pro-

jeto foi desenvolvido em 1996. Na opor-tunidade, discutiram-se o preconceito, oracismo, a escravidão e a cultura negra,tendo sido envolvido um número signifi-cativo de alunos e professores. A profes-sora proponente transferiu-se de escola enão houve continuidade do projeto nosanos seguintes.

Terceiro grupo — Conta 22 proje-tos realizados por professores de váriasdisciplinas, ou por professoras po-livalentes do início do ensino fundamen-tal. Geralmente não abrangem o coletivoda escola, sendo realizados muitos deleshá mais de dez anos. Em alguns casos,há registro, mais ou menos sistematiza-do das atividades, mas, na maioria dasvezes, os dados fornecidos baseavam-senas próprias lembranças dos professores.Apesar de não estarem contemplados noprojeto global da escola, muitos deles sãorealizados sistematicamente, todos osanos, em geral como atividades de cul-minância que acabam envolvendo senãotoda a escola, pelo menos uma parte sig-nificativa dela. Estes projetos são maisdos professores que os propõem e execu-tam do que das escolas.

Um exemplo é de uma professoranegra de Língua Portuguesa e Literaturaque trabalha com alunos do terceiro ciclocom literatura africana e afro-brasileira,e aproveita para discutir temas como cul-tura negra, discriminação racial e situa-ção dos negros no Brasil hoje.

Quarto grupo — Compõe-se dequatorze projetos, que abrangem grandenúmero de professores e alunos, bemcomo a comunidade, com tema específicovoltado para a questão da discriminaçãoracial, alguns com durabilidade e freqüên-cia constantes. Em sua maioria têm do-cumentos escritos (proposta do projeto,esquema de atividades, registro em diá-

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rios, textos informativos, atividades emforma de exercícios etc.) e visuais (fotos,filmes, trabalhos manuais, cartazes). Estematerial foi apresentado pelo professor/coordenador do projeto por ocasião dasvisitas da pesquisadora às escolas. Tam-bém neste quarto grupo alguns projetosestão contemplados no projeto global daescola, firmando-se um compromisso derealizá-los sistematicamente, em todosos anos.

Por exemplo, numa das escolas, oprojeto vem sendo realizado desde 1997,é interdisciplinar, abrange todos os alu-nos de terceiro e segundo ciclos. Promo-ve atividades que agregam alunos, pro-fessores e comunidade.

A partir deste agrupamento, foramselecionadas quinze escolas3, das clas-sificadas nos terceiro e quarto grupos,para estudo mais aprofundado e entre-vistas com os professores. A escolha dosprojetos foi feita a partir dos seguintescritérios:

• temática do projeto explicitamenterelacionada à questão da discriminaçãoracial ou relações raciais;

• objetivos diretamente voltados à va-lorização da cultura negra e à discussãodo racismo;

• trabalhos que se estendem ao lon-go do ano, repetindo-se em anos seguin-tes e em andamento, por ocasião destapesquisa;

• abrangência: número significativode professores, alunos, comunidades en-volvidas, sem prejuízo, entretanto daque-les que tenham atingido pequeno númerode participantes, desde que os critérosanteriores tenham sido respeitados.

Antes de passar à análise dos proje-tos, cabe destacar uma síntese quantita-tiva da ocorrência de projetos focados nasrelações raciais nas escolas da rede mu-nicipal de Belo Horizonte:

• Um terço das escolas têm ou tive-ram algum tipo de atividade educativadentro da temática. Consideramos umperceptual significativo, uma vez que ain-da existe muita resistência em discutir-se a discriminação racial nas escolas.Veremos que esta resistência é apontadacomo um dos dificultadores para aefetivação e ampliação dos projetos.

• Desconsiderando o grupo em que oenvolvimento com a temática é muitotangencial, ainda assim vinte por centode escolas têm projetos em que a temáticadas relações sociais está colocadaprioritariamente.

A dinâmica dos projetos

As análises deste aspecto basea-ram-se principalmente nos dados levan-tados nas entrevistas e nos materiais aque pudemos ter acesso, a saber: pro-posta do projeto, textos para atividades,fotografias, filmes dos eventos realiza-dos pelas escolas, atividades desenvol-vidas. Neste esforço, como muito bemexpressa Santos:

De dentro e fora da escola, estamosbuscando reescrever uma história capazde oferecer um ensino crítico da diver-sidade cultural brasileira. Onde a edu-cação apresente novos significados parao negro, o branco e o indígena na suarepresentação masculina e feminina,capaz de levar o aluno a repensar suacondição humana de opressor ou opri-mido. (Santos, 1998, p. 81)

3 Por limitações de tempo, não foi possível visitar ou entrevistar a totalidade dos projetos.

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As motivações para o desenvolvi-mento dos projetos

As propostas partem de um profes-sor em especial, geralmente negro, mas,em alguns casos, acabam atingindo, en-volvendo, senão toda a escola, pelo me-nos uma parte significativa dela.

Quando procuramos compreender apartir das entrevistas porque aquelas/aqueles professoras/professores esta-vam à frente dos projetos em suas es-colas, vimos que a questão da identida-de negra estava fortemente presente nasjustificativas.

Para mim é uma questão de vida mes-mo. (Professora R.)

Em vários casos as professoras sen-tiram necessidade de fazer um breve re-lato sobre sua trajetória de vida enquan-to pessoas negras. Na maioria dos rela-tos esse resgate apontou para situaçõesem que passaram a se ver como negras ecom uma visão mais crítica sobre as rela-ções raciais. O mito da democracia racialpassa a não condizer com a realidade vi-vida por elas/eles, marcada de não ditos,de situações constrangedoras, mal-enten-didos, humilhações.

Essas vivências passam a represen-tar peças fundamentais nas motivaçõespara realização dos projetos:

No meu caso eu acho que eu sou negra,se eu fosse branca talvez não me im-portaria com isso. Porque esta é umaquestão que não é tocada nem pela áreade história abraçando muito essa dis-cussão racial ou cultura africana, issovira mais como um enfeite, uma coisaexótica. E em geral com o professor deeducação artística, o professor de Por-tuguês ou de alguma outra área que ve-nha trabalhar isso na escola, quase sem-pre coincide desse professor ser negro.

Eu acho que é mais uma questão de afir-mação pessoal, de afirmação da identi-dade. Não sei se é porque tem uma pre-ocupação com a questão racial no Bra-sil. Não, eu tenho para mim, pelo me-nos no meu caso, que quando o profes-sor pega para falar isso é mais uma ne-cessidade dele se auto-afirmar.

Ao fazer um trabalho deste tipo é comose eu estivesse andando com aquelacamisa “100% negro”, “Negro é lindo!”,“Eu sou negra, olhem para mim!”, “Eusou negra e conto histórias bonitas!”, “Eusou negra e produzo textos!”. Os alunosproduzem textos, eu penso que é umacoisa mais nessa linha, tornar a cultu-ra negra mais visível. Porque na mídia,nos livros, nas escolas de um modogeral o negro não existe. Ele não é vis-to, ele não é visível, inclusive por ex-periência minha mesmo esses contosafricanos eu vim a conhecer depois queeu estava dando aula há muito tempo.(Professora V.)

Como eu falei por telefone, eu não te-nho um trabalho estruturado, um tra-balho organizado, um projeto. Para mima questão do negro é uma questão pes-soal, de vida, é uma coisa que desdecedo eu fui assumindo na minha vidadiária, no meu cotidiano, e fui passandoisso para a minha prática escolar. A mi-nha avó, fui criada com ela, minha avóé negra, e ela tinha um preconceito ter-rível contra o negro. Quando ela falava,ditados negativos sobre o negro, negroquando ... ela falava isso como umacrença pessoal. Aquilo batia na minhacabeça de uma forma muito estranha.Porque eu olhava o negro falando maldele mesmo. Aquilo passou. Eu assimi-lei aquilo na minha vida como umamilitância até pessoal. Bom, comecei adar aula, eu sou psicóloga, me formei,trabalhei como psicóloga um tempo epor vários motivos eu mudei de estado

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e aqui eu não consegui retomar aprofissão.

Eu sou de Recife, morei muitos anos noRio e agora moro muitos anos aqui emBH. Quando eu comecei a dar aulas euvi na sala de aula uma possibilidade detrabalhar estas questões do negro. Co-mecei na escola. Lá eu tinha um traba-lho mais estruturado, eu não tenho essematerial. Lá fazia discussões, debates,levava pessoas. Foi lá que eu fiz a pri-meira comemoração do Dia da Consci-ência Negra. Comecei a entrar em con-tato com grupos. Saí de lá e fui para oSantos Dumont e lá também procureicontinuar este trabalho. Aqui eu sou pro-fessora de História e agora também demúsica dentro de um projeto”. (Profes-sora R.)

Mesmo sendo um tema altamenterelevante, a questão das relações raciaisna escola ainda é um tema tabu, e namaioria dos casos as motivações são in-dividuais. Neste caso estamos consideran-do as motivações individuais mesmo aque-las em que os projetos constituíram-secomo coletivos. Não surgiu, em nenhumcaso analisado, uma situação em que aproposta para a realização do projeto ti-vesse surgido do grupo de professores, daescola enquanto instituição ou de propos-tas curriculares institucionais ou até mes-mo dos Parâmetros Curriculares Nacio-nais4 .

Pelo fato de a maioria quase com-pleta dos professores entrevistados sernegros, as iniciativas confundem-se coma trajetória de cada um, com a motivaçãopessoal de cada um. O pessoal, o indivi-dual poderá até tornar-se coletivo, mastambém existe um longo caminhar parase chegar a este fim.

Eu fiquei muito sensível a essa questãoquando nasceram minhas filhas e eu fuisentindo a reprodução exata do que eusofri, eu fui sentindo nas minhas filhas.A coisa que me chama muita atenção,que eu me lembro que quando estavagrávida, fazia compras sempre numaloja em Uberaba, conhecia muito essavendedora, aí logo depois que tive mi-nha filha, ela me disse: oh que ótimo!Nasceu mais uma menina. Mas uma parao Sargenteli. E aquilo me deixou extre-mamente constrangida, eu sei que eudei uma resposta para ela. E a partirdaquilo fui me despertando para poderestar trabalhando, porque ela não fez,eu senti que ela não tinha maldade na-quilo que ela estava falando, mas eraextremamente terrível, aquilo que elaestava me colocando. E aí senti a ne-cessidade de estar me instrumenta-lizando mais sobre a questão negra.Comecei a estudar um pouco mais dahistória, das questões mesmo e fui. Eeu fui estudando bastante, o pessoal deUberaba tinha um movimento de casaislá da arquidiocese, me chamou pra fa-zer uma série de palestras, aí eu fui co-locar sobre a questão do negro. Aí ocolégio Marista de Uberaba me chamoupra poder estar falando da questão ne-gra para os estudantes, eu fui. E cadavez que a gente vai trabalhando, a gen-te vai estudando mais e sentindo maisvontade de estar conhecendo um poucomais do assunto. E aí me apaixonei peloassunto, e a gente vai estudando e atéhoje ... (Professora M.).

Na fala das professoras percebemosque apesar de afirmarem por mais de umavez que suas motivações são pessoais,elementos dessas falas demonstram queexistem outros fatores que colaboram paraque passem a atuar em suas escolas na

4 Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram enviados às escolas a partir de 1997 e têm um volumededicado à pluralidade cultural.

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perspectiva do anti-racismo. A participa-ção em encontros e reuniões do Movimen-to Negro, leituras, contato com militan-tes de movimentos sociais e a própriaconstatação de que a discriminação estátambém presente na escola, as fazem to-mar posturas para procurar contribuir comações pedagógicas visando romper com oquadro de discriminação e preconceitosno âmbito escolar.

A experiência pessoal, que tambémé marcada por expressões coletivas, étransportada para a escola como “um pro-jeto de vida”. As professoras entrevista-das podem até não se ter expressado des-sa forma nas entrevistas, mas este pro-jeto de vida faz parte de projetos e pro-postas do movimento negro e outros mo-vimentos sociais comprometidos com abusca de igualdade de oportunidades paraos indivíduos da nossa sociedade. O en-contro com as diversas facetas do racis-mo fez, dessas professoras, profissionaiscomprometidas, acima de tudo, com a dig-nidade do ser humano. O resgate da auto-estima dos alunos negros passa a ser umcaminho através do qual poderá rever-ter, para seus alunos, o que sofreu ou oque sofre por ser negro. Não é nossa in-tenção apresentar uma análise de fundopsicológico, mas este é um aspecto fun-damental nesta temática, uma vez que asações pedagógicas cruzam-se com a tra-jetória pessoal das professoras. Diferen-temente, talvez, de outras temáticas con-sideradas inovadoras, como meio ambi-ente, sexualidade, violência, que são tra-balhados como temas contemporâneos,incorporados no currículo por pressões docontexto social e parecem não gerar tan-tas polêmicas no interior das escolas.

Eu quero começar um pouco, antes doprojeto que é o seguinte: quando eucheguei nessa escola, eu recebi, eu fui

recebida por uma certa resistência pe-los alunos. Não sei porque motivo, nãosei se é por causa da cor. . . acho que éisso mesmo. . . e por ser uma professo-ra assim, que estava empenhada a fa-zer um trabalho bom com eles, não é,estava apostando neles, não é, então euganhei o apelido de chita. E eu olhavaassim, e quando eu exigia do aluno queeu queria sacudir aquela coisa, aquelafalta de expressão deles, e eu exigia umpouco, e eu sentia isso. Porque eu saíano corredor, era aquele som: Chita! Chi-ta! Chita! E aí eu passei a observar apopulação que me chamava de Chita. Eeu vi que são negros, já me criticando eapontando negro, não é? (Professora C.)

Sim. Eu era a única professora negra ànoite. Então eu era a “Chita”. E fiqueicom esse nome de “Chita”, não é? E aí... eu sou professora de Geografia, en-tão à medida do possível, quado a gen-te começava a falar de população e tal,aí eu entrava na questão racial. E co-mecei a falar com eles, falar aqui, ali.(Professora C.)

Foi preciso um incidente, em que fi-cou claro o preconceito dos alunos com aprofessora negra, para que o assunto pas-sasse a fazer parte dos conteúdos traba-lhados em sala de aula. A constatação deque o racismo está presente em nossasociedade não é garantia para que o temafaça parte do currículo escolar. Uma situ-ação provocatória mobilizou alguém, quefez a opção por seguir um caminho nãomuito tranqüilo, que a levará de encontroa vários conflitos, mas também ao en-contro de muitas compensações. A maio-ria dos professores entrevistados demons-trou que, apesar de todas as dificuldades,sentem-se satisfeitos com o trabalho de-senvolvido e que este repercute positiva-mente na atitude dos alunos.

Eles ficaram entusiasmados, uma me-

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nina chamou a diretora e me chamou eveio me agradecendo em nome da tur-ma: “é a primeira vez nessa escola queeu consigo, que alguém tem confiançae confiou na gente de fazer um traba-lho. Então a gente quer te agradecer porvocê ter acreditado na gente. Porque nóssomos pobres, nós somos favelados, ea senhora confiou que a gente podia fa-zer um trabalho, e olha o que que a genteconseguiu fazer, pela primeira vez”. Aqui-lo mexeu comigo, porque pra mim eranormal, eu já sou professora há muitosanos, e já sou acostumada com isso hámuito tempo. E eu fiquei chocada comaquilo, falei “gente, que humildade, nãoé?” (Professora C.)

Este outro relato também demons-tra como as motivações pessoais e pro-fissionais se cruzam com a trajetória devida das professoras:

Porque na verdade é um projeto maismeu do que da escola, ele é de vida.

É um projeto meu porque as pessoasnão têm disposição para trabalhar estetipo de coisa não. Quando eu estava naescola, as danças, tudo isso eradirecionado para a coisa mais clássica,não tinha nada que falava de mim mes-ma e de minha raça (...) todo o traba-lho era voltado para a elite, não tinhanenhum trabalho voltado para a culturapopular.

Eu comecei a dar aulas em um bairro deperiferia em Betim. Então começamos afalar a língua dos meninos. E o padretrabalhava no bairro com Folia de Reis,Festa do Divino, e nós aproveitávamosisso na escola. (Professora E.)

Ao pesquisar a temática das relaçõesraciais nos cursos de magistério, ReginaPahim Pinto constatou que quando existealguma iniciativa voltada para a discus-são do tema, esta acontece como umaação individual de algum professor:

Há dificuldade de motivar os professo-res para a realizarem um trabalho inte-grado, nem sempre há apoio ou climaque favoreça suas iniciativas e, o que émais problemático, não há reflexão defato de como integrar tal tema nas dis-ciplinas no curso de magistério. (Pinto,1999, p. 223)

A semelhança com as experiênciasencontradas na rede municipal de BeloHorizonte é significativa. Apesar de en-contrar um número considerável de açõesna perspectiva de discutir a questão étni-co-racial nas escolas, de fato, estas nãofazem parte ainda da agenda das institui-ções educacionais, de forma definitiva esistemática. Depende sempre da atuaçãode um professor em especial, que neces-sita percorrer um caminho longo e árduopara conseguir “impor” a temática para oconjunto da escola. Quando o faz, poisvimos que em alguns casos este profes-sor prefere ou entende que deve traba-lhar apenas nas turmas em que dá aulas.

As dificuldades em institucionalizaras ações nas escolas municipais estãofatalmente associadas a todo o quadro noqual o tema racismo se inscreve. Confor-me Guimarães,

Assim, o grande problema para o com-bate ao racismo, no Brasil, consiste naeminência de sua invisibilidade, postoque é reiteradamente negado e confun-dido com formas discriminatórias declasse. (Guimarães, 1999, p. 210 )

Guimarães acentua que o movimen-to negro teve e tem papel fundamentalna tentativa de tornar o racismo visívelno Brasil, particularmente nas escolas.

Assim, ao mesmo tempo em queexiste uma forte contribuição do movi-mento negro organizado, colocando atemática das relações raciais na educa-ção como meta prioritária, as ações mais

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sistematizadas e institucionalizadas acon-tecem não por parte dos órgãos governa-mentais e sim por iniciativa do própriomovimento negro, ou de professores que,muitas vezes isoladamente, comparti-lham de seus ideais. Como exemplo cita-mos: Escola Criativa do Olodum e o pro-jeto Ilê Axé do Opô Afonjá, de Salvador, oNúcleo de Estudos Negros de SantaCatarina, os cursos vestibulares para ne-gros e carentes e agentes pastorais ne-gros, presentes em diversas capitais dopaís, inclusive Belo Horizonte, bem comoem alguns outros pontos, espalhados portodo o país. Não que estas experiênciasvenham sendo realizadas sem grandesdificuldades, mas pelo menos ocupam hojeespaços representativos dentro das açõesanti-racistas, no Brasil, no campo educa-cional.

Objetivos, conteúdos trabalhadose estratégias adotadas

Geralmente, os conteúdos dos pro-jetos desenvolvidos na rede municipal deensino de Belo Horizonte estão ligados àconstrução ou colaboração para a cons-trução de uma imagem positiva do negro,sendo que os projetos na maioria das ve-zes trazem uma nova forma de encarar atemática na escola, dando “visibilidade”à cultura negra e ao negro como sujeito.Na maioria desses projetos, os objetivospodem ser assim resumidos:

• Construir auto-estima positiva nosalunos negros.

• Valorizar a cultura afro-brasileira.

• Tornar visível a cultura negra.

• Construir valores baseados no res-peito às diferenças.

• Valorizar o ser humano em todas

as suas dimensões.

• Acabar com o preconceito nas es-colas.

Com relação aos temas e conteúdostrabalhados, além de racismo e discrimi-nação racial, que aparecem em todos osprojetos, a cultura é marcante. Busca-setrabalhar positivamente a auto-estima dosalunos negros por meio da valorização dacultura afro-brasileira.

As conseqüências do racismo sobrea auto-estima e a auto-imagem das pes-soas negras já foram alvo dos estudos dealguns pesquisadores brasileiros (Souza,19835; Oliveira, 1994; Silva, 1995). Nointerior das escolas municipais estudadas,a elevação da auto-estima é uma das pri-oridades dos projetos. Em diversas des-sas escolas, foram realizados desfiles dosalunos com valorização da estética negra.Estes eventos foram avaliados como ex-tremamente significativos, por colocaremos alunos negros em lugar de destaque:

A gente já tinha uma oficina de beleza,que é o cabelo, com a pele e amaquiagem própria. No final do ano fe-chamos com um desfile do grupo, como cabelo adequado, com a maquiagemprópria, com a roupinha que a gente tevede arrumar até emprestada, para elesdesfilarem, mas ficou uma coisa muitobonita. (Professora C.)

Fizemos a culminância com desfile daescolha da garota afro que foi excelen-te, pelo que acontecia para fazer o des-file, as meninas se organizaram, elaspróprias. Então elas vinham pra minhasala e na hora da preparação o assuntoracial acontecia, era muito legal. O maisbonito foi o que aconteceu durante oprocesso nos bastidores, do que propri-amente o que aconteceu lá na hora. En-

5 Este livro representou um marco no Brasil, em termos de análises psicológicas e relações raciais.

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tão aquelas conversas como “meu ca-belo é assim”, “fulano falou isso”, “eunão importo quando falam assim” ... Aauto-estima dessas meninas foi a mil,as mães dessas meninas babaram. (Pro-fessora M.)

Aliada à questão da imagem e dabeleza, a cultura aparece não só por meiode apresentações de grupos de fora daescola, como também na organização decursos e oficinas para os alunos: capoei-ra, hip hop, rap, dança afro, maculelê,teatro, grafite, comidas afro-brasileirasetc. Ademais, existe o resgate da históriado negro no Brasil: escravidão, lutas eresistência, racismo, literatura afro-bra-sileira, contos brasileiros.

Em alguns casos, a opção em darcentralidade à cultura está diretamenteligada às dificuldades de se falar direta-mente do tema racismo, seja com os alu-nos, seja com os professores. ReginaPahim Pinto já havia alertado para o cons-trangimento que o assunto racismo traz:

Falou-se mais abertamente dos cons-trangimentos, do temor e das reaçõesque provoca, principalmente quando háalunos negros na sala de aula, confir-mando a respeito da dificuldade de tra-tar determinadas questões que dizemrespeito ás diferenças étnico-raciais emabordagem formais (...) Mas sem dúvi-da, é também um indício da tendênciade identificar o tema com o que é pro-blemático, sem atentar para o fato deque se pode tratá-lo também apontan-do os aspectos positivos das diferenças.(Pinto, 1999)

Em certas escolas, as discussõessobre racismo e consciência negra leva-ram-nas a constituírem grupos culturaisou atividades permanentes voltadas paraa cultura afro-brasileira. Destacamos qua-tro exemplos:

• criação de uma banda de percus-são com 50 integrantes (alunos e ex-alu-nos), que tocam ritmos como samba, funk,maracatu, congada etc. Esta banda atual-mente está se estruturando para se tor-nar independente da escola;

• grupo de dança afro, que se consti-tuiu a partir dos trabalhos desenvolvidosna escola. O grupo também se desvinculouda escola e faz apresentações na comu-nidade vizinha e em teatros da cidade;

• grupo teatral, que encena peças quetematizaram a cultura e a história dosnegros no Brasil;

• oficinas semanais com temas vari-ados, dentre eles o hip hop.

Percebe-se que, nestas escolas, aadesão dos alunos à temática acaba tam-bém despertando os outros professorespara a relevância do tema. Participandode um evento de culminância de um dosprojetos estudados, colhemos opiniões dosprofessores e estes demonstraram esta-rem afeitos ao tema porque acabaram seempolgando com o trabalho realizado ecom a motivação dos alunos, que se em-penharam nas atividades de forma alegree participativa.

Dificuldades para a realização dosprojetos e perspectivas apontadaspelos professores

Na maioria dos projetos estudados,vários fatores são apontados como difi-culdades, para realizá-los:

• falta de materialidade;

• tempo escasso para desenvolvimen-to das atividades;

• ausência de, ou pouco apoioinstitucional;

• ausência de envolvimento por par-

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te do conjunto de professores da escola;

• dificuldade em trabalhar o tema como aluno negro.

Destas dificuldades, a mais desta-cada refere-se ao envolvimento dos pro-fessores, principalmente no convenci-mento de que a temática das relaçõesraciais é importante e deve ser traba-lhada na escola.

A dificuldade maior é de envolver aspessoas nessa discussão. Tem profes-sor que não se sente bem em falar donegro com o negro. Quando fazemoscobranças dos colegas por que o proje-to não está sendo trabalhado, o colegaresponde que não tinha jeito para lidarcom esse assunto. Na verdade é umafalta de preparo nossa, não temos pre-paro para estar lidando com isso. (Pro-fessora C.)

Neste caso os professores se negama trabalhar, pois não se sentem à vonta-de, parecem temer a reação do aluno ne-gro, prefere não “mexer na ferida”. A en-trevistada aponta a falta de preparo dosprofessores como causa dessa reação.Segundo Gomes, a escola tem ainda gran-des dificuldades em lidar com seus pre-conceitos, e para falar sobre o assuntocom os alunos é necessário fazer umareflexão sobre o papel da escola na cons-trução e desconstrução do racismo. Emmuitos casos prevalece a acomodação,cabendo a um professor ou pequeno gru-po levar esta tarefa adiante.

É mais difícil ainda ao pensamento pe-dagógico tão “igualitário” lidar com asdiferenças de raça. Esse mesmo pensa-mento pedagógico ensinou os professo-res a lidar com as diferenças de ritmosde aprendizagem, inventar recursos di-dáticos. As diferenças raciais sempreforam ignoradas na formação dos pro-fessores. (Gomes, 1995, p. 167)

Em outro sentido, o professor P.aponta as dificuldades não só com os pro-fessores mas consigo mesmo para trataros conteúdos com os alunos negros. Di-zia que sentia nos olhos dos alunos ne-gros o constrangimento com o assunto egostaria de encontrar outras formas detrabalhar que não os chocassem tanto.Vemos que também o professor engajadona discussão encontra dificuldades emtrabalhar o tema diretamente com os alu-nos, refletindo não só a falta de formaçãomas até de experiência em lidar com aquestão. Seria fundamental a disponibili-dade de materiais didáticos, bem comoredes de trocas de experiências com ou-tras escolas ou entidades que trabalhamnesta direção, para que o professor pu-desse se instrumentalizar e até mesmocriar formas alternativas de trabalho.

A resistência ao tema também é ci-tada como um dificultador:

Quando alguém abria a boca para falarde preconceito, de racismo, eles vinhamcom essa de que tem preconceito con-tra branco também, que ficávamosenfatizando só o negro, o negro. Entãoa gente sentia que havia uma resistên-cia tão grande e parecia que nós éra-mos os mais afetados. (Professor P.)

Acusações de que ao se falar do pre-conceito racial contra os negros, estamoscriando o preconceito são freqüentes. Es-sas dificuldades inscrevem-se no plano dainvisibilidade da questão para amplos se-tores da sociedade, que querem acreditarque vivemos em um paraíso racial. Nãoexistem fórmulas prontas para desfazertantas resistências, mas os próprios pro-fessores entrevistados buscam caminhospara “quebrar o gelo” entre seus colegas.Um trecho das entrevistas ilustra bemessas atuações:

Porque não adianta você ter um projeto

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de identidade cultural dentro da escolae o professor não se identificar com esseprojeto também. Se ele não questionara sua própria identidade. Então a pri-meira coisa que tem que ser feita naescola é usar estratégias para sensibili-zar o professor. A partir do momento queele é sensível ao tema, usando as es-tratégias para poder instrumentalizar deforma bem amena, por ser um assuntopolêmico na escola ainda. (...) a cadamês a gente fazia um café especial (...)Então nós fizemos o café cultural, quefoi no dia 13 de maio, em que a gentefez uma comida especial, chamamos umcontador de histórias, fiz uma exposi-ção de todo o material que eu tenho eque a escola tem, trago vídeo. Naqueleespaço de tempo do café, a gente con-versa sobre o assunto e traz algumacoisa. (Professora M.)

Em alguns casos, à medida que adiscussão racial foi fazendo parte do coti-diano da escola, que os projetos foramrepercutindo positivamente entre os alu-nos e comunidade e até mesmo sendomatéria em jornais, os professores pas-saram a se dar conta da importância doassunto e de que não poderiam ficar alhei-os a ele.

Os professores impulsionadores dosprojetos tiveram e têm papel central nes-te avanço, pois através de diversas es-tratégias conseguiram retirar suas açõesdo isolamento, transformando as açõesindividuais em projetos de fato coletivos.

Falar das dificuldades encontradaspara a realização dos projetos é tambémprocurar respostas para vencê-las. Os pro-fessores entrevistados, mesmo que algunsnão tenham conseguido efetivar na práti-ca algumas idéias, refletiram sobre a ne-cessidade de reverter o quadro de resis-tências e muitos anteciparam as ações quedeveriam acontecer, em conjunto com os

centros de formação, mas por estaremdispostos a não abandonar seus projetosforam construindo todo um arsenal derecursos para que seus objetivos fossemcumpridos.

À medida que os projetos vão seconsolidando, estes professores impul-sionadores vão tendo condições de ava-liar os caminhos percorridos e os resul-tados, mesmo que parcialmente. Nes-sas análises conseguimos perceber queas perspectivas são otimistas e que, ape-sar dos entraves, os projetos estão se-guindo em frente.

Tenho percebido é uma diferença dospróprios meninos, os meninos negros,se colocando mais, se sentindo mais emcasa. Outro dia mesmo nós recebemosa visita de um pai, ele tem três filhos naescola, negros. Ele colocando que ele fi-cou encantado, um menino formou ago-ra, saiu esse ano de 99. Ele ficou en-cantado da forma com que nós tratáva-mos os filhos dele. No trato a gente ti-nha com essa questão da negritude, deestar valorizando as pessoas, colocan-do as pessoas como iguais. Então a gen-te sente assim que até entre professo-res que tinham uma determinada resis-tência em trabalhar, lidar com o assun-to; hoje você lida com esse projeto, comesse assunto com facilidade. Porque,basicamente, quando nós começamos,era eu negro, a H., também professoranegra, a E., basicamente negros mes-mos de pele mais retinta, que puxavam,que basicamente quando se falava emtrabalho, questão de negritude era P., E.e H. e a própria V. E agora não, quandovocê propõe o projeto desse ele flui nor-malmente, os professores todos abra-çam e a gente consegue fazer um tra-balho coletivo mesmo. (Professor P.)

Conclusões

Os resultados do levantamento dos

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projetos nos permite concluir que atemática da discriminação racial está maispresente nas escolas do que podíamosimaginar. Apesar de todas as polêmicas,controvérsias e dificuldades para desen-volver o tema, ele passa cada vez mais afazer parte da agenda curricular das es-colas municipais de Belo Horizonte.

A figura do professor negro é peçachave para a realização dos projetos. Emsua maioria, esses projetos são propos-tos e encaminhados por esses sujeitosidentificados com a causa anti-racista eautoclassificados como negros. Das quin-ze escolas listadas para um maioraprofundamento, apenas em dois casosos professores se autoclassificaram comobrancos. Em pelo menos um desses casos,pode-se dizer que a pessoa é mestiça.

O contato com outras pessoas negrasengajadas na militância contribui para atomada de posição. Aos poucos, a percep-ção de que ser negro no nosso país repre-senta diferenciais, principalmente noacesso às oportunidades e às formas detratamento, vai sendo elaborada no con-tato com os outros. Estas construções vãose transformando em um engajamentopolítico maior, que poderá ser assim en-tendido ou não pelos professores.

Mesmo que os entrevistados, em suamaioria, não estejam vinculados atual-mente a nenhuma organização dos movi-mentos sociais, deixaram transparecerque o contato com pessoas e eventos li-gados ao movimento negro, e mesmo sin-dical, contribuíram para a sua formaçãomais crítica diante da questão das rela-ções raciais.

Nesse sentido tomamos emprestadode Vianna uma das dimensões por ela

apontada sobre a identidade dos indiví-duos no mundo moderno, citando autorescomo Berger e Friege-Kelner:

(...) A sociedade moderna põe o indiví-duo em confronto com um caleidoscó-pio sempre muito grande de experiênci-as sociais e significados, constrangen-do-os à reflexão para fazer projetos etomar decisões. Essa reflexividade nãosó diz respeito ao mundo externo, mastambém à subjetividade do indivíduo e,de um modo particular, à sua identida-de. (Vianna,1999, p.50)

Nesta pesquisa, não pudemos darconta da trajetória completa de vida dosprofessores, mas nos arriscamos a dizerque a escola, para os professores negrosque coordenam os projetos, é um espaçode militância anti-racista. Esta ação, mes-mo que não assumida explicitamentecomo tal, está expressa na forma como aquestão é colocada na escola, nos cami-nhos trilhados para a concretização dosobjetivos, na persistência em manter otema como relevante, se não para toda aescola, pelo menos para os alunos.

Professores que, independentes daescola em que atuam, levam a temática àfrente há anos, demonstram o quanto aquestão é relevante em suas vidas. A iden-tidade de cada um, marcada por suas ex-periências de vida, independentemente deuma vinculação ou não com movimentossociais, parece inserir-se em um coletivode homens e mulheres negros. Existe umaluta e essa luta exprime-se pela busca deigualdade de oportunidades e direito àdiferença6 .

Nesse sentido, a atuação dos profes-sores negros no ambiente escolar, nasescolas estudadas, representa um peda-ço do longo caminhar que os projetos no

6 Nos limites de tempo desta pesquisa, não foi possível explorar mais detalhadamente a influência dosmovimentos sociais na atuação dos professores.

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campo das ações anti-discriminatórias de-vem trilhar em nosso país.

Parece-nos que a atuação dos pro-fessores negros nas escolas, independentede ser uma proposta institucional, coleti-va ou não, significa um encontro com o“nós” que o ser negro ou negra represen-ta para aqueles que experimentaram eexperimentam os efeitos da discrimina-ção racial no Brasil.

O silêncio vai sendo rompido e, nolugar da omissão e do embaraço, essesprofessores passaram a desenvolver ati-vidades e projetos que pudessem contri-buir para alterar o quadro encontrado emsuas escolas. Não será por acaso que umdos eixos mais importantes dos projetosestá relacionado à auto-estima, à cons-trução de uma auto-estima positiva paraalunos negros, buscando valorizar a cul-tura negra e a beleza negra, resgatando ahistória dos negros no Brasil, discutindosua realidade atual etc. O trabalho para aformação de uma auto-estima positiva nãose resume nesse caso somente a conteú-dos e atividades: a postura das professo-ras diz mais que os conteúdos. Em seusrelatos, ficou demonstrado que o incenti-vo à participação, o estímulo e a “cobran-ça” fazem parte constante de sua atua-ção junto aos alunos.

Os educadores, com isso, procuramatingir o ponto principal mediante o qualo racismo se manifesta no cotidiano es-colar: a invisibilidade do povo negro, ali-ado ao caráter depreciativo que lhe é dadopela sociedade. Diante da impossibilida-de de tratar essa questão na sua dimen-são social e institucional, ou seja, de darao tema uma visibilidade pública de mai-or alcance, os professores desenvolvemprojetos com as marcas que trazem desuas trajetórias de vida e do quadro geralda situação das relações raciais existen-

tes no Brasil, marcada por contradições,dificuldades e conflitos constantes. Con-flitos com os outros colegas, consigo mes-mo, com alunos, com instituição escolar etc.

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Resumo

A educação escolar pública no Brasilé de baixa qualidade, com graves conse-qüências para os alunos que necessitamdesse tipo de ensino. Há que se apontartambém a reprodução dos preconceitos ediscriminações no contexto escolar e queatingem principalmente os alunos negros.Neste estudo, procuramos demonstrar,com base nos relatos de alunas graduandasnegras sobre suas trajetórias escolares,como determinados atributos interferemnão só na maneira mas também na inten-sidade com que esses preconceitos atu-am.

Introdução

Este artigo relata parte do trabalho1

desenvolvido no contexto do I ConcursoNegro e Educação, que focalizou aspec-tos da trajetória educacional de alunosnegros da Universidade Estadual de Cam-pinas com o objetivo de verificar as difi-culdades com que se depararam tendoem vista o seu pertencimento racial (Sil-va, 2000).

Para tanto, foram entrevistados seisalunos que nos anos de 1999 e 2000 es-tavam freqüentando aquela universidade.

As entrevistas foram realizadas de modoa reconstruir a sua trajetória escolar, des-de as séries iniciais até a universidade pro-curando detectar a presença de discrimi-nações e preconceitos2 e a sua percepçãoa respeito.

A reconstrução das trajetórias edu-cacionais desse alunos exigiu a definiçãode técnicas de pesquisa a serem utilizadasno trabalho de investigação. Nesse senti-do, a leitura de material bibliográfico, des-de os relativos à história oral, memória egênero, passando pelos que tratam daquestão racial até chegar aos que dizemrespeito ao ensino superior público, foramde fundamental relevância para a constru-ção do arcabouço teórico e metodológicodesta pesquisa.

Procurou-se ainda captar em pro-fundidade não só a experiência vivenciadapelos alunos, mas também pelas pesso-as com as quais se relacionavam, ob-tendo-se desse modo relatos muito den-sos e ricos. Como afirma Gonçalves eSilva (1995, p. 94) “Buscar conhecer ahistória particular de cada um e com elaaprender não é um gesto fora de propó-sito, pois aquela história se inscreve nahistória de uma comunidade, de um gru-

Raça e Gênero na Trajetória Educacional deGraduandas Negras da Unicamp

Júlio Costa da Silva*

*Mestrando em História Social do Trabalho, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).1 Orientadora: Célia Maria Marinho de Azevedo.2 Cabe ressaltar as diferenças entre discriminação e preconceito. O preconceito seria mais uma atitude,enquanto a discriminação já se configura como uma ação. Mas, de qualquer modo, como lembra Hasenbalg(1979), no Brasil, a noção de preconceito tem sido usada para indicar tanto o preconceito como adiscriminação (Pinto, 1993).

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po social, de um país, da humanidade,fazendo-a, interpretando-a, refazendo-a.”

Para efeito deste artigo, serão co-mentados os depoimentos de três entre-vistadas: Renata, Débora e Mariana, alu-nas dos cursos de dança, enfermagem epedagogia.

A Memória e a História Oral

Dada a proposta de resgatar aspec-tos da trajetória educacional das alunaspesquisadas tendo em vista o seupertencimento racial e sexual, procurou-se trazer à tona momentos presenciadosou vivenciados por elas que envolvemquestões raciais e de gênero.

Deparar-se com o novo ou o corri-queiro de forma esporádica eassistemática ocorre comumente comqualquer pessoa. Porém, utilizar tais in-formações no contexto de um trabalhoacadêmico pressupõe a definição de mé-todo e técnicas de pesquisa. Saber qualo caminho trilhado é fundamental paradescobrir, entender e analisar os fatoscom que nos deparamos.

Dessa maneira, chegou-se às ques-tões tratadas na pesquisa por meio doresgate da memória, por considerarmosque a memória nas suas diversas dimen-sões nos possibilitaria lidar com uma fon-te fértil e muito rica, que retrataria as-pectos fundamentais da história das en-trevistadas. Segundo D’Aléssio (1993, p.98) “A memória é história viva e vivida epermanece no tempo, renovando-se. Ahistória é assim o lugar da permanênciae nela o desaparecimento das criaçõesgrupais é apenas uma aparência. A me-mória é a possibilidade de recolocaçãodas situações escondidas que residem nasociedade profunda (províncias um pou-co afastadas), na sensibilidade (expres-são dos rostos).”

O resgate da memória foi possível pormeio da história oral, recurso metodológicoque permitiu reconstruir e analisar os rela-tos das entrevistadas. De acordo comLozano (1986, p. 16) “a história oral, aose interessar pela oralidade, procura des-tacar e centrar sua análise na visão e ver-são que emanam do interior e do mais pro-fundo da experiência dos atores sociais.”

A utilização de tal estratégia trouxeà tona experiências que há muito tempoestavam emersas e que poderiam su-cumbir no esquecimento. Experiênciasimportantes, na medida em que permi-tem entender dimensões relacionadas àidentidade das entrevistadas, situaçãosocioeconômica, pertencimento sexual eracial.

No entanto, trabalhar com fonte oralnão é simples, pois as recordações vêmacompanhadas de sentimentos que ex-pressam alegrias, tristezas, amarguras,esperanças, etc. Lidar com essas ques-tões exige que o pesquisador esteja atentoa fim de evitar que os relatos sejam pre-judicados pela lembrança, “daquilo que sequeria esquecer.” Como nos alertaBerramam (1975, p. 45), o pesquisador“surge diante de seus sujeitos como umintruso desconhecido, geralmente inespe-rado e freqüentemente indesejado. Asimpressões que estes têm determinarãoo tempo e a validez dos dados aos quaisserá capaz de ter acesso e, portanto, ograu de sucesso de seu trabalho.”

Desse modo, a análise das informa-ções aqui expressas pelas três graduandasnegras, em consonância com Orlandelli(1998, p. 61) procurou respeitar as dife-renças, o modo de pensar de cada uma,fator primordial para que a entrevista pu-desse transcorrer em clima de confiança ede respeito mútuo. Isto posto, na leiturado artigo espera-se que o leitor possa ob-

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servar como as diferenças são vistas nasociedade e como as pessoas que as car-regam vêem a si próprias. Uma interaçãonem sempre tranqüila, mas que é constan-temente vivida e reconstruída pelas alunasaqui retratadas, na intenção de alcançar umlugar digno na sociedade.

Alunas negras: uma questão de“raça”3 e gênero

Nos relatos dos/as entrevistados/assobre suas trajetórias escolares, pode-severificar que o preconceito e a discrimi-nação racial, na maioria dos casos, foramuma constante, quer seja em forma dediscurso ou de ações, quer pelo silêncioda escola em relação à questão racial,confirmando o que Cavalleiro aponta emsua pesquisa: “O silêncio que atravessaos conflitos étnicos na sociedade é o mes-mo que sustenta o preconceito e a discri-minação racial no interior da escola.”(Cavalleiro, 1998, 182)

No entanto, quando se comparam osdepoimentos dos alunos de ambos os se-xos, percebe-se que as lembranças dasentrevistadas remetem ao preconceito e

à discriminação racial de forma mais in-tensa e incisiva do que as lembranças dosentrevistados4. Até que ponto essa dife-rença se deve ao fato de os entrevistadosestarem imersos em uma sociedademachista é uma hipótese a ser conside-rada, pois as lembranças, atitudes e rea-ções reputadas como normais nas falasdas mulheres dificilmente aparecem nafala dos homens. Provavelmente, a pre-sença de tais reações entre os homensseria encarada socialmente como sinal defraqueza. De qualquer modo, essa maiorsensibilidade das mulheres ao preconcei-to e à discriminação racial nos remete àsquestões que vêm sendo colocadas pelosestudiosos das questões de gênero. Se-gundo esses estudos, na sociedade brasi-leira o padrão predominante nas relaçõessociais foi construído tendo como base oshomens e, consequentemente, as mulhe-res ficaram relegadas a um segundo pla-no5. Como mostram Arias e Riscarolli(1998, p. 113) “Para discutir a questãode gênero na atualidade é preciso ter pre-sente que, embora em menor freqüência,o homem ainda é considerado a norma, a

3 A utilização dos termos “raça” ou “racial” serão usados aqui, entre aspas, para se referir às caraterísticasestéticas dos indivíduos. “Embora esse conceito [raça] cientificamente trate de características biológi-cas dos indivíduos e por isso denote as características genéticas (genótipo), costuma-se considerarcomo sendo atributos raciais, as características externas (fenótipo): cor da pele, altura; tipo de cabelosetc. Apesar de os biólogos afirmarem que as raças não explicam as diferenças existentes entre oshomens – ou seja, que as raças são insignificantes ou irrelevantes, do ponto de vista genético, paraexplicar a distinção entre grupos humanos -, as características fenotípicas são entendidas como dife-renças raciais pelo sujeitos envolvidos nas relações que mantêm entre si.” (Valente, 1998, grifos daautora).4 Algumas características nas histórias de vida das alunas e dos alunos se diferenciam, quando se levaem consideração o grau de preconceito e discriminação a que ambos foram submetidos, sendo que asmulheres foram as que mais sofreram nesses aspectos. Esse ponto mostra-se análogo ao encontradona pesquisa de Teresinha Bernado (Bernardo, 1998, p. 14).5 A valorização do masculino em detrimento do feminino é uma relação que vem sendo construídahistoricamente. Para demonstrar essa dominação, Montserrat Moreno utiliza o termo “androcentrismo”.Segundo a autora, “androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como ocentro do universo, como a medida de todas as coisas, como o único observador válido de tudo o queocorre em nosso mundo, como o único capaz de ditar as leis, de impor a justiça, de governar o mundo.É precisamente essa metade da humanidade que possui a força (o exército, a polícia), domina os meiosde comunicação de massas, detém o poder legislativo, governa a sociedade, tem em suas mãos osprincipais meios de comunicação e é dona e senhora da técnica e da ciência.” (Moreno, 1999, p. 23).

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mulher diversa da norma.”

As atividades profissionais exercidaspelas mulheres sempre foram consideradasde menor importância dentro do contextosocial. Nesse sentido, Rosemberg (2000, p.131) reportando-se a Isquierdo lembra-nosque essa autora considera que o “precon-ceito diante das diferentes capacidades dasmulheres e dos homens (que conceituacomo sendo sexismo) é acompanhado deuma concepção hierárquica de dominaçãode gênero masculino sobre feminino. As ca-pacidades específicas das fêmeas têm a vercom atividades de gênero consideradas desegunda ordem para o funcionamento e de-senvolvimento da sociedade, precisamenteas relativas à produção da vida humana. Asatividades específicas dos machos, relativasà produção e administração das coisas, con-sideram-se fundamentais, de primeira or-dem. A partir dessa valorização distinta domasculino sobre o feminino constrói-se umahierarquia de gênero.”

Enfim, o debate em torno do gênerogerou discussões e trouxe à tona aspectosque a sociedade considerava naturais. Aposição subalterna ocupada pelas mulhe-res, a desvalorização social a que estas fo-ram relegadas bem como a contribuição dasdiversas instituições sociais para a repro-dução e manutenção dessas desigualdadesforam severamente denunciadas. Nessecontexto, a escola como uma instituição queexerce papel fundamental na formação dosindivíduos acaba sendo, em determinadosaspectos, produtora e reprodutora dessadesigualdade. Como afirma Bernardes(1998, p. 228) “O reconhecimento de que

a escola não apenas reproduz ou reflete asconcepções de gênero e sexualidade quecirculam na sociedade, mas ela própria asproduz, leva ao entendimento de que a pro-posta objetiva e explícita da escola é a cons-tituição de sujeitos masculinos e femininosheterossexuais”. (Grifos da autora).

O conteúdo escolar transmitido aosalunos/as configura-se como um dos pon-tos fundamentais desse processo de re-produção das desigualdades de gênero.Além disso, a ausência da discussão dequestões de gênero no contexto escolarfaz com que essa instituição transmita aosalunos um saber único, sem levar em con-ta as diferenças. Segundo Moreno (1999,p. 69) “Com a boa intenção de oferecer omelhor para seus alunos, as professorase os professores mais experientes, paraevitar discriminações, apresentam ummodelo único para alunos e alunas, que éo mais valorizado socialmente, ou seja, omasculino, eliminando radicalmente, aofazer isso, o modelo feminino. Não tra-tam de criar um modelo novo que integreo positivo de cada um e recuse o negati-vo, mas tornam o masculino como o me-lhor e ignoram a existência do feminino.”

Por outro lado, as desigualdades ra-ciais que mantêm o negro no nível de umacidadania de segunda categoria e relega-oa posições sociais inferiores à dos bran-cos, na sociedade brasileira6, tem sériasconseqüências para a mulher negra, namedida em que ela sofre dupla discrimina-ção, por ser mulher e por ser negra. Comolembra Whitaker (1995, p. 43) “... meni-nas negras sofrem agressões ainda mais

6 A referência ao conceito “cidadania de segunda categoria” está baseada nas considerações de Hanchard.“Assim, embora em alguns casos se aplique o velho ditado brasileiro de que dinheiro embranquece,também é verdade que a negritude mancha. Isso nos leva a outro modo de entender a maneira como aesfera pública, o espaço público são privatizados – pela forma que seus sujeitos ou cidadãos privilegiadosdiscriminam publicamente os menos privilegiados. Até em circunstâncias em que a cidadania é um dado,como no Brasil contemporâneo, algumas pessoas são consideradas cidadãs de segunda classe em relaçãoa outras. O preconceito racial não é apenas afirmado em particular, mas também invariável e publicamen-te articulado e, em algum nível sancionado.” (Hanchard, 1996, grifos do autor).

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violentas à sua auto-estima, como resul-tante de dois vetores de desvalia fortesem nossa sociedade: raça e gênero.”(Grifos da autora).

Além dessas duas dimensões, há quese considerar ainda a posiçãosocioeconômica da mulher negra, em ge-ral, desfavorável. Desse modo, a mulhernegra é portadora de três atributos quepodem ser alvos de possíveis discrimi-nações. “Na verdade, há uma situaçãode marginalização da mulher negra, es-condida por detrás do mito da democra-cia racial que não permite que se enxer-gue que ser mulher, negra e pobre podesignificar ser muito mais discriminada emrazão de gênero, etnia e classe social.”(Jesus, 2000, p. 40)

Na análise das entrevistas procurar-se-á, portanto, captar como as alunaslidam com essas dimensões para que nãose tornem obstáculos que as impeçamde alcançar os objetivos profissionais epessoais pretendidos para o futuro.

Inicia-se o processo escolar

Nos primeiros anos escolares dasentrevistadas, foram várias as novida-des, algumas boas e outras nem tanto.O estar freqüentando uma instituiçãoeducacional era motivo de deslumbra-mento e descobertas, um novo mundosurgia em suas vidas. Novas amizades,novas brincadeiras, novos conhecimen-tos e o contato com um processo queseria marcante para a sua colocação fu-tura na sociedade, a educação. Porém,se a escola propiciou momentos positi-vos, observa-se também o contrário,pois a discriminação foi algo que se apre-sentou de forma marcante.

Acho que a partir dos sete anos, vocêcomeça a ver as diferenças, era bastanteengraçado, tinha época que eu não que-

ria ir muito não, porque principalmentemenina, chamavam: “ Macaca, medusa”.

Porque na época eu usava trança. Nocomeço isso não existia, mas no meiose acentuou. (...) Por causa de uma cenaque teve, eu discuti com o menino, umacoisa boba de brincadeira e aí todos osmeninos se rebelaram contra mim, co-meçaram a me xingar: “Sua neguinhasarará”. Era muito que eles falavam.“Neguinha macumbeira, sua macaca enão sei o que...” (Renata)

Nessa idade não sentia o preconceito,nem sabia o que era na realidade, aí eufui para outra escola, mudei, fiz a 3ª e4ª séries, aí comecei a sentir mais, meucabelo como eu tinha cortado, eu usa-va ele todo armado, sabe? Ele era com-prido e me chamavam de bruxa, deneguinha, de várias coisas. (Débora)

Lembro de uma vez que um menino mechamou de negrinha, a professora ti-nha saído da sala, aí eu taquei o estojonele. (Mariana)

Os relatos, tanto de Renata como deDébora, mostram que ambas foram víti-mas de discriminação racial em razão dasua aparência física, situação já apontadaem outras pesquisas, como a de Oliveira(1994, p. 41): “Notamos também que al-guns motivos que levavam algumas crian-ças a ser violentamente discriminadas pe-los colegas era o fato de terem traços físi-cos de negritude bastante ressaltados. (...)Comentários, piadas e chacotas eram fei-tos envolvendo essas crianças e a ques-tão da negritude.”

Tal fato pode ter ocorrido porque nor-malmente o padrão de beleza vigente sebaseia nas características físicas do bran-co europeu e isso faz com que as criançasnegras sejam vistas pelas demais comoas diferentes, as que têm característicasexóticas e, por isso, podem ser alvo de

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chacota e apelidos pejorativos7: nas en-trevistas, o termo “medusa”, referência aocabelo de Renata, associa-o ao da perso-nagem grega que assustava e transmitiamedo; “macaca”, lembra o animal vistocomo primitivo e selvagem; “macumbei-ra”, aquela que por meio de ritos diabóli-cos usa de feitiço em forma de despachopara desejar e fazer o mal aos outros, poistais rituais seriam derivados de seitas afri-canas8; “bruxa”, apelido dado a Débora,compara-a às personagens de histórias emque uma mulher de aparência “feia”, nor-malmente de cabelo armado, causa pâni-co e medo. Cavalleiro (1998, p. 120) cha-ma a atenção para as conseqüências detais atos: “A inculcação do estereótipoinferiorizante visa reproduzir a rejeição asi próprio, ao seu padrão estético, bemcomo aos seus assemelhados. (...) Ainculcação de uma imagem negativa donegro e de uma imagem positiva do bran-co tende a fazer com que aquele se rejei-te, não se estimule e procure aproximar-se em tudo deste e dos valores tidos comobons e perfeitos.”

É importante assinalar que nos trêsrelatos aparece o termo “neguinha” queem situação normal não teria conotaçãopejorativa, pois não haveria problemalembrar uma característica da pessoa.Porém, nas situações relatadas, não é issoo que ocorre. O termo vem carregado deum sentido pejorativo e lembra as teoriasracistas que consideravam o negro comofeio e inferior, numa demonstração de queo sentido de uma palavra não é unívoco,

estando atrelado às diferentes significaçõesque o contexto lhe atribui. Oliveira (1994,p. 29), comentando Vygotsky, chama aatenção para o fato de que o significado éo resultado de uma construção social. Aorelacioná-lo às definições, tal como seapresentam no dicionário, coloca-o comoum conteúdo semântico, de natureza con-vencional e relativamente estável, quepermeia as interlocuções e possibilita a pro-dução de sentidos. Por outro lado, o sen-tido da palavra é apresentado como umtodo complexo, fluido, dinâmico que temvárias zonas de estabilidade desigual.(Grifos da autora)

Mas, voltando aos relatos, fica evi-dente que as alunas tinham a noção docaráter pejorativo, embora a reação decada uma delas tenha sido diferente. As-sim Renata diz:

(...) não queria ir para a escola por cau-sa disso, não queria ir de jeito nenhum.Mas, fui me acostumando, me acomo-dando, teve uma hora que eu já nãoligava. Lembro que teve um período queparei de falar com todos os meninos daescola, não falava com menino nenhum.

Inicialmente, Débora brigava, depois,passou a usar estratégia semelhante à deRenata, isto é, não se incomodar:

Eu era muito briguenta, só que eu ti-nha amigas brancas e elas ficavam domeu lado, geralmente eles me xinga-vam do nada, se a gente estava comalguma briga eles começavam a xingare falavam alto. Mas nessa época eu não

7 Em sua pesquisa, sobre a questão da identidade em contexto escolar Oliveira (1994, p. 91) observouque as meninas eram alvos freqüentes de discriminação racial verbalizada por parte dos meninos. “Asmeninas que eram alvos freqüentes de xingamentos por parte dos meninos eram as pretas. Feia,fedorenta, filhote de urubu, macaco eram algumas referências feitas a elas.” (Grifos da autora).8 O uso pejorativo do termo “macumbeira” pode, de maneira análoga, mostrar a herança, provinda davisão deturpada que se tinha dos rituais afro-brasileiros nas primeiras décadas do Séc. XX; “...essesacontecimentos eram alvos de perseguições e discriminações: coisas de preto, macumba, era malfeitoque emergia dos atabaques, segundo a leitura oficial.” (Bernardo, 1998).

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ligava, isso não me atingia muito, euacho, pelo menos não lembro de terchorado. (Débora)

Mariana, no episódio relatado, age deforma mais violenta contra o menino,“taquei o estojo nele”.

Em outros momentos, a escola, paracriar um ambiente agradável para a apren-dizagem de seus alunos, promove festivi-dades. Momentos de grande alegria edescontração de todos, festeja-se umadata especial, um evento cultural ou, ain-da, realizam-se jogos. Porém, esses acon-tecimentos podem não ser alegres paratodos os alunos, na medida em que al-guns acabam se deparando com experi-ências desagradáveis. Os traços físicos dasalunas negras podem se constituir em em-pecilho para que participem plenamente detais festividades, na medida em que sãorecusadas pelas demais ou, mesmo queisso não ocorra, receiem que possa vir aocorrer, tendo em vista a consciência danegatividade que sua aparência despertanos demais alunos.

Lembro que quando tinha festa juninaeu morria de medo, sabe? De não serescolhida para dançar, naquele momentoeu lembro que eu ficava receosa, massempre tinham alunos negros e eu sem-pre ia dançar com os negros. Eu eramuito amiga deles, ficava no fundo, ba-gunçava bastante e tinham uns negrosque também bagunçavam e eu juntocom eles e tal. (Débora)

Acho que em época de festa junina osmeninos nunca queriam dançar com anegra, né? Tem uma foto lá em casaque eu estava dançando com esse me-nino que era meu amigo, nem sei seera bagunça que a gente fazia.

Esse menino era do tipo dessas pes-soas que falam: “Nunca passou pela mi-nha cabeça a minha cor”.

Posso dizer que ele era mestiço, danceicom ele, isso eu lembro. É difícil, osmeninos sempre querem dançar com asbrancas... (Mariana)

Esses fatos demonstram que noseventos em que seriam formados pares,os meninos tinham maior predisposiçãopara escolher as meninas brancas, “nun-ca queriam dançar com a negra”. A meni-na negra nunca é o par ideal, tendo emvista a maneira preconceituosa como suascaracterísticas físicas são consideradas,questão análoga à observada em pesqui-sa desenvolvida por Oliveira (1994, p. 21):“A marginalização, a exclusão e o conflitomarcavam a relação entre essas crianças[negras] e as outras: alguns alunos nãoqueriam se sentar nem realizar ativida-des escolares com elas.”

A alternativa encontrada pelas alu-nas era dançar com o amigo, “aquele queacompanhava na bagunça no fundo dasala”, “um mestiço”, “um negro”. Entre-tanto, o fato de o menino negro do fundoda sala se constituir a alternativa para aformação do par, além de mostrar umacerta solidariedade entre as crianças quese identificavam com traços físicos co-muns, também demonstra a separaçãoespacial a que a criança negra é submeti-da no interior da sala, o que terá comoconseqüência a sua associação à bagun-ça, aquilo que é pouco valorizado.Cavalleiro (1998, p. 150) refere-se aessa separação espacial: “... a criançanegra (...) é um indivíduo diferente naescola, o qual tem um espaço demarca-do que não é o lugar comum onde seencontram as demais crianças. Ela équase sempre a mais briguenta, a maislevada”. (grifos da autora).

Se esses fatos negativos estão pre-sentes e são responsáveis por uma sériede humilhações e traumas, poder-se-ia

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perguntar o que os professores, a escolae os pais fazem para lutar contra isso:

[Quanto ao enfrentamento desses pro-blemas] Olha! Os professores não lida-vam com essas questões, pelo menosque eu lembre, nunca tive um profes-sor que falasse: “Oh, Renata, não liga,tenha orgulho”.

Nunca tive isso, pelo menos da 1ª à 4ªsérie. Quanto aos meus pais, sim! E mi-nha irmã mais velha, eles sempre pedi-ram calma e para não me importar comisso: “Você é negra, isso não tem pro-blema nenhum, tenha orgulho por isso”.

Quando me chamavam de feia, eles fa-lavam que eu era bonita e assim iamcontornando a situação. (Renata)

As palavras de Renata demonstramque os problemas “raciais” que enfrenta-va na escola não eram debatidos. Os pro-fessores não comentavam e não lhe da-vam nenhum apoio. Tampouco, procura-vam auxiliá-la na formação e manuten-ção de sua auto-estima, mostrando queas diferenças estéticas dos alunos eramnormais e que cada um deveria ter orgu-lho de si próprio. Porém, o pai e a irmã daentrevistada agiam de forma contrária àescola apoiando-a, aconselhando-a a en-frentar as discriminações e estimulando-a a não se deixar desvalorizar por essesacontecimentos, enfim, a ter orgulho deser negra e a aceitar essa condição comoalgo normal e positivo:

[Quanto à reação dos professores] nãolembro muito, lembro de uma profes-sora que eu amava, Dona Eleonor, queconhecia meu pai desde criança, era umamulher idosa, mas eles nunca tocavamnesse assunto. Para eles era como senão existisse o problema. Lembro queela tratava a gente como iguais. Tantoé que ela gostava muito de mim, sem-pre estava me elogiando e tal. Para ela

era como se eu fosse igual aos outros,só que por outro lado, ela sabia que ha-via o preconceito e não tocava no as-sunto, era como se não houvesse: É coisade criança e não sei o que, diziam eles.(Débora)

Na lembrança de Débora, os proble-mas que enfrentava na escola não eramdiscutidos. A sua professora, Eleonor, ape-sar de tratar “todo mundo igual”, acabavanão reconhecendo as especificidades deseus alunos, tanto é que sabia da exis-tência de preconceito, mas “não tocavano assunto”. Esse fato é semelhante aoobservado por Gonçalves (1987, p. 27),que, por sua vez, chama atenção para oparadoxo implícito nessa maneira de agir“...esses mesmos professores defendiamum discurso sobre um tratamento igual atodos os alunos. Esse discurso, porém,introduzia, no quotidiano escolar, um pa-radoxo, pois, em lugar de superar os pro-cessos discriminatórios frente à popula-ção negra, preconizando o tratamentoigual a todos os alunos, acaba revelandouma das formas pelas quais a discrimina-ção racial se manifesta na escola”. (Grifosdo autor).

Por outro lado, tanto para a profes-sora como para o pai de Débora, os pro-blemas que ela enfrentava não eram con-siderados como algo sério, seriam ape-nas “coisa de criança”. A atitude de am-bos desconsiderava a capacidade de ascrianças reconhecerem os diferentes ereproduzirem contra eles os preconceitosadquiridos nas relações mantidas no meioem que vivem. Elas talvez não tenhamnoção da gravidade de seus atos, massabem o que vem a ser uma ofensa a ou-tra criança.

Estudiosos argumentam que mesmoantes de freqüentar a escola, as criançasjá sabem que as pessoas são discrimina-

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das conforme a sua cor e, nesse sentido,propõem que o racismo seja discutido des-de os primeiros anos de escolaridade9.

Passados cinco anos, o processoescolar continua

Ao nos reportarmos à fase posteriorda trajetória educacional das entrevista-das, 5ª à 8ª séries, percebe-se que osproblemas ligados à questão racial conti-nuam presentes. Embora em algumas oca-siões eles não sejam tão evidentes, emoutras, as entrevistadas sentiram o pesoque representa ser mulher e negra emuma sociedade que não sabe trabalharcom as diferenças de “raça” e gênero.

Assim, tanto na maneira como asentrevistadas se relacionam com os de-mais alunos, como nos seus relaciona-mentos afetivos, pode-se perceber a for-ma sutil do preconceito racial em relaçãoà sua aparência física:

Nessa época era engraçado, eu só merelacionava com negros. Na 1ª série aminha amiguinha era branca, morava per-to da minha casa. Já quando eu estavana 5ª até a 8ª série as minhas melhoresamizades eram entre negros, acho quecomeçou a pintar esse lance de identida-de, essa coisa da formação da identida-de, uma coisa da adolescência. Eu procu-rava um grupo de iguais, então, era sem-pre entre os negros e negras. Os namo-radinhos eram sempre os negros, né? Asamizades eram nesse grupo. (Renata)

Eu cheguei na 5ª série, já tinha come-çado a adolescência, aí você começa apaquerar, ver os meninos e não sei oque. Comecei a perceber que as meni-nas loiras, as branquinhas, tinham muitomais possibilidades que eu e raramente

os meninos ficavam interessados pormim e quando ficavam, não eram aque-les meninos cobiçados que eu queriaque ficassem, entendeu?

(...) Estava no SESI na 5ª e 6ª séries,tinha colegas, não tinha amigos, amigosassim mais próximos. Acho que isso, umpouco, era por causa da cor. (Débora)

As meninas da escola, lembro que elaspassavam em casa para gente ir paraescola juntas e nós voltávamos juntas.Mas a gente percebe - todas elas erambrancas - que entre elas tinha preferên-cia de amizades. Você sempre fica namargem, é amiga, mas não é tão ami-ga, era só para a escola mesmo. Ir àcasa, acho que eu ia à casa delas algu-mas vezes, muito difícil elas irem emcasa. Para fazer trabalho eu ia à casadelas, na escola era assim.

(...) Dessa fase lembro que as meninascomeçavam a namorar e eu não. Naescola tinham as paquerinhas e eu não,isso me lembro, é a época que as meni-nas estão começando a paquerar e eunão, é isso mesmo. (Mariana)

As amizades das entrevistadas se di-ferenciavam. Renata, apesar de ter tidouma amiguinha branca na primeira série,passou a ter colegas negros/as como osseus melhores amigos/as. A identidade“racial” estava se constituindo e, conse-qüentemente, a afinidade e uma certasolidariedade “racial” entre os iguais.Débora, por sua vez, estava num momentoem que não parava para pensar em as-suntos relacionados à sua aparência físi-ca, “queria brincar”, mas sentia que aausência de amigos mais próximos “erapor causa da cor”. Mariana tinha comocompanheiras no trajeto de ida e volta daescola amigas brancas, mas se sentia à

9 Ver a respeito o trabalho “Rosas e pintinhos ensinam tolerância”, desenvolvido pela professora AnaLúcia Sena nas turmas de educação infantil da Escola Oliva Ensino, em Campo Grande (MS) (Regina,1999).

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margem. Era apenas uma amizade super-ficial, pois as outras meninas preferiaminteragir entre elas.

Essas situações mostram como o fa-tor “racial” está presente nas amizades,pois o melhor amigo das crianças bran-cas, normalmente, não está fora do seugrupo “racial”, o “amigo” negro será con-siderado em poucos momentos e de for-ma superficial10.

Observando-se os primeirosenvolvimentos afetivos das entrevista-das, nota-se que Renata, devido à pro-cura por um “grupo de iguais”, teve na-moradinhos negros; Débora começa apaquerar, mas percebe que “as meninasloiras, as branquinhas” eram mais pro-curadas e ela não despertava o interes-se dos meninos que cobiçava. Os que seinteressavam por ela não eram os seuspreferidos. Já Mariana lembra que nessafase enquanto as outras meninas co-meçavam a “paquerar”, ela não se en-volvia nesse tipo de relacionamento.

Esses fatos mostram que os relacio-namentos afetivos são permeados por di-versos fatores e um deles é a aparênciafísica que deve estar de acordo com de-terminado padrão de beleza. O termo apa-rência, segundo Fry (1995/1996, p. 126),“é apropriado porque é muito usado noBrasil e porque foge de qualquer apriorismoracial. Como a beleza está no olhar dequem vê, a aparência não é nunca objeti-va. É sempre um juízo de valor, possibili-tado pelas categorias culturais e pelas par-

ticularidades sociais de quem olha e dequem é visto.” (grifos do autor).

Peter Fry, ao argumentar que a apa-rência foge de qualquer apriorismo racial,chama atenção para um discurso ambígüo,pois mostra que a percepção da aparênciase baseia em juízos de valor que podemser influenciados pela “raça”. Assim, as en-trevistadas, ao serem preteridas nos mei-os que freqüentavam, de uma forma oude outra, são submetidas à preferência quepossivelmente não recai em pessoas comfenótipo do grupo ao qual elas pertencem,ou seja, o grupo negro.

Tendo em vista tal fato, poder-se-iaperguntar: Gosto é gosto? A resposta maisprovável seria não. Os gostos não surgemsimplesmente do nada, são baseados emdeterminados padrões vigentes e as pes-soas que não correspondem a esses pa-drões podem ser excluídas ou ter poucaaceitação. Nesse sentido, pode-se dizerque os gostos também são direcionadose mediados pela cultura e pela “raça”.

Pelos relatos, observa-se que a es-cola se assemelha à sociedade, ao ofere-cer condições desiguais para os indivíduosque a freqüentam, inclusive no aspectoafetivo, na medida em que as oportunida-des de amizades e de relacionamentosafetivos oferecidas às entrevistadas sãomais escassas ou nulas, quando compa-radas às pessoas de grupo “racial” que di-fere do delas.

No entanto, poder-se-ia questionar que

10 Contar com um círculo forte de amigos é importante para quebrar barreiras no mercado de trabalho,que se apresenta extremamente excludente e que seleciona parte de seus integrantes por critériosque não se ligam diretamente à capacidade profissional. “Como muitos observadores notaram, a vidabrasileira baseia-se em relacionamentos, trocas e favores pessoais, em um grau maior que nos Esta-dos Unidos (onde é claro essas interações, muitas delas também ocorrendo em clubes sociais e orga-nizações cívicas, não são de modo algum insignificantes). Os antropólogos descreveram as redessociais mais amplas através das quais os membros da classe média brasileira mantêm e cultivam asrelações pessoais que são indispensáveis para abrir o seu caminho em um ambiente difícil e intensa-mente competitivo.” (Andrews, 1998, p. 267).

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a aparência física é um aspecto importantedas relações sociais, independentemente dosexo e da “raça” das pessoas, não afetan-do exclusivamente a menina negra. Essa in-terrogação pode ser parcialmente verdadei-ra, pois muitos indivíduos, independentemen-te de sua “raça” ou sexo, passaram por si-tuações análogas. Porém, quando se ob-serva como a sociedade cria expectativaspermeadas pela condição racial e pelo sexo,percebe-se que esses fatores podem exer-cer influência. Segundo Whitaker (1995, p.42), “Aspirações também se fundamentamem expectativas. Meninas são treinadas des-de muito cedo para o exercício da beleza.Nada de errado, se o conceito de belezafosse mais natural. O que se observa, po-rém, é que os maiores elogios à beleza dasmeninas se prendem ao fato de estaremlimpinhas, perfumadas ou artificialmente en-feitadas (o que implica ausência de movi-mento). (...) Quanto aos meninos, serãoelogiados e admirados pela sua esperteza,o que significa usar roupas práticas, andarsujos e desgrenhados, se necessário. Há umprazer indisfarçável no discurso de pais emães quando contam travessuras dos me-ninos. A um observador atento não esca-pará a sutileza com que estimulam tais fa-çanhas nem o enlevo com o qual apontama suavidade das meninas.”

Algumas situações descritas pelasentrevistadas remetem a essa questão:

Minha mãe é cabeleireira e eu sempreia bem bonitinha para a escola, com astrancinhas, fitinhas no cabelo e roupinha

bem passada, né? Talvez eu me sentis-se melhor que as outras crianças porcausa disso e as outras se sentisseminferiores, aí tive muita briga. Não eraem torno da questão racial, era social,é até engraçado a gente entender, masisso lá faz muita diferença. (Renata)

No caso citado, pode-se observar quea mãe procurava manter Renata bonita,valorizando assim sua auto-estima. No en-tanto, se isso ajudava em determinadosaspectos, atrapalhava em outros, pois, pelofato de estudar em uma escola da perife-ria favorecia o atrito com outras crianças.O exemplo, por sua vez, mostra a pressãosocial que recai sobre a mulher, ou seja, ocultivo constante da beleza, como se fosseuma atitude natural que se espera delacomo mulher e, não, uma construção so-cial, questão também observada por Oli-veira (1994, p. 67) “Os enunciados dos alu-nos sugerem que enquanto o domínio dofeminino, por um lado, é marcado por va-lores e atitudes em que predominam a be-leza, a obediência, a quietude, as demons-trações afetivas, o fato de ser exibida e,raramente, a bagunça; o domínio do mas-culino, por outro lado, é caracterizado pelocumprimento e transgressão às regras, é odomínio da quietude e da bagunça, simul-taneamente, e, principalmente, do ser ma-cho.” (Grifos da autora)11.

No relato de Débora, a questão dabeleza aparece com mais força e cons-tantemente é relacionada à sua adscriçãoracial, o que trará problemas para sua

11 Comentando o trabalho de Silva e Justo, a autora ainda irá mostrar que “... ao discorrer sobre asituação atual da mulher na sociedade brasileira, Silva e Justo (1989) também chamam a atenção paraestas diferenças (que não são por acaso) e que historicamente têm perpassado o domínio do mascu-lino e do feminino. Centrando-se na educação familiar de meninos e meninas, apontam para a formacomo a menina é levada a se resguardar, a ser disciplinada e bem-comportada e a preocupar-se maiscom a sua aparência física (a beleza) do que com o desempenho acadêmico. Em outra direção, desta-cam-se a educação dos meninos, afirmando que eles são incentivados a ir para a rua e enfrentardesafios – por intermédio de valores e atitudes associados à coragem e determinação, e a desenvolveruma identidade autônoma.” (Idem, ibidem, p.67-68 Grifos da autora).

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auto-estima e identificação como negra:

[Sobre a questão racial] não tinha co-nhecimento nenhum, só sabia que eranegra, isso eu sabia, meu pai nunca fa-lou que eu era morena, às vezes eu fi-cava assim:

- Por que eu não nasci branca?

Eu ficava me questionando, achava quetudo ia ser mais fácil, paquerar seriamais fácil, as pessoas iriam gostar demim mais fácil, achava que tudo ia sermais fácil.

(...) era horrível, sentia-me muito feianessa época, nossa! Sentia-me horrível,puxa! Minha irmã também passou porisso, eu me sentia gorda, usava apare-lho nos dentes, não gostava do meucabelo. Foi uma época muito ruim paramim, foi uma época que eu não gostavada minha cor, não gostava, não gostavade jeito nenhum.

Na 8ª série consegui a medalha de me-lhor aluna. Foi uma vitória para mim,meu pai foi lá, eu posei com a medalhae me achava o máximo. Então, era essaforma de me sobressair, porque eu meachava horrível, achava-me um lixo. Euera inteligente, as pessoas me achavaminteligente, o que acontecia? Os profes-sores me elogiavam, todos os professo-res falavam que a Débora era isso, aDébora era aquilo, eu adorava, isso paramim era meu sentido de vida. (Débora)

A rejeição de Débora à sua cor, aoseu porte físico, ao seu cabelo, mostra quea beleza física para ela não correspondiaàs suas características físicas e, sim, aopadrão do grupo “racial” diferente do seu,pois o modo como se refere à sua cor eao seu cabelo demonstram isso. Para ela,ser branca e ter cabelo diferente do seu,provavelmente liso, lhe possibilitaria re-alizar seus desejos e lhe propiciaria umamaior aceitação, tanto por parte dos ou-

tros como de si mesma.

Os fatores que impulsionaram Débo-ra a construir uma imagem negativa de simesma não são de natureza individual e,sim, social. Certamente eles tem sua ori-gem no preconceito racial que durantemuitos anos foi sendo introjetado por elae, nesse momento, vêm à tona desven-dando sua face cruel.

O estudo de Gomes (1996, p. 77),mostra como o padrão de beleza branco éo que vigora na escola. “... desde o inícioda trajetória escolar, a criança [negra] sedepara com um determinado tipo de au-sência, que a acompanhará até o cursosuperior (isto é, para aquelas que conse-guirem romper com a estrutura racista dasociedade e chegar até a universidade):a quase inexistência de professoras e pro-fessores negros. A criança negra se de-para com uma cultura baseada em padrõesbrancos. Ela não se vê inserida em livros,nos cartazes espalhados pela escola ouainda na escolha dos temas e alunos paraencenar números nas festinhas. Onde querque seja, a referência da criança e da fa-mília feliz é branca. Os estereótipos comos quais ela teve contato no seu círculode amizades e na vizinhança são maisacentuados na escola, e são muitos maiscruéis.”

Débora, por ter uma baixa aceitaçãode si mesma, se satisfazia em ser elogia-da por sua capacidade intelectual e, nes-se aspecto, sentia-se aceita pelos amigose professores. No entanto, a imagem físi-ca que desejava para si ultrapassava ocampo das suas possibilidades, o que adeixava bastante inconformada pois a suanoção de beleza se pautava pelo padrãoestético aceito pela maioria, ou seja, opadrão predominante no segmento queocupa lugar de destaque na sociedade.Assim, a noção de que o Brasil apresenta

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um padrão de beleza feminino que tam-bém valorizaria a mulher negra, na figu-ra da mulata, é muito frágil e paradoxal,como observa Inocêncio (1995, p. 29)“Todavia, ainda que se queira reforçar osatributos de uma estética ocidental, elaacaba tendo, no Brasil, aspectos contra-ditórios. Senão vejamos. No imagináriomasculino brasileiro a mulher ideal pos-sui uma aparência européia, muito em-bora o seu arquétipo seja o da mulherafricana. Em outros termos, não bastaque a mulher seja branca, é preciso sê-la, possuindo uma estrutura corporal egestual de mulher negra. Não nos iluda-mos, porém, acreditando que isto sejafruto de uma consciência masculina de-mocrática. O que ocorre é uma interfe-rência não prevista no percurso da cul-tura hegemônica, e mostra que aafricanidade também habita, de certa for-ma, a construção da identidade nacio-nal, embora falsa, dissimuladora e racis-ta. Este é um paradoxo do qual poucosse dão conta.”

Certamente todo esse contexto devalorização da estética branca contribuiupara que Débora desenvolvesse uma bai-xa estima da sua adscrição racial. Ela so-mente irá mudar quando passa a freqüen-tar uma escola particular que procuravaestimular os alunos à crítica e à valoriza-ção das diferentes culturas e “raças”. Ou-tro ponto que também contribuiu para essamudança foi a valorização pessoal que elasentiu após ser aceita por um grande nú-mero de pessoas. O relato de Déboramostra, por sua vez, como a identidade éinfluenciada pelo meio social e está emconstante mudança12.

No 2° e 3° colegial foi uma época queme descobri e comecei a me arrumarmais, ficar mais bonita e me cuidar. Co-mecei a namorar muito, tinha muitosnamorados, muita gente que mepaquerava, no cursinho também tinhavários meninos que me paqueravam. Erauma classe média, mas era de gentemais velha, diferente de quando você éadolescente. Tinha professores que mepaqueravam, mas tipo assim, não sen-tia muito preconceito porque era muitopaquerada e muito elogiada, muito tudo.(Débora)

Enfim, as situações discriminatóriasvividas por Renata, Débora e Mariana porserem negras e mulheres evidenciam oduplo peso social que recai naqueles quecarregam atributos pouco valorizados nanossa sociedade.

Cursos universitários e profissõesfemininas?

Outra questão a ser investigada natrajetória das entrevistadas é como o cur-so escolhido foi se configurando comoopção, dado que freqüentam cursos con-siderados femininos, não só pelo grandecontigente de mulheres mas porque ascarreiras a que habilitam exigiriam desuas profissionais atributos relacionadosao sexo feminino.

Os relatos abaixo reportam-se às pre-tensões profissionais das entrevistadas nosanos iniciais de sua escolaridade:

Nossa! Eu já quis ser de tudo, eu sem-pre gostei muito de dançar e sabia queia fazer isso por muito tempo. Mas, nãosabia que existia faculdade de dançanaquela época. Então, já pensei assim,

12 Segundo Guareschi, (1999, p. 12) “A política de identidade é, em si mesma, uma entidade que estáconstantemente se movendo e mudando e sendo continuamente reconstruída. Tudo isso significa quea política de identidade não deve ser somente branca ou feminina, mas que raça, gênero e sexualidadetêm uma variedade de relações maiores e que estão subjetivamente em interseção.”

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de astronauta a veterinária, coisas lou-cas. Detesto cachorro e gatos, masqueria fazer Veterinária, não gostava dejogar bola, mas queria fazer EducaçãoFísica. Sempre gostei de dançar, achoque não decidi fazer logo faculdade dedança, porque não conhecia, não sabiaque existia. (Renata)

Eu sempre queria ser médica, eu lem-bro que cogitei de ser enfermeira porcausa do chapeuzinho, achava bonitinho,mas queria ser médica, desde criançaqueria ser médica obstreta, meus paissempre incentivaram. (Débora)

Acho que me lembro da profissão gos-taria de ser nessa época, lembro que emcasa eu brincava de escolinha com mi-nha irmã mais nova do que eu. Não seise era porque queria ser professora, sin-ceramente não sei. (Mariana)

Percebe-se que as pretensões pro-fissionais na infância estavam relacionadasao mundo feminino e, por sua vez, seespelhavam em profissionais femininas. Oscasos de Débora e de Mariana são exem-plares nesse sentido: “cogitei de ser en-fermeira por causa do chapeuzinho, acha-va bonitinho”, “lembro que em casa eubrincava de escolinha com minha irmãmais nova do que eu. Não sei se era por-que queria ser professora”.

Segundo Felipe et al (1988, p. 66),“Desde a mais tenra infância, meninos emeninas são estimulados nos seus com-portamentos até mesmo nas brincadeirasonde são imitadas as funções adultas.” Noentanto, as brincadeiras não são isentasde valores sociais, pois os meninos emeninas reproduzem os diferentes papéisdesempenhados por homens e mulheresna sociedade, conforme observa Whitaker(1995, p. 40): “Julgo ter demonstrado queas meninas são mais protegidas, além deorientadas para brincadeiras que anunci-am a domesticidade. Observei, ainda que

são recompensadas (amadas) quantomais feminino for seu comportamento.Suas brincadeiras agressivas ou ousadassão interceptadas por adultos repressoresque, por outro lado, estimulam meninos àagressividade e à ação. Enquanto meni-nos chutam bolas, soltam pipas ou sim-plesmente inventam artes, as meninas sãopresenteadas com adoráveis bonequi-nhas.” (grifos da autora)

Após os cincos primeiros anos deestudo, embora as pretensões sejam ou-tras, a visão profissional das entrevista-das está em consonância com a represen-tação que vigora na sociedade sobre olugar profissional da mulher. São camposde atuação possíveis para a mulher e querepresentam um prolongamento das ati-vidades domésticas. Mesmo estando noinício da adolescência e livres para suasescolhas profissionais, não deixam de serinfluenciadas pelos papéis que a socieda-de espera das mulheres:

Tinha idéia de ser professora, só nãosabia do que, mas queria trabalhar comeducação, queria dar aula. Achava bo-nito estar lá na frente ensinando. Essafoi uma época de bastante indecisão,não tinha nada definido. (Renata)

Em relação ao que gostaria de ser, achoque não pensava. Acho que queria fazerquímica, não sei por quê. Como a gentesempre teve bicho pensei em ser veteri-nária, isso porque a gente sempre tevegato, cachorro, até hoje a gente tem.(Mariana)

Em uma fase posterior da vida esco-lar, correspondente ao antigo 2º Grau, asentrevistadas já mostram maiordiscernimento sobre o curso universitá-rio que pretendem cursar:

Comecei a pensar em faculdade a partirdo 1º colegial, eu comecei a fazer dan-ça afro por intermédio dessas minhas

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amigas que conheci na escola. Até en-tão, eu fazia ginástica, gostava de tra-balhar com o corpo, mas não tinha con-tato com a dança. Antes era muito difí-cil fazer ballet ou fazer dança, era mui-to caro, não tinha no meu bairro e nun-ca tive condições para isso. Foi no pri-meiro colegial que comecei a dançar eaí já tinha tomado conhecimento queexistia o curso. Foi na minha 7ª sérieque comecei a ficar sabendo. Depoisentrei em contato com essa menina, elame falava como era o curso e eu decidi.(Renata)

(...) Eu só queria medicina, no 3° cole-gial foi uma loucura, meu pai sempreme apoiou para eu fazer medicina, masno 3° colegial ele queria que eu fizesseAcademia, porque em Pirassununga temEscola de Cadetes da Aeronáutica e abri-ram para mulher. Meu irmão mais velhofez essa escola e segundo meu pai ébom, você estuda com um ensino muitobom, você ganha para estudar, arrumarum emprego bom e ganhar bastante di-nheiro. Era o que meu pai queria e euiria morar perto de casa. Só que nãotinha nada a ver comigo, odeio o milita-rismo, tinha pavor de horas, de regras,não tinha a ver comigo, meu pai sabia.Só que ele insistia que eu fizesse, eleestava com medo que eu fosse morarfora. Teve uma rixa muito grande emcasa, fiquei muito perturbada nos últi-mos anos, tanto pela pressão dos meuspais e tudo mais. Só que eu bati o pé eprestei tudo medicina, tudo medicina. Eunão passei, só passei na primeira faseda Unicamp, mas não consegui passarna segunda fase. Aí fui fazer cursinho,fiz cursinho, só que quando estava nocursinho comecei a pensar mais se eramesmo o que queria fazer, comecei apesquisar mais sobre medicina e tal,tudo bem. Então, comecei a pensar maissobre enfermagem, tinha pensado quan-do era bem pequena, nunca tinha pen-

sado mais profundamente. Comecei a lermais sobre enfermagem e passei a gos-tar, desencanei da medicina e presteitudo enfermagem. Quer dizer, no meiodo ano prestei Direito, passei e não fuifazer, prestei na UEL (Universidade Es-tadual de Londrina), só que não fui fa-zer. Depois passei em enfermagem naUnicamp e na USFCar, optei pelaUnicamp. Gosto muito do curso, real-mente é isso que quero fazer, tenhocerteza disso. (Débora)

Depois que terminei o colegial em 92,prestei o vestibular aqui em Lingüísticae não passei. Fiquei um ano sem estu-dar e minha mãe passou a cobrar mais.

(...) Aí que ela começou a falar mais daAna Paula. Queria que eu fosse igual àAna Paula, ela já tinha entrado na fa-culdade. Sei que em 94 prestei a PUC eentrei em Letras, mas não tinha condi-ções de pagar e saí.

(...). Comecei a dar aula para adultos,foi aí que pensei em fazer Pedagogia.Antes, quando estava no colegial nuncatinha pensado. (Mariana)

Como se observa, embora nessa faseas entrevistadas já tivessem uma deci-são em relação ao curso pretendido nãodeixaram de enfrentar problemas, o quefez que tanto Débora como Mariana mu-dassem de opção.

Débora já estava decidida a cursarMedicina, decisão que sempre contou como apoio do pai, mas este mudou de idéiaao sugerir a Escola de Cadetes da Aero-náutica, que tinha aberto vagas para mu-lheres. Essa mudança de postura deu-setanto prevendo a segurança financeira quea profissão traria para a filha, como porpossibilitar a sua permanência na cidade,ficando assim próxima da família. Esse pro-tecionismo deixa transparecer o medo quenormalmente os pais têm de deixar as fi-lhas soltas no mundo, longe de seus olha-

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res protetores que “sabem o que é me-lhor para elas”. Por outro lado, mostra queo espaço percorrido pela mulher está su-bordinado às determinações familiares e, namaioria dos casos, é mais restrito que oespaço percorrido por um membro mascu-lino nas mesmas condições.

Entretanto, mesmo na ausência deapoio direto do pai, e até criando “rixa”com ele, Débora não mudou de idéia eprestou vestibular para o curso que dese-java, ou seja, Medicina. Não tendo sidobem sucedida foi fazer cursinho, ocasiãoem que passou a pesquisar mais sobremedicina, concluindo que não era de fatoo que pretendia. Voltou-se então para aenfermagem. Antes disso, tinha entradoem Direito na Universidade de Londrina,mas não freqüentou o curso, dando a im-pressão de que apenas prestara o vesti-bular para testar seus conhecimentos.

Já, Mariana, ao terminar o antigo 2ºGrau, prestou Lingüística na Unicampmas, sem sucesso, permanecendo um anosem estudar. Devido à cobrança da mãe eàs comparações com a irmã, que já haviaentrado no curso de Música na Unicamp,começou Letras em uma universidadeparticular, porém, dificuldades financeiraslevaram-na a desistir do curso. A opçãopelo curso de Pedagogia veio após passarpela experiência de lecionar para jovense adultos, mesmo sem ter qualquer expe-riência ou preparo específico. Embora essaatividade tenha contribuído para a esco-lha, na verdade, foi uma das poucas op-ções profissionais a que teve acesso, oque mostra, de certa maneira, como omercado de trabalho limita a atuação damulher e que certas profissões considera-das femininas não demandam experiênciaprofissional, dado que a mulher teria ca-racterísticas “inatas” para o seu exercício.De qualquer modo, é importante ressaltar

que a entrevistada enfrentou diversas difi-culdades até chegar ao curso em que seencontra atualmente, dificuldades essaspresentes até nas opções que se apresen-taram “viáveis”.

A decisão final de Renata ocorre noprimeiro ano do antigo 2º Grau, após ocontato com a dança afro e com o cursode Dança. Antes desse momento, o máxi-mo que Renata fazia era ginástica, poisum curso de dança ou ballet estava longede suas possibilidades financeiras.

Considerações finais

A análise mostrou que as trajetóriaseducacionais das entrevistadas não foramtranqüilas, pois muitas vezes, além dosproblemas corriqueiros, tiveram que en-frentar o preconceito e a discriminaçãoracial. Algumas, de forma mais branda,outras, de forma extremamente forte ecruel, evidenciando, assim, como são tra-tadas as diferenças “raciais” em uma so-ciedade que muitas vezes considera a di-ferença como sinônimo de desigualdade.

Pode-se observar também que quan-to mais evidentes os traços físicos quemarcam a negritude, mais intensas e maisconstantes foram as situações de discri-minações “raciais”. As alunas negras, jánas primeiras séries de escola, foram alvode discriminações raciais, seja em formade apelidos ou de xingamentos. Normal-mente tais termos pejorativos se referiamàs características físicas, ou seja, o cabe-lo, a cor da pele, os traços faciais etc. Poroutro lado, quando se associa “raça”, sexoe situação sócio-econômica, há evidênci-as de que as mulheres podem sofrer mais.Nesse sentido, pode-se dizer que um dospontos que marcam socialmente as dife-renças de “raça” e gênero é a aparênciafísica mas, no caso, uma aparência emconsonância com o padrão branco, fato

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que em alguns momentos levou as alunasa construírem uma imagem negativa de simesma e de sua “raça”.

Todavia, se os problemas intra-esco-lares atingiram freqüentemente as alunaspesquisadas, felizmente também haviacondições que impediam que o preconcei-to e a discriminação atuassem como umestigma inferiorizante. Nesse ponto, a atu-ação da família se mostrou fundamentalpois, mesmo não tendo a solução e nãoestando preparada para enfrentar todos osproblemas encontrados no ambiente es-colar, e em muitos momentos até mesmosem condições financeira suficientes, o seuestímulo e apoio foram primordiais na for-mação educacional da alunas.

No ambiente universitário as alunasperceberam que os problemas ligados àquestão racial estavam longe de seremsolucionados. Nesse espaço, os fatoresnegativos ligados à “raça” não deixaramde estar presentes, apenas mudaram aforma como se apresentavam, num indí-cio de que a universidade, tida como ocarro chefe das mudanças, está defasa-da, no que diz respeito ao enfrentamentodas questões raciais. Pelos relatos, evi-dencia-se que o tema é pouco discutido enão é visto como fundamental para a pre-paração profissional de seus alunos mes-mo nos cursos que formarão os futurosprofessores. Um dos maiores exemplos éo caso do curso de Pedagogia, que prati-camente não aborda a questão racial. Auniversidade simplesmente se omite dian-te da questão, agindo de forma semelhanteàs instâncias educacionais que a antece-dem. Assim, a discussão racial é vista comopreocupação menor, não estando entre ostemas a serem discutidos.

Embora os problemas da educaçãopública sejam variados, a questão racialestá contida neles. Dessa forma, a mu-

dança não deve vir de maneira separada,ou seja, não se pode considerar que pri-meiramente é necessário mudar a educa-ção de forma geral e só depois pensar nosdemais assuntos ligados ou contidos nela.A melhoria da educação deve vir acompa-nhada de mudanças no tratamento daquestão racial, sendo necessário que oambiente educacional, em todos os níveis,saiba lidar, combater e transmitir de for-ma adequada a multiplicidade “racial” etodos os temas correlatos. Tais pontos sãoimprescindíveis para que a formação edu-cacional forneça condições e contribua, deforma efetiva, para a construção de umaverdadeira democracia racial.

Bibliografia

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Estudantes Negros e a Transformação dasFaculdades de Direito em Escolas de Justiça:

a Busca por uma Maior Igualdade

Cristiana Vianna Veras1

Eliane Botelho Junqueira2

Resumo

Com base em entrevistas com estu-dantes, professores e profissionais do di-reito, este artigo problematiza as seguin-tes questões: a) a transformação, aindaembrionária, do perfil racial dos estudan-tes de direito em razão da expansão doensino superior; b) a diversificação sociale racial das profissões jurídicas, um uni-verso tradicionalmente conservador e ho-mogêneo; c) a relação entre esta diversi-dade social e racial e o desenvolvimento,na formação dos futuros operadores dodireito, de uma consciência sobre as desi-gualdades raciais; e, d) o papel dessasmudanças na redefinição da concepção dejustiça, de forma a quebrar a cultura jurí-dica dominante no Brasil, uma cultura ju-rídica branca de elite inserida em umasociedade que se imagina como uma de-mocracia racial.

Introdução

Muitos estudos já foram realizados nocampo jurídico sobre o acesso à justiça3 ,

sendo também numerosos os estudos so-bre questões raciais e educação superiorno Brasil4 . As pesquisas sobre acesso àjustiça sempre enfocaram o lado da de-manda e da oferta de serviços jurídicos;nenhuma delas analisou especificamenteo estudante negro de direito.

De outro lado, não se pode pensarapenas na eficiência dos serviços presta-dos pelo Poder Judiciário. Não se podepensar nesses serviços só a partir da suainfra-estrutura material, ou seja, apare-lhamento dos cartórios, salas, computa-dores, juízes, defensores públicos e es-creventes. É necessário começar a pen-sar o profissional de direito – advogados,promotores, juízes - que irá prestar esseserviço jurídico.

Este artigo objetiva analisar5 o ope-rador negro do direito e as contribuiçõesque pode trazer para a democratização doacesso à justiça, enfatizando:

• A percepção da discriminação raci-al entre os estudantes de direito, pressu-pondo que, por estudarem o ordenamento

1 Pesquisadora no Instituto Direito e Sociedade2 Professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; diretora do Instituto Direito eSociedade.3 Sobre acesso à justiça ler Cappelletti e Garth (1988) e Junqueira (1996).4 Ver, por exemplo, Barcelos (1999), entre outros.5 Este artigo resume o relatório final da pesquisa (Veras, 2000) desenvolvida em 1999-2000, pelaprimeira autora, com orientação da segunda, a partir de entrevistas realizadas com professores, estu-dantes (especialmente da PUC-Rio) e profissionais do direito negros e da aplicação de questionários avestibulandos inscritos nos cursos para pessoas negras e carentes.

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jurídico brasileiro, estes estudantes deve-riam, mais do que os de outros cursos (comexceção, talvez, de sociologia), ter um ele-vado grau de conscientização em relação aproblemas de discriminação racial6 .

• A trajetória educacional e as pers-pectivas profissionais dos estudantes dedireito negros, principalmente a percep-ção que estes estudantes têm sobre a con-tribuição que podem dar, depois de for-mados, enquanto operadores de direito,para a democratização das instituiçõesjurídicas e, principalmente, do acesso àjustiça.

• A percepção dos estudantes negrosem relação a discriminações no momentoda profissionalização, já que, conformeMichel Turner (1992) demonstra, muitasvezes a tentativa de “embranquecimento”por meio da educação e do esforço inte-lectual não funciona.

Esta análise inclui-se na tradição,que começou a ser desenvolvida nos anos70, com a pesquisa internacional realiza-da por Mauro Cappelletti e Bryant Garth(1988) sobre acesso à justiça. Na ocasião,países de todos os continentes foram es-tudados com o objetivo de identificar osdiferentes mecanismos acionados paraassegurar o acesso à justiça.

Com base nos dados coletados,Cappelletti e Garth elaboraram a tese deque o movimento de acesso à justiçaimplementa-se a partir de ondas sucessi-vas que ocorreram em todos os países.

Primeiramente, verifica-se a preocupaçãoem garantir a gratuidade dos serviços ju-rídicos para a população de baixa renda,ou seja, para aqueles que enfrentam obs-táculos econômicos para acionar o PoderJudiciário. Experiências como defensoriapública, judicare e advocacia pro bono têmsido implantadas em diferentes paísesneste esforço de reduzir os custos dacontratação de profissionais do direito. Asegunda onda de acesso à justiçaidentificada por esses autores relaciona-se à implementação de mecanismos deproteção de direitos coletivos. Com atransformação do padrão de conflituali-dade na sociedade contemporânea, osmecanismos de proteção dos direitos in-dividuais tornaram-se insuficientes paragarantir direitos que cada vez mais setornam difusos. A terceira onda estariarelacionada com o processo deinformalização dos mecanismos judici-ais de resolução de conflitos, quer atra-vés do incentivo a agências societais,quer através da criação de juizados depequenas causas.

O Brasil, como os demais países,conheceu estas três etapas do movimen-to de acesso à justiça. No entanto, atual-mente, o tema do acesso à justiça nãopode mais ficar restrito à existência demecanismos formais. É preciso ir alémdesses mecanismos e analisar a forma-ção e as características dos profissionaisde direito que estarão encarregados defazer e de dizer essa justiça. Nesta pers-

6 Michel Turner (1992) mostra que, em pesquisas realizadas no início dos anos 70, estudantes univer-sitários tinham pouca percepção dos problemas raciais, atribuindo o menor acesso dos não-brancos aoensino universitário à diferenças sociais: “Os universitários afro-brasileiros identificavam seus interes-ses com os dos negros pobres, e declaravam que seu acesso a educação universitária - muitas vezesacarretando grande sacrifício financeiro às suas famílias - deveria ser usado para melhorar as condi-ções gerais da comunidade mais ampla. A forma de realizar este intento permanecia muito vaga, masa filosofia e os padrões ideológicos dos grupos eram bem claros; isto representava uma mudança quese passara no início da década pelos estudantes, que o processo da educação universitária deveriaservir para branquear o indivíduo, tornando-o menos preto e, portanto, mais aceitável do ponto-de-vista social, dentro da mentalidade coletiva da sociedade brasileira”.

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pectiva, Kim Economides (1997, analisan-do o tema do acesso à justiça e da cida-dania, acrescenta uma quarta onda às trêsidentificadas por Cappelletti e Garth nosanos 70. Não se trata mais, apenas, degarantir assistência judiciária, ampliar osdireitos coletivos e difusos ou informalizara Justiça. A quarta onda volta-se para oacesso dos operadores do direito à justi-ça, ou seja, para a diversificação dos pro-fissionais do direito em termos de raça egênero, principalmente, e para a constru-ção de um novo sentido de justiça a par-tir dessas variáveis.

A que tipo de justiça devem os cidadãosaspirar?

Em vez de nos concentrarmos no ladoda demanda, devemos considerar maiscuidadosamente o lado do acesso doscidadãos ao ensino do direito e ao in-gresso nas profissões jurídicas, segun-do, uma vez qualificados, o acesso dosoperadores do acesso à justiça. Tendovencido as barreiras para admissão aostribunais e às carreiras jurídicas, comopode o cidadão se assegurar de que,tanto juízes, quanto advogados estejamequiparados para fazer justiça?

O primeiro tema, portanto, é relativo aoacesso à educação jurídica, quem podese qualificar como advogado ou juiz:Quem tem acesso às faculdades de di-reito? Uma vez que as faculdades de di-reito são, invariavelmente, as guardiãesdos portões de acesso à carreira jurídi-ca, torna-se preciso entender quem temacesso a elas e em que bases. É a ad-missão governada, primariamente, se-gundo princípios de nepotismo ou demérito? Precisam os governos, os orga-nismos profissionais e os advogados in-dividualmente esforçarem-se para pro-

mover positivamente o acesso à profis-são legal de mulheres, minorias em des-vantagem e outros grupos que sejamsocial ou historicamente excluídos? Apartir dessa perspectiva, o acesso doscidadãos brasileiros à carreira jurídicadeveria ser olhado como uma importantedimensão, até mesmo uma pré-condi-ção, para a questão do acesso dos ci-dadãos à justiça. (Economides (1997)

A democratização da justiça depen-de, portanto, da democratização do ingres-so nas faculdades de direito, a partir dopressuposto de que outros grupos – mu-lheres, negros, classes mais baixas – po-deriam ter um potencial transformadorpara o próprio sentido de justiça. Defen-dendo a mesma posição, Richard Abel(1989) afirma: “the profession shouldbegin by opening its doors to all thosedesiring to become lawyers, both to allowthem to pursue their personal dreams andto increase access to legal services” 7 . ParaAbel, uma maior diversidade dos estu-dantes de direito, em termos de gêne-ro, raça e idade, contribui para tornar acultura da faculdade de direito menosmonolítica e, conseqüentemente, parademocratizar a justiça.

No entanto, uma democratização doacesso às escolas de direito a partir dadiversificação dos estudantes em termosraciais e sociais pode não garantir umademocratização do acesso à justiça nemsignificar necessariamente uma diversi-ficação dos profissionais do direito. Se,por um lado, apenas o estudante de direi-to pode ingressar na carreira jurídica, poroutro, esta inserção no mercado de tra-balho não ocorre de forma automática.Para advogar, é preciso passar no Examede Ordem. Para se tornar um promotor,

7 A profissão deveria começar a abrir portas para todos aqueles que desejam tornar-se advogados,tanto para permitir que essas pessoas persigam seus sonhos, como para aumentar o acesso aosserviços legais.

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juiz ou defensor é preciso passar nos con-corridos concursos públicos. Além do mais,o próprio processo de democratização doacesso aos cursos jurídicos contribui paraa constituição de um mercado de traba-lho saturado e, por isto, extremamentecompetitivo. Desta forma, a diversifica-ção das profissões jurídicas defendida porKim Economides (1997) e Richard Abel(1989) pode não decorrer de um proces-so de democratização do ensino do direi-to, se outras medidas não forem adotadaspara evitar os mecanismos de exclusãodo mercado do trabalho.

Por outro lado, o simples crescimen-to do número de faculdades de direito e,conseqüentemente, de estudantes negros,não parece ser suficiente para uma trans-formação substantiva na mobilidade so-cial do negro, no perfil das profissões ju-rídicas e no acesso à justiça. Outras me-didas são necessárias com vistas a segarantir que o negro ingresse não apenasem uma faculdade de direito, mas, prin-cipalmente, que ingresse em boas facul-dades de direito. Neste sentido, RichardLempert (2000) participou de uma pes-quisa, realizada em 1997/1998, sobre ascarreiras jurídicas de minorias na Univer-sidade de Michigan, uma universidade deelite dos Estados Unidos, com umprestigiado ensino de direito, cujos alu-nos costumam conseguir uma boa colo-cação no mercado de trabalho. Os resul-tados da pesquisa

... reveal that almost all of Michigan LawSchool’s minority graduates pass a barexam and go on to have careers that

appear successful by conventionalmeasures. In particular, the surveyindicates that minority graduates(defined so as to include graduates withAfrican American, Latino, and NativeAmerican backgrounds) are no lesssuccessful than white graduates,whether success is measured by the logof current income, self-reportedsatisfaction, or an index of servicecontributions.8

É, pois, necessário que seja assegu-rado aos diferentes grupos sociais – e,principalmente, à população negra, nocaso brasileiro – um maior acesso nãoapenas ao ensino superior de maneirageral, mas às boas faculdades de direito.Um passo futuro, mas que dependeriadessa maior presença de alunos negrosnas faculdades de direito e nas profissõesjurídicas seria, a exemplo do que aconte-ceu nos anos 80 nos Estados Unidos, odesenvolvimento de uma critical racetheory9 , a partir da qual o direito possaser interpretado epistemologicamente emfunção da experiência, da história e dacultura das pessoas de cor.

Aqui necessitamos abrir um parên-teses. Ao tomarmos como marco teóricoos estudos desenvolvidos nos paísesanglo-saxões sobre a importância da di-versificação dos operadores de direito parauma democratização do acesso à justiça,estamos, em verdade, trabalhando nomarco do desconstrucionismo que se se-guiu ao movimento norte-americano docritical legal studies quando este foi criti-cado porque, ao concentrar seus esforçosem deslegitimar a ideologia jurídica - in-

8 ... revelam que quase todos os graduados em direito pela Universidade de Michigan pertencentes auma minoria passaram no Exame de Ordem e exercem as suas carreiras com sucesso, segundo asmedidas convencionais. Particularmente, a pesquisa indica que os graduados da minoria (estudantesafro-americanos, latinos e nativos americanos) não são menos bem sucedidos que os graduados bran-cos, ainda que sucesso seja medido pelo salário, satisfação pessoal ou por um índice de contribuiçãodos serviços prestados.9 Alguns termos, como este, serão mantidos em inglês neste trabalho, por não existir similares no Brasil.

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cluindo-se aqui a desconstrução dos "di-reitos" conquistados pelas "minorias" nosúltimos trinta anos -, não se preocupavaem oferecer "uma receita para resolveros problemas” (Haines,1987).

Enquanto os critical scholars, em fun-ção de uma proposta comunitáriainterracial, consideram os direitosalienantes, opressivos e mistificadores,formas de garantir a propriedade e a se-gurança individual, as "minorias" perce-bem que os direitos representam um ins-trumento jurídico para evitar a opressãocotidiana, além de permitirem a organi-zação dos movimentos sociais (como ofeminista e o negro) em torno de propos-tas concretas (Delgado, 1987). Não acei-tando a perspectiva liberal e conservado-ra de uma “sociedade cega para questõesde cor”, que defende uma meritocracia apartir do pressuposto de que a batalhapelos direitos civis já foi vencida, DerrickBell (1987) sugere uma race-consciousness perspective, que trabalhea partir de uma diferença cultural. A di-mensão da raça ultrapassa a pigmenta-ção da pele e só pode ser compreendidano plano cultural, em que se distinguemdeterminadas comunidades dentro da so-ciedade norte-americana.

Utópico, idealista e imperialista, oprograma de transformação social docritical legal studies, ao rejeitar qualquerproposta reformista, traduz os interessesde um segmento social masculino e bran-co, para o qual a conquista de direitos nãoapresenta muita serventia, que pretendeensinar às minorias como estas deveminterpretar os fatos que lhes afetam (Del-gado, 1987). Pensar a realidade socialapenas como uma construção mental e aopressão como uma falsa consciência émuito fácil para os que não são cotidia-namente oprimidos. Para estes, entretan-

to, a opressão não é uma construção men-tal, mas sim uma dura realidade. Se a falsaconsciência existe, por que ela afeta ape-nas trabalhadores e minorias? Não seriaa idéia de falsa consciência um instrumen-to utilizado pelo critical legal studies parajustificar uma posição imperialista?, per-gunta Delgado (1987). No mesmo senti-do, Crenshaw (1988) observa que a do-minação racial não deriva de uma ideolo-gia que induz ao consenso, mas sim dacoerção derivada do racismo, ou, em ou-tros termos, da white race consciousness.

Seria extremamente problemático oengajamento das minorias no programacomunitário utópico do critical legalstudies pois, por um lado, a participaçãoem um projeto comunitário pressupõe oreconhecimento do indivíduo como sujei-to de direitos; por outro lado, os criticalscholars não podem oferecer qualquergarantia de que o racismo desapareceriana comunidade utópica que propõem. Aocontrário, em uma sociedade sem leis,sem direitos e sem tribunais, o racismopoderia ser muito mais difícil de ser con-trolado (Delgado, 1987). À proposta docritical legal studies opõe-se a defesa deuma sociedade formal, com mecanismosde punição para manifestações de racis-mo, com uma autoridade central céticaem relação à natureza humana e à possi-bilidade de transformações sociais idea-listas. Quanto mais distante a autoridadeestiver dos poderes locais, melhor (Del-gado, 1987).

A partir de uma perspectiva maispositiva do que a de Delgado, queradicaliza as suas críticas em relação aocritical legal studies, e não deixa abertaqualquer possibilidade de diálogo,Matsuda (1987) sugere que os criticalscholars passem a "olhar a partir de bai-xo”. Para Matsuda, assim como o critical

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legal studies tem muito a oferecer às "pes-soas de cor", também tem muito a apren-der, principalmente com vistas à elabora-ção de um programa mais construtivo queultrapasse o estágio que caracterizou omovimento como não programático,superidealizado, inacessível, cínico, nãoracional e niilista10 . Haines (1987), porexemplo, considera que apesar de o criticallegal studies ter contribuído para enfatizara necessidade de as "pessoas de cor" re-alizarem coalizões com outros gruposmarginalizados, o movimento continuasendo elitista e etnocêntrico, não conse-guindo desenvolver análises e estratégi-as contra o racismo da sociedade norte-americana:

Certamente, no Brasil estamos lon-ge de participar desse debate. Mas, sequisermos que aqui também seja possí-vel o surgimento de um movimento a par-tir do qual “different and blacker voicesspeak new words and remake olddoctrines”11 (Minda, 1995), já é tempo dese assegurar uma maior participação ne-gra em nossas faculdades de direito. Comcerteza, já houve um avanço significativonesse caminho com o pluralismo comuni-tário e participativo consagrado pela Cons-tituição de 1988 que, para se tornar efe-tivo, depende da utilização de determina-dos instrumentos – como ação afirmati-va. A atual crise da modernidade signifi-ca a construção desse pluralismo jurídicocomunitário e participativo, onde os gru-pos sociais constituem e interpretam di-reitos (Brito, 1999).

Assim, se, por um lado, a relevânciada existência de homens e mulheres ne-gros como operadores do direito para acriação de um pluralismo jurídico comu-nitário e participativo independe da pre-

sença de alunos e alunas negros nos cur-sos de direito, por outro lado, a existên-cia de estudantes negros nesses cursos épré-condição para que esta presença sejaconsiderada importante para um maiorpluralismo jurídico. Não se trata de atri-buir à população negra a responsabilida-de pela defesa dos seus direitos, que sãoos mesmos dos brancos. Entretanto, apresença de estudantes negros é funda-mental para quebrar a normalidade daausência. Como esta questão não vemsendo pensada nos cursos de direito, nempor professores, nem por alunos, ao con-trário do que ocorre, por exemplo, nosEstados Unidos, a diversificação dos es-tudantes de direito em termos raciaistorna-se imprescindível.

Metodologia

A pesquisa abrangeu estudantes ecandidatos a estudantes de direito negros,bem como professores e profissionais dedireito.

Levando-se em conta o objetivo deestudar a democratização da justiça e aconstrução de um novo sentido de justiçaa partir da diversificação racial dos estu-dantes de direito, a primeira parte dainvestigação procurou olhar os candida-tos negros ao vestibular de direito.

Esta parte voltou-se para a análise doscursos pré-vestibulares que concentram,em função de suas características e objeti-vos, estudantes negros e carentes (no Bra-sil, a variável raça é acompanhada pelavariável classe social).

O ponto de partida foi o Pré-Vestibu-lar para Negros e Carentes, que acaboulevando à descoberta de duas outras ex-periências: o Sonho Cidadão e o InVest.Apesar de não serem formalmente inte-

10 Ainda que a autora reconheça estar trabalhando com generalizações.11 Vozes diferentes e mais negras falem novas palavras e refaçam velhas doutrinas.

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grantes do movimento do Pré-Vestibularpara Negros e Carentes, estes dois últi-mos possuem características bastantesemelhantes - todos se pretendem “pré-vestibulares alternativos” e buscam ca-pacitar seus estudantes para o ensinosuperior a partir de um reforço nas maté-rias dos exames do vestibular e de umprocesso de conscientização.

Com o objetivo de analisar as carac-terísticas mais gerais dos estudantes des-ses vestibulares – e, entre eles, dos estu-dantes negros – foi aplicado um questio-nário, que permitiu abranger uma signifi-cativa amostra.

Ainda nesta primeira fase e tendo emvista conhecer a situação de estudantesnegros, oriundos desses cursos, que efe-tivamente conseguiram ser aprovados novestibular, foram realizadas onze entre-vistas com os estudantes negros de direi-to da Pontifícia Universidade Católica doRio de Janeiro (PUC-Rio).

Em outro momento, a pesquisa vol-tou-se aos professores de direito e pro-fissionais da área no universo jurídico. Asentrevistas com os professores de direitoconcentraram-se na PUC-Rio, sendo en-trevistados treze professores de diferen-tes disciplinas. Foram ainda entrevista-dos dois professores da Universidade Fe-deral Fluminense (UFF). Dos quinze pro-fessores entrevistados, seis possuem ou-tras inserções profissionais (são promo-tores, advogados, juízes etc.), permitin-do que se cobrisse um espectro mais am-plo das profissões jurídicas.

Também foram entrevistados doisprofissionais do direito que prestam as-sistência jurídica a vítimas de discrimi-nação racial no Centro de Estudo de Ar-ticulação de Populações Marginalizadas(CEAP).

Questionários

A aplicação dos questionários aosestudantes dos cursos pré-vestibularesteve como objetivo conhecer melhor oscandidatos negros que optam pelo vesti-bular em direito. Afinal, pretendendo estapesquisa analisar as possibilidades de umnovo conceito de justiça em função de umamaior diversificação racial dos estudan-tes – e, conseqüentemente, dos profissi-onais do direito, fazia-se necessário co-nhecer o perfil dos candidatos aos cursosde direito, assim como as suas expectati-vas em relação à profissão.

Ao todo, foram aplicados 92 questi-onários, distribuídos em:

• três núcleos do Pré-Vestibular paraNegros e Carentes, um localizado em SãoJoão do Meriti (RJ), um em Duque deCaxias (RJ) e outro na Tijuca, bairro dacapital do estado do Rio de Janeiro;

• duas turmas do Sonho Cidadão, quefunciona aos sábados no Colégio Estadu-al André Maurois, no bairro da Gávea, tam-bém na capital;

• uma turma do InVest, que funcionatodos os dias à noite no Colégio SantoInácio, em Botafogo, no Rio de Janeiro.

O questionário compôs-se de 34 per-guntas, abertas e fechadas, cujas respos-tas permitiram traçar o perfil dos candi-datos negros e carentes ao vestibular. Oquestionário não foi dirigido especifica-mente ao estudante de direito, em fun-ção da própria metodologia utilizada paraa sua aplicação. Em função do objeto es-pecífico da pesquisa, seis das perguntasestavam voltadas diretamente para oscandidatos ao vestibular de direito.

Entrevistas

As entrevistas realizadas (gravadas

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e posteriormente transcritas) com os es-tudantes negros de direito da PUC-Riobuscaram conhecer, a partir das represen-tações desses atores, quem são os estu-dantes negros que optam pelo curso dedireito. Como representam suas expecta-tivas profissionais? Que expectativasconstroem sobre o curso de direito? Comoimaginam a sua influência pessoal – e ainfluência dos estudantes negros - no pro-cesso de democratização do acesso à jus-tiça? Em função da mudança que hoje seobserva no perfil dos alunos de direito, oestudo das representações dos estudan-tes negros de direito é de extrema impor-tância. Mesmo que estes estudantes ain-da sejam poucos, eles podem significar ocomeço de um processo de transforma-ção do campo jurídico.

As entrevistas (roteiro em anexo)foram realizadas com base em um roteiroprévio que abrangia também temas rela-cionados ao racismo, à discriminação so-cial e racial e ao próprio curso de direito.Como, para esses estudantes, as barrei-ras do acesso às faculdades de direito jáhaviam sido superadas, foramexploraradas as representações sobre assuas experiências no curso de direito e asexpectativas profissionais.

As entrevistas com professores –brancos e negros - objetivaram analisaras representações desse grupo sobre oprocesso de diversificação na composiçãodos alunos e sobre as conseqüências desseprocesso nas aulas e no curso em geral(principalmente identificando estratégiasutilizadas na abordagem e discussão dotema).

Nas entrevistas com os operadoresdo direito que prestam assistência jurídi-ca a vítimas de discriminação racial, oobjetivo foi analisar a trajetória destesprofissionais e a experiência na atuação

nessa área do direito, assim como suasrepresentações sobre a atuação do PoderJudiciário. Como é percebida a atuaçãode juízes e advogados em casos de dis-criminação racial? Como as ações propos-tas pelas vítimas de discriminação têmsido decididas? Também foram entrevis-tados advogados que trabalham no CEAP– Centro de Articulação de PopulaçõesMarginalizadas -, uma entidade civil semfins lucrativos que atua não apenas emquestões raciais, mas também na lutacontra a violação dos direitos das crian-ças, adolescentes e mulheres.

Por último, as entrevistas com pro-fessores com outras inserções profissio-nais não se concentraram apenas nasquestões relativas aos cursos de direito,mas objetivaram conhecer as represen-tações desses operadores do direito noexercício de suas atividades jurídicas,principalmente em relação às suas per-cepções sobre as possibilidades de demo-cratização do acesso à justiça e de cons-trução de um novo sentido de justiça apartir da diversificação racial e social dosoperadores do direito. Importante obser-var que dois professores universitários,apesar de atualmente estarem afastadosda advocacia, já trabalharam em organi-zações não governamentais de direitoshumanos.

Análise documental

Além dos questionários e entrevis-tas, a pesquisa foi complementada pelaanálise de documentos dos cursos PréVestibular para Negros e Carentes, SonhoCidadão e InVest, que permitiram conhe-cer melhor os objetivos pretendidos poressas experiências.

O valor simbólico dos cursos dedireito

Em 1998, a maior procura no ensino

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superior foi pelo curso de direito, com490.610 inscrições para o vestibular (para89.060 vagas). Atrás dos cursos de direi-to vinham a administração (275.966), amedicina (262.344), a engenharia(173.098), a odontologia (115.509) e acomunicação social (107.610). No Provão(exame nacional de cursos) de 1998 ins-creveram-se 44.318 alunos de direito e,em 1999, 43.775 alunos de direito.

Concomitante a este aumento da pro-cura pelos cursos jurídicos, ocorreu umprocesso de proliferação das escolas jurí-dicas. Em 1999, havia 303 cursos de di-reito12 , para uma população de157.070.163 habitantes (dados para1996). Os dados do Provão, que ainda nãoretratam os novos cursos abertos nos úl-timos cinco anos e que ainda não forma-ram turmas, são surpreendentes: em ape-nas quatro anos (1996-1999), o númerode formandos em direito quase duplicou,sendo bastante previsível um novo boomnos próximos anos, em razão da expan-são dos cursos de direito ocorrida nos úl-timos anos.

Quadro 1 - Número de inscritos noProvão de direito

Ano Número de inscritos Crescimento(ano base: 1996)

1996 27.220 1001997 39.715 1461998 44.318 1631999 45.373 167

Fonte: INEP – Relatório Síntese 1999

Quadro 2 - Evolução da matrícula noscursos de direito

Anos Número de alunos matriculadosNº Crescimento

(ano base: 1996)1970 71.672 1001980 137.373 1921990 155.803 2171996 239.201* 3301998 292.728* 408

Fonte: http://www.unescostat.unesco.org.*Sinopse Estatística do Ens. Superior, EEC/MEC

Com o aumento no número de esco-las de direito, o perfil dos estudantes vemse modificando de forma gradual e contí-nua. E, aqui, não custa lembrar que ape-nas 37,2% dos pais dos inscritos noProvão de direito em 1999 têm instruçãosuperior, contra 60,4% dos formandos demedicina, 52,0% dos formandos de odon-tologia, 45,9% dos formandos de medici-na veterinária e 44,1% dos formandos deengenharia civil13 .

Um dos grandes atrativos da escolajurídica é o fato dela permitir várias in-serções profissionais. O bacharel em di-reito poderá optar entre fazer o Exame deOrdem da Ordem dos Advogados do Bra-sil (OAB) e inserir-se no mundo da advo-cacia, ou ingressar na carreira pública,onde também há várias oportunidades,como a magistratura, promotoria edefensoria, ou dedicar-se ao magistério.Além do mais,

O curso de direito, embora permitaimplementação de projetos de vida vin-culados ao cultivo da reflexão e da edu-cação pessoais, não estigmatiza com umstatus social degradado como a filoso-fia, ciências sociais, letras e história.Ainda que esses cursos caracterizem-se por uma maior ênfase humanista,com certeza não apresentam o mesmo

12 Sinopse Estatística do Ensino Superior, 1999.13 Relatório Síntese do Provão, 1999.

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nível de profissionalização – no sentidode prestígio e compensação financeira– que o direito, carreira que, além depermitir uma futura vida acadêmica,para os interessados em pesquisa edocência, abre outras possibilidades deinserção profissional, como, por exem-plo, advocacia ou um emprego público.(Junqueira, 1994, p. 59)

Se, historicamente14 , a faculdade dedireito foi criada para atender a uma eliteque via o curso jurídico como instrumen-to de consolidação de uma estrutura polí-tico-administrativa e ideológica para umBrasil recém-independente, atualmente oscursos de direito têm exercido um outropapel no imaginário dos estudantes. Seantes serviam para sistematizar a ideolo-gia político-jurídica do liberalismo e for-mar a burocracia, em grande parte com-posta de filhos da elite dominante, queoperacionalizavam esta ideologia, hoje re-presentam uma esperança de mobilidadesocial ou de manutenção de uma elite emfranca decadência.

A partir da década de 70, com a cri-ação desenfreada dos cursos de direito ecom as transformações introduzidas pelareforma do ensino superior, iniciou-se umasubstantiva modificação no perfil dos es-tudantes de direito. De acordo com a pes-quisa realizada por ocasião do primeiroProvão (INEP, 1997, p. 25), os estudan-tes de direito são, majoritariamente, sol-teiros, sem filhos e residem predominan-temente com os pais ou parentes. A mi-noria se dedica apenas aos estudos, amaioria trabalhando em horário integralou parcial.

Entre os estudantes de direito, 54,7%haviam cursado o ensino médio, total ouparcialmente, em escolas particulares. Amaioria desses estudantes veio de famí-lias cujos pais não possuem educaçãosuperior, sendo que grande parcela delesnem sequer chegou ao ensino médio.

O fato de a carreira jurídica ter sidoconstruída, na história brasileira, comouma carreira destinada aos filhos da elitenão significa que não tenhamos tido im-portantes juristas negros. Tivemos, masforam poucos, entre os quais se destacaTobias Barreto, jurista e críticopernambucano (1839-1889). Mas a pró-pria criação dos cursos de direito em 1827,voltados para a reprodução da elite sociale a formação de quadros nacionais, ex-plica a menor presença de negros entreos alunos desse curso. Moema Teixeira(1998) constata que o direito situava-se,junto com a medicina, entre os cursos comuma menor proporção de alunos negros.No caso específico do direito, esta pre-sença era de apenas 2,6%. Cai por terra,portanto, o mito da democracia racial15

que tem impedido de se colocar a raça nocentro das análises sobre o processo deexclusão do negro brasileiro.

Atualmente, a situação nos cursosjurídicos é um pouco diferente. Muitoembora ainda seja tímida a presença deestudantes negros, há claramente umprocesso de modificação no perfil des-ses estudantes em termos sociais e ra-ciais. Parte desta modificação decorreda proliferação dos cursos de direito nosúltimos anos, que passaram a recrutar

14 Sobre a trajetória histórica do ensino jurídico, ver Venancio Filho (1982); Falcão (1984); Faria (1987);Rodrigues (1988).15 O termo democracia racial é utilizado aqui no sentido de representação das relações raciais harmo-niosas, um dos mitos que têm impedido uma percepção efetiva do problema racial no Brasil (problemaque não se enfrenta apenas com o aumento quantitativo do número de negros nas faculdades dedireito).

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alunos de diferentes classes sociais.

Mas, por que as escolas de direitotêm sido tão procuradas? Sem dúvida, ogrande atrativo dos cursos jurídicos pa-rece estar nas diferentes oportunidadesoferecidas pelo diploma. Em tese, o ba-charel em direito poderá optar entre in-gressar no mundo da advocacia, continu-ar estudando e inserir-se no mundo aca-dêmico ou passar no concurso público,opção esta muito cobiçada atualmente.Esta últma opção permite uma “democrá-tica” forma de ascensão social, já que asprovas são iguais para todos os candida-tos e as relações pessoais não são tãodeterminantes no processo seletivo. En-tretanto, o recém-formado depara-se comuma realidade perversa, pois para passarnas provas dos concursos é preciso umexcelente preparo e muita dedicação. Épreciso que o estudante tenha feito umaboa faculdade de direito, na qual só teráconseguido ingressar se tiver uma sólidaformação de ensino médio. Depois, ao ter-minar o curso, deverá ter condições finan-ceiras para bancar os caros livros de direi-to, os cursos preparatórios para concursospúblicos e as taxas de inscrição. Tais exi-gências acabam transformando-se em umprocesso seletivo dos futuros operadoresdo direito, pois, mais uma vez, apenas osestudantes com boas condições financei-ras poderão arcar com o investimento.

No entanto, apesar das oportunida-des que um diploma de direito oferece, arealidade do mercado de trabalho não étão animadora. Com cada vez mais estu-dantes formando-se, o mercado fica maiscompetitivo e só as pessoas bem prepa-radas – ou bem relacionadas - conseguemse profissionalizar no direito. Na opiniãodos professores entrevistados, é quaseimpossível este contingente enorme deestudantes ser absorvido pelo mercado.

Ter acesso às faculdades de direito não é,portanto, passagem direta para uma mo-bilidade social. Se, por um lado, permite-se o acesso de estudantes de diversos seg-mentos sociais aos cursos de direito, poroutro, existe um processo de exclusão dasminorias no mercado de trabalho.

Ao lado da “democratização” das es-colas de direito, um filtro dos novos ope-radores jurídicos é desenvolvido. Formar-se no curso de direito não é suficiente parapoder advogar. Para a prática da advoca-cia, é preciso, primeiro, passar na provada OAB, o temido Exame de Ordem (emmédia, apenas 30% são aprovados). Nãose trata de uma mera formalidade, masde uma prova difícil com objetivo de sele-cionar os futuros advogados. Para ingres-sar nas carreiras jurídicas, o processoseletivo é disputadíssimo, dispendioso edemanda tempo, dedicação e dinheiro.Dois professores mostraram-se atentos aesta realidade:

A forma de recrutamento para as car-reiras jurídicas, Ministério Público, ad-vocacia pública, pela sua natureza, emgrande parte é ultra positiva e em boaparte é um processo impessoal, que sedesenvolve pelo concurso público, ten-de evidentemente a permitir uma possi-bilidade de disputa de cargos nestascarreiras públicas por pessoas oriundasde segmentos sociais, econômicos e ra-ciais discriminados ou fragilizados. Poroutra parte, a gente sabe que os filhosda elite têm, em princípio, desde quetenham interesse, melhores condiçõesde disputar um concurso. Eu acho que aíhá dois problemas: uma desigualdade realque produz uma desigualdade na disputapela vaga que tende a permitir que osmembros das elites ocupem estas posi-ções se tiverem interesse.

Muitos destes alunos podem estar seinserindo em outras atividades que não

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a jurídica, até porque têm umbackground desvantajoso, então, é maisdifícil de se inserir nas profissões jurídi-cas tradicionais. Não é que não exista,mas o número é reduzido16 .

Mesmo com essas dificuldades, osonho de um diploma em direito é com-partilhado pelos entrevistados nesta pes-quisa. Apesar de apenas 10% dos alunosdos Pré-Vestibulares para Negros e Ca-rentes pretenderem fazer vestibular paraa faculdade de direito, 37% deles disse-ram que já pensaram em fazer o cursojurídico.

Quadro 3 - Alunos dos cursos pré-ves-tibulares, segundo o interesse pelo cur-so de direito

Situação Nº PorcentagemTêm interesse 34 37Não têm interesse 41 44Não responderam 17 18Total 92 100

Mas, por que esses estudantes de-cidiram fazer o curso de direito? Pararesponder a essa pergunta, em primei-ro lugar utilizou-se a análise desen-volvida por Moema Teixeira:

Toda escolha baseia-se numa determi-nada visão ou campo de possibilidadestraçado, construído e pesado de formacomplexa, a partir de uma lógica nãotão aparente nem tão explicitada no dis-curso, em que a própria pessoa, suapersonalidade, as próprias informaçõessociais (percebidas ou não) quanto àaquisição de status, a influência de ou-tras pessoas etc. e um sem número defatores podem estar imbricados (1998).

Em segundo lugar, utilizaram-se osdados do Provão, segundo os quais 62,8%dos formandos de 1999 pretendiam tra-balhar, futuramente, com o direito (con-tra 37,2% que não pretendiam trabalhar

na área jurídica). Como explicar, portan-to, a procura pelo curso de direito? Veja-mos os dados obtidos através da aplica-ção do questionário.

Dos dez alunos que iam prestar ves-tibular para direito, dois demonstraramclaramente a escolha para buscar umaascensão social. Nas palavras de um de-les: “Porque eu estava em busca de status,uma questão mais pessoal. Queria estarem um patamar mais alto, que implicas-se poder”. Cinco alunos escolheram a fa-culdade em razão da possibilidade de aju-dar as pessoas e de se poder fazer justi-ça, indicando uma vontade de mudanças,de intervenção na sociedade em geral.Apesar de a opção pelo curso ser feita porrazões particulares, percebe-se um olharmais amplo para a profissão, que repre-senta não somente uma busca pessoal,mas um ideal de transformação da socie-dade. Um dos vestibulandos declarou terescolhido fazer vestibular para direitoporque é um curso de cidadania e um ins-trumento de combate às discriminaçõessociais. A opção destes alunos vincula-se àbusca de uma sociedade mais justa, ondeas desigualdades não sejam tão gritantes.

Em relação aos estudantes negrosde direito da PUC-Rio, todos querem tra-balhar com o direito e estão na faculdadeporque buscam ingressar no mundo jurí-dico. O curso de direito não representaapenas um diploma de ensino superior,mas significa a realização de uma buscapelas profissões jurídicas. Muitos alunosentraram para a faculdade de direito por-que vieram de outros cursos considera-dos mais fáceis de passar no vestibular.Nas palavras de um deles:

Eu achei que nunca ia passar para direi-to, então fiz para ciências sociais. Lá eutinha chance, pois a relação candidato/

16 Comentário de um professor entrevistado.

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vaga é menor. Não tenho o que quero,mas vou fazer o que posso.

Já o outro explicou:

Sempre quis fazer, embora tivesse ver-gonha de dizer para as pessoas que euqueria esta carreira. ... Porque não écurso para pobre. Pobre não pode fazermedicina, odontologia e direito, poiscomo é que vai viver durante a faculda-de? As pessoas iam me perguntar isto.Me diziam que na verdade o que eu que-ria era poder, mas não é isto. Você serpobre e falar que quer fazer direito temum peso. As pessoas olham diferentepara você, acham que aquilo não é paravocê.

Ao ser perguntado sobre o que seria,então, um curso para pobres, veio a se-guinte resposta:

Seria um curso de história, de ciênciassociais. Eu fiz formação de professoresde 1a e 4a série, então seria alguma coi-sa para complementar o curso que eujá tinha feito.

Um terceiro entrevistado, ex-alunoe ex-professor de um núcleo do Pré-Ves-tibular para Negros e Carentes, consideraque:

O pessoal geralmente procura o que émais cômodo para passar. Porque a reali-dade é outra. A realidade dos alunos queestudam na Baixada Fluminense é bemdiversa dos alunos que estudam aqui. Émuito fácil para o aluno que estuda naZona Sul, além do conteúdo que dá maisfacilidade para passar, o aluno daqui temcondição de fazer um bom pré-vestibular.Lá você já não tem isto, assim não dápara concorrer com medicina, direito nauniversidade pública. Geralmente, o pes-soal procura história, letras, que é maisfácil passar e depois dá um jeito de trans-ferir, ou depois de conseguir o diploma,faz o que gosta. É muito por aí.

No entanto, apesar de alunos e pro-fessores constatarem um processo demudança no perfil do aluno de direito,muitos percebem um futuro não muitoanimador. Se, por um lado, o crescimentono número de estudantes negros de di-reito permitiu que alunos de outros seg-mentos sociais estudassem direito, poroutro lado, o mercado de trabalho estácada vez mais competitivo. Em verdade,não apenas o mercado, mas as própriasfaculdades de direito, em função da fis-calização exercida pelo Ministério da Edu-cação. Neste sentido foi a constatação deduas entrevistadas:

As faculdades agora serão cada vez maiscompetitivas por causa do mecanismode avaliação do MEC. Esta tendência àadoção de medidas que permitam queestudantes não tão qualificados ingres-sem na faculdade é diminuir. As facul-dades vão querer alunos que tirem asmelhores notas no Provão. As faculda-des estão dando bolsa hoje não maisem função da necessidade social do es-tudante, mas da capacidade intelectual.Na Estácio [Universidade Estácio de Sá],os melhores alunos e aqueles que já têmcurso superior ganham bolsa. A tendên-cia nas faculdades privadas é dar bolsapara os melhores e não para os caren-tes, que têm mais dificuldade, pois vãofazer com que as suas notas caiam.

... Como hoje há muitas faculdades dedireito, que têm diferentes valores infe-riores (mensalidade), valores que a ca-mada mais pobre pode fazer um sacrifí-cio e cursar, existe mais possibilidadedestas pessoas, que geralmente são nãobrancas, ascenderem. Eu dou até força,mas é uma ilusão, porque estas facul-dades geralmente não permitem nadamais do que a pessoa se forme e aquilonão adianta nada. Em termos de quali-dade, têm muito pouco a oferecer e a

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pessoa acha que só porque adquiriu ograu acadêmico aquilo vai resolver to-dos os problemas da vida dela.

Mas, o sonho por uma profissão jurí-dica apresenta matizes em função da atra-ção que exerce, de um lado, a advocaciae, de outro, os concursos públicos. Dosalunos dos pré-vestibulares que efetiva-mente se arriscaram a fazer um vestibu-lar para direito, cinco gostariam de pres-tar concurso público (para a magistraturaou para delegado de polícia) e quatro pre-tendem advogar (principalmente na áreatrabalhista, uma área considerada menosnobre na profissão).

Quadro 4 - Alunos dos cursos pré-ves-tibulares, segundo a expectativa dacarreira jurídica

Resposta Nº %Concurso público 5 50Advocacia 4 40Não sabe 1 10Total 10 100

No entanto, é bom lembrar, o exer-cício da profissão jurídica pressupõe ven-cer a própria discriminação racial e a dis-criminação em razão da classe social,como percebem com bastante clareza osalunos dos entrevistados.

Quadro 5 - Alunos dos cursos pré-ves-tibulares, segundo o tipo de discrimi-nação mais difícil de ser vencida peloprofissional do direito

Resposta Nº %Problemas de raça 5 50Problemas de classe social 4 40Não respondeu 1 10Total 10 100

Em suma, existem sonhos e sonhos,cuja realização depende muito do capitalcultural e social. Analisando os alunos daPUC-Rio, dois professores assim enten-deram as possibilidades profissionais:

Eu tenho certeza, aqui ainda tendemmais para a advocacia liberal porque elapaga melhor. Para fazer carreira públicasó realmente quem tem uma ideologia,porque se eles forem realmente bons, esão porque têm condições de estudar,têm acesso aos livros, a viagens, ao queeles quiserem. Mas agora lá [na Facul-dade Veiga de Almeida] a única saída éconcurso e nem é o para magistratura eMinistério Público. O concurso técnicopara eles já é o suficiente, concurso paradelegado de polícia é muito perseguido.São outros sonhos.

O aluno da PUC não busca mobilidadesocial, pois ele já está inserido numaclasse privilegiada. Claro que busca umacolocação, mas já traz uma boa forma-ção de colégios privados, cursos de idi-omas, intercâmbios no exterior, assim,não busca mobilidade. Mesmo o negroque aqui está tem uma bagagem muitodiferenciada. Os negros para quem eudou aula, você percebe que o rendimentoe o aproveitamento são bem menores,pois vêm de escolas públicas, deficitári-as. Vamos comparar a PUC com a [Uni-versidade} Universo, de Niterói. Lá opúblico é totalmente diferenciado. Quemé o advogado que se forma na PUC? Éaquele que vai trabalhar no SergioBermudes, nos grandes escritórios deadvocacia. O da [Universidade] Univer-so vai trabalhar em Niterói, São Gonça-lo. Vai trabalhar num escritóriopequeninho. Quem faz o concurso pú-blico aqui faz para juiz, promotor, de-fensor etc. O de lá faz para o 2o grau,faz até para 3o grau, mas para técnico.A diferença é marcante. É claro que umou dois de lá vão fazer para juiz, mas éa exceção.

Ou seja: de um lado, situa-se o ba-charel em direito com elevado capital so-cial, que facilmente poderá se inserir em

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uma advocacia privada de alto rendimen-to, e, de outro, situa-se o bacharel emdireito com baixo capital social (e cultu-ral), para quem ser aprovado em um con-curso técnico já é suficiente, já que aschances de ser aprovado em um concursopúblico para a magistratura e para a pro-motoria pública são apenas sonhos.

Faculdades de direito pluri-raciais

Ainda que os mecanismos para au-mentar a presença de estudantes negrosnas faculdades de direito sejam tímidos,já é possível perceber alguns sinais demudança no perfil de um curso tradicio-nalmente branco, principalmente na PUC-Rio, onde podemos observar alguma di-versidade racial e social no curso de di-reito. De acordo com um dos professoresentrevistados:

Tenho [percebido que há mais estudan-tes negros], mas não consigo precisar dequando foi esta modificação. Eu estudeifora dois anos e quando eu voltei já haviaeste percentual mais elevado... eu me lem-bro que quando voltei dos EUA, em qual-quer grupo de estudantes a questão doestudante negro sempre aparecia e eununca tinha pensado nisso.

Se antes havia um, dois alunos negrospor turma e hoje há três ou quatro, oaumento pode ser de 100%, mas conti-nua sendo irrisório o número de afro-brasileiros nas salas de aula.

Na opinião de outro professor:

Aqui na PUC, desde que eu entrei, eunão via um negro. Havia turma sem umnegro sequer. Você via no máximo um.Eu tive um colega negro, mas era filhode promotor e aí já vem de uma classesocial privilegiada. Com o projeto que aPUC tem, o número de negros está au-mentando. Eu não percebo muito o alu-

no que ingresse de uma classe social nãoprivilegiada. As exceções são estas: ousão trabalhadores da PUC com bolsa,ou fazem parte deste projeto, pois nãoteriam condições de pagar, porque hojeo sistema de bolsas na PUC é muito di-fícil. Esta realidade você percebe emoutras universidades, já que eu tenhoexperiência de dar aulas em universida-des de periferia17 .

No entanto, a presença de estudan-tes negros nos cursos de direito ainda épercebida como muito pequena.

Quando perguntados sobre ainteração destes novos alunos em umambiente predominantemente branco e declasse média-alta, os professores entre-vistados explicam que não percebem ne-nhum tipo de discriminação racial ou so-cial. No entanto, apesar da convivênciaharmoniosa em sala de aula, existe umanítida separação dos alunos em razão dasdesigualdades econômicas e sociais. Emverdade, a própria percepção (eautopercepção) como negro é difícil emum ambiente elitista como a PUC-Rio:

Ali na PUC tem uma coisa meio falseada,do tipo, é por isto que o professor táaqui, ou então, é por isto que ele é pro-fessor, porque ele não é negro, é um caraque vai muito à praia – olha, tem atéisto – eu estou falando sério que temgente que brinca comigo dizendo que eunão devo sair da praia. E eu nem consi-go mais responder a isto, mas enfim, játive passagens assim na época de estu-dante, em que você percebe claramenteque a pessoa tenta não ver aquilo que éa verdade. Eu acho que é importanteinclusive que estas pessoas sejam leva-das ao constrangimento de serem dis-criminadas, eu acho que é importanteque sejam discriminadas neste ambien-

17 O entrevistado referiu-se a instituições situadas nos subúrbios do Rio de Janeiro e na BaixadaFluminense.

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te para perceberem o quanto vão ter quelutar e mudar o tipo de atitude de quemtem poder para modificar aquele quadro.

Neste ambiente, a discriminação tor-na-se natural:

Eu acho que tem uma seleção natural.Os alunos tratam bem em sala de aula.Não há discriminação. Eu tenho uma alu-na, carente, que de forma alguma é dis-criminada. Ela vende várias coisas naaula, mas não faz parte do ciclo de ami-zade das outras meninas, que freqüen-tam lugares caros. Existe uma exclusãode ambos os lados, tanto ela não achaque deve freqüentar estes lugares, poisnão ficaria à vontade, quanto tambémas outras meninas que, por exemplo,sabem muito bem que ela não seria apessoa que iria gostar daquele lugar.Esta solidariedade se estabelece dentrodos limites da sala de aula. Há exclusãode ambos os lados.

A presença de alunos negros não sig-nifica, portanto, uma integração entrebrancos e negros. Muito pelo contrário, adiscriminação torna-se mais explícita. Naopinião de um dos professores entrevis-tados, as pessoas criam afinidades quenão passam necessariamente pela cor dapele, mas em razão da origem social e,neste sentido, o pilotis18 da PUC-Rio é bas-tante emblemático:

O caso do pilotis da PUC é um caso mui-to visível, todo mundo que parou paraolhar aquela configuração sócio espaci-al do pilotis viu como é que isto é difícil,não sei se você já reparou, mas o pes-soal do serviço social mais amorenadosimplesmente evita o pilotis, porque eleé exatamente o centro de gravidadeonde a jeunesse da PUC se encontra, éo centro de sociabilidade e este espaçoganha uma densidade social tão dura

que chega a ser ameaçadora para aspessoas que não fazem parte desta eli-te branca de zona sul, eles cortam ocaminho, fazem todo o possível para nãoatravessar o pilotis, por aí você podeperceber o mal estar que eles têm deestar naquele lugar.

Em outros termos, a maiorpluralidade racial da PUC-Rio – e de ou-tras faculdades de direito – é apenas ummito. Na verdade, reproduzem-se, inter-namente, mecanismos de discriminaçãoe de segregação que alijam os estudan-tes negros, que não participam das mes-mas redes sociais, das oportunidades pro-fissionais às quais seus colegas brancostêm acesso.

Importância e problemas de umaturma pluri-racial

Qual o significado dessa maior pre-sença negra nas faculdades de direito?Como esses estudantes são percebidos ecomo eles se percebem? Como a presen-ça desses estudantes estimula o debatede temas vinculados aos direitos huma-nos? Como a questão racial é tratada emsala de aula?

No discurso dos professores entre-vistados, prevalece a opinião de que adiversificação dos alunos é importantepois permite o aprendizado da tolerânciae da compreensão, que só é possível quan-do a turma é diversificada racial, econô-mica e regionalmente. Porém, para queesta diversidade modifique os cursos ju-rídicos, tornando-os mais próximos darealidade da sociedade brasileira, é pre-ciso que haja uma postura estimuladorado debate, da discussão. Na visão de umprofessor, os conflitos decorrentes dapluralidade são extremamente pedagógi-cos já que, muitas vezes, as palavras não

18 O pilotis é a principal área de convivência da PUC-Rio onde os estudantes se encontram nosintervalos das aulas para bater papo, trocar idéias e conhecer outros alunos.

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são capazes de expressar uma determi-nada situação. Para ele, só o fato de ha-ver alunos de diversos segmentos sociaise raciais na sala modifica a dinâmica dasua aula:

Muita [diferença]. O [pedagogo brasi-leiro] Paulo Freire formou uma idéia so-bre o peso da palavra. Quando alguémque mora num bairro que tem todos osserviços básicos, “falta d’água” tem umdeterminado peso; quando esta mesmafrase é dita por alguém que mora numbairro sem infraestrutura, cai com mui-to mais peso. Quando discuto a justiça,fundamento do jusnaturalismo, e discu-tindo a justiça segundo alguns autoresgregos, em especial Aristóteles, souobrigado a falar em fundamentação éti-ca. E quando discuto ética como respei-to à tolerância, à diferença, paraexemplificar, eu falo em padrão de bele-za. Intolerância vem exatamente pelonão respeito da diferença, e, aí, eu mos-tro o padrão de beleza do negro e dobranco e como o do branco é dominan-te. Mas é uma coisa que eu digo e amaioria não entende o que eu estou fa-lando. Mas, quando tem um negro nasala isto é diferente. Isto diferencia naminha didática, na maneira que eu es-tou falando, nas palavras que eu uso, eisto influência na minha recorrência pe-dagógica, nos exemplos que eu possodar e, no fundo, na base de tudo, vaidiferenciar na possibilidade de eu poderfazer a crítica do direito, de pensar cri-ticamente o direito.

Esta opinião é também compartilha-da por estudantes de direito, que acredi-tam ter a diversidade dos alunos de direi-to em termos raciais e sociais uma duplafunção, pois contribui para uma formaçãodo profissional de direito inspirada emvalores democráticos, desenvolvendo umareflexão sobre a composição multirracialda sociedade brasileira e, ao mesmo tem-

po, contribui para a democratização dasprofissões jurídicas ao proporcionar a con-vivência com as diferenças, tornando aprofissão jurídica, que tradicionalmente émuito conservadora, mais humana. Des-ta forma, se as turmas forem compostaspor pessoas de diferentes raças, os futu-ros operadores de direito terão sua aten-ção despertada para a pluralidade racialda sociedade brasileira e para os valoresdemocráticos.

No entanto, existe um outro ladorevelado nas entrevistas: a presença deestudantes negros na sala pode causartambém um certo desconforto para oprofessor:

Eu me sinto muito constrangida emabordar determinados temas. Nopositivismo eu trabalho dois autores,Lombroso e Nina Rodrigues, o Lombrosobrasileiro. Nina Rodrigues tem uma teo-ria em função da raça e uma das ques-tões que eu trabalho é a questão da res-ponsabilidade penal e as raças no Bra-sil. Eu sempre trabalhei o texto dele deuma forma muito tranqüila, mas quan-do alunos negros passaram a aparecernas aulas, comecei a ficar constrangida.Na minha outra turma, trabalho a ques-tão do ensino jurídico.

Apesar desse depoimento (isolado),predomina a percepção de que a diversi-ficação social e racial da turma é impor-tante para trazer para dentro da sala deaula um pouco da realidade da maioria dapopulação brasileira. A heterogeneidadedos alunos é extremamente educativa,principalmente em um ambiente elitistacomo o da PUC-Rio, antecipando o conta-to com uma realidade da vida que se dará,com certeza, no mercado de trabalho. Afi-nal, os alunos de direito da PUC-Rio sãoeconomicamente “bem confortáveis”, jo-vens criados dentro das denominadas “bo-

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lhas sociais”, que freqüentam apenas lu-gares considerados “seguros” (por seremfreqüentados por pessoas do mesmo ní-vel social).

A PUC é marcadamente para um grupoque quer advogar. É ainda uma faculda-de de elite, de um pessoal que ficou pertoda faculdade pública e não passou oufez uma opção por ela mesma. Mas ogrupo mudou bastante. Hoje é bem umaextensão dos colégios. Eu sinto isto bemmarcado porque a garotada daqui pas-sa mais cedo, e também muita genteprefere o filho numa faculdade mais per-to. As públicas têm condições físicas pi-ores, é mais longe, a instalação pior. Aspessoas optam pela PUC também pelaquestão do campus, então, o perfil émuito homogêneo. Por outro lado, avidinha da PUC aliena um pouco. Eu ado-ro a PUC, ela tem uma proposta de in-formação, mas o aluno deveria estar lápor isto e não porque é perto de casa.

A diversidade em sala de aula influ-encia na formação dos alunos. Um dosentrevistados, jovem professor, contouque foi muito influenciado por um coleganegro, com quem fez amizade. A partirdeste contato, de realidades de vida tãodíspares, pôde desenvolver sua consciên-cia das desigualdades das relações raciais.Além do mais, as aulas em uma turma he-terogênea eram mais produtivas e ricas emrazão da pluralidade de opiniões.

Para um professor de ética profissi-onal entrevistado, os alunos negros teri-am uma contribuição a dar na construçãode um curso mais próximo da realidadebrasileira:

A teoria do direito no Brasil é, infeliz-mente, como se tudo fosse um mar derosas, embora se fale nos conflitos, sãoos que não atingem nem 10% da popu-lação brasileira na maioria dos casos. Éum direito para elite. Se você vai na fa-

vela, o trato social é outro, quer dizer,direito de vizinhança que está no códi-go, por exemplo, é totalmente diferentedo da favela. O código é piada, não exis-te. Direito de família é a mesma coisa.

No entanto, além de ser importantepara o estudante de direito, essa diversi-dade é fundamental para preparar para ofuturo exercício profissional, como diz umdos entrevistados, com longa experiênciana magistratura:

A Justiça é totalmente heterogênea. Éuma escola. Você tem que ter bom sen-so, humildade, para poder aprender equerer ouvir. Por exemplo, quando euestou em vara de família, da justiça gra-tuita, tem que ouvir as pessoas, tem quesaber que é um salário para dividir portodos e tem que deixar para oalimentante porque ele precisa viver. Éuma realidade completamente diferenteda nossa.

Dois pontos merecem ser destaca-dos. Em primeiro lugar, essas narrativasapontam a contribuição do estudante ne-gro para o estudante branco. Ou seja, apresença do estudante negro em sala deaula não é vista a partir do ponto de vistadesse estudante negro, mas sim do estu-dante branco. O estudante negro existepara facilitar que o estudante branco sefamiliarize com uma diversidade que teráde enfrentar quando ingressar no merca-do de trabalho. Em outros termos, o estu-dante negro antecipa o caráter não ho-mogêneo do mundo real, desconhecido doestudante de direito, branco e pertencen-te à elite, da PUC-Rio.

Em segundo lugar, será que a sim-ples presença dos estudantes negros emsala de aula possui este efeito transfor-mador? Para um dos professores entre-vistados, a diversificação na composiçãodos alunos não é suficiente para a cria-

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ção de um curso jurídico mais próximo darealidade nem para a conscientização dogrupo estudantil:

Por si só não necessariamente. Isto de-pende muito mais da postura e da von-tade de discussão e manifestação dospróprios alunos do que simplesmente dacomposição. Se você tiver turmas plu-rais, porém, apáticas, a contribuição ouo avanço destas reflexões e destes de-bates serão insuficientes. Agora, se aessa variação de diversidade corres-ponder uma variação de estudo, de par-ticipação, de cotejo, de vida, de reali-dade diferentes, aí sim.

A conscientização para os proble-mas raciais

Como as questões raciais são traba-lhadas em um curso de direito? Será queos professores de direito estão preocupa-dos em desenvolver a consciência de seusalunos?

As respostas, infelizmente, sãodesanimadoras. Nenhum dos professoresentrevistados trabalha especificamentequestões raciais em sala de aula. Pelomenos, não em profundidade. Nem mes-mo o professor de direitos humanos (dis-ciplina optativa na PUC-Rio) conseguemotivar os alunos para discutir o tema:ao solicitar que os alunos escolham, den-tre sete temas apresentados, um para serdesenvolvido em grupo, o tema menosprocurado é, justamente, questões raci-ais (provavelmente em razão de uma fal-ta de identificação com o tema19 ). É bemverdade que o tema das desigualdadesraciais pode ser abordado, mas de formaindireta, em outras disciplinas, como, porexemplo, quando se estuda a ação polici-

al: a raça aparece, já que a atividade po-licial está primordialmente voltada paraa repressão das classes marginalizadas (e,portanto, dos negros). Mas, não se vaimuito além dessa abordagem tangencial.

Segundo os professores, os própri-os alunos negros não se sentem à von-tade para trabalhar um tema que envol-va a questão racial em sala de aula; aspoucas discussões sobre discriminaçãoracial são estimuladas pelo professor enão pelos alunos negros. E quando te-mas sobre relações raciais são tratadosem sala de aula, as discussões encami-nham-se para um debate sobre as desi-gualdades sociais, escamoteando-se otema racial.

No Brasil você não tem um bairro ne-gro, embora a maior parte da BaixadaFluminense seja de negros e não bran-cos, quer dizer, não é caracterizadocomo um bairro negro, como você vêna Inglaterra, nos EUA. O espaço urba-no nestes locais tem uma dimensãohistórica. No Brasil, o contexto históri-co, tem até no livro do Darcy Ribeiro Opovo brasileiro, que trabalha bem na suadimensão conflitiva, mas este processode integração e miscigenação de certamaneira camuflou, ou seja, colocou emsegundo plano a questão racial, comose a questão fosse somente social.

Esse professor de ética profissionalsitua-se entre os poucos que tentam darum enfoque mais social à ética, menostécnico, pois isto o aluno pode aprenderlendo o próprio código. Na sua visão, odireito deve ser um fator de promoção dasociedade e não de restrição das possibi-lidades de atuação da pessoa na socieda-de como, em geral, acontece:

19 Comparando a Universidade Veiga de Almeida com a PUC-Rio, uma das entrevistadas relatou que naprimeira instituição há um maior interesse pelo tema, em função do perfil dos estudantes, que costu-mam trazer para debate problemas que enfrentam no dia a dia, em uma loja ou em um banco (prin-cipalmente em decorrência das portas giratórias das instituições bancárias).

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É a velha estória, quem tem direito équem tem patrimônio. Então, a minhainvestigação é no sentido de provocarum questionamento. Isto, às vezes, nãoé muito aceito. Há uma formação muitomonolítica neste sentido, vendo o direi-to apenas como uma ciência, mas quese aplica aos contextos possíveis. Euacho que não é bem por aí e deve seraplicado a qualquer contexto, porque évida, é relação humana. O direito servepara integrar essas relações, então, omeu curso é baseado nesta sistemáticae trabalha a questão do preconceito, e,aí, entra a questão social também por-que a nossa “raça profissional” é muitovaidosa, orgulhosa e então cria certosestigmas em relação a certos grupossociais. O medo do diferente. Será quetem consciência que o negro e o brancosão iguais? Numa determinada situaçãoquem seria atendido primeiro: o negroou o branco?

Sendo os direitos dos negros um as-sunto marginal no curso – e, acreditamos,não apenas na PUC-Rio -, os profissionaisque prestam assistência jurídica a vítimasde discriminação racial não são prepara-dos para a prática profissional. O desen-volvimento do trabalho depende muitomais de um feeling dos advogados do quede uma preparação profissional adequa-da para este tipo de advocacia. Segundouma advogada do Centro de Articulaçãode Populações Marginalizadas (CEAP),seriam necessários cursos de aperfeiçoa-mento para os profissionais que atuam nocampo das discriminações no Rio de Ja-neiro, além de doutrinas jurídicas especí-ficas nesta área.

Democratização da Justiça

Que efeito pode produzir na Justiça,enquanto instituição, e na justiça, enquan-to valor, uma maior presença de operado-

res negros de direito? Será que essa di-versidade racial corresponderia a umaJustiça/justiça mais democrática? Comoa variável raça permeia as decisões doPoder Judiciário? Há condições para quecaminhemos para uma critical race theoryaqui no Brasil?

Justiça imparcial?

A igualdade formal garantida pelaConstituição Federal não se concretiza,infelizmente, em uma igualdade real noPoder Judiciário. Pelo menos, essa é apercepção dos entrevistados em relaçãoà atuação da Justiça: brancos e negrossão tratados de maneira desigual. Umúnico estudante, todavia, considera queo problema da desigualdade não é de res-ponsabilidade da Justiça, mas daquelesque estão mais próximos dos fatos:

Quando a Justiça pega a coisa ela já estátipificada de modo que prejudique maisos negros que os brancos. Se cinco pes-soas são presas por seqüestro, três ne-gros, um mulato e um branco, o brancovai ser tratado como chefe da quadri-lha. Quando duas pessoas, um branco eum negro, dão um golpe no banco, obranco vai ter praticado o crime de co-larinho branco e o negro de estelionato.

Mas, o problema não pode ser limi-tado à esfera policial, como pretende odiscurso acima. A resistência das autori-dades judiciárias em enfrentar questõesrelacionadas às discriminações raciais éflagrante, conforme percebido pelos ad-vogados do CEAP. De acordo com os rela-tos dos entrevistados, muitos juízes, naprópria audiência, revelam que não acre-ditam na existência de discriminação ra-cial no Brasil; outros consideram estasquerelas de pouca importância e, por isto,tentam forçar um acordo com o pretextode terem coisas mais importantes para

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fazer. Esta opinião é compartilhada pelosadvogados entrevistados, que consideramo Poder Judiciário muito conservador e osjuízes, na maioria, ainda sem consciên-cia da discriminação racial que existe nasociedade brasileira.

Se essa discriminação existe nas di-ferentes esferas da Justiça, ela com cer-teza se faz mais visível na esfera penal,cujos réus são majoritariamente não bran-cos e pobres. Pesquisa coordenada porSergio Adorno (1984) revelou, especial-mente, o processo discriminatório da jus-tiça criminal, que condena um númeromaior de acusados negros do que bran-cos. Perguntado quanto à igualdade detratamento da Justiça aos negros e bran-cos, um advogado do CEAP exemplifica:

Não, claro que não. Até porque tem adificuldade do julgador de estar ali comum crime de racismo. Na maioria dasvezes, a vítima, o autor da ação, o quetem direitos subjetivos exigíveis, é umnegro. O agressor, o criminoso, oindiciado, na maioria das vezes é bran-co (já que em geral o crime de racismoé praticado por um branco contra umnegro) e isto é uma situação nova parao julgador. Na maioria das vezes, ele estáacostumado a ver o contrário, ver o ne-gro como réu, como criminoso. Na ver-dade, ele vai estar julgando um branco,igual a ele, muitas vezes de uma classesocial bem próxima à dele, por um crimeque ele seria capaz de cometer, como porexemplo, na hora do trânsito, ao chamarum negro de macaco. Ele mesmo [juiz]ou o filho dele poderia praticar este cri-me, nervoso, no trânsito. Fica uma situa-ção bastante desconfortável para o juiz.

Operadores do direito negros: umaJustiça mais justa?

Se a Justiça (instituição) e a justiça

(valor) não são justas, conforme compro-vam as pesquisas e conforme dizem to-dos os entrevistados, será que uma mai-or presença de operadores negros de di-reito contribuiria para a democratizaçãodo acesso à justiça, como pretendem asteorias construídas nos Estados Unidos ena Inglaterra? Será que os entrevistadosacreditam nessa possibilidade?

A resposta, em princípio, surpreen-de: os entrevistados – estudantes, pro-fessores e profissionais de direito – efeti-vamente acreditam que o aumento nonúmero de profissionais do direito negrosproduziria uma democratização do aces-so à justiça e uma modificação na atua-ção do Poder Judiciário.

No entanto, relativizando um poucoessa afirmativa, muitos vinculam estatransformação a um processo deconscientização, que deve começar pelospróprios estudantes de direito negros, que,muitas vezes, negam a influência da corna atuação profissional, atitude bastantecompreensível em um país racista comoo Brasil20 . Bastante paradigmática dessapostura de negação da cor é a afirmativade um dos estudantes negros da PUC-Rio:

Eu não tenho cor. Eu vou ter que ser umprofissional. Quando eu for trabalhar eunão vou ter que olhar para a cor da mi-nha pele. Isto fica de lado. Não influen-cia em nada.

Existe nos discursos – e não apenasnesse – uma contradição flagrante. De umlado, ao se negar a identidade negra, ima-gina-se que a cor da pele não influencia aatuação do profissional. Mas, de outrolado, afirma-se que uma maior presençade estudantes negros contribuiria parademocratizar a Justiça. Como afirmou umoutro estudante:

20 A este respeito, ver: Gomes (1995) e Souza (1993).

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Não penso muito se a minha atuaçãovai contribuir para o movimento negro,mas de qualquer forma, em qualquerárea que eu trabalhe, é claro que eu es-tarei fazendo presença como um ele-mento negro e indiretamente é claro quevai dar um respaldo para a questão danegritude.

Nas palavras de outro aluno:

Porque tem uma coisa, se o negro pro-cura um advogado, se for um advogadonegro ele vai. A gente se sente mais se-guro. Você pode até achar que é pre-conceito, mas não é, é insegurança. Agente sente assim. Tem que ser parasaber.

Ao ser indagado sobre a possibilida-de de não se ter discriminação racial deréus negros julgados por juízes negros, oadvogado do CEAP respondeu: “Se fossenegro não, mas se o juiz tivesse consci-ência das desigualdades raciais no Brasil,com certeza mudaria. Não importa a cor”.

Em outros termos, menos do que acor da pele – ou a experiência subjetivade discriminação -, o importante é a cons-ciência do operador do direito sobre osproblemas raciais que enfrentamos noquotidiano da sociedade brasileira. Umnovo sentido de justiça dificilmente seráconstruído a partir de uma maior diversi-dade racial entre os operadores de direi-to, até porque os próprios profissionaisnegros que conseguem ingressar no mer-cado do trabalho acabam deixando algunsde seus valores de lado para serem acei-tos e conquistarem seus lugares. Nestesentido é a opinião da advogada do CEAP:

Eu noto que muitas pessoas, o próprionegro, é racista. Eu passei por uma ex-periência com um juiz negro que nãoquis atuar no processo. Declinou dacompetência por foro íntimo.

Na opinião de outro professor:

Isto pode possibilitar a formação de umsenso comum jurídico do que se tem,que ainda é muito elitista, positivista eque se expressa nas práticas dos advo-gados, promotores, defensores, juízes,alunos e professores, doutrina jurídicano seu sentido mais amplo. Quando vocêimagina família, moradia, propriedade,imagina as relações variadas, daí a pre-sença de maior participação cidadã esegmentos variados da sociedade,como, por exemplo, mais mulheres. Naminha época de estudante eram 30%de meninas, hoje são 50% a 60%, 70%de moças em sala de aula, e tem umsignificado semelhante em relação aosnegros, sendo que os negros ou pelomenos a população não branca no Bra-sil é uma grande maioria.

O processo seria igual ao que ocorreucom as mulheres quando começaram a in-gressar na carreira da magistratura e quese tornaram mais conservadoras, preferin-do seguir a jurisprudência dominante:

Os recém chegados numa determinadaprofissão local tendem a ser mais con-servadores do que aqueles que já estãolá há mais tempo. É uma forma de vocêconquistar o seu lugar. Não sendo dife-rente, mas sendo conservador. Se a pes-soa já tem alguma coisa que o faz dife-rente, tenta não marcar mais esta dife-rença, mas se enquadrar dentro dospadrões dominantes.

A maioria dos entrevistados acredi-ta que há uma tendência do profissionalnegro se embranquecer, já que atuará emum ambiente composto majoritariamentepor brancos. Talvez, este processo deembranquecimento comece na própriafaculdade.

Quando [os estudantes negros] se for-mam estão embranquecidos e quando

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entram no escritório de advocacia oupassam em um destes concursos, prin-cipalmente magistratura, eles estão90% embranquecidos. E se galgam pos-tos mais elevados na hierarquia judiciá-ria, eles terminam arianos. Não que sejauma regra, mas eu percebo isto, eu lidocom isto, porque eu procuro isto, eu souobrigado a pesquisar leis, posiciona-mentos judiciais e doutrinas. Algum tem-po atrás, a revista Veja falou dos ne-gros que se projetaram na sociedade,artistas, cantores, esportistas, políticose um jurista, um magistrado, que erajuiz ou desembargador. O que ele diziana revista não era nada significativosobre a sua posição frente ao direito. Eo direito é especial na sociedade, é olocus da disputa de poder, danormatização e da regulação.

Em suma, os entrevistados conside-ram que a pluralidade dos atores jurídi-cos modificará o perfil do Poder Judiciá-rio, ainda muito conservador e tradicio-nal. A quebra da cultura monolítica jurí-dica amplia a visão de mundo dos opera-dores do direito e, com isto, a Justiça es-tará mais rica e com melhores instrumen-tos para atender aos anseios e resolveros conflitos sociais. Mas, para isso, neces-sitamos ter, efetivamente, operadores dodireito negros. Hoje, juízes negros e esta-giários negros no fórum são raros. Umajuíza entrevistada relatou que, nos seus oitoanos de magistratura, encontrou estagiári-as negras, mas apenas aquelas

bem clarinhas, com cabelo extremamen-te alisado, aquela coisa, o negro queadota todo o referencial de beleza dobranco, bota logo uma lentona verde. Aaculturação é forte, mas aquele que temorgulho, faz trancinha, com este nuncame deparei nem como advogado nemcomo estagiário.

Caminhos para uma democratizaçãoda Justiça

Dentre as várias possibilidades dedemocratização da Justiça, gostaríamos dechamar a atenção para a experiência doCEAP, uma organização não-governamen-tal fundada em 1989 por um grupo demilitantes do Movimento Negro Organi-zado do estado do Rio de Janeiro. O CEAPé independente, sem fins lucrativos, comexperiência em diversas áreas de atua-ção, principalmente no combate à discri-minação racial e na valorização dos direi-tos humanos, objetivando a organizaçãoautônoma dos marginalizados.

As ações políticas do CEAP susten-tam-se em três programas: a) ProgramaJurídico Insurgente de Combate ao Racis-mo (AJIR), b) Centro de Documentação(CEDOM) e c) Núcleo de Comunicação.

Para o Coordenador do AJIR, a pro-posta da entidade é “ser um centro de arti-culação de meios com fim de promoção dadefesa de direitos humanos de uma ma-neira geral e especial da população afrobrasileira”. Com esta finalidade, o AJIR foicriado em março de 1966. De lá para cá, osdois advogados e uma advogada do pro-grama já ingressaram com cinqüenta açõesjurídicas em razão de preconceito e discri-minação racial. O objetivo é a criação dejurisprudência na área criminal e a criaçãode uma prática de indenização na área cível.De acordo com os dois advogados entre-vistados, os resultados são animadores: seno início não conseguiam obter uma sen-tença de mérito, ou seja, o juiz lançava mãode todos os instrumentos jurídicos que dis-punha para extinguir o processo sem jul-gamento do mérito, atualmente, os juízesjá estão levando o processo até a sentençafinal. Nas palavras dos advogados:

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Olha, o nosso projeto tem três anos eagora é que as ações estão tendo resul-tado. Em média, tem sido favorável. Noinício, logo que a gente entrava, elesarquivavam o processo ou indeferiam ainicial por falta de provas. Mas agora elestêm ido até o final, inclusive julgando omérito. Procedente ou não, tem se jul-gado o mérito. No começo do projeto,todas as nossas ações eram, pratica-mente, extintas sem julgamento domérito.

Aos poucos fomos conseguindo superaristo, usando alguns outros artifícios,aumentando a quantidade de pena, ca-pitulando mais de um artigo da lei, cons-truindo a estrada para termos uma sen-tença de mérito, nem que sejaabsolutória, para que fique bem clara aposição do Judiciário. Para a nossa sur-presa, as sentenças de mérito têm dadomais vitórias do que derrotas, tivemosquatro sentenças de mérito, com trêsvitórias e uma derrota.

Esta mudança tem grande relevân-cia, já que é na sentença que o juiz julgaprocedente ou improcedente o pedido, ouseja, reconhece a ocorrência do racismoou ofensa à honra do autor da ação. Umprocesso com grande destaque na mídiafoi o famoso caso da música Veja os ca-belos dela, com mensagens racistas, docantor Tiririca. Ao final do processo, aSony Music Entertainment foi condenadaa pagar uma indenização no valor de trêsmilhões de dólares.

Para a juíza do processo, se houves-se mais profissionais negros no Poder Ju-diciário, algumas questões que são leva-das até aí poderiam ser encaradas de umaforma diferente:

Há casos que são levados ao tribunalem que um negro é chamado de maca-co, isto até hoje não é considerado cri-me de racismo, mas de ofensa à honra

(um crime menor). O que eu acho é quena verdade é racismo comparar alguéma um animal intelectualmente inferior,não tenho nada contra os macacos, mascomparar alguém por causa da cor ...

Um dos maiores problemas enfren-tados pelos advogados do CEAP na defesados direitos dos seus clientes é a faseprobatória do crime. A mais comum e fá-cil prova da ocorrência da discriminaçãoracial é a testemunhal. No entanto, a di-ficuldade de se trabalhar com este tipo deprova compromete a eficiência dos servi-ços prestados. Muitas vezes, num primei-ro momento, as testemunhas se dispõema depor, mas, no momento seguinte, vol-tam atrás ou até mesmo apresentam de-poimentos comprometedores. Nestes ca-sos, o processo acaba sendo arquivado ou,na melhor das hipóteses, desqualifica-seo crime.

Mais uma vez, é importante lembrarque os advogados destes serviços nãoesbarram apenas com a fragilidade daprova testemunhal, mas, mais seriamen-te, com o mito da democracia racial bas-tante presente na atuação do Poder Judi-ciário. Ou seja, mesmo que o processoesteja respaldado por uma prova teste-munhal convincente, é preciso contar coma sorte para não se deparar com juízesdescrentes da existência de racismo nasociedade brasileira.

Conclusão

Com a expansão do ensino médio edo ensino superior é indiscutível o pro-cesso de modificação no perfil dos estu-dantes universitários como um todo(Junqueira, 1999). Da proliferação doscursos jurídicos nas últimas décadas, ori-ginou-se um processo de diversificaçãodos estudantes de direito. Atualmente osalunos das faculdades jurídicas não sãoapenas os filhos da elite dominante. Es-

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tudantes de outros segmentos sociais es-tão sendo recrutados pelas novas escolasjurídicas e, com isto, o perfil dos atoresdo direito vem sendo modificado. Por con-seqüência, era de se esperar uma demo-cratização do acesso à justiça, bem comoa criação de um novo sentido de justiçamais comprometida com a realidade dasociedade brasileira. Diante deste proces-so, os estudantes de direito exercem umafunção importante.

Não se trata, obviamente, de afirmarque a presença de estudantes negros noscursos jurídicos seja imprescindível parauma conscientização das desigualdadesdas relações raciais e sociais. Não se pre-tende atribuir aos novos estudantes a ta-refa de aproximar os cursos de direito àrealidade brasileira. Todavia, é forçosoreconhecer que estes estudantes têm umafunção nas escolas jurídicas, pois, em úl-tima análise, são responsáveis pela que-bra da normalidade da ausência. Tambémé legítimo esperar destes estudantes e dosfuturos operadores do direito uma maiorligação entre direito e raça.

Uma pesquisa a respeito das produ-ções acadêmicas sobre relações raciais edireito demonstra claramente esta tendên-cia. Ou seja, a maioria das (poucas) dis-sertações de mestrado bem como a lite-ratura sobre raça e direito é de autoresnegros, vinculados ao movimento negro.Mais uma vez, referendando a opiniãoquase unânime dos alunos do Pré-Vesti-bular para Negros e Carentes, antes dacor da pele, é preciso ser negro. Ou seja,é importante que o aluno ou o profissio-nal de direito negro tenham consciênciadas desigualdades raciais para que con-tribuam para uma mudança na condiçãodo negro na sociedade brasileira.

Os dados da pesquisa não trouxeramelementos substantivos para comprovar

a tese, de origem anglo-saxã de que umamaior presença de operadores de direitocontribui para a democratização da justi-ça. No entanto, sem dúvida, como foi am-plamente reconhecido, a presença do es-tudante negro em salas predominante-mente de alunos brancos é extremamen-te pedagógica. Quando se debate sobrejustiça, igualdade e raça, a presença doaluno negro é imprescindível para a com-preensão da própria discussão. Assim,quando mencionam as situaçõesdiscriminatórias decorrentes das portasgiratórias das instituições privadas, sobre-tudo as financeiras, se a turma é com-posta só por alunos brancos, na verdade,o debate não se desenvolve, pois, em ge-ral, há um consenso de que o dono dainstituição pode barrar e permitir a en-trada de quem quiser. Mas, se há um alu-no negro, a discussão evolui e opiniõescontrárias são levantadas. Muitas vezes,preconceitos e atitudes racistas são tra-zidos à tona, permitindo que o debateganhe um viés ainda mais jurídico, umavez que a discriminação racial é crime.

Desta forma, a presença de estudan-tes negros é importante para um proces-so de reconhecimento da discriminaçãoracial e para que o racismo não permane-ça “estranho ao domínio do direito”, con-forme ensina Denise Ferreira da Silva(2000):

Much of the problem with the logic ofracism – the logic of exclusion – derivesfrom the assumption that racist ideasare foreign to the modern conception ofJustice. Many have pointed to theshortcomings of the liberal perspectivewhich condemns racist ideas andpractices on the grounds that theycounter the universalism inherent to thediscourse of modernity. The mostimportant contribution of such critiquesof the liberal paradigm of justice has

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been to point out how racist ideas arenot extraneous to modern imaginationbut that they circumscribe the zone ofoperation of universality. Becauseprinciples, procedures, and judicialdecision-making are informed by theprinciples associated with the culture ofthe dominant ‘racial group’, and becausethose implementing them usually sharein the interests and principles of thosewho will benefit from raced-basedexclusion, the argument that racism isforeign to the domain of law cannot besustained21 .

Não podemos fazer como uma das alu-nas entrevistadas na PUC-Rio, que se sen-te inibida para colocar certos assuntos,como, por exemplo, sobre as desigualda-des das relações raciais e sociais, pois acre-dita que seu comportamento deve ser pau-tado pelo ambiente. Ou seja, acredita que,por ser minoria ali naquele universo, já quetem o privilégio de estar ali, o mínimo quepode fazer é não incomodar levantandoquestões que não interessam à maioria. Naverdade, começar a discutir um problemaé a primeira forma de enfrentá-lo.

Anexo - Roteiro da entrevista

1. Racismo deveria ser mais debatido nasdiversas disciplinas do curso de direito?

2. Você já teve alguma disciplina queanalisou este tema especificamente?Qual? Como foi?

3. Você já fez a disciplina de direitoshumanos? Ela deveria ser obrigatória? Porque?

4. Você gostaria de trabalhar em umaorganização que prestasse assistênciajurídica a pessoas vítimas de discrimina-ção racial?

5. Você acha que se houvesse um mai-or número de professores negros haveriauma maior preocupação para que o advo-gado atue em casos de discriminação?Você acha esta formação específica im-portante?

6. Você acha que a justiça trata igual-mente brancos e negros? Por que? O quepoderia ser feito para mudar isso? Ummaior número de profissionais do direitonegros reverteria isso? Por que?

7. Os serviços jurídicos que atuam emcasos de discriminação racial queixam-seque os profissionais do direito são mal pre-parados para este tipo de prática. Vocêacha isto verdade? O que poderia ser fei-to para modificar esta situação?

8. Você sabe quais são as principais leiscontra discriminação racial no Brasil?Quais são? Você acha que o ordenamentojurídico brasileiro tem instrumentos sufi-cientes e adequados para combater a dis-criminação racial?

9. Você já assistiu a algum seminárioespecífico sobre direito e relações raci-ais? Já viu anunciado algum semináriosobre este assunto? Teria interesse espe-cífico em assistir?

10. Você acha que deveria haver umaassociação dos estudantes negros na PUC,como existe em universidades norte-ame-ricanas? Por que? Que contribuição este

21 A lógica do racismo – a lógica da exclusão - assume que idéias racistas são alheias à concepçãomoderna de justiça. Muitos já identificaram as limitações da perspectiva liberal, que condena idéias epráticas racistas, porque elas contrariam o universalismo inerente ao discurso da modernidade. Amaior contribuição dessas críticas ao paradigma liberal de justiça tem sido ressaltar que idéias racistasnão são exteriores ao imaginário moderno, mas, na verdade, elas circunscrevem a zona de operaçãoda universalidade. Precisamente porque os princípios, procedimentos e decisões judiciais são associa-das à cultura do “grupo racial” dominante, e porque aquele/as que as implementam compartilham osmesmos interesses e princípios com aquele/as que se beneficiam da exclusão racial, o argumento deque o racismo está fora do domínio da lei é insustentável.

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tipo de associação poderia trazer?

11. Que tipo de discriminação é maisdifícil para ser vencida como profissionaldo direito, problemas de raça ou proble-mas de classe social?

12. O que poderia ser feito para au-mentar o número de estudantes negrosnas faculdades de direito?

13. Qual seria o papel da ordem dosadvogados neste processo?

14. Qual a instância da sociedade maisimportante para o combate à discrimina-ção racial: a política, a jurídica ou a edu-cacional? Por que?

15. Você gostaria de lecionar em umafaculdade de direito? Qual disciplina?

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