Nelson Rodrigues [=] O leque foi um momento

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Nelson Rodrigues O O L L E E Q Q U U E E F F O O I I U U M M M M O O M M E E N N T T O O

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Crônica de 1968

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Nelson Rodrigues OO LLEEQQUUEE FFOOII UUMM MMOOMMEENNTTOO [1] Opatticodenossapocaqueopas-sadoseinsinuanopresenteerepito:a todahoraeemtodaparte,avidainjetao passado no presente. Olhememtornoevejam.terrvel.O passadoirrompenumagravata,numgesto, numsapatoounumcolarinho.Estamos usando os bigodes dos nossos avs. H su-jeitosquesevestemecalamcomoosnos-tlgicos defuntos familiares. Outro dia fui ao Chacrinha, na TV Glo-bo. Comigo ia o Joo Saldanha. O programa elegera, a mim, o maior cronista esportivo de jornale,aoJoo,omaiorcomentaristade TV.(EtnhamosambosumardePrmio Nobel.)Poisbem:enuncavimultido tamanha.Sempredigoqueamultido inumana porque no tem cara. Caranotem.Mascheira.Eisadesco-[2] bertaquefiznoChacrinha:amultido cheira. Quando entrei no auditrio, senti um cheiro que eu j conhecia, mas no sabia de onde,nemquando.Foitodaumavoltaen-cantada. Sim, de repente, eu me via instalado nainfncia.Passeiater,novamente,seis, seteanos.Estoucaminhando,descalo,na rua So Francisco Xavier. E, sbito, vejo um estbulo. Vacaspalustresebelas,comoemJorge deLima.EraInvenodeOrfeuemSo Francisco Xavier e antes de Inveno de Or-feu.Emplenobairroresidencialosujeito ouvia mugidos imensos, inconsolveis mugi-dos. Eis o que importa dizer: ao entrar no Chacrinha fui agredido por um cheiro que, a princpio,mepareceudesuorvelho.Mas logoretifiquei:noerasuorvelho.(As gr-finas europias que cheiram a suor ve-[3] lho.) O que eu sentia era um forte e obsessi-vo odor vacum. Duasmilpessoasnumespaoquedaria paraquinhentas.(EcomooChacrinha amadopeloauditrioe,repito,ferozmente amado!) Aquela massa faria, por amor, o que ele dissesse. Nunca ningum me deu, na vida real,tamanhasensaodeonipotncia.Se mandasseoauditrioatearfogosvestes comoumanamoradasuburbana(ouum monge budista), seria um fogaru unnime. Anicacaraqueeuconseguiaver,en-quantolestive,foiadoJooSaldanha. Ningum mais tinha cara, nem o Chacrinha. E, de repente, descubro, na massa, esta coisa inatualelinda:umleque.Eraumtoque nostlgicoedelicioso.Fascinado,fiquei olhandoasenhoraque,nasualanguidez antiga, se abanava com um leque autntico. [4] Entendoqueasmodaspassem,como passouocharleston,comopassouBenjamin Costallat.Massomosumpovocanicular, desde a Primeira Missa. Eis o que pergunto: e por que o leque est entre os usos fene-cidos do Brasil? No programa do Chacrinha faziamaiscalordoqueemCanudos.Pois, enquantooauditrioboiavanoprpriosu-or, eu s via um nico e escasso leque. (Dir algumqueabailarinaespanholaaindausa leque.Usa.Masoqueainteressanoa higinicaventilaoesimofrmito plstico do gesto.) Mas, assim como o fraque, ou o esparti-lho, ou o guarda-chuva de Paulo de Frontin, tambmolequerepresentaumapocaou, melhordizendo,aBellepoque.E,ento, fiquei magnetizado. O leque solitrio tornou-se, para mim, uma presena obsessiva. Era o [5] passado.E,realmente,asNovasGeraes noentendemopapeldolequenagraae no comportamento da mulher. Naminhainfncia,elanoconseguia flertar,ougostar,outrair,semoleque.As AnasKareninasdoseutempotinhamque olharporcimadoleque,ousorrirportrs do leque. Esses movimentos insinuavam no seiquedelicadavoluptuosidade.Josho-mensusavamventarolaspromocionaisdas cervejas. (Tambm houve um Brasil das ven-tarolas.)E,derepente,tantosanosdepois, emplenoChacrinha,vejoumasenhoraque se abana, e no com a Revista do Rdio. En-quantoosoutrosseesvaamemmilhesde suores,elasentiaosuavssimohlitodole-que. Eu e o Joo Saldanha custamos a receber onossotrofudosmelhoresdoano.Por [6] uma canicular meia hora, ainda ostentamos a nossamodstiadePrmioNobel.Etive tempodeampliar aminhavolta proustiana. Porexemplo:lembrei-medeumavelhi-nhademinhainfncia.Havia,emAldeia Campista,umacasagrande.Imaginemuma chcara de Jos de Alencar, com manga-rosa, jaca,abacate, goiaba e carambola. (Hoje, ca-rambola deixou de ser fruta e virou gria.) Elmoravaavelhinha.Teriaoitenta anos.NoBrasilcontemporneo,desaparece-ramcertasidades.Onicobrasileiroque tem oitenta anos Gilberto Amado. Podero objetarqueRaulFernandesmorreucom maisdenoventa.Bom.Quemfeznoventa anos,oumais,estisentodotempo,isento deidade.Eisoqueeuqueriadizer:o tempotornara avelhinha surda, mudae ce-ga.Eosolhosquenoviamtinhamuma [7] misteriosa doura compassiva. Eratambmumapobrefigurasemges-tos.Ouporoutra:seunicogestoerao do leque. S sabia fazer isso, esse era seu l-timomovimento.Osnetos,osfilhos,leva-vam d. Constana (assim se chamava) para o quintal. Ficava debaixo da mangueira, ou da jaqueira, sentadinha, abanando-se. Quietanosonodacarneedaalma,pa-reciaumammiadean.Olequerespirava pela velhinha. Quandomorreu,asensaodetodaa AldeiaCampistafoiadequenoeraapri-meiravez,dequejmorreraoutrasvezes. Mas,oqueassombrouobairroeafamlia foramseusltimosmomentosdevida.No quarto,estavamfilhos,netos,parentes,vizi-nhos. Outra presena: o padre. E, sbito, amudinhacomeouafalar.Nosorriah [8] anos,e comeouasorrir.Nochorava,eas lgrimasdeslizavam,umaauma.Eraum milagre. E logo os presentes perceberam tudo: elaestavavivendo,ourevivendo,aprimeira noite, no outra qualquer, mas exatamente a primeiranoitedoseucasamento.Omarido morrera h meio sculo. E ela se crispava de pudorantigo,erepetiuogritodesessenta anosatrs.Ningumentendiaaqueleapelo erticoqueseirradiavadenoseiquepro-fundezas. Morreu amada, morreu amando. [O GLOBO, 16. 01. 1968] APEDEUTEKA GUINEFORT, 2015