Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Geociências Departamento de Geografia ROGÉRIO BEZERRA DA SILVA NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA: ANÁLISE DE ELEMENTOS DAS CORRENTES TEORÉTICA- QUANTITATIVISTA, ECOLÓGICA E CRÍTICA Campinas 2005

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Geociências Departamento de Geografia

ROGÉRIO BEZERRA DA SILVA

NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA: ANÁLISE DE ELEMENTOS DAS CORRENTES TEORÉTICA-

QUANTITATIVISTA, ECOLÓGICA E CRÍTICA

Campinas 2005

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ROGÉRIO BEZERRA DA SILVA

NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA: ANÁLISE DE ELEMENTOS DAS CORRENTES TEORÉTICA-

QUANTITATIVISTA, ECOLÓGICA E CRÍTICA Monografia apresentada ao

Departamento de Geografia do

Instituto de Geociências da

Universidade Estadual de

Campinas como parte dos

requisitos para a obtenção do título

de Bacharel em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Renato Peixoto Dagnino.

Campinas 2005

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A Manoel Bezerra da Silva, In Memoriam

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AGRADECIMENTOS

Do Passo aos Passos Os primeiros passos têm a mão que acalenta. Quem sustenta em

mim a Vida e a Alegria, à minha mãe Maria.

As descobertas a que o futuro é induzido, no divagar que o trajeto

nos submete eis que surgiria, amar, Valquiria.

Firmar-se no chão e juntos no trajeto persistir, Rodrigo, Reginaldo

e Gabi.

E quando os tropeços ameaçam derrubar, surgem mãos a

sustentar. As de Levi e Célia assim vão estar.

Tantos destinos percorridos e assim constituem-se amigos. Em um

dos passos encontrei, Divanei. Em outras paragens encontrara

Aguinaldo e Cínara. Quando se anda, Fernanda. Por aqui, David.

Neste caminho em que o corpo se sustenta novos destinos se

intercruzariam. No passeio academia sublimes amigos surgiriam. Pela

vida interiorana, Ana. Entre os jasmins e as muralhas, Josimara. Em

relevo escarpado, Ricardo. Morros e mares, Dani Mary. O som do mar e

o soar do sino, Mariana Versino. Em um dos passos, Leandro,

Cristiano, Fabrício, Henrique e Lucas Melgaço. A utopia necessária,

Adriana Bernardes, a sustentava. Onde o mar encontra-se com o céu,

Marcel, litoral.

Por este passo aqui consolidado, ao Javier, à Rita e, com imensa

gratidão, ao Professor Renato.

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“Tem dias que a gente se sente um

pouco, talvez, menos gente. Um

dia daqueles sem graça, de chuva

cair na vidraça. Um dia qualquer

sem pensar, sentindo o futuro no

ar. O ar, carregado sutil. Um dia de

maio ou abril. Sem qualquer amigo

do lado. Sozinho em silêncio,

calado. Com uma pergunta na

alma: Por que nessa tarde tão

calma o tempo parece parado?”

Raul Seixas

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RESUMO

Este trabalho aborda um tema pouco tratado pela ciência

geográfica: como os cientistas geógrafos concebem a prática científica.

Para tanto, analisa elementos das correntes teorética-quantitativista,

ecológica e crítica da Geografia.

Esses elementos são explorados a partir das obras de Antônio

Christofoletti (corrente teorética-quantitativista), Aziz Nacib Ab’Sáber

(corrente ecológica) e Milton Santos (corrente crítica), dada à

indubitável contribuição destes geógrafos ao desenvolvimento da

disciplina. A partir da Filosofia da Ciência, por meio das discussões de

Hugh Lacey, e da Filosofia da Tecnologia, de Andrew Feenberg, é que

se pretende pôr em evidência como a ciência é concebida por esses

geógrafos.

O trabalho está estruturado em dois capítulos e mais a conclusão.

O primeiro corresponde às reflexões de Hugh Lacey e Andrew

Feenberg sobre como a ciência e a tecnologia são constituídas

socialmente e como estas transformam a sociedade. No segundo

capítulo apresenta-se, a partir da análise de textos dos geógrafos, as

suas percepções quanto à ciência. Nesse segundo capitulo, cada

geógrafo terá sua obra abordada individualmente. Essa abordagem

ficará restrita àquelas contribuições mais relevantes para evidenciar

suas concepções acerca da ciência.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1: PROPOSTA DE HUGH LACEY............................................11

Figura 2: AS QUATRO CONCEPÇÕES DE FEENBERG....................14

Figura 3: PROPOSTAS DE FEENBERG E LACEY.............................25

Figura 4: TRIÂNGULO DAS ABORDAGENS CIENTÍFICAS................51

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1

SUMÁRIO

Instituto de Geociências ......................................................................... 1

Departamento de Geografia ................................................................... 1

AGRADECIMENTOS ..............................................................................v

LISTA DE FIGURAS............................................................................... 1

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 2

1 – EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TECNOCIENTÍFICA .............. 5

1.1 - NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NAS PRÁTICAS

TECNOCIENTÍFICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DE HUGH LACEY E

ANDREW FEENBERG........................................................................... 7

1.2 - A TEORIA CRÍTICA DE FEENBERG E A PROPOSTA

ENGAJADA DE LACEY ...................................................................... 19

2 – ELEMENTOS DA NOVA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA

CONTRIBUIÇÃO DE ANTONIO CHRISTOFOLETTI .......................... 28

2.1 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE CHRISTOFOLETTI: UMA

ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY.......................... 29

2.2 – ELEMENTOS DA CORRENTE ECOLÓGICA NA GEOGRAFIA:

UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE AZIZ NACIB

AB’SÁBER............................................................................................ 35

2.3 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE AZIZ NACIB AB’SÁBER:

UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY ................. 36

2.4 – ELEMENTOS DA GEOGRAFIA CRÍTICA: UMA ABORDAGEM

DA CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS........................................ 42

2.5 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE MILTON SANTOS: UMA

ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY.......................... 43

CONCLUSÃO....................................................................................... 51

BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 57

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma Monografia de final de curso, obrigatória para a

obtenção do título de Bacharel em Geografia pelo Instituto de Geociências da

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Ele possui quatro

características que são, ao mesmo tempo, pontos fortes e elemento de risco: sua

originalidade, seu caráter exploratório, sua abordagem multidisciplinar e seu viés

reflexivo.

Originalidade, porque aborda um tema pouco tratado pela ciência geográfica:

como os cientistas geógrafos concebem a prática científica. Quando o geógrafo se

propõe a intervir no âmbito do território, isto é feito a partir de uma particular

concepção do que é ciência. É justamente como os geógrafos concebem a ciência

o que será abordado neste trabalho.

Caráter exploratório, porque essa análise supõe explorar elementos das

correntes teorética-quantitativista, ecológica e crítica da Geografia. Esses

elementos são abordados a partir das obras de cientistas geógrafos ligados a elas

e que permitem elucidar quais suas concepções. Claro que, dado ao seu caráter

de Monografia, o trabalho não tem a pretensão de esgotar o tema.

Essas correntes são exploradas a partir das obras de Antônio Christofoletti

(corrente teorética-quantitativista), Aziz Nacib Ab’Saber (corrente ecológica) e

Milton Santos (corrente crítica), dada à indubitável contribuição destes geógrafos

ao desenvolvimento da disciplina.

Abordagem multidisciplinar, porque o procedimento usado para apreender a

concepção de ciência desses geógrafos é multidisciplinar. A partir da Filosofia da

Ciência, por meio das discussões de Hugh Lacey, e da Filosofia da Tecnologia, de

Andrew Feenberg, é que se pretende pôr em evidência como a ciência é

concebida por esses geógrafos.

Viés reflexivo porque terá que estar presente durante todo o trabalho. Haja

vista, neste primeiro momento, o constrangimento surgido ao se ponderar sobre

práticas científicas a partir da Filosofia da Tecnologia tornando a reflexão ainda

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mais preponderante. Entretanto, esse constrangimento é contornado ao se

considerar as abordagens de Dagnino e Oliveira, ao verificarem que as

transformações ocorridas na ciência e na tecnologia as tornaram indissociáveis,

configurando o que pode ser denominado como tecnociência.

Este trabalho está dividido em dois capítulos e mais a conclusão. O primeiro

corresponde às reflexões de Hugh Lacey e Andrew Feenberg sobre como a

ciência e a tecnologia são constituídas socialmente e como estas transformam a

sociedade. A abordagem de Feenberg sobre a tecnologia é transposta para o

estudo de como os cientistas concebem a ciência. Feenberg identifica quatro

concepções acerca da tecnologia (e da ciência). A primeira concebe a ciência

como neutra e controlada pela humanidade. Esta concepção é considerada como

instrumental. A segunda vislumbra a ciência como neutra e autônoma, resultando,

desta forma, em uma concepção determinista. A terceira, é a de que a ciência é

substantiva, ou seja, a ciência é tanto autônoma quanto carregada de valores. A

quarta, é a concepção crítica que admite que a ciência tanto carrega valores,

estes sendo eminentemente sociais, quanto é controlada pela Humanidade.

Essa quarta concepção vai ao encontro das reflexões de Hugh Lacey sobre o

processo através do qual o cientista escolhe entre as teorias disponíveis para a

abordagem de um fenômeno que lhe interessa estudar. Segundo Lacey, essa

escolha não seria individual. Ela seria, sobretudo, feita mediante um processo de

diálogo e negociação entre os membros da comunidade de pesquisa e estaria

baseada não em regras, ditadas pelo método científico e algoritmos racionais, mas

em valores. Tais valores, relativos às teorias em contraste, são de natureza

cognitiva, como consistência interna, poder explicativo, simplicidade etc., e não-

cognitiva como os sociais, morais ou pessoais. Não seria, então, a aplicação das

regras, mas a avaliação do nível em que se manifestam os valores cognitivos, o

que determinaria a teoria a ser empregada.

No primeiro capítulo essas concepções são apresentadas, uma vez que é a

partir delas que se analisa a proposta metodológica dos geógrafos citados acima.

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4

O segundo capítulo apresenta, a partir da análise de textos desses

geógrafos, as suas percepções quanto à ciência. Nesse capitulo, cada geógrafo

terá sua obra abordada individualmente. Essa abordagem ficará restrita àquelas

contribuições mais relevantes para evidenciar sua concepção acerca da ciência.

O trabalho será concluído com uma abordagem das percepções de cada

geógrafo e de como estes concebem a ciência.

Há de se destacar que este trabalho não se presta à contestação das

concepções dos autores nele abordados. Pretende-se, apenas contribuir para

explicitar possíveis conexões entre as propostas desses autores para a prática

científica.

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5

1 – EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TECNOCIENTÍFICA

Latour, em seu livro Jamais Fomos Modernos (1994), quando trata sobre o

que considera como o nó górdio produzido pela modernidade no tratamento dos

fenômenos sociais de forma compartimentada, escreve que:

Por falta de opções, nos autodenominamos sociólogos, historiadores, economistas, cientistas políticos, filósofos, antropólogos. Mas, a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos sempre o genetivo: das ciências e das técnicas. Science studies é a palavra inglesa; ou ainda este vocábulo por demasiado pesado: ‘Ciências, técnicas, sociedades’. Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. (p. 8-9)

O autor, na passagem acima, busca discutir o que denomina de Rede de

Atores, conceito que permite avançar no sentido de propor um tratamento

indissociável dos fenômenos sociais. Essa não-dissociação deve ser vista, como

indica o autor, em relação à Ciência e a Tecnologia. A ciência não consiste em

pura teoria, nem a tecnologia em pura aplicação. Ambas são integrantes de redes

de cujos nós também fazem parte todo tipo de instrumentos, seres e objetos

relevantes à atividade que se desenvolve no seu entorno. Os produtos da

atividade científica, como as teorias, não poderiam então continuar sendo

separadas dos instrumentos (as tecnologias) que participam da sua elaboração

(DAGNINO, 2005).

O que convencionalmente chama-se de ciência e tecnologia são práticas que

na atualidade se tornam cada vez mais inseparáveis. Até mesmo os limites das

atividades que as originam têm se tornado quase indistinguíveis.

A dissociação entre práticas científicas e tecnológicas, como discutido por

Núñez (2000, apud DAGNINO, 2005), tem sua origem nos fundamentos do

método histórico, que levam a considerar as Revoluções Científica, do século

XVII, e a Industrial, iniciada no século XVIII, como processos relativamente

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independentes. Esse método histórico1 obriga a classificar o processo de

fecundação recíproca, sistemática e crescente entre ciência e tecnologia, que se

materializa a partir da segunda metade do século XX e se acentuou ainda mais

nos últimos anos, como algo distinto.

Todavia, como discutido por Dagnino (2005):

O fato de que a imagem da ciência como uma atividade de indivíduos isolados em busca da verdade não coincide com a realidade social contemporânea, por um lado, e de que C&T têm sido crescentemente impulsionadas pela busca de hegemonia mundial das grandes potências e pelas exigências do desenvolvimento industrial e as pautas de consumo que ali se geram e difundem para as sociedades que imitam esses processos de modernização, por outro, não podem ser subestimados. Pelo contrario, eles não parecem apontar uma tendência de mudança meramente quantitativa; ao que tudo indica estamos frente a uma transformação qualitativa, a uma ruptura em relação à trajetória passada. (p. 11)

O processo que irá se consolidar na não-dissociação entre as práticas

científicas e tecnológicas foi acelerado a partir do fim da Segunda Guerra por meio

do intenso desenvolvimento tecnológico ocorrido desde então. Isso pode ser visto,

inclusive, por meio das mudanças impostas às instituições que produzem e

financiam as práticas científicas e tecnológicas e que estão levando à sua

crescente mercantilização.

Pode ser dito que, tanto o corte temporal como o espacial, que são

comumente usados para diferenciar a ciência (pesquisa básica) da tecnologia

(pesquisa aplicada), perde seu sentido. Definir a tecnologia como aquela cujo

objetivo é produzir conhecimento com perspectiva de aplicação imediata e a

ciência como a que gera um conhecimento de aplicação não apenas longínqua

como incerta, não é coerente com a realidade atual que mostra uma dramática

redução do tempo que medeia entre a “invenção” e a inovação. Essa redução,

evidentemente, interessa as empresas cuja sobrevivência e expansão depende

justamente da rapidez com que conseguem em seus laboratórios, mas também

nas universidades, encurtar esse tempo (DAGNINO, 2005).

1 - O que Núñez denomina como Método Histórico Latour chama de Modernidade.

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7

Como discutido por Oliveira (2002):

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas não pode ser separado da grande transformação que foi o surgimento e a consolidação do capitalismo como sistema econômico e social, (...) Um dos traços principais do perfil teórico da crítica engajada2 está em reconhecer e extrair as conseqüências do aumento no número e na profundidade dos vínculos que articulam ciência e tecnologia (...). (p. 109)

Dessa forma, por se tornar cada vez mais difícil distinguir o que é prática

científica da tecnológica é que surge o neologismo tecnociência3. Essa noção será

importante, pois nesse trabalho a metodologia adotada será as propostas de um

Filósofo da Ciência e outro da Tecnologia (Hugh Lacey e Andrew Feenberg,

respectivamente). Tais propostas são fundamentais para a discussão sobre

neutralidade e determinismo na ciência geográfica, observada as correntes

teórico-metodológicas4 teorética-quantitativista (Nova Geografia), ecológica e

crítica, a partir da obra de seus grandes representantes, Antonio Christofoletti,

Aziz Nacib Ab’Saber e Milton Santos, respectivamente.

1.1 - NEUTRALIDADE E DETERMINISMO NAS PRÁTICAS TECNOCIENTÍFICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DE HUGH LACEY E ANDREW FEENBERG

Lacey (1998), ao explorar quais são os elementos constitutivos da prática

científica, propõe algumas questões: “o que se deve considerar como uma boa

teoria científica? O que torna uma teoria racionalmente aceita?” E acrescenta que,

2 - Crítica que incorpora as discussões da Escola de Frankfurt e das formas não ocidentais de conhecimento. Todavia, vai além ao propor formas alternativas para o desenvolvimento científico e tecnológico (OLIVEIRA, 2002). 3 - Renato Dagnino, Marcos Oliveira, Hugh Lacey, entre outros. Deve ser ressaltado, entretanto, que alguns autores, entre eles Andrew Feenberg, não empregam o termo Tecnociência. 4 - Essa divisão é adotada por Andrade (1987). Como o autor admite, essa classificação é, até certo ponto, arbitrária. Ela será utilizada nesse trabalho por possibilitar um melhor enquadramento do objeto de pesquisa em questão.

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8

“durante muito tempo, tanto empiristas quanto racionalistas pensaram que a

sustentação dos juízos científicos corretos derivava de sua conformidade a certas

regras: indutivas, dedutivas, hipotético-dedutivas ou formalizáveis segundo o

cálculo das probabilidades” (p. 61).

Todavia, o autor, em busca de uma nova proposta para o desenvolvimento

tecnocientífico, expõe que, deseja “explorar uma abordagem alternativa à questão

do que constitui um juízo científico correto” (LACEY, 1998. p. 61). Para tanto, diz

que a racionalidade deve ser analisada em termos de valores tanto cognitivos5

como não-cognitivos6, ao invés de pautar-se em um conjunto de regras. O autor

propõe que os juízos científicos corretos sejam feitos por meio do diálogo entre

membros da comunidade científica acerca do nível de manifestação de tais

valores por uma teoria, ou por teorias rivais, ao invés da aplicação de um

algoritmo ideal por cientistas individuais, sendo esta última muito difundida na

atualidade.

A proposta de Lacey (ibid) contesta as pretensões da ciência relacionada à

racionalidade, objetividade e validez universal. E mesmo de que através da

tecnologia, ela contribuía necessariamente para o progresso da Humanidade.

Com isso, o autor vem a rejeitar o racionalismo cientificista ainda predominante na

academia.

Como observado por Dagnino (Op.cit.), a reflexão de Lacey:

Embora envolva uma postura crítica em relação a C&T no capitalismo, não o aproxima do marxismo ortodoxo7. Na medida que possui como referência algumas vertentes do marxismo ocidental8, em particular a teoria crítica da Escola de Frankfurt, a qual busca transcender, sua contribuição aponta para uma superação do conteúdo paralisante daquele debate. (p. 150)

5 - Adequação à realidade empírica observada, consistência interna, poder explicativo, simplicidade etc. 6 - Sociais, morais ou pessoais. 7 - “Marxismo ortodoxo, constituído a partir de leis institucionais e determinações políticas doutrinárias, sendo criticado até como funcionalista” (BASTOS, 2001. p. 27). 8 - “Marxismo ocidental, marcada ecleticamente por alusões e relações de articulação com o freudismo a psicanálise, e outras teorias que buscavam interpretar a cultura a subjetividade aliando-as à vontade e a emoção” (BASTOS, ibid).

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9

Sua postura crítica sobre as estruturas sociais vigentes tem como

contrapartida uma preocupação claramente policy oriented. Diferentemente de

contribuições à análise da tecnociência no capitalismo, como as da Escola de

Frankfurt, e à semelhança do que faz Feenberg, Lacey está preocupado com a

proposição de alternativas capazes de alterar essas estruturas no que concerne a

seus aspectos de alguma forma relacionados à tecnociência (Dagnino, ibid).

Para a elaboração de sua proposta, Lacey (ibid) parte da tentativa de entender

como se desenvolve o processo tecnocientífico desde seus primórdios até o

presente. Nesse processo, constata-se que às práticas tecnocientíficas são

constituídas por valores tanto cognitivos quanto não-cognitivos.

Todavia, como observado por Lacey (ibid), nas práticas tecnocientíficas,

desenvolvidas na atualidade, são sustentadas como válidas somente aquelas em

que os valores não-cognitivos estejam ausentes. Para que as práticas

tecnocientíficas se tornem válidas, para a modernidade, estas devem erigir valores

cognitivos cumprindo tanto encargos explicativos quanto normativos.

Os valores cognitivos devem funcionar em um “contexto que não apenas está

em contato genuíno com a prática científica, mas em que também se reconheça a

susceptibilidade dessa prática à crítica racional e a transformações que constituem

respostas a tal crítica” (LACEY, ibid. p. 66).

Como dito pelo autor, “na elaboração da lista de valores cognitivos, então, a

primeira tarefa é interpretativa e consiste na reconstrução racional de episódios-

chave de escolha de teorias e de controvérsias teóricas, a fim de discernir os

critérios que podem ser razoavelmente apontados como aqueles empregados por

seus participantes” (LACEY, ibid. p. 66). Uma vez que a pesquisa científica se

orienta através da estratégia materialista9 as teorias desenvolvidas pelas ciências

modernas estarão fundadas por essa orientação.

9 - De acordo com Lacey (1998), as estratégias materialistas têm como fundamento as Práticas Interpretativas junto com a Adequação Empírica, comprovadas por meio da Experimentação.

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1

Para a ciência moderna, somente constatações observáveis a partir de

determinados critérios são de interesse, e, dessa forma, as teorias submetidas a

testes de “validade” serão aquelas com características afins à estratégia

materialista. Sobre isso o autor diz que:

Tipicamente, as constatações observáveis, em primeiro lugar, descrevem fenômenos (replicáveis) produzidos através de práticas experimentais ou práticas afins que envolvem intervenções de instrumentos de medida ou que ampliam a percepção e, em segundo lugar, relatam as propriedades e relações quantitativas (mensuráveis) ou, de um modo mais geral, ‘materialistas’, daqueles fenômenos10. (ibid, p. 7)

Todavia, como argumentado pelo autor, as constatações pertinentes a esse

procedimento são abstraídas do grande número de descrições diferentes que

poderiam ser dadas ao mesmo fenômeno. Também são desvinculadas das

práticas humanas, bem como de seu lugar de manifestação.

Há uma clara constatação relacionada a essa prática: a de que os critérios

necessários para que teorias sejam aceitas que empreguem categorias tipicamente quantitativas, matemáticas e materialistas, uma vez que somente

tais categorias podem validar as constatações observáveis selecionadas.

Lacey (ibid) diz ainda que para que tais critérios sejam aceitos como valores

cognitivos há quatro considerações gerais:

1) Teorias a priori do conhecimento; 2) teorias da aquisição e da avaliação do conhecimento, formuladas do ponto de vista do naturalismo evolucionista (Ellis, 1990) e da psicologia cognitiva; 3) considerações sobre a possibilidade de o critério proposto ser concretamente exemplificado numa teoria; 4) se o critério serve ou não ao objetivo da ciência. (LACEY, ibid. p. 68)

Pode ser visto acima que a argumentação do autor vai de encontro à auto-

imagem predominante na comunidade científica contemporânea, que tende a

considerar os produtos da tecnociência como neutros, disponíveis para todos, e

independentes de valores. Isso reforça a argumentação de que “as estratégias

10 - Grifo nosso.

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1

materialistas são adotadas quase exclusivamente porque, além de serem

proveitosas, sua adoção tem relações mutuamente reforçadoras com a

valorização moderna do controle” (LACEY, 2002. p. 136).

Todavia, como salientado no quarto item dessas considerações gerais,

Lacey reconhece que a prática tecnocientífica está embasada por objetivos, os

quais são resultados da consideração de valores não-cognitivos (sócio-culturais).

Quanto a isso, Lacey (1998) diz que:

Quando nos voltamos para “o” objetivo da ciência, entretanto, as complicações aumentam significativamente (Laudan, 1984). Há discordância sobre os objetivos da ciência – mesmo sobre se há algo que seja “o” objetivo da ciência, além de uma polêmica quase insolúvel: a questão do realismo/instrumentalismo, p.ex., é discutida há séculos – e, dependendo do objetivo adotado, diferentes listas de valores cognitivos podem ser sustentadas. (p. 69)

A argumentação de Lacey pode ser retida no esquema abaixo:

Figura 1: PROPOSTA DE HUGH LACEY

Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva (a partir das proposições de Hugh Lacey)

A depender dos objetivos elegidos os critérios para a escolha dos valores

cognitivos irá se modificar e com isso toda a estrutura do desenvolvimento

tecnocientífico. Assim é que se fazem presentes os valores não-cognitivos.

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1

Por meio desta argumentação, Lacey defende mudanças nas práticas

tecnocientíficas contemporâneas. Ele defende que a pesquisa seja conduzida

segundo uma multiplicidade de estratégias, incluindo aquelas que têm relações

mutuamente reforçadoras com os valores dos projetos e movimentos sociais

alternativos (valores não-cognitivos), pois “um novo mundo é possível somente

com uma nova ciência e uma nova tecnologia” que considere a legitimidade da

escolha de outros objetivos para a prática da tecnociência, que a distinga da

contemporânea, e lhe dê um outro caráter social (LACEY, 2002. p. 123).

Como exposto por Dagnino (2005):

Com o objetivo de fazer com que valores sociais tenham um papel legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das instituições científicas de modo a propiciar a aquisição e confirmação de conhecimentos que, quando aplicados, sejam capazes de informar os projetos almejados, ele [(Lacey)] indaga a respeito das relações mutuamente reforçadoras que elas devem possuir com os valores incorporados nesses projetos. (p. 160)

Não seria, então, a aplicação das regras, mas a avaliação do nível de

manifestação dos valores cognitivos, o que determinaria a teoria a ser aceita.

Ainda para sustentar sua argumentação de como as práticas tecnocientíficas

são efetivadas na atualidade, Lacey (1998) trabalha sobre a questão da ciência

livre de valores não-cognitivos. Isso implica em três abordagens tecnocientíficas: a

da imparcialidade, da neutralidade e da autonomia.

A imparcialidade (relativo ao processo de seleção de teorias), postula que

apenas os valores cognitivos orientam as práticas tecnocientíficas. E, se isso for

dessa forma, a teoria escolhida seria neutra. O argumento da neutralidade afirma,

então, que essa teoria não teria implicações lógicas relativas aos valores não-

cognitivos e que as práticas tecnocientíficas dela decorrente poderia ser aplicada

em qualquer sociedade.

Fazer ciência seria, para a modernidade, produzir teorias que satisfaçam os

requisitos de imparcialidade e neutralidade. Para isso, demanda-se um terceiro

elemento: a autonomia. A autonomia é relativa à idéia de que essa atividade deve

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1

estar livre de qualquer influência do contexto. A abordagem de Lacey vai de

encontro à de Feenberg quando este expõe que:

No século XIX, tornou-se lugar comum compreender a modernidade como um progresso interminável em direção ao cumprimento das necessidades humanas através do avanço tecnológico. (...) Mas, com o passar do século XX, as guerras mundiais, os campos de concentração e as catástrofes ambientais, tornou-se cada vez mais difícil ignorar a estranha falta de propósito da modernidade. Isto porque estamos perdidos sem saber para onde estamos indo e nem porque esta filosofia da tecnologia11 emergiu em nosso tempo como uma crítica da modernidade. (FEENBERG, 2003. p. 5)

Segundo Feenberg (ibid), é necessária que as práticas tecnológicas

incorporem em sua concepção, ou projeto, variáveis sociais, culturais e

ambientais12. Tal colocação busca transcender a postura da apropriação da

tecnologia por atores sujeitos a dominação e controle imposto pela sociedade

capitalista que não vislumbra alternativas aos elementos negativos intrínsecos à

tecnologia a ser apropriada.

Para Dagnino (2005. p. 153), a perspectiva de Feenberg contém uma

propositada ambivalência13: dependendo da capacidade de negociação entre as

partes (classes sociais) e da possibilidade de transformação do modo de produção

capitalista, a tecnologia14 deveria não apenas ser apropriada, mas reprojetada

para atender aos interesses da sociedade.

A fim de fundamentar sua proposta, Feenberg adota o mesmo viés de Lacey

que corresponde a entender como as práticas tecnológicas contemporâneas são

efetivadas de acordo com a concepção moderna de tecnologia. Seu objetivo é

propiciar uma discussão sistemática e organizada sobre as concepções presentes

11 - Filosofia crítica da tecnologia, originada pela Escola de Frankfurt. 12 - Algo semelhante aos Valores não-cognitivos, propostos por Lacey. 13 - Essa ambivalência pode ser explicada pelo fato de que Feenberg ao adotar a postura crítica da Escola de Frankfurt (marxista crítica), busca estabelecer uma proposta para as práticas tecnológicas na atualidade. Da Escola de Frankfurt o autor considera, entre outras perspectivas, a não-dissociação entre o objeto técnico e as ações sociais. Na perspectiva de ir além das discussões tratadas pela escola, busca transcender a condição de que “somente um Deus pode nos salvar” (Heidegger). 14 - A tecnociência.

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1

na sociedade e, em especial, na comunidade de pesquisa, acerca do caráter da

ciência e da tecnologia (da tecnociência).

Ele fará essa discussão evidenciando dois conceitos-chave: o de

neutralidade e o de determinismo. Sua abordagem pode ser melhor ilustrada

mediante um esquema, representado na figura que segue, constituído de um

plano dividido em quatro quadrantes por dois eixos, onde se representam as

quatro perspectivas alternativas em relação à essa discussão e que Feenberg

concebe como sendo as concepções possíveis para as práticas modernas

“tecnocientíficas”.

Figura 2: AS QUATRO CONCEPÇÕES DE FEENBERG

Elaborado por: Renato Dagnino (2004) - (a partir das proposições de Andrew Feenberg).

Essas proposições de Feenberg se aproximam das de Lacey quando este

trata da questão da tecnociência livre de valores não-cognitivos. Todavia, ao invés

de três abordagens tecnocientíficas como observadas por Lacey, Feenberg vai

definir a “tecnociência” ao longo de dois eixos que refletem suas relações com

valores e capacidades humanas.

NEUTRA

CONDICIONADA POR VALORES

CONTROLADA PELO HOMEMAUTÔNOMA

INSTRUMENTALISMOvisão moderna padrão = fé liberal, otimista, no progresso: ferramenta mediante a qual satisfazemos necessidades

TEORIA CRÍTICA opção engajada = ambivalência e resignação: reconhece o substantivismo, mas é otimista; vê graus de liberdade; o desafio é criar instituições para o controle

DETERMINISMOModernização = otimismo da visão Marxista tradicional: força motriz da história; conhecimento do mundo natural que serve ao Homem para adaptar a natureza.

SUBSTANTIVISMOmeios e fins determinados pelo sistema = pessimismo da Escola de Frankfurt: não é meramente instrumental; incorpora valor substantivo; não pode ser usada para propósitos diferentes, de indivíduos ou sociedades

Page 22: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

1

O eixo vertical - da neutralidade -, oferece duas alternativas concebe a

tecnociência como sendo neutra, ou carregada de valores.

Como dito por Feenberg (2003):

Na primeira perspectiva [neutra], um dispositivo técnico é simplesmente uma concatenação de mecanismos causais. Não há um número suficiente de estudos científicos que possam encontrar nele qualquer coisa próxima a um propósito. Mas, de acordo com a segunda perspectiva [carregada de valores], esta abordagem não percebe a questão principal. (...) Nem tudo é propriedade física ou química da matéria. Talvez as tecnologias, como as cédulas monetárias, tenham um modo especial de carregar valor em si próprias enquanto entidades sociais. (p. 6)

Por sua vez, o eixo horizontal – do determinismo - considera a tecnociência

como autônoma, ou como humanamente controlável. Todavia, dizer que a

tecnologia é autônoma não é considerar que ela se auto-produz, pois os seres

humanos continuam envolvidos nessas práticas.

Mas a pergunta é: será que eles [os seres humanos] realmente têm liberdade para decidir como a tecnologia se desenvolverá? Depende de nós o próximo passo da evolução de um sistema técnico? Se a resposta for "não", então a tecnologia pode corretamente ser considerada autônoma no sentido em que a invenção e o desenvolvimento têm suas próprias leis imanentes, às quais os humanos apenas seguem quando atuam no domínio técnico. Por outro lado, a tecnologia seria humanamente controlável se pudéssemos, de acordo com nossas intenções, determinar o próximo passo de sua evolução. (Feenberg, ibid. p. 6)

A interseção dos dois eixos possibilita vislumbrar as concepções modernas

das práticas tecnocientíficas, que correspondem a: Instrumentalista, Determinista,

Substantivista e a Teoria Crítica15.

O instrumentalismo visto pela interseção entre o controle humano e a

neutralidade de valores, corresponde à visão moderna padrão. Esta concebe a

tecnociência como sendo simplesmente uma ferramenta ou instrumento da

espécie humana através da qual satisfazemos nossas necessidades. Ela expressa

15 - Esta última visão refere-se a proposta de Feenberg para a transformação das práticas tecnocientíficas contemporâneas.

Page 23: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

1

uma percepção contemporânea que concebe a tecnociência como uma

ferramenta gerada pela espécie humana (em abstrato e sem qualquer

especificação histórica ou que diferencie os interesses de distintos segmentos

sociais) através de métodos que, ao serem aplicados à natureza, asseguram à

tecnociência atributos de verdade e de eficiência. Isso permite vislumbrá-la como

atuante sob qualquer perspectiva de valor. O que garantiria seu uso (e também a

sua orientação) “para o bem” é algo estranho ao mundo do conhecimento

tecnocientífico e daqueles que o produzem: a “Ética”. Só se esta não for

respeitada pela sociedade, esse conhecimento poderá ter implicações

indesejáveis (Dagnino, 2005. p. 174).

Outra intersecção é a chamada de "determinismo", que é amplamente

sustentada nas ciências sociais, principalmente pelo marxismo ortodoxo16, na qual

o avanço tecnológico é a força motriz da história. Nesta visão o desenvolvimento

da tecnociência não é controlado pelo Homem; é ela que, utilizando-se do avanço

do conhecimento do mundo natural, verdadeiro e neutro, molda (e empurra para

um futuro cada vez melhor) a sociedade mediante as exigências de eficiência e

progresso que ela estabelece. Nessa perspectiva, como dito por Dagnino (2005. p.

174), a tecnociência “que serve ao ‘capital’ e oprime a ‘classe operária’ é a mesma

que, apropriada por ela depois da ‘revolução’, a ‘liberaria’ e construiria o ideal do

‘socialismo’”.

O "substantivismo" é uma posição mais complexa do que as duas, vistas até

o momento. O termo "substantivismo" descrever uma posição que atribui valores

substantivos à tecnociência, em contraste com o instrumentalismo e o

determinismo, que a concebem como intrinsecamente neutra. A esse respeito

Feenberg (ibid) diz que:

16 - Decorre da interpretação do que Marx escreveu no final do século XIX. O avanço contínuo e inexorável da tecnologia (ou, no seu jargão, o desenvolvimento das “forças produtivas”) seria a força motriz da história que, pressionando as “relações técnicas e sociais de produção”, levaria a sucessivos e mais avançados “modos de produção” (DAGNINO, 2005. p. 174).

Page 24: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

1

O contraste real aqui é entre dois tipos de valores. A tese de neutralidade na verdade atribui um valor à tecnologia, mas é um valor meramente formal, a eficiência, que pode servir a qualquer número de concepções diferentes sobre o que seja um modo de viver bem. Um valor substantivo, ao contrário, envolve o compromisso com uma concepção específica do bem viver. Se a tecnologia incorporar um valor substantivo, ela não será meramente instrumental e não poderá ser usada para diferentes propósitos de indivíduos ou sociedades que divirjam sobre o que seja o bem. O uso da tecnologia para este ou aquele propósito seria, por si só, uma escolha específica de valor, e não apenas uma forma mais eficiente de realizar algum tipo de valor pré-existente. (p. 7)

Seus partidários compartilham a crítica do marxismo tradicional feita pela

Escola de Frankfurt a partir da década dos sessenta. Nesta, enquanto a idéia de

neutralidade atribui a tecnociência a busca da verdade e da eficiência, a do

substantivismo “enxergaria” seu compromisso com a concepção capitalista

dominante (que embora pareça natural e única, é ideologicamente sustentada), e

isso faria com que sues valores fossem incorporados a essa prática. Dessa forma,

a prática tecnocientífica tal como ocorre na atualidade não poderia ser usada para

viabilizar propósitos de indivíduos ou sociedades que patrocinem valores distintos

dos observados no modo de produção capitalista.

O Substantivismo (radical e pessimista) se diferencia do Determinismo. Este,

ao aceitar que a tecnologia, por não ser portadora de valores, é o servo neutro de

qualquer projeto social, idealiza um final sempre feliz para a história da espécie

(DAGNINO, 2005. p. 175).

Á última concepção do esquema, a da "Teoria Crítica", sustenta que os seres

humanos não precisam esperar um Deus para transformar a sua sociedade

tecnocientífica em um lugar melhor para se viver. Como dito por Feenberg (ibid):

A Teoria Crítica reconhece as conseqüências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda assim vê na tecnologia uma promessa para aumentar a liberdade. O problema não está na tecnologia como tal, mas em nosso fracasso até o momento em criar instituições apropriadas ao exercício do controle humano sobre ela. Poderíamos domesticar a tecnologia submetendo-a a um processo mais democrático em seu projeto e desenvolvimento. A Teoria Crítica compartilha características com o instrumentalismo e o substantivismo. Concorda com o instrumentalismo que a tecnologia é, em algum sentido, controlável, e

Page 25: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

1

concorda com o substantivismo que a tecnologia também é carregada de valores. Esta parece ser uma posição paradoxal, visto que precisamente o que não pode ser controlado na visão substantivista são os valores incorporados na tecnologia. De acordo com o substantivismo, os valores contidos na tecnologia são únicos e intrínsecos a ela. Incluem a eficiência e o poder como metas pertencentes a qualquer sistema técnico. (p. 8-9)

O problema não estaria no conhecimento como tal, mas no pouco êxito que

temos tido até o momento em criar formas institucionais que, explorando a

ambivalência (graus de liberdade) que possui o processo de concepção de

sistemas tecnocientíficos e resignando-se a “não jogar a criança com a água do

banho”, e que permitam o exercício do controle humano sobre ela (DAGNINO,

2005. p. 175). Para a Teoria Crítica, a tecnologia não é vista como ferramenta,

mas como suporte para estilos de vida.

1.2 - A TEORIA CRÍTICA DE FEENBERG E A PROPOSTA ENGAJADA DE LACEY

Feenberg, diante de uma abordagem filosófica da tecnologia, parte da não

aceitação do dilema que marca o debate atual sobre a relação Ciência, Tecnologia

e Sociedade. Argumentar que a questão crucial não é a tecnologia nem o

progresso em si mesmos, mas a variedade de possíveis tecnologias e caminhos

de progresso entre os quais pode-se escolher.

Questiona as abordagens deterministas da tecnologia, da história, econômica

ou cultural. Trata da construção social da tecnologia baseando-se em Lukács e na

Escola de Frankfurt17, procurando conceber novos caminhos para a reconstrução

da base tecnológica das sociedades que, para o autor, é fundamental para a

democratização das relações sociais de produção e da própria sociedade.

17 - Segundo Dagnino (2005. p. 153), Feenberg reconhece as conseqüências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo (Escola de Frankfurt). Reconhece também que a tecnologia incorpora valores, mas ainda assim, rejeitando o pessimismo paralisante dessa visão, vê na tecnologia uma promessa de liberdade.

Page 26: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

1

Segundo Feenberg (2003), o problema das discussões sobre a relação

Ciência, Tecnologia e Sociedade está em se ignorar a “essência” do fenômeno

técnico. Essência essa profundamente discutida pelos frankfurtianos. Como

destaca o autor, é necessário “encontrar uma maneira de incorporar estes últimos

avanços numa concepção da essência da tecnologia, mais do que livrar-se dela,

como os filósofos tendem a fazer, como se fossem apenas ‘influências’ sociais

contingentes numa tecnologia reificada ‘em si mesma’ e concebida à parte da

sociedade” (p. 13-14).

Feenberg (ibid) vislumbra como solução para o problema levantado “uma

redefinição radical da tecnologia que ultrapasse as fronteiras entre os artefatos e

as relações sociais” (p. 14). Essa redefinição seria possível através da Teoria

Crítica da tecnologia.

Por meio de sua Teoria Crítica18, Feenberg procura mostrar que, da mesma

forma que a situação de conflito inerente ao capitalismo tem sido estabilizada

mediante escolhas técnicas específicas, outras escolhas técnicas poderão

desestabilizar o capitalismo. Mostra também que é possível uma alternativa ao

capitalismo, baseada na democratização da administração e da mediação

técnicas, e em escolhas técnicas que permitam a extensão da democracia para o

mundo do trabalho.

Segundo o autor, é necessária uma transformação das tecnologias de forma

que estas incorporem em seu projeto ou concepção as variáveis sociais. Para isso

é necessário um entendimento processual (histórico) dessa transformação.

Na consideração da essência da tecnologia, segundo Feenberg (2003), dois

aspectos são fundamentais: um seria a Instrumentalização Primária e o outro a

Instrrumentalização Secundária. A primeira “caracteriza as relações técnicas em

toda sociedade, embora sua ênfase, alcance de aplicação e significado variem

grandemente”. Por sua vez, “a técnica inclui apenas feições constantes em

combinações historicamente envolvidas como uma Instrumentalização Secundária

18 - O termo Teoria Crítica passou a ter grande difusão a partir de 1937 após a publicação da obra Teoria Tradicional e Teoria Critica de Max Horkheimer.

Page 27: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

que inclui muitos aspectos sociais da tecnologia. As distinções mais

características entre as diferentes eras na história da tecnologia resultam de

diferentes estruturações dessas várias dimensões” (p. 15).

Nota-se que para o entendimento do fenômeno técnico é necessário

considerar tanto os atributos do artefato técnico, tomado isoladamente

(Instrumentalização Primária), quanto como ele está inserido sistematicamente no

contexto social (Instrumentalização Secundária). Todavia, a essência da

tecnologia somente pode ser compreendida partindo de seu processo de

constituição.

Para a Teoria Crítica, reconhecer a essência da tecnologia permite constatar

que seu desenvolvimento é condicionado por valores e controlada pelos homens,

ao contrário do que pregam as concepções deterministas e da neutralidade da

tecnociência. Essa teoria reconhece que “escolhas técnicas marcam os horizontes

da vida cotidiana. Estas escolhas definem um ‘mundo’ dentro do qual as

alternativas específicas a respeito das quais pensamos – como os propósitos, os

objetos, os usos – acabam emergindo” (FEENBERG, 2003. p. 31).

Sobre a ambivalência na proposta de Feenberg, de acordo com Dagnino

(2005), pressupõe que:

As trajetórias tecnológicas, num contexto em que todas as regras básicas de funcionamento do modo de produção capitalista estejam vigentes, dificilmente podem ser alteradas. A perspectiva de democratização da sociedade, que tenderia a colocar na agenda da política da C&T as questões da apropriação, deveria também contemplar a reconstrução de tecnologias segundo os interesses dos outros atores sociais envolvidos que não os proprietários dos meios de produção. (p. 153)

Dessa forma, estaria presente no processo de desenvolvimento tecnológico o

que Feenberg (ibid), chama de “subdeterminação”. Isso está implicado na questão

de que quando existe mais de uma solução puramente técnica para um problema

a escolha entre elas torna-se ao mesmo tempo técnica e política e, portanto, as

implicações políticas da escolha passarão a estar incorporadas na tecnologia que

dela resulta.

Page 28: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

Segundo Feenberg (s/d), “a tecnologia é um fenômeno de dois lados: num o

operador e no outro o objeto. Quando tanto o operador quanto o objeto são seres

humanos, a ação técnica é um exercício de poder” (p. 5). Aqui esta presente,

como destacado por Dagnino (2005 p. 191), outro conceito central na explicação

de Feenberg que é o de poder tecnocrático. Para Feenberg (s/d), este poder seria

a capacidade exclusiva de determinados agentes de controlar decisões de

natureza técnica.

Outro conceito importante na trajetória explicativa desenvolvida por Feenberg

é o de "autonomia operacional" (DAGNINO, 2005). Ele é utilizado para descrever

o processo de acumulação do poder tanto dos agentes como das estruturas

sociais nele envolvidos. Esse processo interativo de seleção entre alternativas

técnicas viáveis de maneira a maximizar a capacidade de iniciativa técnica, que

leva à preservação e ampliação da autonomia operacional, estaria no núcleo do

código técnico capitalista.

Feenberg (ibid), também utiliza o conceito de “indeterminismo”, para referir à

grande flexibilidade e capacidade de adaptação a demandas sociais diferentes

que possuem os sistemas técnicos e para explicar porque o desenvolvimento

tecnológico não é unilinear e se ramifica em muitas direções (DAGNINO, ibid).

Através desses conceitos à importância política da posição de Feenberg se

torna clara:

Se existem sempre muitas potencialidades técnicas19 que se vão manter inexploradas, não são os imperativos tecnológicos os que estabelecem a hierarquia social existente. A tecnologia passa então a ser entendida como um espaço da luta social no qual projetos políticos alternativos estão em pugna20 e, dessa forma, o desenvolvimento tecnológico, passa a ser delimitado pelos hábitos culturais enraizados na economia, ideologia, religião e tradição21. O fato de esses hábitos estarem tão profundamente arraigados na vida social a ponto de se tornarem naturais, tanto para os que são dominados como para os que dominam, é um aspecto da distribuição do poder social engendrado

19 - Subdeterminação. 20 - Indeterminismo. 21 - Autonomia Operacional.

Page 29: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

pelo Capital que sanciona a hegemonia como forma de dominação22. (DAGNINO, 2005. p. 97)

A contribuição de Lacey à semelhança do que faz Feenberg, tem como

contrapartida conseqüente uma preocupação claramente engajada. A constatação

de Lacey (2002) de que o controle do desenvolvimento tecnocientífico está hoje a

serviço do neoliberalismo faz com que valores individualistas, da propriedade

privada, do lucro e do mercado sejam os orientadores desse desenvolvimento.

Sua crítica a essa perspectiva o leva a preocupar-se com a concepção de uma

ciência que seja coerente com uma transformação social.

Todavia, ao contrário da contribuição de Andrew Feenberg, que limita sua

análise ao campo da tecnologia e que argumenta sobre a necessidade de que os

interessados num estilo de desenvolvimento alternativo encarem o reprojetamento

tecnológico como uma tarefa essencial para a sua construção, a de Hugh Lacey

está focada na ciência e nas estratégias alternativas de pesquisa científica que

devem ser adotadas pela comunidade de pesquisa.

Como destacado por Dagnino (2005. p. 158), Lacey define a ciência como

pesquisa empírica sistemática, que pode ser praticada segundo várias

abordagens. Em contraposição, a ciência moderna (a ciência que conhecemos)

seria o resultado de apenas uma dessas abordagens possíveis.

Sua proposta tem como objetivo fazer com que valores sociais tenham um

papel legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das

instituições científicas de modo a propiciar a aquisição e confirmação de

conhecimentos que, quando aplicados, sejam capazes de informar os projetos

almejados.

De acordo com Dagnino (2005. p. 160), uma importante distinção que faz

nesse sentido é entre a estratégia segundo a qual a pesquisa deve ser conduzida,

que identifica os objetos do conhecimento e as possibilidades que se está

22 - Tecnocracia.

Page 30: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

interessado em investigar, e as teorias (ou propostas de conhecimento)

confirmadas no âmbito dessas estratégias.

Segundo Lacey (2002), a escolha de uma estratégia de pesquisa não seria

individual. Ela seria feita mediante um processo de diálogo e negociação entre os

membros da comunidade de pesquisa. Estaria baseada não em regras, como as

defendidas pela estratégia materialista, mas em valores tanto os cognitivos quanto

os sociais. Como observado por Dagnino (ibid, p. 160), não seria, então, a

aplicação das regras, mas a avaliação do nível de manifestação dos valores

cognitivos, o que determinaria a teoria a ser aceita.

De acordo com Dagnino (ibid. p. 160), Lacey distingue três momentos na

atividade científica. O primeiro, em que se determinam as prioridades e a

orientação da pesquisa e as metodologias a serem empregadas. O segundo, em

que se avaliam teorias passíveis de serem utilizadas para explicar o objeto

pesquisado e as hipóteses que podem ser formuladas. O terceiro, seria aquele em

que se aplica o conhecimento científico desenvolvido.

Para Lacey (1998), cada abordagem científica estaria, então, associada a

uma estratégia, e a um conjunto de valores. Enquanto os valores não-cognitivos

seriam genéricos, relativo ao conjunto da sociedade, os valores cognitivos seriam

uma classe de valores pertinentes a ciência.

A relação entre a estratégia de pesquisa a ser adotada e o respectivo

conjunto de valores dessa abordagem é entendido como uma interação

mutuamente reforçadora, e não de subordinação23. Como comentado por Dagnino

(2005), na perspectiva de Lacey:

Uma abordagem não vai se impor no campo científico se for incapaz de gerar teorias com alto valor cognitivo. Independentemente da “correção” ou das condições econômicas, sociais, e ideológicas que militam a favor da aceitação

23 - Como comentado por Dagnino (2005. p. 162): “O que seria o caso se, por exemplo, a

abordagem materialista da ciência moderna estivesse simplesmente a serviço dos valores de

controle; o que implicaria em aceitar que a escolha entre as teorias em contraste se desse tão

somente em função do grau em que ela contribui para a realização destes valores”.

Page 31: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

do conjunto de valores não-cognitivos que incorpora, uma abordagem só será vitoriosa se demonstrar sua fecundidade em termos cognitivos. Isto é, de sua capacidade para explicar os fenômenos que analisa. (p. 162)

Por outro lado, uma multiplicidade de estratégias competindo umas com as

outras é condição necessária para que a pesquisa possa ampliar seu âmbito de

possibilidades.

Um conceito importante da reflexão de Lacey é o de estratégias de restrição

e seleção (DAGNINO, 2005). Essas estratégias seriam as responsáveis por

restringir o tipo de teoria considerada e pela seleção do tipo de dados empíricos a

serem pesquisados visando a testar as várias teorias em contraste.

Não obstante, e coerentemente com a idéia de que a transformação das

estruturas sociais não pode ser empreendida a partir de um modelo pré-

estabelecido colocado como meta, ficando os meios para serem decididos

separadamente, a proposta de Lacey não vislumbra uma concepção acabada de

uma nova forma que a ciência deveria assumir numa outra sociedade.

De acordo com Lacey (ibid), a convivência de uma multiplicidade de

estratégias de pesquisa numa mesma instituição não apenas favoreceria a

democracia, como permitiria comparar os resultados gerados através de cada uma

delas e estabelecer os limites dentro dos quais é possível aceitá-los como

reforçadoras de um dado projeto social.

Para Lacey (ibid), a crítica engajada orientada a avaliar o resultado e as

conseqüências das estratégias materialistas que foram fundadas nos valores da

dominação da natureza e da acumulação do capital, é o caminho que levará a

uma pesquisa norteada pelos valores da solidariedade e da justiça social. Da

formulação e adoção de estratégias alternativas que interessem aos movimentos

sociais, responsáveis pela transformação das condições sociais atuais, nascerá,

por um lado, uma nova ciência e, por outro, a nova sociedade que se quer

construir.

A figura a seguir permite uma conexão entre as propostas de Hugh Lacey e

Andrew Feenberg:

Page 32: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

Figura 3: PROPOSTAS DE FEENBERG E LACEY

Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva (a partir das proposições de Feenberg e Lacey)

Assim como Feenberg, Lacey também concebe que a questão crucial não é

a tecnologia ou a ciência (tecnociência) em si mesmas. Pois se considerando o

problema como sendo esse, isso conferiria neutralidade e ou mesmo

determinismo ao desenvolvimento tecnocientífico.

Ambos os autores defendem a idéia de construção social da ciência e da

tecnologia, como sendo fundamental para a democratização das relações sociais.

Buscam uma alternativa ao capitalismo, baseada na democratização da

administração e pela mediação tecnocientífica.

Defendem que é necessária uma transformação das práticas tecnocientíficas

de forma que estas incorporem em seu projeto ou concepção variáveis sociais.

Na Teoria Crítica de Feenberg (Op.cit.), essas variáveis podem ser

observadas quando ele propõe que o desenvolvimento tecnológico é condicionado

por valores e controlado pelos homens. No engajamento de Lacey (Op.cit.), tais

variáveis correspondem aos valores sociais, sendo que esses têm um papel

legítimo na escolha das estratégias para a pesquisa e para a orientação das

instituições científicas. Tanto o controle humano como o condicionamento por

valores explicitam valores sociais.

Page 33: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2

Quando Lacey (Op.cit.) constata que o controle do desenvolvimento

tecnocientífico está hoje a serviço do neoliberalismo, isso vai ao encontro do

conceito de tecnocracia visto em Feenberg (Op.cit.). E quando Lacey (Op.cit.)

define a ciência como pesquisa empírica sistemática, que pode ser praticada

segundo várias abordagens, dá a esta a conotação de “subdeterminação”

observada por Feenberg (Op.cit.).

Lacey (Op.cit.), fala que a escolha de uma estratégia de pesquisa seria feita

mediante um processo de diálogo e negociação entre os membros da comunidade

de pesquisa. Essa concepção corresponde à conotação de autonomia operacional

tal como conceituado por Feenberg (Op.cit.).

Para Lacey (Op.cit.), cada abordagem científica estaria, então, associada a

uma estratégia de restrição, e a um conjunto de valores, ou seja, indeterminados

(FEENBERG, Op.cit.).

Pode ser dito que tanto Feenberg quanto Lacey, vislumbram como solução

para os problemas atuais das práticas tecnocientíficas uma redefinição radical

delas que ultrapasse as fronteiras entre os artefatos e as relações sociais.

Ultrapassar essas fronteiras implica em uma abordagem de não-dissociação entre

os artefatos (objetos) e as relações sociais (ações). Destaca-se também neste

trabalho que tanto objetos quanto ações somente adquirem sentido quando

materializados no espaço. Assim, somente a partir desta consideração é que esta

não-dissociação se torna possível. Todavia, Feenberg e Lacey não discutem a

dimensão espaço em suas propostas24.

24 - Fronteiras estas presentes principalmente nas concepções do marxismo ortodoxo.

Page 34: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

2 – ELEMENTOS DA NOVA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE ANTONIO CHRISTOFOLETTI

Dentre as correntes teórico-metodológicas sugeridas por Manuel C. de Andrade

(1987), está a teorética-quantitativista (Nova Geografia).

Esta corrente, de acordo com Andrade (ibid), teve grande repercussão no final da

década de 1960 e durante a de 1970. Como destaca o autor, este período foi

palco de intenso desenvolvimento de estudos quantitativos e que teve como

importante centro difusor de suas concepções o curso de Geografia da UNESP,

em Rio Claro - SP. “Neste centro universitário foram produzidas numerosas teses

de doutorado e dissertações de mestrado utilizando os métodos quantitativos”

(ANDRADE, 1987. pp. 109-110).

Um dos maiores representantes brasileiros da corrente teorética-quantitativista foi

Antonio Christoifoletti, Professor Titular, desde 1979, do referido curso25.

Como exposto por Reis Jr. (2003):

Chistofoletti dedicou grande parte de sua obra à discussão do movimento de

renovação metodológica [da Geografia]. Em inúmeros artigos e resenhas

expôs as características da Geografia Teorética, qualificou a adoção da teoria

sistêmica e especificou sua aplicabilidade na ciência, discutiu o caráter

interdisciplinar da Geografia (seu contato com outras disciplinas, através do

uso de técnicas e de terminologias semelhantes), destacou a significância do

papel humano nos sistemas de interesse da Geografia e, para efeito de

divulgação da onda “teorizante/quantificante”, teve a preocupação em

enumerar e comentar as principais fontes de informação sobre ela (...). (p. 50)

Essa corrente teórico-metodológica difundida por Christofoletti, buscava

revolucionar as práticas de pesquisas na Geografia, negando a história da

disciplina (ANDRADE, ibid).

25 - Consultar: GEOGRAFIA, Rio Claro, Vol. 24(1): 5-6, abril 1999.

Page 35: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

28

Segundo Andrade (ibid), o prestígio dessa corrente “tornou-se nacional, sendo a

sua pós-graduação uma das mais procuradas, atraindo estudantes de todo o

Brasil” (p. 110). Dada a sua importância, este tópico abordará essa corrente, a

partir da obra de seu grande representante, Antonio Christofoletti, observando a

concepção de neutralidade e de determinismo.

2.1 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE CHRISTOFOLETTI: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY

Lacey (Op.cit) diz que tanto empiristas quanto racionalistas concebem os juízos

científicos corretos como derivados de sua conformidade com as regras indutivas,

dedutivas, hipotético-dedutivas ou formalizáveis e segundo a estatística, por meio

das probabilidades.

A busca dos geógrafos em enquadrar a ciência geográfica a essas regras,

como assinala Christofoletti (1976), vem desde o fim da Segunda Guerra e marca

uma transformação profunda na sua prática. Segundo o autor, “esta

transformação, abrangendo o aspecto filosófico e metodológico, foi denominada

de ‘revolução quantitativa e teorética da Geografia’ (Burton, 1963)”

(CHRISTOFOLETTI, 1976. p. 5). Essa revolução foi fundamental, pois implicou a

consolidação tanto da geografia quantitativa quanto da geografia teorética, sendo

estas a base para a seleção dos critérios e das estratégias de pesquisa do que

Christofoletti denominou Nova Geografia.

Para Christofoletti, a geografia quantitativa “expressa a aplicação intensiva

das técnicas estatísticas e matemáticas nas análises geográficas”, sendo que “o

procedimento quantitativo pode ser considerado entre as características básicas

da Nova Geografia”. Já a geografia teorética “salienta o aspecto teórico e

metodológico, subentendendo como imprescindível toda a análise quantificativa e

englobando os processos de abstração necessários às etapas da metodologia

científica e da explicação” (1976, p. 3).

Page 36: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

29

Fica evidente que a prática tecnocientífica defendida busca erigir valores

cognitivos cumprindo tanto os encargos explicativos quanto normativos, como

abordado por Lacey (ibid). A corrente teorética-quantitativa expressa a concepção

de que não apenas está em contato com a prática tecnocientífica genuína,

apregoada pela modernidade, mas também com aquela em que se reconhece sua

susceptibilidade à crítica racional e as transformações que constituem respostas a

tal crítica (LACEY, Op.cit.).

Na proposta de Christofoletti, os critérios para a seleção dos valores

(cognitivos) que orientarão a prática tecnocientífica estão pautados pelo que Lacey

denomina estratégia materialista. De acordo com Christofoletti:

'A investigação fundamental tem que provavelmente se apoiar, em alto grau, na quantificação. Com esta afirmação não só sublinhamos que qualquer investigação útil em Geografia deve ser investigação quantificada, mas que uma análise realmente significativa dos processos que determinam a evolução do conteúdo espacial deve apoiar-se na quantificação’(Ackerman, 1958. p. 30). (...) As técnicas quantitativas possuem a função de serem fundamentais na coleta e na análise dos dados, orientando a mensuração, a amostragem, a descrição e apresentação, a testagem das hipóteses e das inferências, a classificação e a análise multivariada das relações e das tendências das distribuições espaciais. (CHRISTOFOLETTI, 1976. pp. 24-25)

Como sublinhado por Lacey (ibid), para a ciência moderna somente são de

interesse as constatações observáveis e que possam ser reproduzidos através de

práticas experimentais, ou de práticas afins que envolvem intervenções de

instrumentos de medida, ou as que ampliam a percepção e que, em um segundo

momento, relatem as propriedades e relações quantitativas (mensuráveis) dos

fenômenos. As teorias submetidas a testes de “validade” serão aquelas com

características afins à estratégia materialista.

Nas considerações de Christofoletti estão presentes os quatro critérios,

expostos por Lacey (Op.cit.), para que sejam aceitos os valores cognitivos na

estratégia meterialista.

Segundo Christofoletti, a “teoria probabilística encontra-se na base da

aplicação de diversas técnicas analíticas, em todos os trabalhos de simulação e

Page 37: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

30

no contexto interpretativo realizado sobre fenômenos geográficos”. Dessa forma,

as organizações espaciais, como objeto de estudo da Geografia, “no contexto da

teoria probabilística”, considera que “todos os arranjos possíveis têm chances de

acontecer” (1976, pp. 3;19). O autor salienta ainda que seja necessário

hierarquizar as organizações espaciais para que sirvam como procedimento

dedutivo a fim de se estabelecer as categorias e níveis de abordagem da pesquisa

geográfica. Todavia, “não se deve omitir a importância do procedimento

indutivo26”, nessas pesquisas (CHRISTOFOLETTI, 1978. p. 20).

Esses argumentos de Christofoletti (ibid), em defesa do objeto da geografia

estão de acordo com os pressupostos positivistas. De acordo com Christofoletti:

Critica-se comumente a preocupação em se definir e precisar o objeto da Geografia, dominante na Geografia Tradicional e na Nova Geografia, por se basearem na metodologia científica e fundamentos positivistas. (...) É preciso partir da definição e do objeto proposto para a ciência geográfica. No contexto do conhecimento reinante no mundo atual, o neo-positivismo e a metodologia científica são os campos que fornecem os critérios mais razoáveis para se encontrar a solução. (1978, p. 2)

Como escreve Stengers (2002), no campo do saber positivo “o cientista

transforma-se em representante acreditado de uma conduta em relação à qual

toda forma de resistência poderá ser considerada obscurantista ou irracional” (p.

31). Christofoletti (ibid) ao defender os pressupostos positivistas concebe que as

teorias científicas são livres de valores não-cognitivos. Essa corresponde à

primeira consideração de Lacey (1998).

A segunda consideração, que expressa a idéia de que as teorias da aquisição e

da avaliação do conhecimento são formuladas a partir do naturalismo

evolucionista e da psicologia cognitiva, pode ser observada quando Christofoletti

expõe que:

26 - Para o indutivismo, desde que certas condições sejam satisfeitas, é legítimo generalizar a

partir de uma lista finita de proposições de observação singulares para se estabelecer uma lei

universal (CHALMERS, 1993. p. 26).

Page 38: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

31

Se considerarmos o fato de que uma organização espacial indica o grau de ajustamento entre o grupo humano e o meio ecológico, podemos inferir que o estado de equilíbrio estável representa o melhor funcionamento na estruturação espacial, denunciando o desenvolvimento mais eficaz para as condições reinantes. Assim, toda sociedade que atingir o estado de estabilidade pode ser considerada como desenvolvida. (1976, p. 20)

Essa argumentação coloca Christofoletti (ibid) de acordo com o naturalismo

evolucionista.

Christofoletti contesta a visão de que “o geógrafo é aquele que se coloca diante de

uma paisagem, cujos traços evocadores se impõem aos seus olhos” (CLOZIER,

1950 apud CHRISTOFOLETTI, 1976. p12). Ele argumentará que a paisagem é

insuficiente para o nível de uma análise mais profunda. Diante disso Christofoletti

(1976) escreve que:

Com a transformação conceitual e metodológica [da geografia], houve alterações na importância relativa dos instrumentos de análise. O uso de modelos passou a ser instrumento de significativa importância, enquanto os trabalhos de campo, a análise de cartas e de fotos, a análise quantitativa e outras passaram a ser técnicas destinadas a obter e estudar as informações com a finalidade de testar as hipóteses e a viabilidade dos modelos. (p. 22)

Tal como na psicologia cognitiva, que defende que somente por meio da

comprovação experimental que a ciência pode se constituir, a Nova Geografia

defendida por Christofoletti (ibid) busca a mesma fundamentação.

A terceira consideração lembrada por Lacey (ibid), sobre a possibilidade de o

critério proposto - no caso o da estratégia materialista - ser concretamente

exemplificado numa teoria, está presente em Christofoletti quando este diz que:

A estrutura espacial de uma distribuição representa a localização de cada elemento relativamente à localização de cada um dos outros, e a localização de cada elemento relativamente a todos os outros (Abler, Adams e Gould, 1971. p. 60). Os processos envolvem a dinâmica responsável pelas relações entre os elementos da estrutura, denunciando os fluxos de matéria e energia, assim como os inputs inovadores fornecidos ao sistema, e pela distribuição

Page 39: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

32

espacial desses elementos, que é refletida pelo arranjo da estrutura. (1976, pp. 12-13)

Tanto a mensuração quanto à quantificação e experimentação, estão presentes

nessa abordagem. O primeiro pode ser visto na questão da localização de um

elemento em relação ao outro, o que leva necessariamente à quantificação dos

mesmos. Já a experimentação deve ser apreendida pelo tratamento das

categorias provenientes da Física.

A quarta consideração, sobre à auto-imagem predominante na comunidade

científica contemporânea que tende a considerar os produtos da ciência como

neutros, disponíveis para todos e independentes de valores sociais, pode ser vista

em Christofoletti quando ele diz que:

Tudo27 isso representa arsenal para a elaboração de modelos de organização que sejam válidos e sirvam de padrão para os projetos de planejamento regional. Para a atividade profissional, a Geografia entrosa o avanço do conhecimento e a aplicabilidade para usufruto das sociedades humanas. (1983, p. 22)

Com isso, o autor busca argumentar a favor da concepção de que os critérios

elegidos na corrente teorética-quantitativista estão de acordo com objetivo da

ciência, de neutralidade e seus produtos disponíveis a toda a sociedade.

Christofoletti argumenta também que:

A adoção da estrutura em um sistema faz com que ele implicitamente preencha os requisitos delineados pelo funcionalismo. Todavia, não se pode afirmar que a explicação seja do tipo teleológico, mas que se explica na categoria dedutuvo-probabilista. De modo complementar, os procedimentos descritivos e analíticos envolvem técnicas que se baseiam na metodologia científica, com pressupostos relacionados ao neo-positivismo. (CHRISTOFOLETTI, 1978. p. 15)

27 - Christofoletti (1983) está se referindo tanto a explicação quanto a avaliação das organizações espaciais a partir do método geográfico.

Page 40: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

33

Quando Christofoletti propõe que as pesquisas geográficas partam dos

pressupostos neo-positivistas, assume a fundamentação desta concepção que, de

acordo com Chalmers, tem como principal objetivo:

Fazer a defesa da ciência e distinguí-la do discurso metafísico e religioso, que a maioria deles [os neo-positivistas] descartava como bobagem não-científica. Eles procuravam construir uma definição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodos apropriados para a sua construção e os critérios a que recorrer para fazer sua avaliação. Com isso em mãos, visavam defender a ciência e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como a primeira se ajusta à caracterização geral, e a última não. (...) Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é “verificada” e verdadeira em relação à “sentenças protocolares” – fatos revelados a observadores cuidadosos por meio de seus sentidos28. (1994, pp. 14; 28)

Como discutido por Lacey (Op.cit.), nessa percepção está presente à questão

da neutralidade da prática tecnocientífica. Nesta visão, as teorias não teriam

implicações lógicas relativas aos valores não-cognitivos e, dessa forma, os

produtos da prática tecnocientífica, dela decorrentes, podem ser aplicados em

qualquer sociedade.

Para Christofoletti (ibid), os critérios para a seleção do que Lacey (ibid)

denomina valores cognitivos (a serem erigidos para a prática tecnocientífica),

devem estar de acordo com as concepções da metodologia científica apregoada

pelo neo-positivismo.

Essas considerações permitem considerar Christofoletti como possuindo uma

concepção instrumental da ciência. De acordo com Feenberg (Op.cit.), esta visão,

que corresponde à moderna padrão, pode ser apreendida pela interseção entre o

controle humano e a neutralidade de valores, e que concebe a tecnociência como

sendo simplesmente uma ferramenta ou instrumento da espécie humana através

da qual satisfazemos nossas necessidades.

Como salientado por Feenberg (ibid), dentro desta perspectiva, é

argumentado que o que garantiria o uso e a orientação desse instrumento “para o

28 - Valores cognitivos.

Page 41: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

34

bem” é algo estranho ao mundo do conhecimento tecnocientífico e daqueles que o

produzem. Visão esta sustentada por Christofoletti, ao expor que:

Desde que seja coesa com a perspectiva teórica na qual se enquadra, toda contribuição cientificamente honesta é merecedora de elogios e aceitação, pois representa algo mais na procura da verdade. Mas é preciso fazer uma distinção. Os dados e os fatos perfeitamente esclarecidos podem se utilizados por várias teorias, pois em si mesmos são neutros, em significação própria. (...) Esse procedimento é puramente teórico, pois reflete a ordem que a ciência procura descobri na natureza. (1976, p. 21)

Para Christofoletti somente se a “ética” não for respeitada, esse

conhecimento poderá ter implicações indesejáveis. Dessa forma, pode ser dito

que a concepção de Christofoletti é pertinente à positivista. Para esta, segundo

Dagnino (2005), a subjetividade deve ser contida dentro dos limites da

objetividade e sua tentativa de reproduzir a realidade “assim como ela é” dá força

à crença de que a ciência é a expressão de uma verdade absoluta.

2.2 – ELEMENTOS DA CORRENTE ECOLÓGICA NA GEOGRAFIA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE AZIZ NACIB AB’SÁBER

Segundo Andrade (1987), no estudo da evolução da Geografia e do pensamento

geográfico no Brasil desde o pós-guerra, também deve ser dada importância à

perspectiva da corrente ecológica.

De acordo com Andrade (ibid), muitos geógrafos passaram a se preocupar

seriamente como os problemas ambientais, deixando de realizar trabalhos que

isolassem a morfologia, clima, hidrologia etc. para realizar pesquisas sem

dissociá-los.

Segundo Andrade, “o geomorfológo Aziz Nacib Ab’Sáber, após anos de trabalho e

pesquisas em todo o Brasil, passou a militar como cientista e como cidadão na

luta em favor do respeito às condições ecológicas (...)” (1987, p. 120).

Como dito por Varella (2005):

Page 42: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

35

Para quem acompanha a evolução da ciência, Aziz Ab'Sáber dispensa apresentações. Ele é o autor da Teoria dos Redutos que se desenvolveu na mesma linha de pensamento da Teoria da Evolução das Espécies do biólogo inglês Charles Darwin. Professor há muitos anos, Ab' Saber formou gerações e gerações de geógrafos e todos os alunos o admiram por sua dedicação à pesquisa, à transmissão do conhecimento adquirido e pela defesa intransigente dos interesses e da cultura de nosso país. (s/p)

Dessa forma, como observa Andrade (ibid), “dando entrevistas nas cadeias de

rádio e televisão, publicando notas e artigos em jornais e escrevendo ensaios

contundentes, Ab’Sáber é hoje uma das maiores autoridades na luta em defesa do

patrimônio ecológico brasileiro” (p. 121).

2.3 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE AZIZ NACIB AB’SÁBER: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY

Dagnino (Op.cit.) diz que a imagem da ciência como uma atividade de indivíduos

em busca da verdade não coincide com a realidade social contemporânea.

Todavia, essa idéia é defendida por Ab’Sáber.

Ab’Sáber, em entrevista a Varella (ibid), expõe que “a pesquisa é uma

ferramenta da cultura para entender fatos que pertencem ao universo da Terra, da

vida, da sociedade e dos mais variados valores culturais. Meu interesse sempre foi

à pesquisa científica, a ciência como resultado da observação” (s/p). Essa

concepção expressa a ciência como uma ferramenta (instrumento) utilizada para a

descoberta da verdade contida nos fatos não sendo ela influenciada por eles.

Em um de seus trabalhos Ab’Sáber reforçará a idéia contestada por Dagnino

(ibid) ao escrever que:

A ciência é feita para o conhecimento de todas as coisas. O conhecimento do universo, da estrutura da matéria, da estrutura da vida, da origem da atmosfera, da origem dos organismos vivos de diferentes áreas (vegetais, animais e microorganismos), e é feita em um nível de potencialização do bom

Page 43: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

36

senso. (...) “potencializar o bom senso” sem método não adianta nada para qualquer tipo de ciência. (1993, p. 10)

Como a ciência, na concepção de Ab’Sáber (ibid), é um instrumento para a

descoberta da verdade contida nos fatos ele defenderá um “caminho” a seguir, um

método, para se chegar a essa verdade. Esse caminho define as ferramentas a

que o pesquisador deve se valer para a descoberta da verdade.

Pode-se observar em Ab’Sáber a defesa da dissociação entre ciência

(pesquisa básica) e tecnologia (pesquisa aplicada). Como exposto por ele:

A ciência básica terá que garantir o espaço e as condições mínimas desejáveis para formular suas pesquisas, desenvolver suas experiências, rastrear e testar suas hipóteses mais promissoras. Mas, em termos de objetivos, se divide sempre entre o rigor do método e a transparência da ética, a par com uma busca mais voluntária e enérgica de possíveis aplicações de seus resultados e da soma integrada dos conhecimentos acumulados. (AB’SÁBER, 1988. p. 15)

Para o autor a defesa da ciência básica procura o rigor do método. Esta

proposição o coloca a favor da idéia de que as práticas científicas, na atualidade,

sustentam como válidos somente os valores cognitivos (LACEY, Op.cit.).

A esse respeito, Ab’Sáber (1993), observa que a “verdadeira ciência” deve

pautar-se pela tese, a qual somente pode ser validada observada as contradições

que esta contém em seu cerne (antítese) e daí ser estabelecida a síntese, o que

potencializa o conhecimento retirado da análise do mundo empírico.

Ab’Sáber diz ainda que:

Ao sublinhar os níveis de tratamento que consideramos essenciais na metodologia das pesquisas geomorfológicas nos anima apenas a idéia de pôr ordem no caos das postulações pessoais e das controvérsias escolásticas. (...) Pensamos que, em um primeiro nível de considerações, a Geomorfologia é um campo científico que cuida do entendimento da compartimentação da topografia regional, assim como, da caracterização e descrição, tão exatas quanto possíveis, das formas de relevo de cada um dos compartimentos estudados. (AB’SÁBER, 1969. pp. 1; 2)

Page 44: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

37

Nota-se que, ao contrário da proposta de Lacey (ibid), que contesta as pretensões

da ciência relacionada à racionalidade, objetividade e validez universal, a de

Ab’Sáber aceita justamente esses qualificativos para a ciência.

Quanto à racionalidade e à objetividade, Ab’Sáber (1988) concorda com Monteiro

quando este expõe que:

O grande papel da comunidade científica, em qualquer sociedade, é contribuir para que a percepção dos fatos (naturais, sociais, físicos, econômicos etc.) seja a mais próxima da realidade para que as decisões tomadas sejam as mais adequadas. (...) A comunidade científica é um segmento importante, e até mesmo decisivo, em qualquer sociedade moderna, mas sua produção precisa ser entendida pelos outros segmentos da sociedade para que se crie o “consenso” nas decisões nacionais. (MONTEIRO, 1981 apud AB’SÁBER, 1988. p. 14)

Quando Ab’Sáber (ibid) escreve que o papel da comunidade científica é o de

contribuir para que a percepção dos fatos seja a mais próxima da realidade,

reforça a idéia da ciência como neutra. Para ele, a ciência é um instrumento

neutro para a descoberta da verdade e, dessa forma, o cientista, por meio de suas

ferramentas (método), também é neutro – não influencia os fatos – quanto aquilo

que pesquisa.

Ab’Sáber (1993, p. 12) escreve que somente é possível teorizar em geografia

utilizando-se dos seus princípios básicos, configurando estes como a possibilidade

de comparar situações, a partir da comparação de casos em que a natureza é

igual e, no entanto, as sociedades são diferentes. Estes princípios básicos seriam

entendidos como estabelecidos pelo método geográfico, e que teriam validez

universal.

Como observado por Lacey (Op.cit.), para a ciência moderna, somente

constatações observáveis a partir de determinados critérios são de interesse, e,

dessa forma, as teorias submetidas a testes de “validade” serão aquelas com

características afins à estratégia materialista.

As proposições de Ab’Sáber defendem que a prática científica seja erigida

sobre constatações observáveis.

Page 45: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

38

A Geomorfologia moderna cuida de entender os processos morfoclimáticos e pedogênicos atuais, em sua plena atuação, ou seja, procura compreender globalmente a fisiologia da paisagem, através da dinâmica climática e de observações mais demoradas e sob o controle de equipamentos de precisão. (1969, p. 2)

A argumentação de Ab’Sáber (ibid) estabelece, no que constitui as constatações

observáveis, uma descrição de fenômenos que possam ser replicáveis por meio

de práticas experimentais ou que envolvam intervenções de instrumentos de

medida, e que relatam as propriedades e relações mensuráveis dos fenômenos.

Lacey (Op.cit.) diz que os produtos das constatações são, por um lado,

abstraídos do grande número de descrições diferentes que poderiam ser dadas ao

mesmo fenômeno e, por outro, são desvinculadas das práticas humanas, bem

como de seu lugar de manifestação.

A respeito da primeira observação de Lacey (ibid), salienta-se que as

proposições de Ab’Sáber (ibid) buscam uma explicação única para os fenômenos.

Sobre a segunda observação, a de que as constatações observáveis são

desvinculadas das práticas humanas, bem como de seu lugar de manifestação,

Ab’Sáber (1988) escreve que:

E em termos da responsabilidade intelectual de cientistas do Terceiro Mundo, talvez fosse oportuno salientar que nossa decisão deve pender sempre para aquilo que seja mais conveniente para todas as comunidades residentes e, sobretudo, para as mais carentes e desprovidas. (1988, p. 14)

Todavia, mesmo Ab’Sáber (1988) reconhecendo as práticas humanas e seu

lugar de manifestação, concebe estas como pré-determinadas. De acordo com

Ab’Sáber, “um outro problema que diz respeito ao espaço total, é de que, via de

regra, os espaços totais foram criadas por ações dos homens, que não são

voluntárias e que são mais ou menos espontâneas” (1993, p. 18).

O meio é que determinaria as ações humanas para Ab’Sáber (1993):

Page 46: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

39

O espaço total, historicamente é sempre acumulativo. É a acumulação das ações antrópicas sobre uma natureza que é a base e o suporte ecológico de todas as atividades, e que se modifica fundamentalmente se a pressão do capitalismo selvagem se fizer de um modo liberalizado por todos os espaços. Vocês não tenham dúvidas, a única possibilidade de bloquear a intensidade do capitalismo selvagem sobre a natureza dos países inter-tropicais e sub-tropicais está na questão ecológica. (p. 17)

O que Ab’Sáber (1993) procura é um equilíbrio do meio, o qual é entendido

como tendo sido quebrado pelo modo de produção capitalista. Então o único

caminho possível para se restituir esse equilíbrio é através da ecologia,

concebendo o homem como elemento de um ecossistema.

A partir da exposição de Lacey (Op.cit.) sobre os quatro critérios necessários para

que as constatações sejam aceitas como valores cognitivos, pode-se apreender

na proposta de Ab’Sáber (ibid) a defesa deles.

Sobre o primeiro destes critérios - teorias a priori do conhecimento - Ab’Sáber

escreve que “temos que saber que técnica nos dá alguma coisa, mas nós temos

que completar com conhecimento ‘in situ’ e ‘ex situ’, das outras realidades.” (1993,

p. 15). A técnica para o autor refere-se a teorias, que sendo instrumentais,

possibilitam conhecer a realidade. Todavia, dado ao fato de que para Ab’Sáber

(Op.cit.) o objeto de estudo da geografia é o espaço total29, essas teorias devem

complementadas com conhecimentos internos e externos à realidade abordada

(ao espaço abordado).

Sobre o segundo, que corresponde a teorias da aquisição e da avaliação do

conhecimento, formuladas do ponto de vista do naturalismo evolucionista e da

psicologia cognitiva, Ab’Sáber expressa que “uma região é uma porção do

território e é reconhecida historicamente pelos seus atributos físicos no sentido de

vegetação, de solos, de redes hidrográficas, de tipo de água etc.” (1993, p. 15).

29 - Ambiente diversificado em que vive o homem, não apenas no presente, mas também no

passado (AB’SÁBER, 2005. p. 19). Este ambiente ou espaço tem limites bem definidos. Nesse

sentido o espaço total é um mosaico, um pano de fundo pontilhado por cidades, por aldeias (...)

(1993, p. 20).

.

Page 47: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

40

A possibilidade de o critério proposto ser concretamente exemplificado por

uma teoria, que corresponde a terceira consideração geral, pode ser observada

em Ab’Sáber. Segundo ele:

(...) o conceito de ecossistema introduziu a possibilidade da gente conhecer a realidade da natureza, diferenciada pela conjugação entre o suporte geo-ecológico e o tipo de vida que ali se desenvolveu e que os homens depois interferiram. (...) O outro conceito nasceu como decorrência desse primeiro. Os urbanistas descobriram um dia que o homem que está na cidade, está num tipo de habitat, portanto, ele está num tipo de ecologia, mais concentrado, com a partilha maior do espaço, vivendo em contatos maiores entre pessoas diferentes quanto à classe social. (1993, p. 19)

O quarto critério versa sobre o objetivo da ciência. Sobre isso Ab’Sáber diz

que “o grande papel da comunidade científica [através de suas práticas

científicas], em qualquer sociedade, é contribuir para que a percepção dos fatos

(naturais, sociais, físicos, econômicos etc.) seja a mais próxima da realidade para

que as decisões tomadas sejam as mais adequadas” (MONTEIRO, 1981 apud

AB’SÁBER, 1988. p. 14). Se a ciência alcança esse objetivo, isso tornará os

critérios expressos pelas constatações observáveis válidos, já que as proposições

de Ab’Sáber (ibid) atribuem um viés de neutralidade à ciência.

De acordo com suas proposições, a ciência, neutra e pura, tem como objetivo

desvendar a realidade, promovendo um conhecimento objetivo desta e, assim,

disponibilizá-lo a sociedade. Porém, deve ser resguardada sua ética, fazendo com

que, “a Ciência e a Universidade devam estar voltadas para os valores

permanentes da sociedade e não para os efêmeros desígnios do poder”

(MONTEIRO, 1981 apud AB’SÁBER, 1988. p. 14). Fica claro, nesta interpretação,

que esses valores não-cognitivos não deveriam interferir no processo de produção

do saber.

Nessa perspectiva de neutralidade, um dispositivo técnico é simplesmente

uma concatenação de mecanismos causais. Não há um número suficiente de

estudos científicos que possam encontrar nele qualquer coisa próxima a um

propósito (FEENBERG, 2003. p. 6). E por outro lado os produtos da ciência devem

Page 48: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

41

ser humanamente controlados, de acordo com suas intenções, a fim determinar o

próximo passo de sua evolução (Feenberg, ibid. p. 6).

Pode ser dito que Ab’Sáber concebe a prática da ciência como sendo neutra,

todavia seus produtos devem ser colocados à disposição (controlados) pelos

homens. E ela será para um fim bom se ela estiver a salvo dos “efêmeros

desígnios do poder”. Isso permite que lê seja colocado na categoria

Instrumentalista (FEENBERG, 2003). Por outra via, Ab’Sáber adota uma visão

Determinista (FEENBERG, ibid) do tipo ambiental para entender o

desenvolvimento da Humanidade, ou seja, aceita as idéias de neutralidade e de

autonomia de Feenberg (ibid). Como expõe Feenberg (ibid), essa autonomia

considera os seres humanos intervindo nesse desenvolvimento.

Advêm daí a defesa de Ab’Sáber de uma ciência instrumentalista, pois

somente com essa perspectiva seria possível estabelecer o equilíbrio perdido

entre o homem e a natureza, pois as propostas científicas nada mais seriam do

que a compreensão da verdade contida na natureza para que o homem possa

melhor se adaptar a ela.

A argumentação de Ab’Sáber (ibid), como discutido por Lacey (Op.cit.), é

coerente com a auto-imagem predominante na comunidade científica

contemporânea que tende a considerar os produtos da tecnociência como neutros,

disponíveis para todos, e independentes de valores.

2.4 – ELEMENTOS DA GEOGRAFIA CRÍTICA: UMA ABORDAGEM DA CONTRIBUIÇÃO DE MILTON SANTOS

Outra abordagem importante, segundo Andrade (1987), no estudo da evolução da

Geografia e do pensamento geográfico no Brasil desde o pós-guerra, é a da

Geografia Crítica.

A Geografia Crítica, de acordo com Andrade (ibid, p. 128), não se constitui

propriamente como uma escola. Caracterizam-se como geógrafos críticos àqueles

Page 49: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

42

que se conscientizaram da existência dos graves problemas da sociedade

brasileira. São críticos também ao afirmar que tanto a geografia tradicional quanto

à quantitativa, embora se apregoem como neutras, possuía um sério compromisso

com o status quo.

No Brasil, a posição crítica da geografia tomou força a partir dos anos 1970, muito

embora em décadas anteriores já houvesse publicações de geógrafos

expressando uma profunda preocupação com a sociedade brasileira.

Como destaca Andrade (ibid, p. 129), retornando ao Brasil na década de 1970,

após longo exílio, Milton Santos participa do Conselho Editorial das Revistas

Antipode e Herodote, o que dá grande impulso à crítica sobre e na Geografia.

De acordo com Martinez (2002):

El pensamiento de Milton Santos sobre la Geografía - y las Ciencias Sociales - ha marcado una contribución muy importante para la disciplina, por su rigor y por su original mirada de las problemáticas socio-territoriales, desde América Latina. Fue un intelectual comprometido y crítico que recorrió el mundo, aportando con su conocimiento nuevas ideas, particularmente pensadas hacia la conformación de un mundo más solidario. Desde su incursión punzante en los ámbitos académicos europeos y anglosajones denunció y fundamentó en conferencias, cursos, artículos y diversas obras, la desigualdad manifiesta entre los pueblos más ricos y los más pobres. (s/p)

Milton Santos trabalhou, entre 1978 e 1982, como professor visitante na

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP. Em

1983 ingressou em outra instituição de ensino e pesquisa: o Departamento de

Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde

permaneceu até 2001, ano de sua morte (RIBEIRO, 2002. s/p). Devido a sua

trajetória, Milton Santos passou a ser considerado um dos maiores representantes

brasileiros da Geografia Crítica.

Page 50: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

43

2.5 - A PROPOSTA METODOLÓGICA DE MILTON SANTOS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FEENBERG E LACEY

De acordo com Oliveira (2002, p. 109), não há como separar o

desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas da grande transformação

ocorrida com o surgimento e a consolidação do capitalismo como sistema

econômico e social.

Santos (1996), tem a mesma concepção de Oliveira (ibid). Santos (ibid) ao

dissertar sobre sua proposta de método geográfico diz que:

O casamento da ciência e da técnica, longamente preparado desde o século 18, veio reforçar a relação que desde então se esboça entre ciência e produção. Em sua versão atual como tecnociência, está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização. (p. 141)

Para Santos (ibid), o que convencionalmente chama-se de ciência e

tecnologia são práticas que na atualidade se tornam indissociáveis. Essa

indissociabilidade vem se acentuando nos últimos anos (NUÑEZ, Op.cit.), e pode

ser constatada através da redução do tempo entre pesquisa e inovação

(DAGNINO, ibid). Dessa forma, para os autores, a tecnociência, pode ser

considerada como a base do discurso e da prática da globalização na atualidade.

Há concordância em Santos (ibid) sobre a questão levantada por Dagnino

(Op.cit.) de que a ciência não consistiria em pura teoria, nem a tecnologia30 seria

puramente aplicação. Para Santos: “o objeto é científico graças à natureza de sua

concepção, é técnico por sua estrutura interna, é científico-técnico porque sua

produção e funcionamento não separam técnica e ciência” (1996, p. 171).

30 - Sobre a questão da técnica e da tecnologia, pode ser visto em Santos (1996) que: “G.

Böhnee propõe a noção de Tecnoestrutura, que seria o resultado das inter-relações essenciais dos

sistemas de objetos técnicos com as estruturas sociais e as estruturas ecológicas, idéia que servirá,

no dizer de B. Joerges (1988, p. 17) para exorcizar as ambigüidades do conceito de técnica e de

tecnologia nas ciências sociais.” (p. 32)

Page 51: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

44

Todavia, como salienta Santos (ibid), além da indissociação entre ciência e

técnica, hoje, sobretudo, há um novo elemento que é impreterível que se

considere na discussão dos objetos que é a informação. Santos (ibid), observa

que o objeto:

É, também, informacional porque, de um lado, é chamado a produzir um trabalho preciso – que é uma informação – e, de outro lado, funciona a partir de informações. Na era cibernética, que é a nossa, um objeto pode transmitir informações a outro objeto. (p. 171)

Tanto a ciência como a técnica e a informação integram as redes cujos nós

também fazem parte todo tipo de instrumentos, seres e objetos relevantes à

atividade que se desenvolve no seu entorno.

Essa noção de não-dissociação entre ciência, tecnologia e informação é

extremamente relevante para Santos, pois ela atinge um outro âmbito de

discussão, o espacial.

Santos (ibid), ao considerar o espaço geográfico como o objeto de estudo da

ciência geográfica, observa que31:

O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. (...) Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão às ações e, de outro, lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma. (p. 51-52)

Na questão da ciência e da tecnologia, a primeira seria, sobretudo, ação

cada vez mais sustentada por informações para a execução dos objetos

(tecnologia), o que conferiria a estes uma extrema intencionalidade.

Como exposto por Santos (1996):

31 - Abordagem dialética materialista.

Page 52: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

45

A noção de intencionalidade permite uma outra releitura crítica das relações entre objeto e ação. (...) Mas a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, consideradas como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entrono. (pp. 72-73)

De acordo com Santos (1996), graças ao progresso da ciência e da técnica é

possível construir cada vez mais objetos com possibilidades funcionais

sobredeterminadas. Esses objetos, na atualidade, tendem a alcançar cada vez

maior especialização e a obter uma intencionalidade. E isso pode ser interpretado

como os objetos adquirindo uma autonomia relativa (autonomia tecnológica).

Para Santos (1996):

Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão às ações e, de outro, lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma. (pp. 51-52)

Como visto abaixo, Santos (ibid), ao citar B. Ollman (1971), expõe que os objetos

não têm vida própria. Já para Baudrillard (s/d, apud SANTOS, ibid), os objetos não

têm existência fora das atividades simbólicas da sociedade.

Uma história geral, mas simplificada, dos instrumentos artificiais utilizados pelo homem, seria resumida em três palavras: a ferramenta, a máquina, o autômato. Suas definições revelam momentos decisivos na evolução das relações entre o homem, o mundo vivo, os materiais, as formas de energia. A ferramenta é movida pela força do homem, inteiramente sob o seu controle; a máquina, também controlada pelo homem, é um conjunto de ferramentas que exige uma energia não-humana; o autômato, capaz de responder às informações recebidas, nessas circunstâncias foge ao controle humano (Laloup & Nelis, 1962. pp. 34-36). (...) “As técnicas estabelecem entre elas relações de dependência”, diz J. Perrin (1988, p. 28) e o seu desenvolvimento histórico “multiplica o número de inter-relações”. Esse desenvolvimento, aliás, deve-se, em grande parte, ao fato de que toda modificação de um elemento incide sobre os demais (J. Ellul, 1977. p. 23), um outro dado de sua existência sistêmica. (pp. 138; 141)

Page 53: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

46

Estas constatações compartilhadas por Santos (ibid), evidenciam que, ao passo

que o objeto possui uma autonomia relativa, esta somente é adquirida devido à

sua existência sistêmica em que o controle humano é fundamental.

Da mesma forma, como Lacey (Op.cit.), contesta a estratégia materialista

que concebe os critérios quantitativos, matemáticos e materialistas, basilares para

que teorias sejam aceitas:

Para ser eficaz, o pensamento calculante exclui o acidente e submete a elaboração intelectual a uma prática onde à sistematização e à estandartização impõem sua lógica própria, isto é, o domínio da lógica matemática sobre a lógica da história. É como se as matemáticas ganhassem vida própria, conforma nos lembra Philippe Queau (1987, p. 6), ou como se o espaço matemático se encarnasse materialmente (A. Grãs, 1993. p. 21). (p. 149)

A perspectiva crítica de Lacey (Op.cit.), sobre as pretensões da ciência associada

à tecnologia, por meio da estratégia materialista, contribuir para o progresso da

Humanidade, ou seja, ser neutra, é também a de Santos (1996). Todavia, a

proposta de Santos será diversa da de Lacey.

Oliveira (1998) entende a proposta de Lacey da seguinte forma:

A reflexão de Lacey sobre a ciência é engajada no sentido de que articula as questões epistemológicas aos problemas concretos que a humanidade enfrenta no presente momento histórico. Outro elemento de ruptura consiste na postura crítica que Lacey adota em relação à própria ciência – e não apenas a outras concepções sobre a ciência. (pp. 2-3)

Santos adota uma posição que se aproxima da retomada da neutralidade da

ciência para a proposição de uma transformação social. Citando Anne Buttimer

(1979, p. 249), Santos (1996, p. 40) diz que ela “observa que ‘entre as

preocupações centrais para a geografia moderna encontra-se a organização do

espaço e do tempo”. Para ele, o objetivo da autora não é o de descobrir uma

experiência humana total, mas sim o de descobrir uma experiência técnica, ou da

utilização racional do espaço-tempo, visando assegurar eficácia econômica à

administração de investimentos.

Page 54: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

47

Pode ser dito que Santos (ibid), ao observar que a visão de ciência da autora

volta-se à eficácia econômica e da administração, afasta aquela de seu objetivo: o

de descobrir uma experiência humana total. No entanto, essa descoberta a que

Santos (ibid) se refere implica em conceber a prática científica com uma certa

neutralidade.

Como escrito por Santos:

O mundo é um só. Ele é visto através de um dado prisma, por uma dada disciplina, mas, para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos são os mesmos. (...) Uma disciplina é uma parcela autônoma, mas não independente, do saber geral. (1996, p. 17)

A autonomia a que se refere Santos (ibid) atribui à ciência uma posição de

neutralidade na perseguição da verdade contida nos fatos. Todavia, essa verdade

se constitui a priori pelos “movimentos da sociedade, [que] atribuindo novas

funções as formas geográficas, transformam a organização do espaço” (SANTOS,

1996. p. 86).

Ao indagar se “não será a ciência, tal como propôs Neil Postman (1992, p.

154) ‘uma forma de contar histórias’?” (SANTOS, 1996. p. 18), responde

positivamente essa questão. Isso implica na aceitação da neutralidade da prática

científica, já que “contar a história” não torna aquele que está contando um agente

ativo na produção da história. Coloca o “contador da história” (o cientista) na

posição de quem somente relata aquilo que aconteceu. O cientista é aquele que

reconstitui a história o mais próximo da realidade dos fatos ocorridos, ou seja, o

mais próximo da verdade.

Essa aceitação pode ser reforçada quando Santos (1978), ao problematizar a

atuação dos geógrafos face aos problemas vivenciados no Terceiro Mundo, diz

que:

Um dos obstáculos mais importantes é o tabu que confunde “concreticidade” e “objetividade” com empirismo. Deverão os geógrafos sucumbir em face de tal obstáculo, renunciando a dar um passo adiante? Pois se for necessário esperar demasiado tempo para que os resultados contribuam para o

Page 55: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

48

aperfeiçoamento e a modernização da ultrapassada metodologia que os inspirou, não permaneceremos em perpétuo atraso? Tal é a expiação, ou lei, ou principio científico, de toda a ciência. (pp. 1-2)

Como dito por Santos (1978), “pode-se, pois, falar de leis ou, mais

modestamente, de princípios” (p. 7). E que é preciso que “lembremos-nos, em

primeiro lugar, de que cada novo momento histórico muda a divisão do trabalho. É

uma lei geral.” (SANTOS, 1996. p. 109).

Embora nesse trecho ele pareça aceitar a visão determinista tradicional, dos

marxistas ortodoxos (DAGNINO, ibid), Santos (ibid), busca uma outra concepção.

Para ele, a ciência deve procurar a essência das ações humanas sendo estas a

priori indissociáveis da existência dos objetos materializados no espaço. Como

salienta, “essa tarefa supõe o encontro de conceitos, tirados da realidade,

fertilizados reciprocamente por sua associação obrigatória, e tornados capazes de

utilização sobre a realidade em movimento” (SANTOS, 1996. p. 16).

Como exposto por Santos (ibid):

Um objeto técnico nasce porque uma série de operações, intelectuais, técnicas, materiais, sociais e políticas convergem para a sua produção. É o que Simondon (1958) chama de operações de convergência. No passado, o material determinava como o objeto seria fabricado. Mas, hoje, é a forma do objeto criado na mente do homem, produzido no laboratório antes do que pela técnica, e a função que dele se espera, que vão determinar o material com o qual esse objeto imaginado será construído (Parrochia, 1993. p. 26). (p. 173)

Na busca de problematizar a essência do sistema de objetos e ações Santos

(ibid) reconhece, assim como o faz Lacey (Op. Cit), que a prática tecnocientífica é

embasada por objetivos, e que esses são resultados da consideração de valores

não-cognitivos. Como expresso por Santos (ibid), o objetivo basilar da prática

geográfica deve ser, sobretudo, prezar todas as formas de existência. Assim,

como Lacey (ibid) e Feenberg (ibid), Santos (ibid) defende que a ciência não está

livre de valores não-cognitivos. Para Santos (ibid, p. 34), a existência dos objetos

somente adquire sentido em virtude da inteligência do homem que sempre atribui

a estes uma função inventiva de antecipação. Como ele expõe:

Page 56: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

49

Hoje, os objetos técnicos são originalmente criados para se comunicar entre si e para responder a uma finalidade, desejada por quem os concebe e quem os implanta, ainda que desde logo sejam susceptíveis de outros tipos de utilização. Sua energia é a informação. (...) Não é a técnica em si que leva ao envelhecimento rápido das situações, mas a política. (SANTOS, 1996. pp. 176; 177)

Como observado por Feenberg (Op.cit.), a tese de neutralidade atribui um

valor à tecnologia, sendo este meramente formal - a eficiência -, pois pode servir a

qualquer ação que vislumbre um modo de bem viver. Como destaca Santos (ibid,

p. 38), a técnica é um elemento importante de explicação da sociedade e dos

lugares. Porém, sozinha, ela não explica tudo.

Santos (ibid), observa que é fundamental considerar a ação na consecução

dos objetos, pois estes são cada vez mais carregados de intencionalidades

(valores sociais). De acordo com Santos (ibid), “então, a intencionalidade da ação

se conjuga à intencionalidade dos objetos e ambas são, hoje, dependentes da

respectiva carga de ciência e de técnica presentes no território” (p. 76).

Pode-se apreender na proposta de Santos (ibid), que ele compartilha a crítica

feita pela Escola de Frankfurt ao marxismo tradicional a partir da década dos

sessenta. Enxerga que há um compromisso da prática tecnocientífica na

atualidade com a concepção capitalista dominante. Para Santos (ibid), esse

compromisso faz com que hoje:

As chamadas forças produtivas sejam, também, relações de produção. E vice-versa. A interdependência entre forças produtivas e relações de produção se amplia, suas influências são cada vez mais recíprocas, uma define a outra cada vez mais, uma é cada vez mais a outra. (p. 52)

Dessa forma, Santos (ibid) procura ir contra a concepção marxista tradicional

que creditava no desenvolvimento das forças produtivas um estágio necessário

para se alcançar o socialismo, muito difundido ao longo da existência da URSS

(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Page 57: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

50

A visão de Santos (1996) está de acordo com o Substantivismo, na medida

em que parece aceitar que a tecnociência é carregada de valores e de que ela

possui uma certa autonomia. De acordo com Feenberg (2003), ao tratar sobre as

proposições de autores da Escola de Frankfurt, Santos (ibid) estaria

compartilhando com a teoria substantiva da tecnociência, pois atribui a ela um

conteúdo substantivo e não meramente instrumental.

De acordo com Feenberg:

Segundo tais teorias, a tecnologia [tecnociência], não é neutra. Os instrumentos que usamos dão formato à nossa maneira de vida nas sociedades modernas em que a técnica se infiltrou totalmente. Nesse sentido, meios e fins não podem ser separados. Como fazemos as coisas determina quem somos e o que somos. (2003, p. 2)

Para que a ciência possa ser um substrato para qualquer forma de existência

(SANTOS, ibid), é necessário que sua prática não esteja compromissada com o

desenvolvimento tecnocientífico atual, a favor da manutenção do capitalismo e de

suas mazelas.

Assegurar todas as formas de existência implica, como observado em Souza

(2003), “entender esse [atual] período técnico, científico e informacional da história

e a chegada daquilo que ele [Milton Santos] já havia pressentido e que chamou de

período popular da história, compreendendo, creio eu, por popular a maioria da

população excluída das benesses do tempo presente, para quem o progresso, ou

a modernidade, ainda não chegou” (p. 12).

CONCLUSÃO

A figura 4 (a seguir) apresenta tanto a abordagem tradicional quanto à crítica

na prática científica adotando como ponto de partida, no enfrentamento dos

fenômenos sociais, a neutralidade.

Page 58: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

51

Como busca evidenciar o esquema, diante da abordagem dos pressupostos

epistemológicos das correntes teorética-quantitativista, ecológica e crítica na

geografia, as abordagens conservadora e crítica por mais divergentes que sejam

não possibilitam uma mudança da condição social. Isso ocorre porque ambas

partem da concepção de neutralidade da ciência.

Por outra via, tanto o engajamento proposto por Lacey (Op.cit.) quanto a

Teoria Crítica de Feenberg (Op.cit.) adotam outro ponto de partida para as

práticas científicas. Para os autores, a comunidade cientifica, comprometida com

uma constituição social distinta da atual, deve adotar como princípio os valores

sociais na suas práticas científicas.

Figura 4: TRIÂNGULO DAS ABORDAGENS CIENTÍFICAS

Elaborado por: Rogério Bezerra da Silva

A Teoria Crítica de Feenberg e o engajamento de Lacey reconhecem a

essência da tecnologia e da ciência. Essa essência é que permite constatar que o

desenvolvimento tecnocientífico é condicionado por valores e controlado pelos

homens, ao contrário do que pregam as concepções deterministas e da

neutralidade da tecnociência, vistas tanto na abordagem conservadora quanto na

Page 59: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

52

crítica. Uma abordagem conservadora é observada nas obras de Christofoletti e

de Ab’Sáber.

Christofoletti defende a idéia de que a corrente teorética-quantitativista não

apenas está em contato com a prática científica genuína, apregoada pela

modernidade, mas também com aquela em que se reconhece sua susceptibilidade

à crítica racional e as transformações que constituem respostas a tal crítica.

Nessa percepção está presente à concepção de neutralidade, em que as

teorias não teriam implicações lógicas relativas aos valores sociais e, dessa forma,

os produtos da prática científica podem ser aplicados em qualquer sociedade.

Diante dessa concepção é possível considerar Christofoletti como possuindo uma

visão Instrumentalista da ciência. Como implicação dessa visão, há o argumento

de que o uso e a orientação desse instrumento “para o bem” ou “para o mal” é

algo estranho ao mundo do conhecimento tecnocientífico e daqueles que o

produzem.

Ab’Sáber, por sua vez, concebe a ciência como uma ferramenta

(instrumento) utilizada para a descoberta da verdade contida nos fatos não

sofrendo qualquer influência social. Defende a prática da ciência básica que é

pautada pelo rigor do método. Para isso as práticas científicas devem sustentar

como válidos somente os valores cognitivos.

Ao contrário da proposta de Lacey (Op.cit.), que contesta as pretensões da ciência

relacionada à racionalidade, objetividade e validez universal, a de Ab’Sáber aceita

justamente esses qualificativos para a ciência. Para Ab’Sáber a ciência é um

instrumento neutro para a descoberta da verdade e, dessa forma, o cientista, por

meio de suas ferramentas (método), também é neutro – não influencia os fatos –

quanto àquilo que pesquisa.

Pode ser dito que Ab’Sáber concebe a prática da ciência como sendo neutra,

todavia seus produtos devem ser colocados à disposição (controlados) pelos

homens. E ela será para um fim bom se ela estiver a salvo dos “efêmeros

desígnios do poder”. Isso permite que ele seja colocado na categoria

Instrumentalista. Por outra via, Ab’Sáber também adota uma visão Determinista do

Page 60: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

53

tipo ambiental para entender o desenvolvimento da Humanidade, ou seja, aceita

as idéias de neutralidade e de autonomia.

Distinta das abordagens conservadoras de Christofoletti e de Ab’Sáber é a de

Milton Santos. Ele adota um viés crítico na abordagem dos fenômenos sociais.

Para Santos, o que convencionalmente chama-se de ciência e tecnologia são

práticas que na atualidade se tornam indissociáveis, constituindo o que pode ser

denominado tecnociência, considerada como a base do discurso e da prática da

globalização na atualidade. Todavia, Santos acrescenta que o elemento

informação também é fundamental no entendimento da não-dissociação entre

ciência e tecnologia.

Santos diz que na questão da ciência e da tecnologia, a primeira seria,

sobretudo, ação cada vez mais sustentada por informações para a execução dos

objetos (tecnologia), o que conferiria a estes uma extrema intencionalidade.

Esses objetos, na atualidade, tendem a alcançar cada vez maior especialização e

a obter uma intencionalidade. E isso pode ser interpretado como os objetos

adquirindo uma autonomia relativa (autonomia tecnológica).

Da mesma forma que Lacey (Op.cit.) contesta a estratégia materialista que

concebe os critérios quantitativos, matemáticos e materialistas, basilares para que

teorias sejam aceitas, o faz Santos. A perspectiva crítica de Lacey (Op.cit.), sobre

as pretensões da ciência associada à tecnologia, por meio da estratégia

materialista, contribuir para o progresso da Humanidade, ou seja, ser neutra, é

também a de Santos.

No entanto, a proposta de Santos será diversa da de Lacey. Santos adota uma

posição que se aproxima da retomada da neutralidade da ciência para a

proposição de uma transformação social.

A autonomia referida a Santos atribui à ciência uma posição de neutralidade

para a perseguição da verdade contida nos fatos. Todavia, como observa o autor,

essa verdade se constitui a priori pelos movimentos da sociedade, atribuindo

novas funções às formas geográficas, transformando a organização do espaço.

Page 61: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

54

Na busca de problematizar a essência do sistema de objetos e ações Santos

reconhece que a prática tecnocientífica é embasada por objetivos, e que esses

são resultados da consideração de valores não-cognitivos. Como expresso por

ele, o objetivo basilar da prática geográfica deve ser, sobretudo, prezar todas as

formas de existência. Assim, ele defende que a ciência não está livre de valores

não-cognitivos.

Santos também compartilha a crítica feita pela Escola de Frankfurt ao

marxismo tradicional a partir da década dos anos sessenta. Enxerga que há um

compromisso da prática tecnocientífica na atualidade com a concepção capitalista

dominante. Dessa forma, procura ir contra a concepção marxista tradicional que

creditava no desenvolvimento das forças produtivas um estágio necessário para

se alcançar o socialismo, muito difundido ao longo da existência da Ex-URSS.

A visão de Santos está de acordo com o Substantivismo, na medida em que

parece aceitar que a tecnociência é carregada de valores e de que ela possui uma

certa autonomia; estaria compartilhando com a teoria substantiva da tecnociência,

pois atribui a ela um conteúdo substantivo e não meramente instrumental. Para

que a ciência possa ser um substrato de qualquer forma de existência (SANTOS,

ibid), é necessário que sua prática não esteja compromissada com o

desenvolvimento tecnocientífico atual, a favor da manutenção do capitalismo e de

suas mazelas. A ciência deve procurar a essência das ações humanas sendo

estas a priori indissociáveis da existência dos objetos materializados no espaço.

Todavia, evidenciar a importância dos valores sociais para o desenvolvimento

das práticas científicas, como faz a abordagem crítica, não implica propor que

esses valores definam os valores cognitivos, as teorias e, dessa forma, a prática

científica.

Na abordagem crítica a neutralidade da prática científica confere ao cientista

a capacidade de reconhecer no desenvolvimento dos fenômenos socais aqueles

elementos que permearão sua prática. Nessa perspectiva pode-se dizer que é o

cientista que orientará sua prática “para o bem” ou “para o mal”.

Page 62: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

55

A abordagem conservadora, também concebe a prática científica como

sendo neutra. Nessa abordagem, são identificados dois vieses: um

Instrumentalista e outro Determinista. O primeiro concebe que não é a

comunidade científica quem define que uso será dado aos produtos da ciência,

mas sim agentes externos. No viés determinista os produtos da ciência são nada

mais do que a descoberta da verdade contida nos fatos, o que perde a conotação

de “bem” ou “mal”.

Em oposição a essas abordagens crítica e conservadora, observadas nas

correntes geográficas discutidas, estão as propostas de Feenberg e Lacey.

Segundo Feenberg (2003), é necessário uma redefinição radical da tecnologia,

ultrapassando as fronteiras entre os artefatos e as relações sociais, admitindo nas

transformações desta a fundamentação política. Já a proposta de Lacey tem como

objetivo fazer com que valores sociais tenham um papel legítimo na escolha das

estratégias para a pesquisa e para a orientação das instituições científicas de

modo a propiciar a aquisição e confirmação de conhecimentos que, quando

aplicados, sejam capazes de informar os projetos almejados.

A ciência e a tecnologia devem ser construídas socialmente. Isso é

fundamental para a democratização das relações sociais. Todavia, como

evidencia Santos (1996), ciência, tecnologia e informação adquirem sentido

somente quando materializados no espaço. Como exposto pelo autor, “em

nenhum caso a difusão dos objetos técnicos se dá uniformemente ou de modo

homogêneo. Essa heterogeneidade vem da maneira como eles se inserem

desigualmente na história e no território, no tempo e no espaço” (SANTOS, 1996.

p. 32).

É justamente a dimensão espacial que deve ser mais bem desenvolvida tanto

nas discussões de Feenberg quanto nas de Lacey. Essa dimensão possibilitaria

aprofundar ainda mais as discussões sobre a situação de conflito inerente ao

capitalismo, que tem sido estabilizada mediante escolhas tecnocientíficas

específicas. No entanto, outras escolhas para desestabilizar o capitalismo são

possíveis. Esta teoria deve permitir uma discussão a priori espacial.

Page 63: Neutralidade e Determinismo Na Ciencia Geografica

56

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