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Nepomuceno e Saint-Saëns: relações intertextuais
Robison Poreli Moura Bueno Universidade de São Paulo – [email protected]
Resumo: O presente estudo apresenta o compositor Alberto Nepomuceno como cosmopolita,
superando antigas posições musicológicas que o classificavam de pré-nacionalista. Utilizando-se da
teoria da intertextualidade, pretende demonstrar como a Antigone de Saint-Saëns serviu como modelo
composicional para a Électre de Nepomuceno, revelando assim, o contexto cultural e teórico-
composicional ao qual estava inserido o compositor quando da composição desta obra.
Palavras-chave: Nepomuceno, Saint-Saëns, intertextualidade.
Nepomuceno and Saint-Saëns: intertextual relationships
Abstract: This study presents Alberto Nepomuceno as a cosmopolitan composer, surpassing
musicological former positions that consider him as a pre nationalist composer. Using the theory of
intertextuality, it aims to demonstrate how the Antigone by Saint-Saëns served as a compositional
model for Électre by Nepomuceno, thus revealing the cultural and theoretical compositional context to
which the composer was inserted when the composition of this work.
Keywords: Nepomuceno, Saint-Saëns, intertextuality
1 Nepomuceno na musicologia brasileira: nacionalista ou cosmopolita?
Alberto Nepomuceno (1864-1920) nasceu em Fortaleza, Ceará. Após estudar piano
e violino com o pai e harmonia com Miguel Cardoso (1850-1912), tornou-se professor de
piano do Club Beethoven no Rio de Janeiro. Em 1887 apareceram suas primeiras
composições e, em 1888, ele estreou sua Dança de Negros, para piano, que mais tarde se
tornaria o Batuque da Série Brasileira para orquestra. No mesmo ano, ajudado pelo escultor
Bernardelli, viajou para a Europa, onde estudou na Academia Santa Cecília de Roma. Com
bolsa do governo brasileiro, transferiu-se para Berlim, onde frequentou o Conservatório
Stern, e depois, para Paris, estudando com o organista Alexandre Guilmant.
Ao voltar ao Brasil, em 1895, Nepomuceno entrou em disputa com o crítico Oscar
Guanabarino, defendendo o canto em língua portuguesa e atacando ao hábito da época de se
cantar em italiano. Os biógrafos de Nepomuceno dizem que ele teria cunhado um lema: “Não
tem pátria um povo que não canta em sua língua”. Por causa dessa campanha, Nepomuceno
acabou ganhando a alcunha de “precursor” do nacionalismo musical brasileiro. Vasco Mariz
(2000, p. 118), por exemplo, o chama de “iniciador do movimento nacionalista no Brasil”,
mas também informa que “a percentagem de peças brasileiras na obra do mestre é bem
limitada, apenas 30% do total” (MARIZ, 2000, p. 120-121). Assim,
na tradição de estudos sobre a música brasileira, Alberto Nepomuceno
aparece como um ‘precursor’ do nacionalismo musical, escrevendo música
de ‘caráter nacional’. Segundo essa tradição, a parte interessante de sua obra
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são as peças em que o cearense exercitou o ofício de compor a partir das
tradições musicais rurais ou urbanas do país. A consequência é a
desqualificação e o esquecimento da maior parte de sua obra e também a
dificuldade em se compreender seu papel no contexto histórico-cultural em
que viveu (PEREIRA, 2007, p. 21, grifos nossos).
Por causa desse pensamento, a análise de obras concebidas sob a influência de
estilos musicais “cosmopolitas” foi considerada desnecessária, pois só revelaria uma música
influenciada por Brahms e Wagner nos gêneros acadêmicos e operísticos e, por Debussy nas
obras “modernistas” posteriores (VIDAL, 2011a, p. xiv).
Em estudos mais recentes, o cosmopolitismo de Nepomuceno passou a ser
valorizado e estudado com bastante rigor analítico. Norton Dudeque, por exemplo,
identificou
aspectos que correspondem às instruções pedagógicas adotadas no ensino
acadêmico de Berlim na época dos estudos de Nepomuceno. [...] parece ser
evidente que a música de Beethoven e Brahms caracterizada por variação
progressiva possa ter influenciado o então jovem Nepomuceno (DUDUQUE,
2005, p. 228)
Rodolfo Coelho de Souza, explorando também o tema, dedicou-se ao estudo das
canções de Nepomuceno sobre textos estrangeiros. Em um interessante artigo, Souza (2006)
encontra elementos característicos da harmonia progressista germânica (acordes aumentados,
harmonias errantes, tonalidade suspensa, escala de tons inteiros, etc.) em canções como
Oraison (poema de Maeterlinck) e Einklang (poema de Lenau) de Nepomuceno.
Em outro artigo, Souza (2007, p.5) demonstra que “as canções de Brahms são a
fonte provável dos modelos que Nepomuceno utilizou quando se deixou influenciar pelo Lied
alemão”. Essa demonstração é feita por meio de competente análise estrutural de duas
canções de Nepomuceno: O wag'es nicht e Coração indeciso. Nessas canções, Souza
identificou o uso da bar form numa variante chamada Reprisenbar, pela qual Brahms tinha
preferência.
Souza resume bem as características do cosmopolitismo de Nepomuceno:
Uma das características marcantes da personalidade musical de Nepomuceno
é sua capacidade de absorver as mais diversas influências das diferentes
escolas de composição pelas quais passou, incorporando-as à sua linguagem
de maneira individual. Todas essas influências são filtradas por seu estilo
pessoal, no qual o gosto refinado e a elegância da frase disfarçam as
frequentes ousadias harmônicas e formais (SOUZA, 2005, p. 68).
Dessa maneira, os estudos até o momento já identificaram algumas das ligações
composicionais de Nepomuceno: Brahms, Wagner, Grieg, Fauré, Chausson, Liszt, Debussy...
Recentemente, também Max Bruch veio a fazer parte desta lista (VIDAL, 2011b). Por meio
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de um breve estudo sobre a música incidental Électre, propomos mais um nome para a lista, o
compositor francês Charles-Camille Saint-Saëns (1835-1921).
2 A Électre de Nepomuceno
No tempo que viveu em Paris, Nepomuceno conheceu Saint-Saëns, Charles
Bordes e Vincent D’Indy, entre outros, tendo presenciado importantes fatos histórico-
musicais, como a estreia do Prélude à l’après-midi d’um faune, de Claude Debussy. A
música incidental para tragédia Electra, de Sófocles, surgiu de um convite do professor
Charles Chabault, catedrático de grego na Sorbonne, que traduzira a peça para o francês
(CORRÊA, 1996, p. 11).
Essa obra foi estreada em Paris, em 30 de maio de 1895, deixando, ao que parece,
boa impressão no público francês de então, como nos conta o pioneiro musicólogo brasileiro
Guilherme de Melo (1867-1932):
Na sala de espetáculos de Saint Barbes des Champs, perante numeroso e
seleto auditório, teve lugar a execução de diversos trechos desta ópera (sic),
que mereceu calorosos aplausos e juízos lisonjeiros da imprensa francesa
(apud MOURA, 2008, p. 55).
Posteriormente, no Brasil, apenas excertos viriam a ser executados, como no
famoso concerto de 04 de agosto de 1895, que marcou a volta do compositor ao Brasil. Nessa
época, a Électre foi bem recebida pela imprensa, sendo elogiada pelo “sabor estranho de
arcaísmo” e espontaneidade (CARVALHO, 2003, p. 68 e 75).
Contudo, nos anos subsequentes, a Électre foi esquecida, tanto pela crítica quanto
pela incipiente musicologia brasileira cuja forte inspiração era Mário de Andrade. Este, por
sua vez, considerava a produção de Nepomuceno como “deficiente”, por não expressar
plenamente o nacionalismo por ele pretendido (ANDRADE, 1991, p. 24).
3 Intertextualidades
Na musicologia contemporânea, uma das teorias mais impactantes tem sido a da
intertextualidade, termo cunhado em 1967 por Julia Kristeva. Essa teoria desenvolveu-se
através do pós-estruturalismo e traz a ideia de que “qualquer texto é definido por meio de sua
relação com outros textos” (BEARD, 2005, p. 95). Portanto, por trás de cada obra musical,
há “uma teia de referências à outra música: sua unidade é variável e relativa. Os textos
musicais falam entre eles mesmos” (KLEIN, 2005, p. 4).
Como aponta João V. Vidal,
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O conceito de intertextualidade apresenta-se como um instrumento teórico
de alta relevância para uma revisão da música brasileira do séc. XIX e suas
vinculações com a música europeia do período que adote como ponto de
partida métodos de análise estilística. No modelo que o conceito propõe, a
noção de influência estilística se manifesta não no sentido dialético de
confrontação de vozes, mas numa concepção dialógica onde tais vozes se
apresentam justapostas, aglutinadas ou transformadas (VIDAL, 2011, p.
70).
Assim, com qual obra Nepomuceno estaria tecendo seu diálogo intertextual?
Encontramos na Antigone (1893) de Saint-Saëns semelhanças musicais com a Électre de
Nepomuceno. O prelúdio da Électre inicia-se com as cordas em uníssono e oitava (fig. 1). O
prólogo da peça de Saint-Saëns também tem a mesma textura (fig. 2), apesar do uso
completamente diferente do material escalar. Essa textura monofônica será uma constante
tanto em Nepomuceno como em Saint-Saëns.
fig. 2 – Nepomuceno, Électre, Prelúdio, c. 1-6.
fig. 3 – Saint-Saëns, Antigone, Prólogo, c. 1-14.1
Nas duas peças, o modalismo é o idioma dominante, os coros são em uníssono,
1 Ainda não tivemos acesso à grade orquestral da peça de Saint-Saëns, somente à redução para piano.
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os instrumentos dobram as vozes e a instrumentação é praticamente a mesma: flauta, oboé,
clarineta, harpa e cordas. Vejamos, agora, o início do primeiro coro da Antigone de Saint-
Saëns (fig. 4).
fig. 4 – Saint-Saëns, Antigone, Primeiro Coro, c. 1-8.
Se o trecho for reduzido a uma única linha melódica e comparado com início do
Prelúdio da peça de Nepomuceno, podemos encontrar muitos pontos em comum,
explicitados nas fig. 5, 6 e 7.
Saint-Saëns:
Nepomuceno:
fig. 5 – Algumas relações mais aparentes
notas iguais inversão intervalar mesmos intervalos e
motivos
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Saint-Saëns:
Nepomuceno:
fig. 6 – Conexão intervalar mais ampla
Saint-Saëns:
Nepomuceno:
fig. 7 – Exemplo de transformação motívica
A teoria da intertextualidade, ao revelar a relação de Saint-Saëns com
Nepomuceno, permiti-nos conhecer melhor o universo musical e teórico no qual o
compositor brasileiro estava inserido. No prefácio de sua Antigone, Saint-Saëns revela as
suas referências, ou seja, os seus intertextos: excertos musicais de Eurípides, um hino de
Píndaro e uma canção popular grega. Tudo com base na monumental obra Histoire et
Théorie de la Musique de l’Antiquité (1875) do compositor e teórico belga François-Auguste
Gevaert (1828-1907). Segundo Elinor Olin,
No final do século XIX, na França, uma fascinação geral pela cultura
clássica grega, particularmente a tragédia grega, estava no ar. Traduções de
obras de Eurípides e Sófocles eram encenadas com grande aclamação pela
Comédie-Française e o Théâtre de l’Odéon. Semanalmente, conferências
públicas eram oferecidas pelo eminente dramaturgo Ferdinand Brunetière,
no Odéon por vários anos durante o início da década de 1890. A última
pesquisa sobre música grega antiga era amplamente discutida e citada nos
jornais. A História e Teoria da Música da Antiguidade (publicada em
1875-81) de François-Auguste Gevaert, estabeleceu o padrão para as
pesquisas subsequentes de musicólogos como Maurice Emmanuel e
forneceu a base para a importante descoberta de Théodore Reinach, o Hino
à Apolo, publicado pela primeira vez em 1892 (OLIN, 2011, p. 46, tradução
nossa).
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A adoção de uma obra de Saint-Saëns como modelo composicional por
Nepomuceno não deve causar estranheza. Mesmo não sendo um romântico conservador, o
brasileiro também não era um modernista iconoclasta. “Nepomuceno desenvolve sua música
a partir dos dois paradigmas característicos do séc. XIX: o estudo de modelos formais
abstratos e a imitação de obras primas dos grandes compositores” (SOUZA, 2008, p. 79). E a
figura de Saint-Saëns, naquele momento, ainda desempenhava grande respeito e influência,
sendo chamado até de o “Beethoven francês”. De fato, o compositor francês expressou-se em
quase todos os gêneros musicais, era um virtuose que tocava, escrevia, viajava a lugares
exóticos e cultivava amizades em todo o mundo com astrônomos, filósofos, botânicos e
amantes comuns da música (PASLER, 2012, p. xi).
4 Conclusão
Dado o exposto, podemos inferir que a figura de Nepomuceno como “precursor”
da música nacionalista brasileira está superada. Os estudos mais abalizados procuram
compreender as relações de sua obra com fontes estrangeiras, reavaliando a posição de sua
música no contexto da música brasileira. Na análise de sua Électre, por meio da teoria da
intertextualidade, chegamos à Antigone de Saint-Saëns, revelando o contexto cultural e
teórico-composicional ao qual estava inserido Nepomuceno na Paris do final do séc. XIX.
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