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q O filme “As canções”, de Eduardo Coutinho

q “Memórias de passagem”, de Marco Stroisch

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O LADO C atravessa o território da dualidade B versus A e alcan-ça um lugar além das precárias antinomias do cinema experimental x mercadológico, contracultural x oficial, mundializado x local. O LADO C — um nome intuído pela produtora Flávia Person — nasce como o relato da terceira margem, de onde vêm João Moreira Salles e Eduardo Coutinho para discutir um cinema em que tudo é verdade, no contracampo em que os filmes não realizados (mas tornados reais por obra da intenção) nos cartazes da mostra “Meia-rampa” esbo-çam uma atitude criativa nem complacente e nem crítica, mas “bor-geana”. De “As canções” e “Santiago” a “Memórias de passagem” e “Mulher azul”, ou do rascunho de produção de “Linha do mar” e “O relojoeiro” a um possível recorte do novo cinema em Santa Cata-rina, essa primeira carnação do LADO C avança, quadro a quadro, como instantâneo, ou como documento da arte sétima que procura renovar o texto (e o discurso) sobre cinema e audiovisual. Uma arte de tipo C que ousa levar o Descartes de Paulo Leminski para a luxu-riante Amazônia — no filme “Ex isto”, de Cao Guimarães — e berrar: “Parto espaços como entre um aumento e um afastamento em cujos limites cai como luva a minha vertigem.” Dessa mesma espécie de espaço sem limites, e por iniciativa da Cinemateca Catarinense e do Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis, surgiu este LADO C.

CINEMA ALéM DAS INCóGNITAS x E y

Antonio CArlos sAntos | Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).

CláudiA CárdenAs | Mestre em Literatura pela UFSC, lecionou na Unisul. Roteirista e diretora, realizou os filmes “Road Movie” (2004), “Cruz e Sousa, a volta de um desterrado” (2007) e “Dispositivo cinematográfico — La beauté des images” (2011), entre outros.

FAusto douglAs CorreA Junior | Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis), é pesquisador em História da Arte e História do Cinema. Autor do livro “A Cinemateca Brasileira — das luzes aos anos de chumbo” (Unesp, SP, 2010).

MArinA Moros | Pós-doutoranda em Literatura na UFSC, ensaísta, fotógrafa e videomaker.

Pedro MC | Cursou fases de graduação de Design Gráfico, Letras e Cinema. Trabalha com Design e Web desde 1994. Documentarista, dirigiu “Paisagem urbana” (2007), “Maciço” (2009) e “Entrelinhas” (2009).

riCArdo WesChenFelder | Mestre em Literatura pela UFSC, publicou o livro “A linguagem do vídeo” (Ed. Garapuvu, 2009) e realizou os curtas de ficção “Jesus” (2005) e “Se eu morresse amanhã” (2009) e os documentários “Miramar, um olhar para o mundo” (2002) e “Hassis — uma autobiografia inventada” (2006).

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é uma publicação da Cinemateca Catarinense — ABd/sCe Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis (Funcine)

CineMAteCA CAtArinenseDiretoria (gestão 2011-2012) iur gomez Presidentereno luiz Caramori Filho Diretor de Comunicação e Difusãonatália Poli Diretora FinanceiraFlávia Person Diretora Administrativa

Fundo MuniCiPAl de CineMA Conselho (gestão 2011- 2013) Cláudia Cárdenas Presidentesulanger Bavaresco Vice-Presidentesandra ouriques Secretária

lAdo C dennis radünz Edição Patrícia galelli Edição (assistente)Ayrton Cruz Planejamento gráficodenize gonzaga RevisãoFlávia Person natália Poli Coordenaçãogabi Bresola Assistente de Coordenação

Cinemateca CatarinenseTravessa Ratclif, 56Centro — Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-7239 Funcine (Fundo Municipal de Cinema)Rua Antônio Luz, 206 — Forte Santa BárbaraCentro — Florianópolis/SCTelefone: (48) 3224-6591

Cláudia Cárdenas Flávia Person natália Poli ricardo Weschenfelder Conselho editorial

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Referência à arte cinética de Eadweard Muy-bridge e a seus estudos de movimento animal e hu-mano que antecipavam o cinema, a sequência da capa de LADO C # 1 é parte da fotonovela “Desconstruin-do Gabriela”, da artista Marina Borck, produzida numa oficina ministrada pela jornalista e fotógra-

fa Rosana Cacciatore. Ela cita “nu descendo a escada”, de Duchamp, que citava a mu-

lher nua na escada de Muybrid-ge. Cinema estático.

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Memórias além da verdade/mentiraMArinA Moros e Antonio CArlos sAntos

“Cada memória apaixonada tem suas madalenas”, escreve Cortázar. Em “As canções”, novo filme de Eduar-

do Coutinho, o motor é a música. “A música ajuda a memória a mentir”, justifica o documentarista que esteve na Universidade Federal de Santa Ca-tarina, em outubro, participando da 5a Semana de Cinema da UFSC. Faca só lâmina, Coutinho de-sarma o mito: “ora, quem acredita que o que ela conta aconteceu mesmo? Claro que é mentira”.

Num palco de planos fixos já ensaiado em “Jogo de cena” (2007), os gestos e as músicas de uma memória inventada recriam no docu-mentário as personagens e temas das canções: mulheres traídas, conquistas, perdão do pai. Não é exatamente a singularidade das histórias con-tadas o que nos comove no filme de Coutinho, mas sua curadoria das afeições. “Essa é a minha homenagem ao melodrama”, diz o cineasta que relutou em falar sobre o filme, já que o que estava prevista era a apresentação de “Um dia na vida” (2010), produzido por João Moreira Salles.

“Vim para fazer essa exibição clandestina. Para debater o conceito. O que é um filme. As-sistir isso na TV é uma coisa. Uma hora e meia de televisão na sala escura é outra. Na verdade, para vocês é muito mais agradável ver um filme sentimental como o ‘As canções’”, disse, ten-tando evitar as perguntas da professora Cláudia Mesquita, da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG, que conduziu o debate sobre “As canções”, o filme que ganhou prêmio de Melhor documentário no Festival do Rio 2011. “Um dia na vida” foi montado a partir de 19 horas de cap-tação de imagens da televisão aberta e, como sua exibição esbarra em problemas legais, só é mos-trado em universidades, sem muita divulgação, e sempre com o cineasta presente para os debates.

O dispositivo espacial criado para “As can-ções” parece uma derrisão do próprio documen-tário: se em dado momento de “Jogo de cena” o mecanismo — mistura de relato com encenação — era tornado explícito com a mistura dos relatos de pessoas comuns, com as repetições realizadas por atrizes facilmente reconhecíveis e o emba-

ralhamento das fronteiras quando nos damos conta de que há atrizes se passando por pessoas comuns, em “As canções” o acidente acontece.

O palco, a entrada e saída dos entrevista-dos pelas pesadas cortinas, a interpretação das músicas engendram a paródia e nos movem para esse outro lugar do testemunho: a memória forjada. Mesmo o enquadramento quase sem-pre aproximado — que impede o acesso a uma paisagem outra que a do minimalismo verbal criado pelo uso exclusivo da entrevista como estratégia narrativa — reforça a armadilha que Coutinho prepara para o espectador: a afeição do rosto tornado choro ou riso ou constrangi-mento ou balbucio nos aproxima e torna cúm-plices de uma confissão programada que não deixa de ter um gostinho de déja vu. A repetição é aqui a ordem possível, o lastro.

Consuelo Lins, autora do livro “O documen-tário de Eduardo Coutinho”, conta que, desde “Santo forte” (1999), o cineasta dispõe de algu-mas equipes que fazem a pesquisa das persona-gens e lhe relatam, antes da entrevista, suas his-tórias: “a seleção daqueles com quem o cineasta vai conversar é feita a partir de relatórios escritos, conversas com os pesquisadores e algumas ima-gens realizadas pela equipe. Coutinho só entra em contato com os entrevistados no momento da fil-magem. Além disso, o entrevistado deve partir do princípio de que é a primeira vez que Coutinho está escutando o que ele diz”. Em “As canções”, Coutinho entrevistou quarenta e duas pessoas em sete dias. Dezoito aparecem na montagem final.

O ACASO DIRIGIDO

“Filmar o outro é confrontar a minha mise en scène com a do outro”, escreve o diretor e crítico Jean-Louis Comolli. Esse é justo o procedimen-to de filmagem de Coutinho. O método, esboça-do em “Cabra marcado para morrer” (1964-84) — o clássico do documentarista, iniciado antes do Golpe de 64 e retomado vinte anos depois — e esgotado em “As canções”, é aquele próprio do documentário centrado na entrevista e na fala do entrevistado provocada e dirigida para um único lugar: o cineasta e sua opacidade.

Como avalia Jean-Claude Bernardet, “se, nos primórdios do cinema direto, a entrevista era uma tentativa de encontrar o outro, após a fase de criação dessa linguagem que se tornou automatismo, ela hoje remete mais ao cineasta do que ao entrevistado”. E Coutinho tem ple-na consciência da repetição e do esgotamen-to de seu modo de filmar; esgotamento, vale lembrar, que representa toda a trajetória de um autor que marcou como ninguém a forma do-cumentário.

Por isso também um certo tom ranzinza, uma má vontade de falar sobre “As canções”. Se nesse filme podemos ver ainda alguma coisa, é porque o acaso dirigido, se é possível pensar uma tal expressão, ainda produz em nós, espec-tadores, as surpresas que nos tocam: afinal, do clichê mais brega, Coutinho consegue sempre nos provocar em relação às questões teóricas que envolvem o documentário: verdade, menti-ra? Armação, lágrimas encomendadas? Espon-taneidade, encenação? Questões que nos apare-cem depois, já que “As canções” ainda produz em nós, espectadores, algum efeito.

Na pior das hipóteses, o efeito de consta-tação de uma obra realizada que se arma com “Cabra marcado para morrer” e passa por “San-ta Marta — duas semanas no morro”, “Boca do lixo”, “Santo forte”, “Babilônia 2000” e “Edifí-cio Master” até “Jogo de cena”, para citar apenas alguns documentários.

O forte de “As canções” é a encenação da memória, o jogo da memória reinventada a par-tir de canções que teriam marcado a vida das pessoas que dão seu testemunho; um testemu-nho, claro, de uma vida comum, de uma vida qualquer, de uma memória que está além da verdade/mentira e que só nos interessa como algo que salta do tempo e nos atinge sem que saibamos muito bem explicar porquê.

Essa, a mágica de Coutinho, o dispositivo que aqui, depois de tantos anos de elaboração, se despede de nós, espectadores, através da canção. Um fecho em tom de melodrama com todas as cafonices que a vida nos brinda ainda neste início de século. Depois de “As canções”, só mesmo filmando a televisão.

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OEduardo Coutinho testemunha em “As canções” as confissões programadas da pessoa comum

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LADO C | Há dois anos você publicou um artigo na “Folha de S.Paulo” dizendo que o documentário vivia dentro de um gueto. Po-demos resgatar essa afirmação? João Moreira Salles | Claro. Mas vou come-çar do zero, pois não lembro muito bem [essa afirmação]. Paradoxalmente, é muito difícil, no Rio de Janeiro, abrir o jornal, procurar a pro-gramação, e não encontrar um documentário, provavelmente brasileiro, em tela. O que não é verdade para outros lugares do mundo. En-tão, tem uma certa cultura do documentário no Brasil. O que talvez eu tenha dito, pelo menos o que me ocorre, é que — e isso é resultado de muitas conversas com Eduardo [Coutinho] — a gente ouve muito documentarista reclamar da vida e chorar pitangas. A história do gênero sempre foi essa. Quero dizer, o documentário sempre teve um público muito restrito. Jamais poderá competir com a ficção. Então, dizer que documentário não tem público é um pouco de redundância tola. Porque, de fato, ele não tem público e jamais terá público. O que não signi-fica que ele deva se sentir à vontade no gueto em que está. Acho que tem uma diferença en-tre a palavra “gueto” e a palavra “nicho”. O documentário é um gênero cinematográfico de nicho. Assim como é o cinema experimental. Você não pode, enfim, embarcar no cinema ex-perimental com a pretensão de levar milhares de pessoas às telas. Elas não irão. A mesma

coisa vale para o documentário, o que não sig-nifica que a gente não queira ampliar o número de espectadores. O gueto eu acho que é exata-mente isso — uma postura ideológica de dizer: “Não. Nós somos um cinema para poucos e nós nos orgulhamos disso.” LADO C | Você acha que o exibidor também tem culpa? João | O documentário toca em questões que são mais incômodas. É muito mais fácil você distribuir o entretenimento do que a discussão. Eu não estou aqui querendo fazer nenhuma relação de gênero. Eu quero dizer que o do-cumentário se equivale à poesia. A ficção é o sonho. O documentário está restrito ao mundo e às contingências do mundo real, das quais as pessoas querem escapar. Elas querem fugir disso. É natural. O que não quer dizer que o documentário não tenha arte e não tenha fic-ção. Coutinho é um que vive dizendo: “Se vocês acham que os meus personagens estão sendo espontâneos e sendo o que são na vida real, vocês não entendem nada do que eu digo. É atuação e teatro, mas é de outra natureza.”LADO C | Há ficção na sua construção? Como você trabalha com isso?João | Claro que tem. Essas fronteiras são grandes discussões teóricas no documentá-rio. Eu não chego a dizer, como muita gen-te tem dito nos últimos anos, que essa é uma discussão superada e artificial. Não acho que

seja artificial. É importante saber que existe uma diferença, mas o espectador não precisa saber. De fato, para o espectador, tudo é cine-ma. Quem precisa saber, é essencial que saiba, e tem responsabilidade de saber, é o diretor. Para o diretor, nem tudo é permitido se ele está fazendo um documentário. Mas, se for diretor de ficção, tudo é permitido — pode encenar a tortura, o horror ou o caos, o que seja. Em documentário, não. E por uma razão: o filme tem consequências para as pessoas que parti-cipam dele, elas existem, e a vida delas corre em paralelo ao filme. E isso você jamais pode esquecer. Então, para o diretor, é essencial que saiba que está lidando com pessoas reais e que há consequências simbólicas pelas quais ele é responsável.

Há diretores, extraordinários, que acham que o que estou dizendo é uma bobagem. Para eles, tudo é cinema e não há nenhum compro-misso. [Werner] Herzog é um diretor desses. Ele acha que não há nenhuma diferença, nem para ele como diretor, nem entre documentário e ficção: tudo é cinema. O Herzog mente des-caradamente e não vê nenhum problema nisso. E eu acho que ele tem razão, porque em rela-ção ao espectador ele não tem pacto nenhum. O pacto de que, como é documentário, é verda-de factual, é alguma coisa que existe na cabeça do espectador, mas que nunca foi contratado entre o diretor e o espectador.

“Todo filme é um filme-limite”JOÃO MOREIRA SALLES

entrevistA ConCedidA A AdriAne CAnAn, FáBio BrüggeMAnn, FláviA Person e iur goMez

Toda entrevista é notícia de uma guerra particular. Notícia de uma batalha ôntica e íntima. João Moreira Salles, o autor de “Santiago” e “Entreatos”, resumiu suas perdições e procuras numa conversa na grama da Universidade Federal de Santa

Catarina, onde participou da 5.a Semana de Cinema, e discutiu os limites da verdade no documentário, o modo como a câmera estereotipa a vítima nas narrativas de denúncia, a finitude, Eduardo Coutinho e Jorge Luis Borges. Relatos da vida no nicho do documen-tário, porque toda entrevista, no limite, é cinema.

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taLADO C | Nesse caso, estamos abordando a questão ética. Às vezes o diretor se posiciona com certa soberba. Queria que você, enquan-to diretor de documentário, falasse da sua reflexão quando está diante da personagem.João | Em conversa com Coutinho [no debate da 5.a Semana de Cinema da UFSC], as pesso-as perguntaram o tempo todo, incansavelmen-te, e perguntam isso em qualquer outro lugar: “Como é que você consegue?”, “Como é que as pessoas falam?”. E não tem uma resposta mágica. É uma relação de um momento da fil-magem, no momento do encontro, uma relação de iguais. Ele precisa desesperadamente que a outra pessoa dê a ele alguma coisa e a pessoa se sente desejada, que é o que todo mundo quer na vida, e é por isso que a pessoa diz. Não se sente usada, nem manipulada, mas percebe, talvez pela primeira vez, que de fato o que ela tem a dizer sobre sua vida — no cinema do Coutinho, vidas anônimas — interessa.

Tem uma curiosidade no Coutinho que tem uma dimensão moral. É como se ele dissesse, sem dizer: “o que você tem a falar sobre sua vida me interessa profundamente. E eu quero te ouvir”. Pronto, basta! Não é fácil chegar a isso, porque, se você não consegue por es-tratégia, ou você desenvolve isso ao longo do tempo, porque essa é a sua visão de mundo e de fato as pessoas te interessam, ou isso é facil-mente percebido pelo entrevistado.

Por exemplo, você vai filmar um menino de rua no Rio de Janeiro e ele já sabe como deve se comportar diante de uma câmera, sabe o que a câmera espera dele — o rosto de uma vítima social — e como ele quer aparecer na TV, então é isso que ele faz para você. São pessoas que já aprenderam que é isso que a televisão quer e é o que a maioria dos documentaristas faz. A maio-ria dos documentaristas faz filmes de denúncia social. A denúncia social efetiva precisa de uma vítima social, portanto, você vai atrás da pessoa não porque você se interessa por quem ela é e pelas questões dela, mas para que ela cumpra o papel desse tipo social de vítima. O Coutinho não faz nada disso. Ele se senta em frente da pessoa, e quer saber coisas que jamais alguém se inte-ressou, é o dia a dia, a vida afetiva, se ela ama...

Um filme exemplar do Coutinho é o “Boca do lixo” (1992), sobre catadores de lixo, que são sempre a imagem buscada para represen-tar a miséria. É o grau zero da dignidade. Quer dizer, vamos para o lixão para filmar a crian-ça descalça, provavelmente catando lixo, e, se possível, colocar no quadro um urubu. Aí é perfeito! Quer dizer: “Um urubu e um me-nino, os dois disputando um pedaço de carne podre... É isso que a gente quer.”

O Coutinho vai para esse mesmo mundo, mas sem fazer esse julgamento, e descobre que nesse lugar onde as pessoas só viam a misé-ria e a exploração, e, portanto, são as vítimas, também amam, se apaixonam, têm um sentido de beleza, cantam... O que não quer dizer, em nenhum momento, que não seja um lugar de sofrimento e de exploração, mas não é só isso. As pessoas são suficientemente inteligentes e têm uma imaginação suficientemente rica para, mesmo naquele lugar, inventarem formas de tornar a vida possível.

Tem uma pessoa que diz o seguinte no filme dele: “Você tá me filmando aqui, você provavelmente acha que eu cheguei ao fim da linha e que eu sou o que restou. O fim do fim.” Quis dizer o seguinte: “Aqui, ao menos aqui, eu sou dona do meu destino. Eu era emprega-da doméstica em Copacabana. Eu acordava às quatro da manhã pra pegar três ônibus, che-gar em Copacabana, pra ser maltratada pela madame, minha patroa, que mandava eu fazer ovos mexidos às onze horas da noite e eu ti-nha que voltar para casa. Dormia duas horas e voltava para lá, era uma vida do inferno. Aqui, eu decido meu horário, eu ganho meu dinheiro.” Saiu da escravidão. O que não quer dizer que ela esteja numa situação boa, mas é preciso ver e é preciso ouvir essa pessoa. Para

você chegar a uma conclusão que, mesmo ali, há dignidade.

Eu estabeleci, uma vez falando sobre isso, uma tipologia dos documentaristas, os com mapas e os sem mapas. Os com mapas já sa-bem qual o caminho antes de sair e vão para o mundo já sabendo mais ou menos o que o mundo pode dar. Colhem as imagens que con-firmam aquilo que sabem de antemão. E, por outro lado, têm aqueles que saem sem mapa, no sentido de que tudo que acontece pode ser-vir ou não, cabe escolher, embora estejam su-jeitos a surpresas.

Não estou dizendo que há uma maneira melhor ou pior de fazer documentário. Agora, sem dúvida nenhuma, o sujeito que vai para o mundo sem as respostas, enfim, sem saber de antemão o que vai encontrar, alguma coisa

da descoberta do mundo tem muito mais pos-sibilidade de se manifestar no filme dele do que naquele que já vai de régua e compasso, tendo esquadrinhado tudo e sabendo que fil-me vai fazer. LADO C | O Eduardo Coutinho não me pa-rece muito preocupado se o personagem está expressando a verdade ou não...João | Para o Coutinho, todo mundo está di-zendo a verdade. O essencial não é a verdade factual. Ela é, e deve ser, para o jornalismo. Para o documentário vale a convicção do que é dito, a verdade do enunciado. Se a pessoa diz com paixão, essa paixão é verdadeira. Uma grande história, dita sem convicção nenhuma, é uma história que não serve, que não vale, portanto ela é jogada para fora do filme.

“Você Vai filmar um menino

de rua no rio de Janeiro e

ele Já sabe como deVe se

comportar diante de uma

câmera, sabe o que a câmera

espera dele — o rosto de

uma Vítima social — e como

ele quer aparecer na tV.”

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“santiago

nasceu na

classe social

errada, no

século errado,

no continente

errado e no

gênero errado:

imagina o que

era, na década

de 20, ser

homossexual

e pobre numa

pequena aldeia

no interior da

argentina.”

mim, é um personagem totalmente borgeano: o modo como você o apresenta borgeano. João | Eu também. Borges estava na minha ca-beça o tempo todo. E depois do filme pronto, Borges por quê? Para começar, é um persona-gem que confundiu a memória com a realidade. Ele não sabe mais direito o que é a realidade. É um personagem que reuniu o mundo todo num mesmo lugar: isso é o Aleph. Você tem a his-tória universal naquele pequeno apartamento. E depois do filme pronto, Santiago já morto, o filme exibido, um dia eu estava com insônia e resolvi reler [o conto de Jorge Luis Borges] “O Aleph”. Subitamente me dou conta que quatro ou cinco frases que o Santiago diz e escreve são tiradas diretamente do Borges. Nunca me ocor-reu que ele tivesse lido Borges. Ele leu Borges e ele glosou Borges sem dizer que era Borges.

Como eu voltei ao filme treze anos depois [das primeiras tomadas], de fato, concreta-mente, eu não sabia direito o que estava vendo. Não sabia o que eu tinha pedido para ele dizer e o que ele dizia de um modo próprio. O que

foi ensaiado e o que era espontâneo... E não faz a menor diferença. Quais eram os planos da casa que foram cenografados, nada disso eu me lembrava. Então, eu estava na frente de um material que me confundia. E cheguei à con-clusão que não fazia a menor diferença eu sa-ber ou não, o importante era que aquilo virasse cinema, virasse um filme. LADO C | Qual é sua angústia?João | É a de todo mundo: encontrar um senti-do. É por isso que eu fiz “Santiago”. É por isso que eu admiro tanto Santiago. Ele conseguiu, recebendo todas as cartas erradas do destino, inventar um sentido para a vida dele. Imagi-na um sujeito que nasce com tudo errado: na classe social errada, porque ele gostaria de ser aristocrata e nasceu numa família pobre. No século errado, pois gostaria de ter nascido na Renascença italiana e nasceu no século XX, que ele considerava bárbaro e selvagem. No continente errado — ele achava que isso aqui era uma miséria. Queria ter nascido na Europa, aliás, como a maioria dos argentinos, mas ele gostaria de ser europeu e certamente não es-tar no terceiro mundo. Ele nasceu no gênero errado. Você imagina o que era ser jovem, na década de 1920, homossexual, numa pequena aldeia no interior da Argentina, e pobre. Devia ser um horror! Dificílimo! E, no entanto, com tudo isso, ele tirou um coelho da cartola. Por-que ele inventou essas genealogias do mundo aristocrático e isso deu a ele um sentido. Ele foi mais feliz naquela casa do que muitas pes-soas que lá moraram e que eram donas daquela casa. Isso é uma mágica extraordinária, é uma inteligência extraordinária. Isso dá um sentido. Eu imagino que para quem tenha fé e religião talvez seja mais fácil. Para quem não tem é mais difícil. Como permanecer? O que justi-fica acordar de manhã e fazer alguma coisa? Essa é a minha angústia. A da permanência. LADO C | Até que ponto você se distancia da personagem? Pois em “Santiago”, por exem-plo, além de ser diretor, você tinha uma rela-ção afetiva.João | No caso do Santiago, isso é parte intrín-seca do filme e da história. Ele é parte das mi-nhas memórias, da minha infância e juventude, e de maneira misteriosa me influenciou muito. Então, não havia como ter uma relação que se restringisse apenas ao filme. Por que o filme fracassou da primeira vez que eu tentei fazê-lo? Por uma razão muito simples: não sabia que eu também era personagem. E tentei fazer um filme em que só ele falava, eu não. Em que eu construí um personagem sem tornar clara a rela-ção, fundamental, afetiva, de classe, tudo aqui-lo que permeava nossa relação. Eu não existia no filme. Era um filme, ele falou de Borges, eu tinha lido Borges, e eu dizendo: “eu vou fazer um filme sobre um personagem borgeano. É Santiago, mas eu vou tratar o Santiago como se ele tivesse nascido em outro lugar. E eu nunca tivesse o visto, como uma ficção, uma constru-ção”. E é claro que isso fracassou. Era artificial, não existia, era falso. O filme só passou a existir quando, treze anos depois, eu revendo o mate-rial, me dei conta do óbvio: eu era personagem também. A casa me representava, minha voz era presente e eu precisava incluir isso no filme.

LADO C | Há uma fronteira entre o ficcional e o não ficcional...João | É quase como se você dissesse: essa questão da fronteira não interessa, mas a força da narrativa. Essencialmente você tem que co-municar uma emoção, um afeto, uma alegria, uma tristeza, uma dor. Como documentarista, saber que é importante minar essa visão posi-tivista do espectador. Eu acho que o Coutinho faz isso muito bem no cinema dele. Eu costu-mo dizer, e cada vez mais estou certo disso, que o Coutinho talvez seja o único cineasta em atividade no Brasil que possui uma obra. Tem vários cineastas brasileiros com filmes extra-ordinários, mas não compõem necessariamen-te uma obra. E no caso do Coutinho sim, pois existe um raciocínio sobre cinema que vai sen-do tecido de filme a filme.LADO C | Quando assisti ao “Santiago” [docu-mentário de 2007 de João Moreira Salles], não me interessou se o personagem existiu ou não, mas como você o construiu. E a primeira coi-sa que pensei foi em Jorge Luis Borges. Para

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Não há uma lei universal e eu diria que, se talvez existisse uma lei universal sobre a relação com personagem, ela se resumiria ao seguinte: a relação que você tem com o per-sonagem se restringe ao filme e não à vida. Se você tiver a obrigação moral de ter que se re-lacionar com todos que você filmou, fora do filme, a sua vida acaba. E, de fato, tem que haver uma consciência que a pessoa que você filma se transforma em outra coisa na hora que o filme fica pronto. No primeiro momento, ela é a pessoa que você aperta a mão, sente o calor do hálito, está no mesmo ambiente. Depois ela se torna uma imagem no viewfinder. Já tem um grau de separação nisso. Então ela se torna um material bruto na ilha de edição e fragmentos de pessoas que você começa a remontar na ilha. Depois ela se torna um filme projetado

na tela. A relação da pessoa projetada na tela com a que você filmou, de carne e osso, para o documentarista, é sempre de diminuição na ex-periência. Você transformou a pessoa em outra coisa e, portanto, você tem responsabilidade sobre essa transformação.

Eu tive uma experiência com o filme do Lula [“Entreatos: todos os homens do presi-dente Lula”, 2004]. Porque ele foi feito e levei um ano e meio para montá-lo. O filme estreou, as pessoas viram, ele cumpriu seu ciclo. Aí, cerca de seis meses ou um ano depois, estou-rou a história do mensalão. Então houve uma campanha do DEM para que o filme voltasse a cartaz. O Cesar Maia queria impetrar um man-dato judicial para me obrigar a exibir — seria o único caso no Brasil [de obrigar judicialmen-te a exibição de um filme]! Ele acabou de re-solver o problema do cinema brasileiro! Todo mundo reclama de não ter espaço para exibição e, se isso se tornasse uma coisa corrente, seria deslumbrante. Todo filme é obrigado a estre-ar e ser exibido num circuito amplo! Eu não permiti, evidentemente. Mas por quê? Porque

a situação tinha mudado. Então, um abraço no [ex-ministro da Casa Civil José] Dirceu ou um tapinha nas costas do [ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores] Delúbio Soares, pessoas que não tinham nenhum significado quando o filme foi feito, poderiam derrubar um presi-dente da República. LADO C | E como é a relação com a persona-gem no momento da filmagem?João | Por exemplo, toda vez que o Coutinho está na frente de um personagem, sabe que só tem aqueles dez ou quinze minutos para pro-duzir alguma coisa e que, se não acontecer na-quele único encontro, se perderá para sempre. Com essa consciência, há certo desespero, um bom desespero, de fazer com que tudo seja aproveitado. É como andar numa corda bamba sem rede de segurança. A conversa que pode

ser repetida várias vezes não tem o grau de dra-ma e de intensidade. No caso do Coutinho, há essa consciência muito clara — acontece agora ou nunca mais.

Acompanhei as filmagens de “O fim e o princípio” [de Eduardo Coutinho, 2005] no in-terior da Paraíba, e isso foi levado às ultimas consequências. O Coutinho não tinha pesquisa nenhuma. Tocava na casa das pessoas, que eram geralmente velhas, e elas abriam a porta. Ele sabia que era ali que aconteceria alguma coisa. Era um filme sobre velhice e morte e aquelas pessoas de oitenta ou noventa anos morreriam logo depois — como várias morreram — e o Coutinho também é uma pessoa de certa idade. Então, havia um componente quase erótico, no sentido do amor que se estabelece nessa relação do entrevistado com o entrevistador.

Teve uma personagem que ele se aproxi-mou quase que fisicamente. Há uma atração, que não é atração sexual, mas no sentido de pensar: “o que você está me dizendo é tão bom, tão bonito, tão maravilhoso que eu tenho uma gratidão eterna por você e eu nunca mais vou

te ver”. Ao mesmo tempo uma dádiva daquele momento, o sublime e a tristeza. O sublime do encontro e a tristeza da despedida. Era ali e não seria em outro lugar. E isso é muito maravi-lhoso! E isso acontece em graus diferentes em todos os encontros que o Coutinho tem com seus personagens.LADO C | E isso acontece também com seus personagens?João | “Santiago” eu tentei fazer quando tinha 31 ou 32 anos e, em parte, o filme também fracassou porque eu não entendia a questão da passagem do tempo, que era um elemento crucial para o Santiago. Por que ele repetia aqueles nomes em voz alta? Por que é que fa-zia aquelas listas? Era uma tentativa de segurar o tempo. Uma concepção quase grega de mor-te. Quer dizer, enquanto a pessoa é lembrada,

ela não morre. O maior horror do herói grego não é morrer no campo de batalha, mas é não ser lembrado pelo poeta. Enquanto Aquiles for lembrado por Homero, viverá para sempre. Quando você morre no mundo grego, atraves-sa o rio do esquecimento [Letes]. O Santiago tinha isso na cabeça dele. Aquelas pessoas eram importantes para ele, então [as] conser-vava vivas na memória. Está ligada à ideia de que as coisas passam, as pessoas morrem, o mundo muda. Quando se tem um pouco menos idade, entende-se isso intelectualmente, mas não está nas vísceras. Então, “Santiago” só se tornou possível quando estava com 42 ou 43 anos, quando essas questões [do esquecimento e da finitude] começavam a existir dentro de mim. De fato, todo filme é um filme-limite.

(dePois dA entrevistA, João MoreirA sAlles seguiu PArA o Jogo AvAí X BogAFogo, no estádio dA ressACAdA. o AvAí venCeu Por 3X2)

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Pedro MC

Pensar sobre um filme, para mim, é um exercício de concatenação entre intenção e contexto. A obra vai, mesmo sem que-

rer, movimentar símbolos relacionados ao seu tempo, cabendo à crítica a especulação sobre o espetáculo. Cabe-me encontrar subtextos.

Um dos expoentes do novo cinema cata-rinense, Marco Stroisch imprime em seu últi-mo curta-metragem “Memórias de passagem” (2011, 15min, 35mm, vencedor do Edital Cata-rinense de Cinema e Prêmio Funcine Armando Carreirão 2008) uma certa plasticidade em tor-no de um tema violento. Pode-se perguntar se a plasticidade tem veleidades de criação autoral, ou seja, se o diretor intenciona utilizá-la gra-maticalmente numa narrativa cinematográfica clássica ou pós-moderna. Dessa forma — e conteúdo — pretendo perceber qual caminho trilha o cinema realizado aqui.

O primeiro plano abre com um suave tra-veling para a esquerda, numa pan vertical. A câmera vem do chão, subindo das ruas, pessoas passando em primeiro plano. A narração em off já na abertura indica que temos aqui um distan-ciamento. Um olhar de aproximação é sugerido pelo movimento de câmera. Algo está para ser revelado. Desvelado por trás das folhas impres-sas o rosto do personagem Nilton, interpretado por José Ronaldo Faleiro, lendo um jornal. Ao fundo, a figueira da praça XV compondo uma moldura ramificada e flutuante.

A árvore encerra inúmeras significações no campo simbólico. Uma delas é que todo o passado, presente e futuro se encontram nos ramos e caminhos. Nesse primeiro plano, a in-tenção do autor não evidencia essa busca pelo símbolo, mas acaba a imagem ela mesma se achando. A figueira por um momento deixa de ser significante inventado da cidade pitoresca, emergindo como símbolo universal, uma árvo-re apenas, complexa. O caminho é dado pela direção da manchete de jornal, no segundo pla-no em over shoulder: “Encontrada ossada de desaparecidos políticos.”

Penso que Marco Stroisch joga num sim-bolismo entre planos do real e da ficção, con-taminando, mesmo que em nível interno, a percepção expressiva sobre o tema. Na man-chete do jornal, é ele mesmo na foto que re-presenta um dos militantes de esquerda mor-tos pela Ditadura. Essa indicação demonstra que o autor/diretor/produtor/montador traz uma história que é apenas uma ficção, sem inspiração em personagens reais, mas que significam um momento atual, dentro de um exercício de inspiração sobre a recente histó-ria da sociedade.

O distanciamento proposto pela narração em off no início reafirma que o protagonista da história é outro. Não reconhecemos essa alte-ridade pelo que já foi dito no conjunto audio-visual até agora em Santa Catarina, mas numa espécie de ruptura de uma continuidade.

Vale lembrar que num especial de tv so-bre o Grupo Sul, Stroisch personificou um dos integrantes (o filmador de imagens, Armando Carreirão). E, numa obra recente, traduziu aos dias atuais o imbróglio do famigerado primei-ro-longa-metragem-inacabado-do-grupo-sul, “O preço da ilusão”.

O que o motiva, no entanto, a escrever, dirigir, produzir e montar um filme sobre a Ditadura? A descontinuidade do nosso cine-ma pode ser uma resposta. Mas será que a tradução dessa disruptura também se dá pela linguagem? Sua busca pela memória encontra uma intenção.

Não é no cinema feito em Santa Catari-na que ele se inspira, mas na criação sobre a descontinuidade. Jogando contra a tradição de filmes ruins, o curta “Memórias de passagem” traz uma narrativa cuidadosa e alicerçada no primor técnico de produção, como demonstra o plano a seguir com o título do filme.

A câmera elevada gira em sentido horá-rio, a mesa de dominó e os jogadores num ponto de vista, digamos, de um relógio, do tempo. A escolha do artifício inscreve o fil-me de Stroisch na estética pós-moderna, se levarmos em conta que a gramática narrativa

da ficção catarinense ainda sente o preço da ilusão “moderna”. E aí o movimento de câ-mera se torna mais importante que a própria motivação. Mas esse movimento é isolado e o filme encontra caminhos que às vezes destoa pela “narração do texto” pelos atores e outras vezes ganha força pela dinâmica eficaz da montagem.

Inserção de plano em que o torturado ofega, de cabeça para baixo. Não cabe psico-logizar a intenção do autor, mas como mídia de expressão, o torturado transmuta, talvez, a situação dele próprio como produtor de cinema catarinense. Numa metáfora forçada, a ruptura por opressão.

Lembro do pôster do filme Novembrada (1998), de Eduardo Paredes, lindamente dese-nhado por Rodrigo de Haro, a figura do enfor-cado, de cabeça para baixo. Extrair da memó-ria insumos para a criação tem vindo de um estado de dor coletiva, que de alguma forma se traduz em “Memórias de passagem”.

Com pouca tradição, o cinema daqui não rompe, porque não há com o que romper. Sente na pele a dificuldade de encontrar um caminho contemporâneo. Essa tradução só é válida le-vando em conta o contexto do novo cinema

Intenção e movimento

Curta de Marco Stroisch revisita o campo de corvos da Ditadura Militar e liberta o novo cinema catarinense da ilusão moderna

“Jogando contra a

tradição de filmes ruins,

‘memórias de passagem’

traz uma narratiVa

cuidadosa e alicerçada

no primor técnico de

produção.”

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catarinense (e o que é ser catarinense? o imagi-nário tem fronteiras?)

O contexto é o mesmo que leio num exem-plar da publicação “Cinesofia”, de 1994, re-vista editada por entusiastas que escreveram sobre a importância de realização de editais, programas de distribuição, de fomento estatal. É o que seria conivente propor novamente, pois a disruptura (a falta de tradição cinemato-gráfica) gera continuidade.

O que a linguagem não traz, em seu bojo, é um exercício maior de experimentação, ou um exercício mais amplo. E o corte é na carne. No jantar, o bife sangra, o presente encarnado pelo neto ganha uma pan vertical, enquanto lê um livro infantil, “Quem vai ajudar o lobo mau?”. O movimento vai para o alto e para os corredo-res. Corta para o porão com a sessão de tortura.

Escuro, água jorrando. Presente, sessão de análise, quadro “O campo de trigo com corvos”, de Van Gogh. Ramos e caminhos. O do meio, sem saída. Corta para rua Fernando Machado com grande profundidade de cam-po e distância focal curta, o personagem em profusão — ou memórias em foco —, até

diminuir oprimido pelas linhas de fuga sem saída. Dois anos de análise sem falar nada. Caminhar para onde?

“Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia” é o início do livro “Os devaneios do caminhante solitário”, de Jean--Jacques Rousseau, que o personagem Nilton observa com frequência na vitrine de uma loja. Um casal o reconhece na rua e, com entonação incômoda, calcada numa métrica insistente de “falar manezinho” de quermesse, a câmera se move novamente.

Flui sobre o antigo parreiral da praça XV com os petit pavês desenhados por Hassis se movendo como ondas. As pessoas passam pela rua, mas o som não é o da rua, é violino e pia-no clássico quase lírico, sobre um personagem épico e raso. Sua intenção está ali, a confronta-ção com o passado. As ondas do balde de tor-tura ecoam e refletem assimétricas. Voltam os flashbacks. Do double de zero no dominó de hoje para o jogo no passado. Double de nada? O que restou a Nilton depois de tanta violên-cia? Qual violência?

O livro de Rousseau como objeto faz sentido agora quando a lógica do oprimido é reviravoltada. Trazer do passado memórias doloridas também inflige dor ao algoz. Qual o papel de Nilton na Ditadura? Vamos colocar ele representando a memória coletiva deste nosso estado, talvez? Em contraponto com o algoz confrontado em “Um tiro na asa” (2005), de Maria Emília de Azevedo, Strois-ch compõe uma narrativa que consegue não deixar o personagem se transformar num tipo, tornando-o redondo.

Essa intenção indica na cena final que o al-goz vive, que o que existe de continuidade é, a meu ver, uma permanente violência do estado perpetrada ao produtor cultural. Não há mais o que extrair do passado como referência, e an-tes de partir para o novo é preciso mostrar que a aflição está ali presente, na memória, na rua.

Cabe ao cinemanovistas catarinenses, como Marco Stroisch, encontrarem um cami-nho para a expressão audiovisual contemporâ-nea, rompendo com receitas já não tão moder-nas. “Memórias de passagem” parece ser um ponto de partida.

O carrasco analisado: Nilton (José Ronaldo Faleiro) revive sessão de tortura

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Fernando Weber | Marina borck | aline dias e diego rayck | augusto benetti | bil lühMann | corpo editorial | Jessé torres | JiMson Vilela | Jorge luiz Miguel | kaMilla nunes | lara Monteiro | leandro pitz | leticia cardoso | lucila Vilela | Marcos bg | Marina Moros | natália cardoso | pedro Mc | priscilla Menezes | radJi schucMan | rodrigo poeta | ruth steyer | teresa sieWerdt | Fernando Weber | Marina borck | aline dias e diego rayck | augusto benetti | bil lühMann | corpo editorial | Jessé torres | JiMson Vilela | Jorge luiz Miguel | kaMilla nunes | lara Monteiro | leandro pitz | leticia cardoso | lucila Vilela | Marcos bg | Marina Moros | natália cardoso | pedro Mc | priscilla Menezes | radJi schucMan | rodrigo poeta | ruth steyer | teresa sieWerdt

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A exposição “Meia-ram-pa” partiu do convite feito a artistas criarem

cartazes de filmes que não exis-tem, sendo seu conteúdo, forma de construção e design livres. Filmes ideais, autobiográficos, etéreos, escrachados, infanto--infinitos, fotonovelísticos, com cara de road movie, cara de road movie a pé, rancorosos, român-ticos, literários, descrentes, e aqueles onde o filme acontece só nos créditos.

A exposição aconteceu em junho de 2011, instalada na rampa de acesso principal — do Centro de Cultura e Eventos da UFSC — ao 15.o FAM (Floria-nópolis Audiovisual Mercosul), intervindo no espaço de passa-gem dos espectadores ao festi-val. Os cartazes eram reorgani-zados diariamente criando um fricção entre a real programa-ção e a promessa dos cartazes anunciados, permitindo uma construção de sentido coletiva sobre o material proposto.

Cartazes de filmes inventados

Meia-rampa

Fernando Weber

Marina Borck

Corpo Editorial Corpo Editorial

Aline Dias e Diego Rayck

Jessé Torres

Augusto Benetti

Jimson Vilela

Bil Lühmann

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FiChA tÉCniCAConcepção, curadoria e montagem: Maíra Dietrich, Eloah Melo, Pedro MC e Reno Caramori Filho. realização: Associação Cultural Panvision.

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Jorge Luiz Miguel

Leticia Cardoso

Marina Moros

Radji Schucman

Kamilla Nunes

Lucila Vilela

Natália Cardoso

Rodrigo Poeta

Lara Monteiro

Marcos BG

Pedro MC

Ruth Steyer

Leandro Pitz

Marina Moros

Priscilla Menezes

Teresa Siewerdt

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PArtiCiPArAM destA sessão: CláudiA CárdenAs, FáBio BrüggeMAnn, FláviA Person, gABi BresolA, iur goMez, luiz ColAres, MAriA eMíliA de Azevedo, nAtáliA Poli, rAFAel sChliChting e rosAnA CACCiAtore

“A mulher azul” da novela homônima de Renato Tapado (Ed. Bernúncia, 2002) tornou-se a “Mulher azul” (2011), de Maria Emília de Azevedo, o curta vencedor do edital Cinemateca Catarinense/Fundação Catarinense de Cultura de 2007. A pas-sagem do texto à tela foi tema da conversa da “Sessão comentada” do Cineclube Pitangueira — em 18 de outubro, na Casa

das Máquinas, Lagoa da Conceição —, em que a diretora relatou também a experiência de filmar em Arles, no Sul da França, e conviver 24 horas por dia com as cinco pessoas da equipe de produção na própria casa das locações de “Mulher azul”. Maria Emília de Azevedo rememora: “A gente não sabia, mas a trajetória da equipe foi também a trajetória da personagem: sair de um lugar e ir para outro sem saber o que vai acontecer.”

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Iur Gomez | Maria, a impressão que eu tenho é que você foi bastante fiel à obra do Renato Tapado. Há um momento em que você deixa a literatura dele?Maria Emília de Azevedo | É bastante interes-sante a questão da adaptação do livro porque, na verdade, não é a adaptação de uma obra, mas de um texto. Utilizamos o texto poético e criamos algumas situações que não estavam na criação do Renato para essa personagem, transpondo essa linguagem literária ou poética para a cinematográfica.Cláudia Cárdenas | Qualquer interpretação não é definitiva já como leitura. Passando para outro meio, é outra coisa sempre!Maria | É outra coisa e nós colocamos outras mais. Só quando houve a oportunidade de ir à França que eu comecei a entender a festa, apenas induzida no texto do Renato. Em outro país, a festa teria o sentido mais antropológi-co, o de entrar em ambientes, ver as pessoas daquele lugar, suas emoções, as comidas, co-nhecer a música. E, aí sim, câmera na mão: quisemos quebrar a rigidez da fotografia, que é a da personagem.Iur | Sempre pensei que esse azul não fosse uma cor, talvez eu continue completamente equivocado. Não sei se os azuis do filme me incomodam, ou não, mas me fazem questionar

bastante. Ela veste maiô azul, na primeira cena está coberta por um lençol azul...Maria | O [diretor de fotografia de “Mulher azul”] Charles [Cesconetto] mostrou, há duas semanas, o filme em Marselle e uma das ob-servações que fizeram é que esse é o filme da “Côte d’azur”. Acabei assumindo isso, embora saiba que o azul nesse caso seja relacionado a um estado emocional, de alma. Fábio Brüggemann | Maria, a maioria das pes-soas tem como uma adaptação literária a ideia da literatura que tem um enredo, uma história, um acontecimento. O texto do Renato não tem absolutamente nada disso. “A mulher azul”, para mim, desde quando li, é uma mulher de palavras, não é real. É o Renato travestido em linguagem. Se o poeta é aquele que se trans-forma em linguagem, para mim é o Renato de saias. Falo isso na minha interpretação como leitor. A obra me dá esse direito. Ela é uma mulher falsa porque não menstrua, não mostra o seio, não trepa. Você falou, numa outra oca-sião sobre sua relação com a coisa pictórica, ou seja, você deixou o cinema um pouco de lado e fez um filme de quadros. Transformar o filme numa questão pictórica não seria a solu-ção para esconder a falsidade dessa mulher? O outro ponto é algo técnico para mim. Acho que faltou uma espontaneidade na narração. Não

na narrativa, e sim, na narração. Você teve um desafio enorme, talvez o pior possível, que foi pegar uma obra que não tem uma narrativa...Maria | Um texto poético.Fábio | Sim, mas parece que você quis preen-cher com imagem um texto que não é visual, mas para dentro, literário. Em alguns momen-tos ele parece um audiovisual mesmo, uma imagem com um texto. Não seria pelo modo de narração da atriz? E se você resolvesse não incluir o texto, se você esquecesse completa-mente dele? O [Akira] Kurosawa foi adaptar Shakespeare e esqueceu Shakespeare! Ele pe-gou, leu, enfiou na gaveta e fez o seu próprio Shakespeare [em “Ran”, 1985].Maria | É por isso que eu defendo que esse roteiro é adaptação de um texto e não de uma narrativa. Quando adaptamos um conto, um romance, no sentido de que se tenha uma nar-rativa, optamos por incluir ou não determinado acontecimento, ou até criamos outros aconte-cimentos. Nesse caso, adaptamos um texto e criamos algumas situações que não existiam. Talvez essa condição de mulher falsa esteja lá porque, de fato, não há acontecimentos. É a adaptação de um texto poético e não de uma obra literária, o que envolve certa diferença.Cláudia | O que me incomoda no filme, como mulher, é a situação de carência. Essa mulher

“Tenho comigo uma espera que não sai.Caminho e ela vai junto”

Mulher azul

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TADAacaba sendo carente demais, na espera, isso me

irrita! Mas o que me incomoda como leitora e realizadora é a interpretação do texto. Parece--me que ela não o compreende. As pausas são de meio de frase, parece que ela não está ali, sabe? Aquelas palavras não formam tecido com a atriz, sentimos que ela não entendeu o que está lendo. E isso até diminui a carga poé-tica que o texto do Renato poderia acrescentar.Fábio | Algumas partes do texto poderiam ser ditas por um homem e não faria a menor di-ferença.Iur | É um texto humano, universal. Angústia, ausência e solidão são universais. Há momen-tos muito femininos e outros que são humanos.Cláudia | Mas é uma menina que está ali. O filme se chama “Mulher azul”.Fábio | Maria, me fala dessa intenção, desse ritmo quase que decorado.Maria | Eu optei por isso, Fábio, para não cor-rer o risco de cair naquela coisa contrária.Fábio | Melosa?Maria | Exatamente. É muito difícil colocar essa questão da poética e da própria poesia, de uma maneira tão formal, digamos. A poesia falada, colocada verbalmente, pode ser muito perigosa.Fábio | É uma linguagem para ser lida. Poe-sia tem que ser lida, não dá para ser ouvida. [Stéphane] Mallarmé falava isso.Maria | Fiquei com receios de pesar demais para o outro lado e ficar piegas. Fábio | Ainda mais num texto em que o mais importante é a construção da linguagem e não aquilo que ele quer dizer. Cláudia | Sim, ele trabalha com a forma.Maria | Claro, isso é composição.Cláudia | Quem faz cinema também trabalha com o conceito do filme.Fábio | Acho ótimo que a intenção tenha sido essa! Não tinha pensado nisso ainda, de que o oposto poderia levar ao piegas.Cláudia | Ainda apostaria no meio termo, numa leitura. Daria mais trabalho porque é muito difícil encontrar ator que dê muito de um texto. Fábio | Não acho que seja uma adaptação. Uma adaptação se configura quando o texto é transformado. Maria | Concordo que tenha alguma outra coisa entre essa adaptação que você agora se refere, Fábio, e a adaptação livre do Godard, por exemplo, mas eu não sei o que é.Luiz Colares | De linguagem, talvez?Fábio | Mas a linguagem da poesia ainda está no filme.Cláudia | Acho que sempre é adaptação quan-do você passa um texto para o cinema. O nome é técnico.Fábio | Mas o texto do Renato está ali, intacto.Cláudia | Sempre é adaptação no sentido que não há como manter a literatura, você mesmo falou isso. Como que essa mulher azul, feita de palavras, vai virar a mulher de carne e osso? Ela se torna de carne e osso exatamente porque é sempre adaptação.Fábio | A imagem sim é uma adaptação, mas o texto está ali.Cláudia | O cinema não é texto. É preponde-rantemente um filme-imagem.

Luiz | Uma coisa que muito me chamou a atenção foram os quadros. Quando você falou que quis mais fazer pintura do que cinema, era isso mesmo! Tinham quadros belíssimos ali! Você fez mais uma adaptação: a pintura dentro do cinema.Maria | Num determinado momento, quando viajávamos de trem para Arles, olhei para a Pa-trícia [Teotônio, atriz] e vi [Amadeo] Modiglia-ni nela! Tem inclusive um momento em que ela desloca o pescoço, não sei como faz isso...Fábio | É engraçado, Van Gogh morou em Arles. Maria | Foi muito legal a identificação do ros-to angulado dela com essa lembrança. Claro que reforçou ainda mais o retrato para mim, que sou apaixonada por Modigliani. E tem um momento, no início do filme, que ela não fe-cha o olho e também não o deixa aberto, mas o mantém exatamente na altura das pinturas do Modigliani.Iur | Isso foi sua orientação ou acaso?Maria | Foi acaso. Quer dizer, o que fizemos foi identificar isso e, como já vínhamos no desenho de trabalhar com retratos, ficou mais próximo. Claro, não foi acaso o enquadra-mento, fechar o quadro como Modigliani faz, o cabelo — eu pedi para que ela o prendesse em alguns momentos para reforçar a imagem do pescoço alongado dela. Mas o momento do olhar foi emocionante! Estávamos ali na câme-ra e ela fez o olhar exato! Rafael Schlichting | Ela viu a referência? Maria | De pintura, não. Geralmente trabalho referência de pintura com o fotógrafo e tiro toda a referência imagética do ator. Cláudia | E o roteiro, você dá?Maria | Dei o roteiro e tirei. Talvez seja uma incompetência de direção minha, mas acho muito difícil dar referência de imagem para ator e depois não ter problemas. Instiguei a melancolia, forcei para que viesse à tona. Nós todos da equipe temos uma amizade de muitos anos e ela estava entrando naquele grupo. Na casa, ela ficou instalada num quarto, que era também o da personagem, sozinha. Os outros estavam sempre em dupla, pela acomodação. Ninguém se aproximava muito dela. Natália Poli | Foi você que escolheu o texto e convidou o [roteirista] Marcelo [Esteves]?Maria | Estávamos escrevendo “Um tiro na asa” e nos encontrávamos todos os sábados num desses cafés da Lagoa. Num dos dias, imediatamente propus a adaptação de um tex-to. Na mesma hora o Marcelo disse saber que o texto era “Mulher azul”. Foi algo muito legal a coincidência, essa coisa que a gente não sabe por onde passa, essa comunicação, essa meta-física! Ele ficou muito feliz em adaptar esse texto sem narrativa.Fábio | Mas existe uma narrativa. O texto não tem, mas o filme tem.Maria | Sim, a gente criou uma certa narrativa.Fábio | Tem começo, meio e fim, você percebe toda a situação.Cláudia | Uma narrativa pode não ser linear, não ter começo, meio e fim e ainda ser uma narrativa...Rosana Cacciatore | Imagem é sempre nar-rativa.

Maria | O que acho interessante, me distan-ciando um pouco da autoria, é que se trata de um recorte, num momento, de uma persona-gem. Talvez eu já estivesse um pouco cansada de fazer personagens pesados, no sentido de corpo mesmo, como o Cruz e Sousa [de “Alva paixão”, 1995] ou o Hector [de “Roda dos expostos”, 2001] que, embora não seja histo-ricamente uma referência, tem um certo peso porque representa algo. O próprio Antônio, de “Um tiro na asa”, representa um tempo, uma geração, uma classe. E “Mulher azul” não re-presenta nada. Apesar de trabalhar o feminino,

não representa o feminino. Não é uma feminis-ta, mas também não sabemos quem é. Não é uma personagem fechada. Cláudia | Quase uma não-personagem. Maria | Sim, exatamente. Pode ser que, in-conscientemente — e percebo isso agora, con-versando com vocês —, eu já estivesse muito cansada das personagens que criavam uma grande pressão para dar conta delas. “Mulher azul”, talvez nesse sentido, tenha sido mais tranquilo. Para mim, como autora, não importa o que ela fez antes ou vai fazer depois. É um momento apenas.

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c A via-crúcis da cultura cinematográfica

FAusto douglAs CorreA Júnior

Existem gêneros cinematográficos cujas expressões caíram em certo desuso, caso dos chamados “cinema amador” e

do “cinema experimental”. O fato é que muita história está por trás desses conceitos, histó-rias ligadas a certas concepções de cinema. Não por acaso o contexto que será comentado aqui — quando esses gêneros atingiram suas mais significativas expressões — marca tam-bém o início do segundo grande momento do movimento de cultura cinematográfica no Bra-sil (e no mundo): a cinefilia do pós II Guerra, estritamente ligada ao fenômeno do cinema moderno, do qual o Neorrealismo Italiano foi a primeira grande expressão.

É possível enxergar tal florescên-cia por trás de um único filme, “Via--Crúcis” (1972) — curta produzido em Santa Catarina pelo Grupo Universi-tário de Cinema Amador/GUCA, com direção de Deborah Cardoso Duarte e Nelson dos Santos Machado —, mas não o farei por meio da análise ima-nente, ou “comentário”. A ideia aqui é traçar um esboço histórico da conjuntu-ra na qual o filme se insere, tendo como objetivo apontar as relações entre os diversos braços de um amplo e difuso projeto de sistema cinematográfico en-tão em curso no Brasil, que, inspirado e inspirando movimentos de cultura ci-nematográfica semelhantes no mundo, tentavam estabelecer (e mesmo insti-tucionalizar) modos de produção di-versos daqueles dos quadros da grande indústria cinematográfica.

Como bem ressaltou o historiador Henrique Pereira Oliveira, a pequena, mas importante, produção do GUCA estava estritamente ligada não apenas à renovação do panorama cultural de Florianópolis a partir do final da dé-cada de 1940 (cujos marcos principais foram a realização do I Congresso Ca-tarinense de História, em 1948, e a criação do Círculo de Arte Moderna/CAM), mas tam-bém às mudanças da vida social na capital do estado a partir da reorientação das atividades econômicas para o turismo e a industrialização da pesca. A produção seria, assim, um retrato das disputas em torno de modelos de desenvol-vimento para a região, entre a tradição local e o avanço do capitalismo sobre essa tradição. No entanto, “Via-Crúcis” está longe de ser um fe-nômeno isolado e de se resumir a esse conflito cultural, e somente consegue dar uma resposta do ponto de vista da forma a esse mesmo con-flito, por perceber que esse transcendia o âm-bito local, sendo que parte fundamental dessa resposta diz respeito ao modo como o filme

dialoga com a tradição de seu campo e meio específico, ou seja, o cinematográfico.

Assim como quase toda a produção ex-perimental dos anos 1950/60, “Via-Crúcis” é fruto intimamente relacionado à circulação de filmes de arquivo, promovida pelas cinemate-cas e cineclubes do período. É difícil precisar quais teriam sido os filmes exibidos pelos ci-neclubes do Sul do país no período, mas al-guns exemplos podem ser citados sem medo de erro: parte da produção das vanguardas francesas da década de 1920, do cinema ex-pressionista alemão e do cinema soviético de Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, esses que es-tão entre as influências dos autores dos filmes “Via-Crúcis”, “Novelo” e “Olaria”. Mas os ci-

neclubes e as cinematecas não se restringiam a exibir tais filmes e eram, na época, o verda-deiro circuito alternativo de cinema no Brasil (e no mundo), responsáveis — ao lado dos grandes festivais do período — pela difusão do cinema moderno, do neorrealismo italiano, à nouvelle vague francesa, do cinema polonês moderno ao cinema novo brasileiro, alemão, asiático e latino-americano.

Ao lado do trabalho de difusão de filmes, tínhamos uma importante safra de críticos (tais como Paulo Emílio Salles Gomes e Fran-cisco Luiz de Almeida Salles), que ajudavam a dar organicidade e historicidade a todo o movimento, das cinematecas aos cineclubes,

dos festivais à crítica engajada (no sentido de ocupar o espaço público), sendo aqui preciso destacar o referencial local: a crítica de cine-ma publicada na revista Sul. E são as qualida-des excepcionais de “Via-Crúcis” e de “No-velo” que levam a pensar os vínculos entre o local e o universal.

Em rápida pesquisa na Cinemateca Brasi-leira (São Paulo), deparei com um oceano de referências e de documentação relativas a fes-tivais de cinema amador no Brasil (e no mun-do), que pode revelar todo um universo ainda a ser explorado por pesquisadores e produtores. Mais do que criar uma indústria cinematográ-fica, todo esse movimento visava à liberdade de um espectador cultivado por diversas refe-

rências da história do cinema apresen-tadas de forma organizada e acompa-nhadas dos mais diversos suportes de complementação (crítica, catálogos e publicações em geral). “Via-Crúcis” é, a um só tempo nesse panorama, causa e consequência desse processo.

CRÔNICAS DA DITADURA

Assim como “Novelo”, “Via--Crúcis” representa a criatividade e a liberdade do indivíduo reprimido pelo meio hostil, ambas presentes na própria forma do filme, nos en-quadramentos dos planos, no ritmo que alterna imagens fixas tomadas de diferentes ângulos, com câme-ra na mão, e balanços vertiginosos apropriados ao objeto enfocado: a angústia do meio opressor que arran-ca o couro e as unhas de proletários crucificados. Se “Via-Crúcis” enfoca um personagem pobre, um operário, “Novelo” mostra outro lado da mo-eda na deriva das aflições. De um jovem universitário que se sente sem

perspectiva num mundo que lhe parece estranho e ameaçador. O cenário para am-bos é a cidade de Florianópolis com seus conflitos e transformações, mas os dois filmes se tornam assustadores quando re-cordamos que foram realizados no início (“Novelo”, 1968) e no auge da repressão da Ditadura Militar (“Via-Crúcis”, 1972), momento sombrio da história, sobretudo no que toca ao (des)respeito às liberdades civis e aos direitos humanos, e por isso mesmo pouco afeito a esperanças, seja para um jovem trabalhador cujo couro era arrancado, seja para um jovem estudante universitário que entrava na vida adulta.

FiChA tÉCniCA“Via-Crúcis” (1972), 16mm, 10’, p/b.Produção: Diretório Central dos Estudantes/UFSC.Argumento, roteiro, fotografia, montagem e direção: Deborah Cardoso Duarte e Nelson dos Santos Machado.som: Deborah Duarte.elenco: José Henrique Moreira, Álvaro Reinaldo de Souza, Ester Bratting, Marcus Bratting, Olinda Machado, Vera Collaço, Nei Gonçalves e Yara Koneski.

GUCA em ação: Vera Collaço, Olinda Machado e Marcos Brattig em cena de “Via-Crúcis” (1972)

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Cosmologia new-age

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“A árvore da vida”, detentor da Palma de Ouro 2011, procura o Céu na vidência do real e encontra um Paraíso de catálogo de autoajuda

riCArdo WesChenFelder

O cineasta norte-americano Terrence Malick acredita, como o teórico An-dré Bazin, na verdade da imagem. Ou

melhor, na revelação sublime do real na ima-gem. Mas como o Deus que falha, que aban-dona seus filhos, a natureza da imagem tam-bém possui suas artimanhas, seus equívocos. No filme “A árvore da vida” (2011), a crença na imagem entra em conflito entre a captura da transcendência do real e a criação de ima-gens artificiais. O texto do filme explicita — por meio da voz em off da mãe — a divisão de representação do mundo entre a Natureza, egoísta e tirana, e a Graça, bela e generosa. O discurso do cineasta oscila entre esses dois po-los e, como seus personagens, põe em questão a fé na imagem verdadeira.

O filme ganhou a Palma de Ouro em Can-nes em 2011 e gerou debates polarizados na crítica que se dividiu entre a elegia visual e a megalomania filosófica. Não há dúvida de que o longa-metragem deixa a mesmice atual do cinema hollywoodiano, mas, convenhamos, não se trata de nenhuma salvação (para forçar a analogia religiosa) do cinema.

Uma família nos anos 1950 que vive apa-rentemente o paraíso na Terra perde o filho mais velho e a partir daí vive o luto permanen-te. A narrativa despedaçada do filme alterna a

memória dos personagens em torno do núcleo familiar. Os vários pontos de vista e de tem-pos sobre o vazio deixado pela morte do filho escavam traumas e ressentimentos. O elo en-tre passado e presente parte do filho do meio. Ele vive em estado de culpa pela dissolução da família e descrente quanto ao mundo atual, em sua visão, ganancioso e predador. O filho trabalha em um grande prédio, moderno, de vidro, e vê a cidade lá de cima. Sempre está subindo no elevador, porém nunca alcança o céu. A Natureza venceu?

A presença do pai é pesada, sobretudo, dentro de casa. O silêncio à mesa é ordem. Ca-rinho e agressão se confundem aos olhos dos filhos. O domínio da mãe é o jardim, a liber-dade demarcada. O pai é terra, força. A mãe, água e ar. As brincadeiras com a mangueira e o balanço são gestos maternos, descolados da matéria física. Quando o pai está fora de casa, pequenas subversões infantis são permitidas. Natureza e Graça em conflito.

Em “A árvore da vida”, Malick aproxima — no conteúdo e na forma — formulações recorrentes a dois cineastas da segunda me-tade do século XX: Ingmar Bergman, através do tema da perda da fé, e Andrei Tarkovski, na busca pela metafísica da imagem. O que Malick coloca de novo é que aparentemente acreditando no realismo da imagem, o ci-neasta macula à sua linguagem imagens de

síntese (imagens geradas por computador sem referente da realidade) problematizan-do, assim, a natureza ontológica da criação de imagem.

O cineasta — Deus no seu mundo ficcio-nal — enquadra a vidência realista da imagem no enxame dos passarinhos voando entre os ar-ranha-céus da metrópole, numa borboleta que dança em torno da mãe ou no balanço singelo da cortina ao vento. Em contraponto, surgem imagens artificiais do cosmos, de seres mari-nhos e até de dinossauros.

O formalismo excessivo das imagens que buscam sempre o céu, a luz e a clarividência em movimentos de câmera que evocam espíri-tos que pairam sobre os personagens mais pa-rece um catálogo audiovisual de autoajuda. O predomínio das cores azuis e brancas, as vozes off sussurradas e a música de coral completam a estética new-age do filme.

O final do filme poderia muito bem caber numa obra espírita da franquia de Chico Xa-vier ou em um programa de final de ano da Rede Globo. Todos os membros da família se reencontram no Paraíso. As desavenças afeti-vas e remorsos do passado são reconfortados. A sensação, ao final dessa suposta viagem cósmica, é de vazio. Alguns, menos céticos, podem me aconselhar que o vazio promove re-flexão e pureza de espírito. Para mim, trouxe, na real, esse texto descrente.

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“besteiras dessas bestas cheias de bosta, Vítimas das formas em que se manifes-

tam, tal qual lobriguei tal dentro das entranhas de bichos de meios com mais

recursos. e os aparelhos óticos, aparatos para meus disparates? este mundo é

feito da substância que brilha nas extremas lindezas da matéria. no realce de

um relance, sito no centro de um círculo, uma oitiVa diminuta descreVe uma

dízima do período de ponto de Vista definitiVo. Vigiando, eVidenciar-nos-emos.”

“Catatau”, Paulo leminski

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CláudiA CárdenAs

“E x isto” é uma profusão de ima-gens absurdamente belas, con-tundentes, fortes. E, no entanto,

não pode ser nunca chamado de um filme ma-neirista, ou de uma estética superficial e sem alma. Ao contrário, em “Ex isto”, Cao Guima-rães parece encontrar a vocação do seu cinema, um ser para dizer o outro, para se dizer a partir do outro, para se contradizer contra dizendo o outro, a contra pelo, a contra imagem.

Imagino Cao, maravilhado, nas locações amazônicas, bradando as frases de “Catatau” sem absolutamente dizê-las. Essa tarefa recai sobre mim ao resolver escrever para dizer o filme: “Palmilho os dias entre essas bestas es-tranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce... Singulares excessos...” Vamos dizer de uma vez, isto é outra história.

“Ex isto” é uma obra cinematográfica que se apropria de “Catatau”, romance de Paulo Leminski. Não é literatura filmada, é cinema. As apropriações são da ordem não de uma adaptação da ideia que norteia ou desnorteia o romance, mas da ordem da canibalização do texto palavra. “Ex isto” é outra história. Cao Guimarães opera o princípio da antropofagia que o texto mesmo indica como caminho para ser devorado e torna imagem não uma carto-grafia imagética do texto de Leminski, mas sua digestão, o que empodera em imagem a obra de Cao.

“Ex isto”, se o é, é com Leminski. Não a partir de, não sobre, mas com. Num processo de gestação de um nome que se faz imagem, que se gesta imagem. Ou como diz Leminski sobre o “Ex isto”, de Cao Guimarães (inversão que se permite no ato de pensar como dobra): “Narciso contempla narciso, no olho mesmo da água.”

“Ex isto” se apropria do personagem René Descartes, Renato Cartesius, o que re-nasce outro em terras do pau-brasil e lhe dá um corpo-imagem. Em Cao, seguir Descartes em sua aventura em terras tupiniquins é criar este espaço tempo movimento que só existe no cinema. E no cinema de Cao Guimarães a perspectiva sempre é a do deixar ser. Seguir o personagem numa aventura de filmagens de apenas duas semanas e deixar ir, deixar ser, libertar, mas sem esquecer o quadro, o écran, matéria da arte cinematográfica.

Ao seguir o personagem, o ator, livre de roteiros ou intenções pré-moldantes, pré-fixa-das, repentinamente, ali, surge inteiro diante

de nossos olhos. Vemos o trabalho de busca do personagem, assistimos João Miguel vesti-lo, despi-lo, retomá-lo, emprestar seu corpo para que venha essa criatura que toma vida própria, trazendo à tona as questões não da literatura, mas do cinema, da reflexão sobre o cinema, ao mesmo tempo em que questiona as cartesianas certezas de tudo. Descartes, passageiro de um espaço-tempo estrangeiro, recriado para habitar a contemporaneidade da criação de “Ex isto”.

Surgem as camadas de se filmar assim tão perto do real, a lente tão próxima, um narrador tão em primeira pessoa que, se não move os lá-bios, todo ele se move e pulsa e treme e vibra e vive perante a câmera. Dessas camadas surge o ator, essa superfície tantas vezes obscura do ato de representar. E ele deve surgir, é o que sugere “Ex isto”, é o que se deixa de ser para vir a ser outro. É o parto do personagem central de Cata-tau, é o parto do narrador de “Ex isto”.

Cinema reflete. “Reflete e fica a vastidão, vidro de pé perante vidro, espelho ante espe-lho, nada a nada, ninguém olhando-se a vácuo. Pensamento é espelho diante do deserto de vi-dro da Extensão. Esta lente me veda vendo, me vela, me desvenda.”

Cao Guimarães trabalha a montagem do filme de modo a inserir a busca do narrador/ator pelo personagem/ser. De uma geografia desconhecida, parte barqueiro vendo a si mes-mo em plano e contraplano num jogo de míria-des de um olhar cada vez mais atônito com o deparar-se com o eu mesmo.

Cao utiliza-se dos recursos da linguagem cinematográfica para explorar esta sensação do eu dilacerado ante um outro de tal magnitude de diferença que é ele mesmo redimensionado pela vastidão de um espaço tão outro e que tor-nar-se-á tão dentro. Uma viagem para dentro de si mesmo numa cartografia desconhecida, idílica, selvagem.

E Cao segue as indicações de Leminski para criar as imagens da vertigem do perso-nagem Descartes: “Parto espaços entre um aumento e um afastamento em cujos limites cai como uma luva minha vertigem.” E entre essas brechas espaciais surge nova camada onde estão os signos de um Brasil que se divi-de em suas imagens ícones: da arquitetura do poder — planos da arquitetura de Brasília; da arquitetura que é mais do que sintoma, mar-ca da busca por um Brasil possível; do espaço urbano popular que concentra o imaginário da busca, na imagem da esperança do trânsito da migração em busca de uma vida melhor — a Rodoviária; da mata, rios, veias e coração da terra brasilis, representada pela fúria da natu-

reza — a Pororoca, dos mitos de criação brasi-leiros indígenas, afro, cristãos do batismo nas águas, ritos de passagem de um Brasil selva-gem e sábio, indígena e negro, selvagem e ur-bano, ancestral e moderno.

“Trago o mundo mais para perto ou o man-do desaparecer além do meu pensamento: ár-vores, sete, um enforcado, uma vela acesa em pleno dia! Escolho recantos selecionando firma-mentos, distribuo olhares de calibre variado na distância de vário calado.” Imagem ser tempo e movimento composta no ritmo de brechas espe-ciais da montagem destas imagens mosaico de nossa cultura antropófaga e saborosa que vem com toda a força e exuberância tomar a tela in-teira, tomar o personagem por completo, tomar o ator de surpresa, o entorno todo dentro.

O cogito transforma-se de Penso, logo existo para penso, logo “Ex isto”. As certezas fluem para a imponderabilidade, para a não identificação. Se “Ex isto”, passo a flutuar na derivação do possível poético, da poesia de uma imagem ilimitada. Penso, logo deixo de ser isto para ser devir, vir a ser, sempre “Ex isto”. Possibilidade do diverso, da diversifica-ção, da metamorfose contínua e vivaz do ser que se faz em relação com o outro. Antropofa-gia é inclusão.

Em tempos de oportunismos temáticos visando sucessos de bilheteria, grandes dis-tribuidoras garantindo profícua vida ao cine-ma nacional enquanto engendram esquemas de venda que chegam a nortear os roteiros e mudar os rumos dos desejos dos realizadores cineastas, nada mais profundamente próprio ao tema Diversidade e ao mesmo tempo tão longe de qualquer oportunismo e buscas por bilhete-rias pré-direcionadas, pró-consumidoras e in-digeríveis. “Ex isto”, parte de um convite feito a Cao pelo Itaú para uma série de filmes sobre outros artistas, um trabalho de encomenda, portanto, e, no entanto, ou até mesmo por esse fato, torna-se um bom exemplo para pensar-mos o que é um trabalho artístico em cinema.

“Ex isto” é arte cinematográfica brasileira de excelência, pensamento vivo, cinema vivo, que se faz com o outro, sem certezas pré-for-matadas, sem buscas por bilheteria ou hits de sucesso, um ato de amor genuíno. Como não se deixar tomar por inteiro quando o objeto é arte? Este milagre que só se opera na relação com o outro. Nesta época de mercado e proconsumers, dá mesmo vontade de gritar com Zé Celso, com Cao Guimarães, com Oswald de Andrade e com Leminski por uma antropofagia mágica que desperte uma busca menos óbvia e gere fomes outras para o nosso Cinema.

Ex isto, poesia em tempos de proconsumers

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TODO MUNDO QUER O QUEIJO Entre os orientadores da I Oficina de Realização Audiovisual, desta-que para Cíntia Dommit Bittar, diretora do curta de ficção “Qual queijo você quer?”, o grande sucesso catarinense de 2011 que enfoca a crise conjugal dum casal na terceira idade. Produzido com o modes-to orçamento de R$ 30 mil, integra a seleção oficial do IV Paulínia Festival de Cinema, 39.o Festival de Cinema de Gramado, 22.o Fes-tival Internacional de Curtas de São Paulo, 11.a Goiânia Mostra de Curtas. O filme foi premiado no 13.o Festival do Rio, com o Prêmio de Melhor Curta, e no Festival de Cinema de Juiz de Fora Primeiro Pla-no, com os prêmios de Melhor Atriz para Amélia Bittencourt, Melhor Ator para Henrique César e Melhor Trilha Sonora para Mateus Mira.

ESTRANHOS NA BIBLIOTECA O curta de ficção “Dicionário”, de Ricardo Weschenfelder, será lançado no início de 2012. Rodado nas cidades de Timbó e Blu-menau, o filme é uma adaptação do conto “O guarda-noturno”, de Lindolf Bell (1938-1998), publicado em 1986, e fala sobre os sentidos além da compreensão humana e de como a razão pode adentrar o inexplicável. Um cavalo em plena Biblioteca Central da Universidade Regional de Blumenau cria a atmosfera oníri-ca do filme. “Dicionário” foi o único projeto de Santa Catarina contemplado pelo Edital do MinC 2009 — Concurso de apoio à produção de obras inéditas de curta-metragem.

TRÊS MILHÕES SÃO REALIDADE O Edital Catarinense de Cinema foi aprovado no dia 13 de de-

zembro pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em substituição à lei anterior, com uma série de alterações propostas pelo coletivo do au-

diovisual, representado pela Cinemateca Catarinense, entre as quais a deso-brigação de finalização dos filmes em 35 mm. As categorias de premiação serão longa-metragem de ficção; longa documental; média-metragem de ficção; média documental; curta-metragem de ficção; curta documental; pesquisa e desenvol-vimento de projetos de documentário e de roteiro de longa-metragem de ficção; e, ainda, curta-metragem de ficção e curta documental destinado a diretor estre-ante. O Edital 2011 foi lançado na cidade de Chapecó, na abertura da Mostra Nacional de Documentários Ó o Doc Aí, uma produção da Cinelo — Asso-

ciação de Cinema e Vídeo de Chapecó e Região. No evento, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC) assegurou o incremento de R$ 1,1 mi-

lhão no valor do incentivo, chegando ao total de R$ 3 milhões. A publicação oficial do Edital Catarinense de Cinema 2011

está assegurada para o mês de dezembro, com pre-visão de abertura de inscrições para janeiro

de 2012.

TEORIA E PRÁTICA D“O GATO”A Novelo Filmes e o Fundo Municipal de Cinema (Funci-ne) promoveram, de setembro a novembro, a I Oficina de Realização Audiovisual, que abordou na teoria e na prática o processo de criação de um fil-me e selecionou, entre dezesse-te roteiros inscritos, cinco pro-jetos para desenvolvimento. Cada equipe foi formada por diretor, roteirista e produtor e, pelo processo de ‘pitching’, foi escolhido para produção o projeto “O gato”, um suspense psicológico de Christiano de Almeida (roteirista), Juliana Basseti (diretora) e Neca Ga-marra (produtora). O curta--metragem foi orientado pelos ministrantes da I Oficina e será montado pela Novelo, com apoio da Orbital Filmes e da Onda Sonora.

DICIONÁRIO: o ator Ivo Müller se vê no vídeo assistente

Presidente da Cinemateca, Iur Gomez, anuncia Edital 2011

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● “Projeções do contemporâneo” foi o tema da 5.a Semana de Cinema da UFSC, em outubro, com os docu-mentaristas Eduardo Coutinho e João Mo-reira Salles (ver páginas 3 a 7 de LADO C) e o Ciclo Novos Realizadores na pro-gramação principal da semana organizada pelos estudantes do Curso de Cinema da UFSC. Foram cinco mesas-redondas que abordaram temas como políticas públicas para TV; ensino de cinema nas universida-des; e produção e crítica cinematográfica, com oito oficinas de formações específicas, e cerca de cento e setenta participantes.

● Foi realizado de 11 a 15 de novembro, no Cine Itália, o I Festival Internacio-nal de Cinema de Balneário Camboriú, Cineramabc. O evento exibiu lon-gas inéditos, nacionais e internacionais, e curtas catarinenses, e promoveu ofici-nas, palestras, debates e premiações. Beto Brant exibiu e dialogou sobre seu novo longa “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” e o documentário “Praça Walt Disney”, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, se destacou na progra-mação nacional. Entre os internacionais, o filme francês “Tomboy”, de Céline Sciamma, foi premiado com a “Coruja de Ouro” de Melhor Filme, por indicação do Júri Popular. A novidade do festival foi a Mostra Internacional de Filmes em No-vas Mídias, que corria paralela às outras mostras, e privilegiou os novos meios de produção e os novos suportes de exibição audiovisual.

● O 13.o aniversário da mostra de vídeos catarinenses Catavídeo contou com a presença de José Mojica Marins, vulgo Zé do Caixão, que discursou sobre o terror no cinema brasileiro e exibiu seu mais re-cente longa “Encarnação do demônio”, o terceiro da trilogia iniciada em 1964, com “À meia-noite levarei sua alma”. Além da programação especial, que incluiu “A noi-te do chupacabras” e a presença do diretor Rodrigo Aragão, e da mesa de discussão intitulada “Filmes: faça do seu jeito”, a mostra exibiu 88 produções de/com cata-rinenses e ofereceu seis oficinas gratuitas, em oito dias de evento no Cineclube Ieda Beck, Fundação Badesc, SESC Prainha e Teatro Armação. O Catavídeo, que surgiu na Cinemateca Catarinense, hoje é reali-zado por Alquimidia.org e Exato Segundo e foi agraciado com a Medalha de Mérito Cultural Cruz e Sousa/2011.

UMA PARCIALIDADE AFETIVAO documentário “ASP.DOC”, de Ana Lucia Vilela, Aline Dias e Julia Amaral, lançado em dezem-bro, conduz a um contato com a trajetória, as reflexões e a vida privada de Carlos Asp, artista que tem no cotidiano sua principal matéria. Estão presentes as “apropriações” de caixas de papelão e a sua oralidade é entrelaçada a uma narrativa visual que inclui imagens captadas pelo próprio Asp em super-8. As realizadoras têm formação em artes visuais e optaram por assumir a relação de amizade com o artista, problematizando assim a suposta imparcialidade do gênero documentário.

PEIxE VIVO FORA D’ÁGUA FRIA“JK no exílio”, documentário de Bertrand Tesson e Charles Cesconetto, registra o desterro voluntário do ex-presidente Juscelino Kubitschek na França, em 1964. O episódio da vida do fundador de Brasília foi reconstituído, na maior parte, pelos relatos da Maria Alice Berengas, sua fiel secretária que ainda hoje vive no exterior. Lançado em Diamantina, a cidade natal de JK, e exibido no segundo semestre em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis, o filme rendeu ao produtor e diretor Charles Cesconetto a Medalha JK, que premia o mérito de brasileiros que tenham prestado serviço de relevância à comunidade.

OLHO DE ROGéRIO RAMIFICADOA produtora Câmera Olho finaliza e edita o longa “Raízes subterrâneas”, que teve início em 2007 e foi realizado com um roteiro que apenas indica as sequências, dando extrema li-berdade de criação na própria locação. “Zulú anárquico”, outra produção da Câmera Olho, inspira-se na estética do catarinense Rogério Sganzerla e deve resultar num curta documen-tal que alude ao cinema antropofágico do au-tor de “O bandido da luz vermelha” e em um longa de ficção do diretor Rafael Schlichting, que procura o poético e ensaístico.

UM OUTRO VIVENDO A SUA VOZA Vinil Filmes filmou em outubro o curta “O ho-mem dublado”, de Renato Turnes, com roteiro e atuação de Malcon Bauer. É a história de um homem comum que, como todo brasileiro, teve formação audiovisual baseada em filmes e pro-gramas de TV dublados. Um eclipse solar, no entanto, causou pânico na população e, como efeito do fenômeno, o homem passa a ter sua voz dublada. Ora fala como mulher, ora como crian-ça, e acaba demitido. Profissionais reconhecidos fazem a dublagem do personagem de Bauer que, curiosamente, não emite um único som durante toda a comédia de realismo fantástico.

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rasc

unho

de

prod

ução

Dois novos curtas de O Mago Realizações

“o relojoeiro”, de Rodrigo Amboni, evidencia as relações homem-tempo

“linha do mar”, de Felipe Vernizzi, aborda o sonambulismo de menino