Nelson Rodrigues [=] O cafajeste não viaja
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Nelson RodriguesNelson RodriguesNelson RodriguesNelson Rodrigues
O CAFAJESTE NO VIAJA
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Qualquer um pode viajar, menos o brasileiro. O ingls
pode ir para a China e jamais ser mandarim. Do mesmo
modo, a inglesa. Uma inglesa, em Tquio, no ser jamais
uma madame Butterfly. E assim o francs, ou o alemo, ou
a alem. Ao passo que o brasileiro, a partir do Mier,
comea a usar os sotaques do seu itinerrio turstico. E,
por vezes, no preciso nem a viagem. Basta um
telegrama.
Recentemente, os estudantes franceses fizeram uma
singular revoluo francesa. Tudo consistia em arrancar
paraleleppedos e virar carros. Foi talvez a primeira
revoluo feita sem uma nica idia. Os jovens
arrancavam os paraleleppedos, viravam os carros e nada
mais. Exatamente: nada mais.
E houve um momento em que o poder ficou vago. A
histria pensou: Vem por a um novo De Gaulle. E o
velho De Gaulle no moveu uma palha, no tirou uma
cadeira do lugar. O poder estava l, nas alegres barbas da
jovem revoluo e repito: o poder oferecia-se como um
fruto maduro, prximo e indefeso. Bastava o simples gesto
de colh-lo. E ningum fez esse gesto. Nem estudantes,
nem socialistas, nem comunistas, nem intelectuais, nem
operrios. Ningum.
Um conhecido meu abria os braos e perguntava:
Mas como? Uma potncia espiritual, como a Frana, no
tinha ningum?. Era a humilhante verdade: ningum.
Ou por outra: tinha o velho De Gaulle e s De Gaulle. E,
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portanto, foi o Heri que, com o seu tdio sardnico, ficou
com o poder no possudo por ningum.
Mas no era isso que eu queria dizer. O que eu
queria dizer que os nossos jovens se embebiam das
notcias de Paris. Vejam vocs: possvel, pelo
telgrafo, mudar as nossas idias, sentimentos, valores. E,
ento, comeou aqui uma efervescncia feroz. Tambm
carros virados. Ningum arrancou os paraleleppedos,
porque somos uma cidade asfaltada. Fez-se uma jovem
revoluo liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo
era apcrifo. Aqui, ningum teve um gesto prprio, uma
fria autntica, um palavro original e profundo.
Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de
sua paisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagir
ele, em Paris, Londres, Berlim ou Nova York? Est l
submetido a presses insuportveis. Bem me lembro do
meu amigo Otto Lara Resende. Passou dois anos na
Europa. E, quando voltou, era outro Otto. Fomos passear
em Ipanema. Diante do poente do Leblon, inaugurou ele
uma de suas frases mximas: Paisagem verba!.
Insinuei que o nosso poente no faz vergonha. Mas ele
insistiu: Poente verba!.
E, mais uma vez, verifiquei que rarssimos
brasileiros podem viajar alm de Bangu. O outro caso. H
trs ou quatro meses, o meu amigo Carlos Heitor Cony
bateu-me o telefone: Nelson, vim me despedir. Como
seu tom era meio lgubre, ainda brinquei: Vais te
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matar?. Respondeu: Ainda no. Vou viajar. Protestei:
No faa isso. Conversamos uma meia hora. Insistia
eu: O brasileiro que viaja volta mais burro. Jurei:
No conheo um brasileiro que no voltasse mais burro.
Ele resistiu at o fim: Voc exagera. No nada disso.
Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei a dizer-lhe que
ele precisava ser o cafajeste total. No exagerava. De fato,
um maravilhoso cafajeste est inserido nele, est
enterrado nele como um sapo de macumba. E o cafajeste
no viaja.
O pior que a viagem ia ser imensa. Passaria por
Berlim, Paris, Moscou, Londres e, at, o Plo Norte.
Imaginei que voltaria um ex-Cony, um anti-Cony. E me
preocupava tambm o destino do seu riso. O meu amigo
tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como os antigos
stiros vadios. Imaginei que a viagem pudesse emudecer-
lhe o riso.
E o Cony partiu. Trs meses de ausncia densa,
cruel, desesperadora como a morte. Outro dia, paro num
sinal fechado. Estou em cima do meio-fio, esperando,
quando um automvel encosta e algum anuncia: O
Cony chegou! O Cony chegou!.
Pouco depois, entro na redao e ligo para o amigo.
Ia perguntar-lhe: Como ? Ficaste mais burro?. Mas
no estava. Deixei o meu nome. E esperei em vo que me
telefonasse. Nada. No dia seguinte, ligo outra vez. Tambm
no estava. Liguei outras vezes. Nunca estava. Ele, aqui, a
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dois passos, parecia longnquo como se ainda existisse
entre ns dois a distncia que vai de Ipanema ao Plo, do
Castelinho a Cingapura.
Sou um pessimista e logo imaginei: outro Hlio
Pellegrino. J falei do abismo ideolgico que se cavou
entre mim e o Hlio. Tenho escrito sobre passeatas, d.
Hlder e dr. Alceu. Em confisses sucessivas, acusei as
esquerdas de uma alienao monstruosa etc. etc. O Hlio
no gostou. Dizia-me com a sua bela voz de Paul Robeson
branco: No o momento! No o momento!.
Enquanto o Hlio falava assim, em arroubos, eu pensava
nos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e
por outros. Ferido como estou, no ouso trapacear comigo
mesmo e com os demais. Digo o que sinto e o que penso.
Apenas.
Todavia, na vspera dos meus anos, o Hlio ligou
para mim. Ningum mais doce: Pode dizer nos seus
artigos que voc dos meus amigos fundamentais. Dias
antes, de pblico, eu o desafiara a jantar comigo no meu
aniversrio. E o Hlio explicava: Mas no posso jantar
contigo amanh, porque vou sair do Rio. Era o dcimo
encontro que ele adiava. Jurou, porm: Janto contigo
na semana que vem.
Isso foi no dia seguinte. No me concedeu um msero
telefonema. Se eu fosse esperar por ele, e seu prodigioso
jantar, estaria morto de fome.
E j me parecia que, como o bom Hlio Pellegrino, o
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Cony fugisse de mim. No queria, decerto, conspurcar-se
com o meu oba ou com o meu aperto de mo. Pois bem.
At que h o temido encontro. A coisa ocorreu no Museu
da Imagem e do Som. Ele ia depor sobre a figura e a obra
de Mrio Filho.
Assim que o vi, e ele me viu, houve o suspense de
um ou dois segundos. Em seguida, veio o abrao
desesperado, o riso violento e recproco e a certeza de que
ramos amigos para sempre. Disse-me Cony: Recebi o
teu recado. Mas no telefonei, de propsito. No queria ver
ningum. Por enquanto, no. Foi a que eu reparei: era
um outro Cony que estava na minha frente, talvez mais
atormentado e talvez mais puro. Sim, um Cony trabalhado
pela solido, um Cony de uma outra densidade. Perguntei,
aflito: E a viagem? E a viagem?. Varara o mundo e
fora at ao Plo Norte. E eu: Que tal? Que tal?.
Respondeu srio, cruel: Tudo a mesma coisa! Tudo a
mesma coisa!. Vira a Vnus de Milo: Tem erisipela. E
da Gioconda: Tem mau hlito. O Louvre, uma
impostura. Estava triste e exausto de tudo o que vira.
Passara na Rssia, na Frana, na Inglaterra, na
Tchecoslovquia. E, por fim, fez um resumo desesperado
de tudo: O homem fracassou.
[O GLOBO, 18.9.1968]